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Spencer, Andrew (1991) Morphological Theory (An Introduction to

Word Structure in Generative Grammar). Blackwell.


(tradução e adaptação: Maria Cristina Figueiredo Silva)
(versão corrigida em agosto/2005)

Parte I: PRELIMINARES

Capítulo1: O Domínio da Morfologia

1.1 Estrutura da Palavra


Todos os falantes razoavelmente letrados do português sabem talvez
duas coisas sobre a palavra anticonstitucionalissimamente. Primeiro, que ela é
possivelmente a palavra mais longa do dicionário do português. Segundo, que
ela é composta de elementos separados, como anti- (que aparece também em
anti-higiênico), -al (que aparece também em conjugal, adicional), -issima (como
em belíssima), -mente (como em realmente). Caracteristicamente, os falantes
tendem a não saber mais nada sobre esta palavra, por exemplo, o que ela
significa.
A disciplina de lingüística teórica procura fornecer uma caracterização
explícita e precisa do que é que o falante de uma língua sabe quando ele sabe
uma língua. Entretanto, nem tudo o que se pode dizer que um usuário de uma
língua sabe de sua língua é de interesse para o lingüista teórico. O que a teoria
lingüística deseja caracterizar é o conhecimento que qualquer falante deve
possuir a fim de ser olhado como falante da língua.
O “fato” de que anticonstitucionalissimamente é a palavra mais longa do
português é algo que o falante deve ter aprendido (ou ter sido ensinado)
explicitamente. Um falante que acredita neste “fato” faz isso conscientemente e
pode provavelmente explicar a base dessa crença (por exemplo, dizendo que
pesquisou no Aurelião, ou que essa é uma palavra que sempre aparece como
a0 palavra mais longa do português, ou que alguma de suas professoras de
português lhe deu essa informação). A idéia de que esta é realmente a palavra
mais longa da língua depende da noção de “dicionário do português” (no
sentido de que algum documento autorizado registrou todas as palavras do
português). Essa noção não é central na caracterização do português. O
português e seus falantes existiam antes do Aurelião. Finalmente, e
crucialmente, alguém que por acaso não saiba esse fato (assumindo que esse
é um fato ou uma afirmação coerente) não poderia ser classificado como não-
falante de português com base nessa (falta de) informação.
A segunda coisa que o falante sabe sobre a palavra mencionada acima
é algo que ao usuário da língua provavelmente nunca foi ensinado e que
provavelmente ele não tem consciência de saber. Muita gente, quando
confrontada com o fato de que a nossa palavra é decomponível, poderia dizer
coisas como “Que interessante! Eu nunca me dei conta disso!”. Se você pedir
para alguém que nunca aprendeu gramática ou lingüística para decompor essa
palavra em suas subpartes, provavelmente esse alguém achará difícil ou
impossível fazer isso. No entanto, gostaríamos de afirmar que todos os
falantes da língua (incluindo os absolutamente analfabetos) sabem essas
coisas. Como pode ser isso?
Embora falantes ingênuos do português (o que inclui quase todo mundo,
exceto gramáticos e lingüistas treinados) achem difícil articular seu
conhecimento da estrutura da palavra, se você lhes fizer as perguntas certas,
eles podem dar a você a evidência do conhecimento que possuem. Lingüistas
tendem a não gostar de fazer experimentos reais, e por isso nós faremos um
experimento fictício para ilustrar este ponto. Suponha que alguém ouve a sigla
FHC pela primeira vez num fragmento de conversa como o seguinte:

A: O que você acha o FHC?


B: Eu? Eu sou anti-FHC até a raiz dos cabelos.

Dada a ausência de informação suplementar, o nosso falante de português


provavelmente não teria a menor idéia do que significa o termo FHC. Poderia
ser um tipo de inseticida ou talvez um novo imposto. Mas mesmo sem ter a
menor idéia do que o termo FHC representa, o nosso falante sabe que o
falante B se opõe a isso/ele/ela. Do mesmo modo, sem saber o que significa,
falantes do português sabem que anticonstitucionalissimamente é uma maneira
ou modo de fazer ou de conceber algo (termina em –mente). Com alguma
ingenuidade podemos montar esse experimento fictício para cada um dos
componentes isolados previamente na palavra.
Eis um outro experimento (desta vez de um tipo que os lingüistas
tendem a fazer). Pergunte a um falante nativo de português se ele já ouviu ou,
se ele não ouviu, se essas poderiam ser palavras do português:
anticonstituimento, desconstitucionalizabilidade, inconstituicionalização. As
respostas provavelmente serão do tipo “nunca ouvi isso antes” ou “sim, essas
poderiam ser palavras do português”. Agora tente o mesmo com palavras como
mentoconstitucionalanti, alconstituimento ou dadeconstitucionaldes (pratique a
pronúncia delas antes de apresentá-las ao seu informante). As respostas
seguramente serão do tipo “de jeito nenhum” ou “nem pensar”. Essas
simplesmente não são palavras possíveis no português. Mais do que isso:
qualquer falante nativo de português pode julgar esses dados se você
perguntar do jeito certo.
Esse conhecimento sobre a estrutura da palavra é em muitos aspectos o
mesmo tipo de conhecimento que o falante tem sobre a estrutura sonora ou
sintática da língua. É uma parte daquilo que nós sabemos quando somos
falantes nativos de uma língua natural, como o português; e por essa razão é
parte daquele conhecimento da linguagem que os lingüistas caracterizam como
propriamente lingüístico. Portanto, ele é algo que a teoria lingüística tem que
explicar, do mesmo modo que tem que explicar o conhecimento dos padrões
fonológicos ou das estruturas sentenciais de uma língua. O ramo da lingüística
que trata das questões relativas ao conhecimento da estrutura da palavra nas
línguas é a morfologia.

1.2 Morfemas, morfes e alomorfia


Os componentes que isolamos na seção 1.1 não são palavras. Eles são
chamados morfemas. Certamente alguns morfemas da língua, como contra,
podem ser usados como palavras e provavelmente são palavras (além de
serem morfemas). A palavra luz é também um morfema (além de ser uma
palavra). O que une todos esses elementos é que (i) eles parecem contribuir
com algum tipo de sentido, ou pelo menos de função, na palavra da qual eles
são um componente; e (ii) eles não podem ser decompostos em morfemas
menores. De fato, podemos decompor um morfema como contra em sílabas ou
fonemas, mas daí estaremos entrando em um outro domínio de análise, a
fonologia. É bastante claro que morfemas como anti- ou des- contribuem com
um sentido. Do mesmo modo, poderíamos dizer que um morfema como –ismo
significa “doutrina, conjunto de crenças, ...” ou algo parecido. Mas não será tão
simples dizer exatamente o que significa -al- na nossa palavra. No entanto, é
fácil ver que este morfema executa uma função, que é a de transformar um
nome, como constituição, em um adjetivo, como constitucional. Na tradição da
lingüística estruturalista norte-americana iniciada por Bloomfield (1933), um
morfema é geralmente definido como a “menor unidade significativa”.
O fato de que uma mesma entidade possa ser ambos, um morfema e
uma palavra (ou, o que é equivalente, que algumas palavras consistem apenas
de um morfema, isto é, são monomorfêmicas), não deveria nos perturbar.
Entretanto, é útil distinguir esses morfemas que são também palavras
independentes daqueles que aparecem somente com subparte de uma
palavra. Os primeiros são chamados morfemas livres; os últimos, morfemas
presos.
Tipicamente, uma palavra morfologicamente complexa (ou polimórfica)
conterá um morfema central que contribui com o sentido básico, e uma coleção
de outros morfemas modificando esse sentido de várias maneiras. Por
exemplo, na palavra desinteressados podemos isolar o morfema básico
interess- e quatro morfemas presos: des-, -ad-, -o- e -s. Diremos que interess-
é a raiz, e os outros morfemas (presos) são afixos. Os morfemas -a-, -d-, -o- e
-s, que aparecem à direita da raiz, são sufixos, enquanto des-, que aparece à
esquerda da raiz, é um prefixo. Numa palavra como desinteressados,
chamamos stem (tema? radical? base?) à forma desinteressado.
O fato de que desinteressados é o plural de desinteressado é algo que,
novamente, todos os falantes nativos sabem. A diferença reside obviamente na
presença de -s. Na tradição da análise morfêmica estabelecida na Europa, o
sentido de “significativo” da nossa definição de morfema deveria ser alargado
para incluir a noção “plural de um nome”. Mas algo mais em termos de análise
morfológica está implícito nos exemplos do russo em (1):

(1) a. koška “gato” (usado como sujeito)


b. koški “de um gato”
c. koške “para um gato”
d. košku “gato” (usado como objeto)
e. koškoj “por um gato”
f. (o) koške “sobre um gato”

Qualquer um pode dizer que temos uma unidade košk-, com o sentido básico
de “gato”, à qual adicionamos outras unidades (como -i, -e, etc.). No entanto,
mesmo aqueles que conhecem o russo terão dificuldade de dizer exatamente,
ou mesmo aproximadamente, o que essas terminações “significam”. A melhor
maneira de caracterizá-las é em termos de uma mistura de sentido e função
gramatical. As glosas que demos acima são rudimentares, para dizer o mínimo;
uma caracterização acurada delas seria uma tarefa laboriosa. Por exemplo, é
um fato importante da morfologia nominal russa que a forma (1f), que coincide
neste exemplo com a forma (1c), só é usada quando o nome é regido por uma
preposição (embora não qualquer preposição). É também importante saber que
a forma (1e) é usada quando o gato é o agente da passiva de uma sentença (o
rato foi comido pelo gato) ou quando ele forma o predicado com certos verbos
(esse animal é um gato).
Assim, alguns estudiosos poderiam chamar a essas terminações dos
nomes russos de morfemas, e outros poderiam dizer que elas são uma outra
coisa. Discutiremos essa questão em algum detalhe mais tarde neste capítulo e
em outros capítulos.
Um dos fatos sobre morfemas que será tema recorrente neste livro é
que eles têm uma forma física (isto é, fonológica e fonética) e também um
sentido, ou uma função, dentro do sistema gramatical. Dito de outro modo,
morfemas estão na linha de frente da “dupla articulação” da linguagem, isto é, a
articulação entre a forma (o som) e o conteúdo (sentido ou função), e muito da
teoria morfológica é dedicada a estabelecer exatamente como o mapeamento
entre forma e conteúdo é obtido.
Observe a pronúncia dos exemplos abaixo:

(2) a. capas
b. capas feias
c. capas velhas
d. capas amarelas

A terminação de plural regular do português (que estamos tomando como um


morfema) aparece com pelo menos duas pronúncias diferentes: a sibilante
surda /s/ e a sibilante sonora /z/ 1. Já que estes dois elementos representam o
mesmo morfema de plural, chamamos a eles morfes. Eles são realizações
(isto é, formas alternativas) de um único morfema que podemos representar
por -S. Dizemos que os morfes /s/ e /z/ são alomorfes de -S e que o morfema
de plural em português exibe alomorfia.
A alomorfia ilustrada em (2) é condicionada inteiramente pela fonologia.
Com isso queremos dizer que a escolha do alomorfe para o sufixo de plural
depende somente das características sonoras do material que segue a palavra
que estamos pluralizando: escolhemos a sibilante surda /s/ diante de pausa ou
consoante surda seguinte, mas escolhemos a sibilante sonora /z/ diante de
consoante sonora ou vogal. Alguns lingüistas não contam esse tipo de
alomorfia condicionada fonologicamente como “verdadeira” alomorfia. Contudo,
o português também exibe um outro tipo de variação alomórfica que é
reconhecida como alomorfia por todos os lingüistas. Observe a raiz das
palavras em (3) (considere raiz aqui a palavra menos a terminação):

(3) a. olho olhos


b. povo povos
c. ovo ovos
d. osso ossos

1
Estamos aqui tomando a pronúncia padrão de São Paulo.
O que acontece aqui é que a raiz usada para o plural tem uma forma fonológica
diferente daquela que é utilizada no singular. Em outras palavras, a raiz exibe
alomorfia. Adicionalmente, essa é uma propriedade das palavras ou morfemas
do tipo de osso ou povo. Essa não é uma propriedade da categoria de plural,
pois (i) pode ocorrer com outras formações da mesma palavra, por exemplo,
em ósseo; (ii) em geral, outras palavras com forma fonológica similar não
exibem alomorfia de raiz no plural (por exemplo, repolhos ou moços).
Existe um tipo de alomorfia que não parece ser condicionada nem pela
fonologia nem pela palavra à qual o morfema se une, mas sim pela presença
de outros morfemas. Existem muitos adjetivos em português terminados em um
morfema com a forma -ável (ou -ível). Esse morfema assume uma forma
diversa, no entanto, quando adicionamos a ele o sufixo -(i)dade, formador de
nomes:

(4) a. possível possibilidade


b. estável estabilidade
c. provável probabilidade

Outros adjetivos, entretanto, não sofrem esse tipo de mudança, como mostra
(5b), mesmo tendo um segmento fônico final bastante semelhante aos de (4),
como –al, como vemos em (5a):

(5) a. musical musicalidade


b. poroso porosidade

Exemplos nos quais a alomorfia é condicionada somente por um outro


morfema ocorrem em línguas que formam plurais de nomes de muitos modos
comuns e produtivos, e nos quais diferentes sufixos formadores de nomes
tomam diferentes alomorfes de plural. Alemão é uma dessas línguas. Qualquer
nome contável formado pelo sufixo -heit/keit formará seu plural em -en, como
mostra (6):

(6) a. Schwachheit-en “fraqueza”


b. Spracheigentümlichkeit-en “expressão idiomática”
c. Flüssigkeit-en “fluídos”

Entretanto, em geral, um stem terminando em, digamos, uma vogal + /t/ pode
formar seu plural de vários modos:

(7) a. Streit Streit-e “disputas”


b. Kraut Kräut-er “plantas”
c. Zeit Zeit-en “tempos”
d. Braut Bräut-e “noivas”

O que seria interessante dizer aqui é que a escolha da terminação de plural em


(6) é governada inteiramente pelos morfemas -heit/keit.
Uma fonte rica de exemplos de alomorfia é a terminação -ion em inglês,
que forma um nome a partir de certos verbos (uma “nominalização abstrata”).
Ela tem vários alomorfes, sendo o mais comum -ation (como em cite ~ citation,
equivalente ao par português citar ~ citação). No entanto, depois de qualquer
palavra que termine no morfema -ceive (por exemplo re-ceive (receber), de-
ceive (decepcionar), con-ceive (conceber)), encontramos o alomorfe -ion: re-
cept-ion (recepção), de-cept-ion (decepção), con-cept-ion (concepção)). Essas
palavras (e outras como elas com diferentes bases) parecem não ter nada em
comum exceto o fato de que elas terminam nos morfemas -ceive/-cept-.
Como vimos com a alomorfia de -ation ~ -ion e -ceive ~ -cept, variantes
de um dado morfema podem ser fonologicamente muito diferentes umas das
outras. Quando as diferenças são relativamente pequenas e podem ser
descritas por algum tipo de processo fonológico, os lingüistas trabalhando
dentro do paradigma gerativo têm tentado assimilar a alomorfia à fonologia
tanto quanto possível. Em alguns casos, essa pode parecer uma tarefa inglória.
Por exemplo, a classe de verbos fortes do inglês fornece exemplos de
alomorfia bastante drástica: think ~ thought, bring ~ brought. No entanto, num
artigo recente sobre a fonologia do inglês, essas alternâncias são tratadas por
meio de conjuntos de regras fonológicas (Halle e Mohanan, 1985). Em que
medida essa abordagem “fonológica” deveria ser adotada é matéria
controversa, que exploraremos em detalhe na parte II.
Entretanto, há um limite para a explicação fonológica em qualquer teoria,
e este limite é o fenômeno conhecido como supleção (ou supletivismo)
ilustrado pelo tipo de alternância que se observa entre ir e uma das formas do
pretérito perfeito fui, por exemplo. Aqui não existe nenhuma conexão fonológica
entre as duas formas, e assim temos em mãos um caso de supleção total.
Outro exemplo conhecido envolve as formas do verbo ser (sou, era, fui). Um
exemplo menos “padrão” é a formação de nominais agentivos a partir de
verbos que tenham esse papel de agente em sua grade temática: se em alguns
casos a formação é feita via sufixação (vender ~ vendedor), em outros o
nominal agentivo só existe por supleção: ensinar ~ *ensinador (o asterisco
significa “forma agramatical”). O nominal real é a forma supletiva professor (ou
mestre).
Em outros casos os dois alomorfes mantêm alguma similaridade
fonológica. Tipicamente, isso é resultado de um (ou ambos) de dois fatores. Os
dois alomorfes podem ser a conseqüência de uma mudança fonológica na
língua que ocorreu num passado distante e que foi adicionalmente encoberta
por outras mudanças. Este é o caso de think ~ thought. Em outros exemplos,
ocorre que um morfema (ou, mais precisamente, uma palavra contendo um
morfema) entrou como empréstimo de uma outra língua em dois tempos
diferentes e foi assimilada em duas formas diferentes, ou, em casos mais
complexos, ocorre que um mesmo morfema entrou como empréstimo de duas
línguas relacionadas mas diferentes. Por exemplo, a palavra France do inglês é
um empréstimo do francês normando. Contudo, o inglês também tem o
empréstimo do morfema franco- (como em francophile, Franco-Prussian,
francophono) vindo do latim (ainda que os romanos tenham tomado esse
empréstimo dos germânicos). Os historiadores usam formas próximas do
original germânico quando lançam mão dos termos Frank ou Frankish para
fazer referência aos primeiros períodos da história da França. Finalmente, o
adjetivo derivado de France, que é French, é um outro exemplo de alomorfia
que não pode ser explicado de maneira natural pelas regras fonológicas do
inglês atual (sincrônico). A alternância France ~ French é um caso de um
morfema mudando de forma no decorrer das devastadoras mudanças
históricas nos sons da língua. Na medida em que queremos dizer que France,
French, Franco e Frank são todos alomorfes do mesmo morfema, teríamos que
dizer que estamos lidando com supleção aqui. Mas como as variantes ainda
mantêm forte semelhança entre si, chamamos a este tipo de supleção de
supleção parcial. [trocar exemplos por público/povo/popular do português?]

1.3. Tipos de Operação Morfológica


Nesta seção, será dada uma visão geral das diferentes maneiras em que
a forma fonológica das palavras e dos morfemas pode ser mobilizada para
realizar categorias morfológicas. As categorias morfológicas em si serão
discutidas com mais detalhe na próxima seção. Embora o objetivo principal
aqui seja simplesmente o de ter uma idéia da variedade de estruturas e
morfemas das línguas do mundo, também tocaremos alguns dos problemas
teóricos que aparecem quando tentamos descrever essa variedade.

1.3.1 Flexão e Derivação

Gramáticos tradicionais usualmente distinguem dois tipos principais de


operações morfológicas, flexão e derivação. O primeiro tipo foi ilustrado pelo
exemplo (1), onde vimos que um nome em russo aparece em várias formas
diferentes (chamadas casos). A intuição aqui é que temos uma única palavra,
koška, “um gato”, e que ela assume várias formas: koški, koške, košku, etc.
(sem mencionar a própria palavra koška). Desse modo falamos de koški como
“(a forma d)o genitivo singular da palavra koška“. Num território mais
conhecido, vemos a mesma coisa quando dizemos que vai é “a terceira pessoa
do singular do presente do indicativo do verbo ir” e que era é “a forma de
terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do indicativo do verbo ser”.
Já que as formas flexionais são apenas variantes de uma mesma palavra,
flexionar uma palavra não deveria causar mudança em sua categoria.
Adicionalmente, mesmo quando uma palavra pertence a mais de uma
categoria, como algumas palavras do português que são ambos, nomes e
verbos (como jantar, por exemplo), nós flexionamos a palavra ou como nome
ou como verbo. Para algumas teorias, é a definição mesma de flexão a
propriedade de este tipo de morfologia não poder mudar a categoria sintática
da palavra.
O segundo tipo de operação, derivação, já foi ilustrado em várias
ocasiões. Mas vamos tomar um bom exemplo do português. O verbo instituir
forma o nome instituição pela sufixação de -ção. A partir dele, podemos formar
o adjetivo institucional que por seu turno nos dá um verbo, institucionalizar.
Observe que nós andamos em espiral, não em círculo, porque o verbo
institucionalizar não significa a mesma coisa que o verbo instituir. Podemos
continuar agora derivando institucionalização. Também se pode dizer
institucionalizacional, um adjetivo, do qual se pode formar o advérbio
institucionalizacionalmente. Mas em nenhum sentido se pode dizer que a
palavra institucionalizacionalmente é uma “forma” da palavra instituir. Estamos
lidando aqui com a criação de palavras novas a partir de palavras velhas,
“formação de palavras” no sentido literal. Como pode ser observado nos
exemplos acima, a derivação tipicamente (embora não necessariamente)
provoca a mudança de categoria sintática da palavra.
Colocado o problema nesses termos simples, não é difícil ver por que as
pessoas podem acreditar que morfologia flexional é o resultado da aplicação de
processos às palavras, enquanto morfologia derivacional é o resultado da
concatenação de morfemas. Como veremos mais a frente, as coisas não são
tão simples, e na verdade é bastante difícil traçar uma linha divisória entre a
flexão e a derivação de tal modo que a distinção seja válida para todas as
línguas naturais.
Existem duas noções importantes associadas com a morfologia flexional:
a de “classe morfológica” e a de “paradigma”.
Se nós olharmos para as línguas que exibem flexão rica, tipicamente
constataremos que nem todas as palavras de uma dada classe sintática têm
necessariamente as mesmas flexões. Algumas vezes, as palavras caem mais
ou menos arbitrariamente dentro de agrupamentos que são associados a
diferentes conjuntos de flexões. Tais agrupamentos são chamados de classes
morfológicas.
Todos os nomes em russo pertencem a um dos três grupos, ou
gêneros, conhecidos como masculino, feminino e neutro. Embora exista
alguma correlação entre gênero e sexo, a correlação não é perfeita. A palavra
muž ina, por exemplo, toma as desinências (terminações) de um nome
feminino (como koška), mas significa “homem”. Muitos nomes para coisas,
qualidades, etc. recebem gênero masculino, feminino ou neutro em termos
semanticamente arbitrários, mas a justificativa é formal (isto é, determinada
pela forma da palavra): em geral, se um nome termina em uma consoante
(não-palatalizada) na sua forma básica, ele é masculino (por exemplo, stol,
“mesa”); se termina em -a será feminino (por exemplo, lampa, “lâmpada”); e se
termina em -o trata-se de um nome neutro (por exemplo, okno, “janela”).
Sistemas de gênero do tipo russo são de ocorrência freqüente nas
línguas indo-européias, e assim distinções similares (às vezes com somente
dois gêneros, masculino e feminino) são encontrados em alemão, francês,
italiano, espanhol e grego, bem como em outras línguas eslavas. Entretanto,
sistemas de gênero e sistemas flexionais são em princípio independentes um
do outro. É perfeitamente possível ter um sistema flexional sem qualquer sinal
de gênero (como no finlandês, no húngaro e em muitas outras línguas ural-
altaicas). Por outro lado, é perfeitamente possível ter gênero sem flexão. O
francês tem gênero masculino e feminino, mas o gênero não aparece
formalmente representado na maioria dos nomes, pois eles perderam as
flexões de caso. O resultado é que o gênero em francês serve simplesmente
para diferenciar grupos de palavras arbitrariamente definidos, ou classes
lexicais, com nenhum outro reflexo morfológico. Em italiano, espanhol e
português, a situação parece diferente: os nomes também perderam as
desinências de caso e existem dois gêneros, masculino e feminino, mas nomes
masculinos tendem a terminar em -o, enquanto nomes femininos tendem a
terminar em -a. Assim, parece que algum reflexo de um sistema de classes
morfológicas ficou retido, refletido somente nas desinências (embora isso
possa ser de fato uma hiper-simplificação).
Em algumas línguas, os verbos são sub-classificados de acordo com
propriedades sintáticas. Uma distinção óbvia é aquela entre verbos transitivos e
intransitivos. Não é incomum nas línguas que os verbos intransitivos tenham
flexão indicando o sujeito enquanto os verbos transitivos apresentem flexão
tanto para o sujeito quanto para o objeto (um outro exemplo de concordância).
Por exemplo, em chukchee (que também é pronunciado chukchai), uma língua
paleo-siberiana falada no nordeste da Sibéria, pode-se saber a partir da forma
do verbo se o sujeito e o objeto são singular ou plural ou se são de 1ª, 2ª ou 3ª
pessoa, como se pode ver nos exemplos (8) e (9) abaixo:

(8) raiz wak?o “sentar”


a. t -wak?o-k “eu sentei”
b. wak?o-g?a “ele sentou”

(9) raiz pela “deixar (alguém, alguma coisa)


a. t -pela-g t “eu deixei você”
b. t -pela-g?an “eu deixei ele”
c. ne-pela-g t “ele deixou você”
d. pela-nen “ele deixou ele”

Em ambos os exemplos, o do intransitivo em (8) e do transitivo em (9), o


prefixo t - indica que o sujeito é de 1ª pessoa do singular. Entretanto, no verbo
transitivo pela-, vemos que também o objeto está marcado: em (9a,c), o objeto
de 2ª pessoa do singular é indicado pelo sufixo -g t. Em (9b,d), o objeto de 3ª
pessoa do singular é indicado por dois sufixos diferentes, -g?an e -nen.
Nenhum desses sufixos aparece com o verbo intransitivo (embora -g?an de
(9b) seja bastante similar à forma do marcador de sujeito de 3ª pessoa do
singular que se vê em (8b), -g?a). Quando temos esse tipo de morfologia, na
qual as terminações dos dois tipos de verbo são diferentes, podemos falar de
uma classe “transitiva” e de outra “intransitiva”.
Os sistemas de classes morfológicas baseados em gênero ou
transitividade representam subclassificações que são motivadas por
considerações sintáticas (concordância). Por exemplo, em francês o gênero do
nome determina a forma do artigo definido no singular le/la: le soleil, “o sol”,
masculino, mas la table, “a mesa”, feminino. Nos verbos do chukchee,
especificamos a pessoa e o número do sujeito e do objeto. Mas há muitas
línguas em que a única motivação para um elemento ser membro de uma
classe é morfológica: algumas palavras escolhem um conjunto de flexões e
outras palavras escolhem um outro conjunto. Freqüentemente, esse tipo de
sistema interage com gênero e outras subclassificações baseadas na sintaxe.
Quando isso acontece em nomes, tradicionalmente fala-se de classes
declináveis ou declinações; com verbos, falamos de classes conjugacionais
ou conjugações.
O russo fornece um exemplo de um sistema conjugacional. Os verbos se
flexionam em pessoa (1ª, 2ª e 3ª) e número (singular e plural) no tempo não-
passado; eles também têm uma forma de imperativo, um infinitivo e vários
particípios. Na maior classe, um verbo consiste de um morfema raiz seguido
pela marca da conjugação (freqüentemente referido como “tema” ou
“extensão”), que se superficializa ou como -a- ou como -aj-. A outra classe
principal de verbos é formada com um tema diferente, -i-. Exemplos de dois
verbos típicos são dados em (10) e (11):

(10) del-a-t “fazer”


Sg. Pl. Imperativo
1ª del-aj-u del-aj-em sg.: del-aj
2ª del-aj-eš del-aj-ete pl.: del-aj-te
3ª del-aj-et del-aj-ut
Particípio passado ativo: del-a-l
Particípio passado passivo: del-a-n
Particípio presente ativo: del-aj-uš ij
Particípio presente passivo: del-aj-emyj

(11) govor-i-t “falar”


Sg. Pl. Imperativo
1ª govor-ju govor-i-m sg.: govor-i
2ª govor-i-š govor-i-te pl.: govor-i-te
3ª govor-i-t govor-jat
Particípio passado ativo: govor-i-l
Particípio passado passivo: govor-jo-n
Particípio presente ativo: govor-jaš ij
Particípio presente passivo: govor-i-myj

Nestes quadros é fácil ver que as terminações que distinguem uma


forma de outra são as que estão à direita dos temas -a(j)- ou -i-. Por outro lado,
se comparamos as centenas de verbos que pertencem a cada um desses
grupos, vemos que todas têm exatamente o mesmo tema intervindo entre o
radical e a desinência. Esse tema não tem outro propósito senão o de ajudar a
criar uma base à qual se adjungirão as desinências flexionais, e o de definir as
classes morfológicas separadas (conjugações). Novamente, essa situação é a
que prevalece nas línguas indo-européias e essencialmente o mesmo
fenômeno pode ser observado em outras línguas eslavas, nas línguas
românicas, em grego e outras línguas.
Os quadros em (10) e (11) também ilustram a segunda noção conectada
com flexão, a de paradigma. Um paradigma é o conjunto de todas as formas
flexionadas que um palavra particular assume. Algumas vezes o nome se
refere a alguma sub-parte especificável do paradigma total. Assim, a lista de
formas de palavra que vimos em (1) poderia ser chamada de “o paradigma de
singular do nome koška”. Há um certo consenso entre muitos lingüistas de que
a noção de paradigma deve ser importante, talvez mesmo primária em algum
sentido. Porém, tem-se provado extremamente difícil caracterizar a idéia
adequadamente, para não falar em dar-lhe uma definição apropriada, e em
muitas teorias contemporâneas de morfologia a noção de “paradigma” não
desempenha nenhum papel. Isso será discutido com mais detalhe nos
capítulos 2 e 6.

1.3.2 Morfemas: coisas ou regras?

Um tema recorrente da teoria morfológica é a interação entre um nível


relativamente abstrato de análise morfológica, no qual um dado morfema pode
ser pensado como um termo de cobertura para várias relações que se
sustentam entre as palavras, e um nível mais concreto no qual palavras e
morfemas são realizados como sons (ou pelo menos como fonemas). Por
“nível abstrato” entendemos um nível no qual, por exemplo, podemos
representar a idéia de um morfema de tempo passado em inglês simplesmente
como uma entidade PASSADO de algum tipo, cuja propriedade principal é a de
se realizar sobre verbos, e que está em contraste com uma propriedade
diferente, isto é, PRESENTE ou NÃO-PASSADO. No nível concreto,
encontramos esta categoria PASSADO instanciada como o -ed final de walked
ou a vogal de sang (como oposta a de sing) ou ainda a forma supletiva went
(frente a go). A mera existência do fenômeno de alomorfia mostra que o
mapeamento entre esses dois níveis não é trivial.
Existem duas metáforas persistentes que são usadas pelos lingüistas
para conceptualizar esse mapeamento. Uma é olhar os morfemas como coisas
que se combinam entre si para produzir palavras. Nessa metáfora, o morfema
é algo como a palavra, só que menor, e o componente morfológico de uma
gramática é um pouco como a sintaxe, no sentido de que sua função é juntar
os morfemas. A outra metáfora olha os morfemas como o produto final de um
processo ou uma regra ou uma operação. Aqui, não é a existência dos
morfemas que conta, mas o sistema de relações ou contrastes que os
morfemas criam. Sob este ponto de vista, a morfologia se parece com a
fonologia gerativa, porque tomamos alguma forma básica (digamos, a palavra)
e nela executamos alguma operação para derivar uma forma diferente dessa
palavra ou uma palavra completamente diferente.

1.3.3 Formativos morfológicos: morfemas como coisas

Até agora, examinamos os exemplos mais típicos de morfologia que são


mais facilmente interpretáveis como concatenação de “coisas”, a saber, a
afixação, na qual prefixos e sufixos são adjungidos de uma raiz. Morfologistas
freqüentemente identificam outros dois tipos de afixos: o infixo e (com mais
controvérsia) o circunfixo.
Um infixo é um afixo que é colocado dentro de um outro morfema (e não
ao lado de um morfema ou entre morfemas). Em outras palavras, ele é capaz
de dividir em dois um único morfema. Um caso clássico de uma língua com
infixação é o tagalog, uma das línguas mais faladas nas Filipinas, que usa os
infixos -um- e -in- em algumas de suas formas verbais. No exemplo (12) abaixo
é importante perceber que a raiz sulat é um morfe único, que não pode ser
dividido em dois morfemas menores, como s- e -ulat:

(12) da raiz monomorfêmica sulat “escrev-“


a. sumulat “escrever” (foco no sujeito)
b. sinulat “escrever” (foco no objeto direto)

Em algumas línguas, um prefixo e um sufixo podem se adjungir


simultaneamente a uma base para expressar um único sentido ou categoria
conjuntamente. Alguns morfologistas analisam tais duetos como um tipo
especial de afixo descontínuo, um circunfixo. Esse tipo de afixação também é
conhecido como parassíntese. Por exemplo, foi sugerido que o particípio
passado em alemão é formado por um circunfixo ge ... t como em gewandert
“desejado”, da base verbal wander-. No entanto, muitos lingüistas
argumentariam que todos os casos da alegada circunfixação podem ser
reduzidos (ou devem ser reduzidos) a sufixação e concomitante prefixação. Por
exemplo, no caso do alemão, a parte sufixal do circunfixo sempre é idêntica à
terminação encontrada no tempo passado. Não existe, assim, razão real para
fazer menção a um tipo especial de afixo. Em algumas teorias, circunfixos são,
considerados, em princípio, impossíveis.
Existe uma forma de afixação que é tão diferente das operações padrão
de prefixação e sufixação que ela não é vista universalmente como afixação.
Trata-se do fenômeno da reduplicação, em que alguma parte da base é
repetida, ou para a esquerda, ou para a direita, ou às vezes no meio. Tagalog
novamente é uma fonte rica desse tipo de morfologia. Em (13) vemos um
exemplo em que a primeira sílaba da raiz é reduplicada:

(13) a. raiz sulat (como no exemplo (12)):


futuro: susulat
b. raiz basa “l(er)”
infinitivo prefixado: mambasa
nominalização: mambabasa
c. raiz sulat:
infinitivo causativo prefixado: magpasulat (fazer alguém escrever)
futuro: magpapasulat

Note que em (13c) a sílaba final do prefixo foi reduplicada. Em (14) vemos um
exemplo de uma palavra sendo inteiramente reduplicada:

(14) magsulatsulat “escrever intermitentemente”

Seguem-se mais alguns exemplos, agora com a reduplicação


interagindo com a infixação:

(15) a. sumulat “escrever“ infinitivo


b. sumusulat tempo presente

(16) a. bumasa “ler” infinitivo


b. bumasabasa “ler intermitentemente”

A coisa interessante na reduplicação é que ela envolve adição de


material, exatamente como as outras formas de afixação, mas a identidade do
material adicionado é parcial ou completamente determinada pela base. Assim,
temos uma forma de afixação que se parece muito mais com algum tipo de
processo que se aplica sobre a base do que uma simples concatenação de um
morfema com outro. O fenômeno é de grande interesse teórico por esta razão,
entre outras, e a seção 5.2 será inteiramente devotada a ele.
A afixação é morfologia por excelência. Existem três outros tipos de
operação que afetam a estrutura da palavra e que envolvem concatenação.
Esses fenômenos estão beirando a sintaxe e em algumas teorias são tratados
como operações sintáticas: a cliticização, a composição e a incorporação.
Clíticos, como afixos, são elementos que não podem existir
independentemente e podem por isso ser olhados como um tipo de morfema
preso. Um clítico típico se adjungirá a alguma outra palavra ou sintagma
(conhecido como hospedeiro) e nos casos simples a categoria sintática do
hospedeiro será de pouca importância (embora, por exemplo, a sua posição na
sentença possa ser crucial). Já que os clíticos se adjungem a palavras já
completamente flexionadas, isso significa que, digamos, um clítico pronominal
referente ao objeto do verbo pode adjungir-se ao (já completamente flexionado)
NP sujeito da sentença. Por esta razão, ficamos relutantes em pensar os
clíticos como algum tipo de flexão. Nesse sentido, clíticos são mais como
palavras independentes.
As línguas românicas fornecem alguns dos mais bem estudados
exemplos de clíticos (ainda que, sob alguns aspectos, os clíticos românicos
sejam mais como afixos do que os clíticos de outras famílias de línguas). Em
francês, pronomes objeto são clíticos que se adjungem antes do verbo
(proclíticos) ou após o verbo (enclíticos). Se existe mais de um clítico, eles
seguem uma ordem rígida que em si depende do fato de eles aparecerem em
próclise, como no exemplo no indicativo de (17a), ou em ênclise, como no
exemplo no imperativo em (17b):

(17) a. Il me les a donnés


/ele me os tem dados/
“Ele deu eles pra mim”

b. Donnez-les-moi
/dais-os-mim/
“Me dá eles”

Em muitas línguas, os clíticos se adjungem a palavras ou sintagmas de


qualquer categoria sintática desde que elas estema em uma posição particular
na sentença, muito comumente a posição inicial. O tcheco tem formas clíticas
de pronomes objeto e do verbo auxiliar “ser”, usado para formar o tempo
passado. A ordem das palavras é bastante livre, de modo que qualquer
constituinte pode aparecer em posição inicial de sentença. Entretanto, os
clíticos devem sempre vir em segunda posição e, como os clíticos do francês,
aparecem em uma ordem rígida. Todas as sentenças de (18) significam “eu vi
ele ontem”, jsem e ho são os clíticos (o pronome sujeito já, “eu”, é opcional,
sendo utilizado somente para obter a interpretação enfática do sujeito):

(18) a. Vid l jsem ho v era


/viu aux-2ª sing ele ontem/

b. V era jsem ho vid l


c. Já jsem ho vid l v era

Muitas línguas exibem alguma forma de composição. Existem mesmo


línguas (como é o caso do chinês e do vietnamita) em que esta é a única
evidência real de complexidade morfológica. O caso arquetípico é o de
compostos de dois nomes para produzir um nome composto, do tipo sofá-
cama. O inglês, no entanto, exibe compostos consistindo de adjetivo-nome
(como blackbird, “pássaro preto”), nome-adjetivo (como cobalt blue, “azul
cobalto”) e um ou dois casos de verbo-nome (como swearword, que significa
“palavra ofensiva” ou “palavrão”). Algumas línguas permitem construções que
não são possíveis ou que são improdutivas em inglês. No italiano, e em outras
línguas românicas, podemos formar o que é em geral visto como um composto
a partir de um verbo e seu objeto, como portalettere, “carteiro”, literalmente
“transporta cartas”. Em português, exemplos do mesmo processo seriam
guarda-roupa ou beija-flor. Em algumas línguas parece ser possível criar
palavras compostas a partir de sentenças inteiras, como na expressão do
francês cessez-le-feu “cessar-fogo”, no qual o nome feu, “fogo” é modificado
por um artigo definido, e o verbo componente cessez, “cessar” está na forma
imperativa. Algo parecido se pode observar em português nos compostos bem-
te-vi ou malmequer, onde vemos pronomes objeto e verbos conjugados no
presente ou no pretérito perfeito (além da posição especial para o advérbio).
Um dos fenômenos mais intrigantes da morfologia das línguas do mundo
é o da incorporação. Fala-se de incorporação quando uma palavra
(tipicamente um verbo) forma um tipo de composto com, digamos, seu objeto
direto, ou modificadores adverbiais, ainda retendo a sua função sintática
original. Para que ocorra verdadeira incorporação, deve haver uma paráfrase
usando os mesmos morfemas na qual as raízes incorporadas aparecem como
palavras independentes. Chukchee fornece um rico conjunto de exemplos:

(19) a. T -perlark n qora


Eu-deixo a rena
“Eu estou deixando a rena”
b. T -qora-perlak n

Em (19b), que significa o mesmo que (19a) e usa as mesmas raízes, a raiz
qora, “rena”, foi incorporada ao verbo para formar uma única palavra, Isto é
evidente pelo fato de que o prefixo de concordância com o sujeito de 1ª pessoa
do singular t - precede a raiz qora. A estrutura da palavra é então alguma coisa
como “eu-estou-rena-deixando”. Em outros casos (como o de (20) abaixo),
podemos afirmar que uma raiz foi incorporada porque ela sofre harmonia
vocálica. Isso significa que as vogais de certas raízes mudarão sob a influência
de vogais de outros morfemas. Esse processo não se estende para além das
fronteira de uma única palavra, e assim ele serve como uma indicação
fonológica para fazer a distinção entre uma palavra e um sintagma. Exemplos
muito mais complexos são possíveis, em que um verbo incorpora mais de uma
raiz. No exemplo (20), as raízes jaa, ra n e melgar, bem como a raiz mara ,
podem todas formar palavras independentes (em tempo: a palavra milger, que
aqui aparece na variante harmonizada melgar, é originariamente um composto
nome-nome, significando “arco de fogo”):

(20) T -jaa -racw -melgar-maraw rk n


Eu-de uma distância-rivalizo-arma-luta
“Eu estou-me batendo em duelo”

Todos os três fenômenos têm provocado o interesse dos lingüistas teóricos. A


cliticização será discutida em algum detalhe no capítulo 9 e a incorporação
aparece no capítulo 7. O capítulo 8 é inteiramente devotado às teorias de
composição.

1.3.4 Formativos morfológicos: morfemas como regras

Não é incomum encontrar um afixo condicionando uma mudança


fonológica na base à qual ele se adjunge. Às vezes, parece que, na medida em
que a língua evoluiu, a forma fonológica do afixo foi desaparecendo com o
passar do tempo e deixou como seu único traço a alomorfia fonologicamente
condicionada na sua base. Quando isso acontece, a alternância fonológica
(isto é, a mudança na forma exibida pelo morfema que é a base) assume a
função da afixação original. Superficialmente, pelo menos, um morfema como
“coisa” foi substituído por um morfema como uma regra.
Nesta seção, vamos olhar cinco exemplos de morfemas que são
realizados como alternâncias fonológicas. Os processos fonológicos que eles
envolvem são: acento (inglês), extensão da vogal (hausa), tom (chiche a),
apofonia ou ablaut, isto é, a mudança nas vogais da raiz (árabe) e mutação
(consonântica), isto é, alternâncias em consoantes no início de palavra
(nivkh). Vamos então discutir um sexto caso, no qual não há nem um morfema
visível nem uma mudança fonológica, a conversão morfológica.
Observe os dados em (21), em que um acento agudo indica a posição
do acento principal:

(21) a. contrást “contrastar” b. cóntrast “contraste”


incréase “aumentar” íncrease “aumento”
impórt “importar” ímport “importância”
purpórt “pretender” púrport “teor”
tormént “atormentar” tórment “tormento”
transpórt “transportar” tránsport “transporte”

Todos os exemplos em (a) são verbos e todos os exemplos em (b) são nomes.
O que parece estar acontecendo aqui é que a posição do acento é usada como
um dispositivo derivacional para assinalar a categoria sintática da palavra. No
caso de perfect vemos que a mesma coisa acontece com o par adjetivo-verbo.
Hausa, uma língua chádica do nordeste da Nigéria, tem elementos que
fazem lembrar os auxiliares do inglês, pois aparecem antes dos verbos para
assinalar tempo/aspecto (isto é, o tempo em que e a maneira na qual alguma
coisa aconteceu). Os marcadores de aspecto completivo estão ilustrados em
(22) (vogais duplas são longas, ou seja, “aa” = [a:]):

(22) naa kaawoo “eu comprei”


kaa kaawoo “você comprou”
yaa kaawoo “ele comprou”
taa kaawoo “ela comprou”
an kaawoo “alguém comprou, comprou-se”
mun kaawoo “nós compramos” (no passado perfeito)
kun kaawoo “vocês compraram”
sun kaawoo “eles compraram”

Quando estes marcadores aparecem em sentenças relativas, em sentenças


topicalizadas ou depois de certos complementizadores, no entanto, eles
assumem uma forma “relativa” especial, mostrada em (23) (um acento grave
indica tom baixo e a ausência de acento indica tom alto):

(23) abìn dà na kaawoo “a coisa que eu comprei”


abìn dà ka kaawoo “a coisa que você comprou”
abìn dà ya kaawoo “a coisa que ele comprou”
abìn dà ta kaawoo “a coisa que ela comprou”
abìn dà akà kaawoo “a coisa que alguém comprou”
abìn dà mukà kaawoo “a coisa que nós compramos”
abìn dà kukà kaawoo “a coisa que vocês compraram”
abìn dà sukà kaawoo “a coisa que eles compraram”

Na forma indefinida de 3ª pessoa do singular e nas formas de plural vemos os


marcadores aspectuais sufixados com -n na forma normal e com -kà na forma
relativa. Mas nas outras formas de pessoa e número um vogal longa alterna
com uma vogal curta. Esses dados sugerem que para estas formas é a
extensão da vogal em si mesma que indica se os marcadores estão na forma
relativa.
Verbos em árabe se dividem em um certo número de diferentes classes
(freqüentemente referidas pelo termo hebraico binyanim, singular binyan),
organizadas em torno de uma única seqüência raiz tri-consoanantal. Por
exemplo, a seqüência k-t-b forma as seguintes oito classes de formas verbais –
daremos a sua numeração tradicional aqui (consoantes duplas são
pronunciadas como geminadas e vogais duplas são longas; a alternância de
extensão e o aparecimento de outras consoantes serão discutidos no capítulo
5):

(24) Binyan
I katab “escrever”
II kattab “causar escrever”
III kaatab “corresponder-se”
IV ?aktab “causar escrever”
VI takaatab “escrever um para o outro”
VII nkatab “subscrever”
VIII ktatab “escrever, ser registrado”
X staktab “escrever, fazer escrever”

A partir das glosas fica claro que o sentido básico da raiz se relaciona com
escrever. Os diferentes binyanim representam em sua maioria classes
derivacionais (tais como “causativo” ou “recíproco”), embora isso não seja
sistemático para todos os verbos.
O árabe também tem um conjunto rico de classes flexionais para os
verbos. O quadro em (25) dá algumas delas para os oito binyanim de (24)
(“Pftv.” = perfectivo; “Impf.” = imperfectivo; “Act.” = ativa; “Pass.” = passiva;
para os presentes propósitos, não interessa o que estes termos significam):

(25) Pftv. Pftv. Impft. Imptf.


Act. Passivo Act. Passivo
I katab kutib aktub uktab
II kattab kuttib ukattib ukattab
III kaatab kuutib ukaatib ukaatab
IV ?aktab ?uktib u?aktib u?aktab
V takattab tukuttib atakattab utakattab
VI takaatab tukuutib atakaatab utakaatab
VII nkatab nkutib ankatib unkatab
VIII ktatab ktutib aktatib uktatab
Observando (25), é imediatamente aparente que as categorias de
aspecto (isto é, o perfectivo e o imperfectivo) e de voz (isto é, ativa e passiva)
são associadas com diferentes seqüências de vogais (ignorando extensão da
vogal), seqüências estas dadas em (26) abaixo:

(26) Perfectivo ativo: (a)-a-a


Perfectivo passivo: (u)-u-i
Imperfectivo ativo: u-a-i ou (a)-a-a-i
Imperfectivo passivo: u-a-a-(a)

Devemos admitir que nem todas as formas imperfectivas ativas se encaixam


em um dos dois esquemas sugeridos, mas para as outras formas o encaixe é
bastante bom. Adicionalmente, essa impressão é reforçada se acrescentamos
outros binyanim e outras categorias flexionais que omitimos aqui.
Aqui, então, temos um sistema morfológico no qual a seqüência de
vogais representa uma categoria morfológica. Alternâncias similares entre
vogais de diferentes categorias morfológicas são encontradas em línguas indo-
européias, incluindo o inglês. Assim, uma versão em miniatura do padrão do
árabe é mostrado pela sua tradução (dada numa transcrição fonêmica larga em
(27)). O verbo sing provê uma dimensão extra:

(27) a. rait rout rit “escrever”


b. si sa s so “cantar”

Chiche a, falado predominantemente em Malawi, apresenta uma


característica típica das línguas bantus, que é o fato de as sílabas poderem
apresentar um dos dois tons: alto (marcado com um acento, ´) ou baixo (não
marcado) (embora alguma vogais possam apresentar ambos de uma só vez,
formando um tom decrescente, ^). Sua morfologia verbal também é típica em
permitir que a forma de um verbo intransitivo inclua (entre outras coisas) um
prefixo de concordância com o sujeito e um marcador de tempo/aspecto. Por
exemplo, a forma ndi-ná-fótokoza “eu expliquei” tem a estrutura mostrada em
(28):

(28) ndi - ná fótokoza


1ªsg.suj - passado - explicar

Há um sistema rico de tempos e aspectos em chiche a. Uma amostra está


presente em (29), todas formas verbais de 1ª pessoa do singular:

(29) ndi-ná-fótokoza passado simples


ndi-na-fótókoza passado recente
ndí-nâ:-fótókoza passado remoto
ndi-ku-fótókoza infinitivo/progressivo
ndí-ma-fotokózá presente habitual
ndi-ma-fótókoza passado habitual
ndí-dzá-fótokoza futuro
Como é evidente, o padrão de tom sobre o verbo como um todo depende do
tempo/aspecto. Em muitos casos ele é acompanhado por uma mudança no
afixo, mas algumas formas, tais como o passado simples e o passado recente,
ou o passado habitual e o presente habitual, se distinguem apenas pelo tom.
Parece, portanto, que o tom é parte do morfema de tempo/aspecto (como
argumenta explicitamente Mtenje, 1987, de quem estes dados foram tomados).
Nivkh (algumas vezes chamada gilyak na literatura mais antiga) é uma
língua geneticamente isolada da Sibéria, falada na bacia do Amur e na ilha de
Sakhalin. O inventário de consoantes do Nivkh inclui plosivas surdas, sonoras e
aspiradas e fricativas surdas e sonoras. Um certo número de relações
gramaticais e morfológicas são assinaladas (em parte, pelo menos) por
mutação consonântica. Por exemplo, uma plosiva surda alterna com uma
plosiva sonora e uma plosiva aspirada alterna com uma fricativa surda. Nomes
podem ser formados a partir de raízes verbais por sufixação, mas isso é
freqüentemente acompanhado por mutação, como nos exemplos de (30):

(30) verbos nomes


Rovd‚ tirar (água) qovs concha
r raspar t s raspador
vu id‚ varrer pu is vassoura
xuvd‚ hoop k’uvs hoop
xad‚ suportar q’as pilar
fad‚ put on knee-piece p’ad‚ knee-piece

Um conjunto similar de alternações se encontra entre os verbos: com


freqüência, os pares transitivo/intransitivo se relacionam apenas por mutação,
como no exemplo (31):

(31) Transitivo Intransitivo


r z l d‚ pesar t z l d‚ pesar
avud‚ esquentar q’avud‚ esquentar
esqod‚ queimar algo kesqod‚ se queimar
s ud‚ remover ’ ud‚ sair
v kzd‚ perder p kzd‚ se perder
rad‚ cozinhar t’ad‚ cozinhar
zod‚ dobrar od‚ dobrar

O caso do nivkh parece ser como aquele de outras línguas exibindo


mutação, em que o conjunto original de alternâncias parece ter sido o resultado
de mudanças fonológicas induzidas por prefixação, composição ou o que quer
que seja. O aspecto fonológico então se divorcia do processo morfológico (por
exemplo, por desgaste do prefixo condicionante), deixando a alternância
fonológica como o único vestígio. No entanto, quando a alternância fonológica
se encontra assim morfologizada, ela é livre para assumir uma vida
independente por si mesma, e pode ser empregada para expressar outra
relações morfológicas e gramaticais. Isto é verdade para o nivkh, língua em
que, por exemplo, a mutação é encontrada em nomes com um afixo
possessivo, verbos transitivos tomando um objeto direto visível, núcleos de
nomes composto e em reduplicação. Usada com adjetivos, ela pode significar
um intensivo. Como em outras línguas com mutação, todavia, permanece
sendo bastante complexa a relação entre fatores condicionantes puramente
gramaticais e fatores condicionantes fonológicos.
O leitor astuto que sabe inglês, olhando as glosas dos exemplos dos
pares de verbos transitivo/intransitivo do nivkh em (31), terá notado que em
inglês vários pares do tipo transitivo/intransitivo têm exatamente a mesma
forma. Isto não é sempre verdade; por exemplo, alguns pares se relacionam
por ablaut similar ao ilustrado em (27) para os verbos irregulares: lie ~ lay,
(colocar/ser colocado em algum lugar) ou fall ~ fell (a tree, uma árvore)
(cair/fazer cair). Entretanto, a situação mais comum é aquela em que um verbo
que tenha a versão transitiva e a intransitiva não exiba nenhuma diferença de
forma. Esse fenômeno na verdade é mais generalizado em inglês. Considere
os pares nome-verbo e verbo-nome em (32):

(32) a. to cut (cortar) a cut (um corte)


to run (correr) a run (uma corrida)
to stand (suportar) a stand (um suporte)
to ring (cercar, rodear) a ring (um círculo, uma roda)
to walk (andar) a walk (uma caminhada)

b. a hand (uma mão) to hand (entregar)


an orbit (uma órbita) to orbit (orbitar)
a ring (uma campainha) to ring (tocar campainha)
a grandstand (uma arquibancada) to grandstand (xxx)

Por estes dados, parece que podemos livremente usar um nome como um
verbo e vice-versa, a despeito do fato de que o inglês tem uma variedade de
sufixos que fazem a mesma coisa.
Uma outra ocorrência disso é o que vemos nos dados (33)-(35):

(33) a. The chicken was killed (by Harriet)


/O frango foi morto (por Harriet)/
b. The chicken is freshly killed (*by Harriet)
/O frango está recentemente morto (*por Harriet)/
c. A freshly killed chicken.
/Um frango recentemente morto/

(34) a. This vase was broken (by Dick)


/Este vaso foi quebrado (por Dick)/
b. This vase is completely broken (*by Dick)
/Esse vaso está completamente quebrado (*por Dick)/
c. A completely broken vase
/Um vaso completamente quebrado/

(35) a. The manuscript was written badly (by Tom)


/O manuscrito foi mal escrito (por Tom)/
b. The manuscript is badly written (*by Tom)
/O manuscrito está mal escrito (*por Tom)/
c. A badly written manuscript
/Um manuscrito mal escrito/
Nestes dados, vemos que os particípios passivos que aparecem nos exemplos
(a) estão sendo usados como adjetivos nos exemplos (b) e (c). Dado que o
particípio passivo é em geral visto como uma forma flexionada do verbo, temos
aqui um outro caso de uma palavra que transfere sua obediência de uma
categoria sintática para outra sem sofrer qualquer mudança formal.
Há duas abordagens para a descrição teórica de morfologia deste tipo.
Uma é dizer que nos é permitido “converter” um nome em um verbo e vice-
versa, ou um particípio em um adjetivo, simplesmente reetiquetando-o. A outra
é dizer que a mudança de categoria é o efeito da adjunção de um afixo, mas
que este afixo é fonologicamente nulo, isto é, é um morfema zero em outras
palavras. A primeira destas abordagens é conhecida como conversão
(morfológica), enquanto a segunda é chamada afixação zero ou nula.
A conversão morfológica é um tipo de processo, embora não seja um
processo fonológico. Aqui, o morfema é uma regra (usualmente formalizada
como uma regra que muda a etiqueta de “nome” para “verbo” ou o que quer
que seja). Afixação zero, por outro lado, é pensada para ser como exatamente
como qualquer outra forma de afixação. Aqui, o morfema responsável é
claramente uma coisa, embora seja uma coisa fantasmagórica. Essas noções
não são incompatíveis uma com a outra, em geral. É possível que uma teoria
gramatical inclua ambos os tipos de descrição. Na verdade, um lingüista
(Lieber, 1981b) defendeu que os dados de (32) deveriam ser tratados por
conversão morfológica, enquanto os dados de (33)-(35) ilustram afixação zero.
Entretanto, é possível imaginar uma teoria que fosse incapaz de sancionar uma
ou outra dessas possibilidades, pelo menos dentro de uma mesma língua.

1.3.5 Sumário

Os exemplos de morfemas-como-coisas e morfemas-como-processos


que foram dados em 1.3.3 e 1.3.4 não foram dados com a intenção de implicar
análises definitivas. Alguns lingüistas têm afirmado que todas as operações
morfológicas deveriam ser encaradas como regras; outros têm insistido que
onde possível, nos casos em que parece como se uma regra esteja sendo
usada como um morfema, os dados deveriam ser reanalisados de tal modo que
o processo subjacente fosse desencadeado por um morfema-como-uma-coisa.
Por exemplo, confrontado com mutação consonântica inicial, um tal lingüista
pode bem propor que em algum nível abstrato subjacente haja um prefixo ou
outro formativo que exerce sua influência fonológica e então desaparece,
deixando a mutação como seu único traço. Neste caso, no nível subjacente, o
morfema seria representado pelo prefixo “abstrato”, e a alternância fonológica
seria apenas um exemplo de alomorfia condicionada fonologicamente.
A moral é que uma descrição simples dos fatos superficiais não constitui
necessariamente uma descrição completa, e assim uma descrição superficial
nem sempre permite que se extraia quaisquer inferências teóricas. É apenas
no contexto de uma teoria da gramática explicitamente articulada que um
conjunto de dados pode revelar a sua significância completa. Ainda mais
importante, é apenas dentro dos quadros de uma teoria explícita que podemos
esperar explicar por que os dados exibem o padrão que eles exibem, ligando
uns com outros fatos de outro modo desconectados, através de um
intermediário teórico mais abstrato. Este ponto será ilustrado em inumeráveis
ocasiões durante todo este livro.
1.4 Funções da morfologia – morfossintaxe
Na seção 1.3.1 distinguimos a morfologia derivacional, pela qual novas
palavras são formadas, da morfologia flexional. Operações derivacionais
tipicamente criam uma palavra de uma classe sintática diferente daquela da
base, mas também adiciona elementos ulteriores de significação. Por exemplo,
os afixos -(d)or e -(a)ção transformam ambos verbos em nomes, mas -(d)or cria
nomes com o sentido de um agente ou instrumento, enquanto -(a)ção cria um
nome abstrato (cf. criador, criação). Operações flexionais deixam intocada a
categoria sintática da base, mas elas também adicionam elementos extra.
Esses são elementos de sentido (por exemplo, tempo, aspecto, modo,
negação, e assim por diante) e também funções gramaticais. Por exemplo,
uma operação flexional pode transformar um verbo intransitivo num verbo
transitivo, ou um verbo na forma ativa num verbo na forma passiva (embora
alguns morfólogos possam olhar tais alternâncias como morfologia
derivacional). Os dois tipos mais importantes e difundidos de função gramatical
servidos pela flexão são a concordância e a regência.
Em muitas línguas há construções em que a morfologia flexional é usada
para mostrar que duas palavras ou sintagmas pertencem à mesma categoria
gramatical. Vimos que, em russo, nomes se flexionam em número, gênero e
caso. Um adjetivo modificando um nome tem que concordar com ele nessas
categorias. Alguns exemplos são dados em (36)-(38) abaixo usando o adjetivo
bol´šoj “grande, largo”, um nome masculino, outro feminino e outro neutro, e
três das doze categorias de caso/número:

(36) teatr “teatro”, masculino


a. bol’š-oj teatr nominativo singular
b. bol’š-omu teatr-u dativo singular
c. bol’š-ix teatr-ov genitivo plural

(37) cerkov’ “igreja”, feminino


a. bol’š-aja cerkov nominativo singular
b. bol’š-oj cerkvi dativo singular
c. bol’š-ix cerkvej genitivo plural

(38) mesto “lugar”, neutro


a. bol’š-oje mest-o nominativo singular
b. bol’š-omu mest-u dativo singular
c. bol’š-ix mest genitivo plural

Numa língua em que os nomes são marcados por caso, freqüentemente


acontece que alguns verbos devem ser seguidos por um objeto em uma forma
de caso enquanto outros verbos devem ser seguidos por objetos em uma outra
forma casual. Dizemos então que o verbo rege um caso particular.
Preposições, também, freqüentemente regem um caso particular, algumas
vezes expressando sutis diferenças de sentido por diferentes seleções de caso.
É muito comum que um sintagma expressando o possuidor (como o menino
em o casaco do menino) exiba um caso especial (usualmente chamado o
genitivo). O russo provê alguns exemplos típicos destes fenômenos:
(39) a. direktor zavod-a
diretor fábrica-GENITIVO SINGULAR
“o diretor da fábrica”

... prinjal nov-yl kollektiv


recebeu novo coletivo-ACUSATIVO SINGULAR

b. ... pomogal nov-omu kollektiv-u


ajudou novo coletivo-DATIVO SINGULAR

c. ... rudovodil nov-ym kollektiv-om


supervisou novo coletivo-INSTRUMENTAL SINGULAR

(40) a. ot Ivan-a “do Ivan” – GENITIVO


b. k Ivan-u “para Ivan” – DATIVO
c. s Ivan-om “com Ivan” – INSTRUMENTAL
d. ob Ivan-e “sobre Ivan” – PREPOSICIONAL

(41) a. vojti v komnat-u “ir para (dentro d)a sala” – ACUSATIVO


b. sidet’v komnat-e “sentar na sala” – PREPOSICIONAL

Embora seja comum que o possuidor apareça na forma do caso genitivo


(ou seja marcado por uma preposição, como no exemplo o casaco do menino),
em uma boa parte das línguas a posse é marcada por um processo de
concordância. Isso significa que a tradução de casaco (o nome possuído) em o
casaco do menino seria marcado por meio de flexões indicando, digamos, a
pessoa, o número ou gênero do possuidor (o menino). Em algumas línguas,
nós vemos os dois tipos de marcação simultaneamente. Assim, têm-se
construções que literalmente seriam lidas como: João irmão-dele ou de-João
irmão-dele. O turco (como muitas línguas ural-altaicas) fornece exemplos da
construção. Em (42) apresentamos a flexão possessiva para um nome:

(42) ev-im “minha sala” ev-imiz “nossa sala”


ev-in “tua sala” ev-iniz “sala de vocês”
ev-i “sala dele” ev-leri “sala deles”

Em (43) vemos um sintagma possessivo no qual o possuído (casa) concorda


com o possuidor (diretor) e o possuidor está no caso genitivo:

(43) müdür-ün ev-i


diretor-GEN casa-POSS
“o casa do diretor”

As línguas em geral têm maneiras de alterar a relação entre um verbo e


seus argumentos (isto é, seu sujeito e seu(s) objeto(s)). Essas maneiras se
agrupam sob o título de relações de mudança de valência ou voz na
gramática tradicional. Em muitas línguas tais relações são assinaladas por
flexões exibidas pelo verbo.
Um exemplo comum é a voz passiva (em oposição à voz ativa). Em
português, esse processo se expressa por uma mistura de sintaxe e
morfologia: um auxiliar particular é utilizado (o verbo ser) e uma forma
particular do verbo, o particípio passivo (ou passado) (cf. as glosas em (45)
abaixo). Em algumas línguas, no entanto, a passiva se modela com o resto do
paradigma flexional verbal, de modo que o verbo na passiva tem seu próprio
conjunto de flexões de pessoa e número, distinto da voz ativa. Um exemplo
clássico é latim (onde NOM=nominativo, ACC=acusativo e ABL=ablativo):

(44) amare “amar”


Presente ativo Presente passivo
Singular Plural Singular Plural
1ª am am mus amor am mur
2ª am s am tis am ris am min
3ª amat amant am tur amantur

(45) a. M lit s puellam amant


soldado-NOM pl. menina-ACC sg. amam
“Os soldados amam a menina”

b. Puella m litibus am tur


menina-NOM sg. por soldado-ABL pl. é amado
“A menina é amada pelos soldados”

Em muitas línguas, a marcação de sujeitos e objetos segue o padrão


ergativo. Neste padrão, um mesmo marcador (que pode ser uma desinência
de caso para o nome ou uma marca de concordância no verbo) é usado para o
sujeito de um verbo intransitivo e para o objeto direto de um verbo transitivo,
enquanto um marcador diferente distingue o sujeito do verbo transitivo. Se
marcadores de caso são usados pela língua, o primeiro é chamado Absolutivo
(ABS) e o segundo é chamado Ergativo (ERG). Se representamos o “sujeito
transitivo” como ST, “sujeito intransitivo” como SI e o objeto direto como O,
podemos representar a distinção entre línguas nominativo-acusativas e línguas
ergativo-absolutivas esquematicamente como em (46):

(46) a. NOM ACC b. ERG ABS


ST 0 ST SI
SI 0

Chukchee é uma língua ergativa, como vemos em (47):

(47) a. tl g-e l?unin k k


pai-ERG viu filho-ERG
“O pai viu o filho”

b. Ek k k tg ntatg?e
filho-ERG correu
“O filho correu”
Ora, a passiva serve para promover o objeto direto a sujeito e demover o
sujeito para um adjunto opcional (ou um advérbio) marcado por uma
preposição, ou por um caso oblíquo (um caso oblíquo neste livro é qualquer
caso que não é direto, isto é, que não é nem nominativo, nem acusativo, nem
ergativo, nem absolutivo). Línguas ergativas freqüentemente têm uma voz na
qual o objeto direto é demovido a um adjunto opcional em um caso oblíquo,
enquanto ao mesmo tempo o ST de uma construção transitiva se torna um SI
no caso absolutivo. Esta construção é conhecida como antipassiva. Uma
maneira de fazer isso em chukchee é pelo uso do prefixo ine-. O objeto direto
demovido pode aparecer no caso dativo, locativo ou instrumental, dependendo
do verbo, como vemos em (48)-(50) – onde AP=antipassiva:

(48) G m t-ine-tejk- rk n (orw et )


eu-ABS 1sg.-AP-fazer-PRES (trenó-DAT)
“Eu estou fazendo um trenó”

(49) ?aacek- t ine-g nrit- rk t qaa-k


menino-ABS PL AP-guardar-PRES PL rena-LOC
“Os meninos estão guardando a rena”

(50) Muri m t-ine-ret - rk n kimit?-e


nós-ABS 1pl.-AP-levar-PRES fardo-INSTR
“Nós estamos levando o fardo”

Um bom número de línguas tem um causativo morfológico, um


instrumento para criar uma forma verbal significando “causar X (de) Verbo” a
partir da forma “X Verbo”. Chukchee tem vários afixos causativos, que
regularmente se adjungem a verbos intransitivos e, em um número pequeno de
casos, a verbos transitivos. O mais comum é o prefixo r- (r - antes de
consoantes), freqüentemente em co-ocorrência com um sufixo - , -et ou - et.
Nos exemplos dados em (51)-(53), um verbo intransitivo, com marcadores
exibindo concordância com o sujeito, torna-se transitivo, concordando
adicionalmente com o objeto. Em (54), um verbo transitivo foi causativizado.
Esses exemplos também mostram os efeitos de certas regras fonológicas, que
são independentes dos afixos em si. A glosa “3sg./3sg.” significa “concordância
com um sujeito de 3sg. e um objeto de 3sg.” (lembre-se que os verbos
concordam com seus objetos em chukchee):

(51) a. eret-g?i b. r- eren -nin


cair-3sg. CAUSAR- cair -3sg./3sg.
“Ele caiu” “Ele derrubou isso”

(52) a. p?a-g?e b. r - p?a-w -nen


secar-3sg. CAUSAR-secar-CAUSAR-3sg./3sg.
“Isso secou” “Ele secou isso”

(53) a. cimet-g?i b. r - cime -w -nin


quebrar-3sg. CAUSAR-quebrar-CAUSAR-3sg./3sg.
“Isso quebrou” “Ele quebrou isso”
(54) a. l?u-nin b. r - l?u -nen -nin
ver-3sg./3sg. CAUSAR-ver-CAUSAR-3sg./3sg.
“Ele viu isso” “Ele mostrou isso”

Já que causativas são construções transitivas, elas podem sofrer a


antipassivização, como em (55):

(55) r - l?u -net -tku-g?i


CAUSAR- ver-CAUSAR-AP-3sg.
“Ele mostrou (alguma coisa)”

Na verdade, esse modo de formar causativas é lexicalmente restrito em


chukchee e não é produtivo (o modo produtivo de formar causativas é usar um
verbo correspondente ao português “fazer”, como em “fazer alguém fazer
alguma coisa”). No entanto, em línguas como o turco, o japonês, o malayalam
e o grupo de línguas do esquimó, praticamente todos os verbos podem formar
uma causativa morfológica, e em muitos casos é possível em princípio formar
livremente causativas de causativas (“fazer A fazer B fazer algo”).
As línguas malaio-polinesianas exibem um grande variedade de
construções de voz, tradicionalmente chamadas de construções de foco. Nelas,
objetos diretos, locativos ou instrumentais se tornam sujeitos. As diferentes
vozes são marcadas por afixos no verbo, incluindo infixos e reduplicação (cf.
seção 1.3.3), bem como partículas marcando os NPs. Aqui estão alguns
exemplos do tagalog (infixos são indicados por barras oblíquas, como /INF/ em
(56)-(58) – onde PTCL significa “particípio”; INF, “infinitivo”; AFF, “afixo” e FUT,
“futuro”):

(56) a. Ako ay b-um-abasa ng aklat


eu PTCL ler/INF/ler PTCL livro
“Eu estou lendo o livro”

b. Ang aklat ay b-in-abasa ko


PTCL livro PTCL ler/INF/ler eu
(Lit. “O livro está sendo lido por mim”)

(57) a. Siya’y s-um-usulat sa akin (de sulat)


ele-PTCL escrever/INF/escrever PTCL eu
“Ele está escrevendo para mim”

b. Ako ay s-in-usulat-an niya


eu PTCL escrever/INF/escrever-AFF ele
(lit. “Eu estou sendo escrito por ele”)

(58) a. Babayad ako ng salapi


pagar-FUT eu PTCL dinheiro
“Eu vou pagar em dinheiro”

b. I -babayad ko na salapi
AFF -pay-FUT eu PTCL dinheiro
(lit. “Em dinheiro será pagado por mim”)
As categorias discutidas até aqui tendem a interagir de maneira bastante
óbvia com a sintaxe. Outras categorias flexionais verbais têm pouca ou
nenhuma função sintática, mas codificam aspectos gramaticalizados do
significado. As mais comuns destas categorias são as categorias de tempo e
aspecto, modo e modalidade.
Tempo em geral significa referência ao tempo de um evento ou estado.
O português, por exemplo, distingue entre um tempo passado e um tempo não-
passado. Uma distinção aspectual comum é entre uma ação que está
completada (aspecto completivo ou perfectivo) e um que está em andamento
ou não-completado ou um estado que não tem ponto final (imperfectivo).
Algumas das formas do hausa e do árabe vistas na seção anterior expressa
tais categorias. É muito comum que o tempo e o aspecto sejam combinados
em um único sistema flexional (ver, por exemplo, os exemplos do chiche a
citados em (29)).
Em línguas indo-européias, o termo “modo” usualmente se refere às
categorias de modo indicativo (usado para declarar fatos de que o falante está
relativamente seguro), modo imperativo, usado para emitir ordens, modo
subjuntivo, usado em questões ou declarações das quais o falante não está
tão seguro (por exemplo, em orações subordinadas de verbos como duvidar ou
temer), modo condicional, para proposições hipotéticas e o modo optativo,
que indica um desejo. Em algumas línguas, no entanto, existe um paradigma
verbal separado usado em sentenças interrogativas, e muitas línguas
distinguem uma variedade de tipos de imperativas (freqüentemente referidas
como jussivas). Modalidade inclui não somente possibilidade, obrigação,
necessidade etc., mas também comumente desiderativos (traduzindo a
expressão “querer fazer...” do português). Muitas línguas têm ricos conjuntos
de flexões para expressar as diferentes modalidades e graus de modalidade,
do tipo veiculado por meio de verbos auxiliares e advérbios em línguas indo-
européias. Muitas línguas têm flexões verbais indicado a extensão em que o
falante pode pessoalmente garantir a verdade de sua declaração
(evidnecialidade). Não é incomum encontrar a negação como uma categoria
flexional do verbo. Várias línguas da Ásia e da Meso-América (América
Central?) têm um conjunto complexo de honoríficos para expressar polidez e
para indicar a percepção do falante do estatuto social relativo de si mesmo e de
seus interlocutores.
Os exemplos do japonês em (59) ilustram várias dessas categorias:

(59) raiz verbal kak-/kai- “escrever”


a. kak-u tempo presente “escrevo, escreve, escrevem”, etc.
b. kak-e-ba condicional “escreveria, escreveriam”
c. kak-oo exortativo “vamos escrever”
d. kak-i-tai desiderativo “querer escrever”
e. kak-e-ru potencial “pode escrever”
f. kak-a-nai negativo “não escrever”
g. kai-tara condicional “se alguém escrever”
h. kak-i-soo look as if someone will write
i. kak-i-masu honorífico
Esta lista de maneira nenhuma exaure a flexão verbal do japonês. Muitos
destes afixos podem ser combinados uns com os outros a fim de produzir
formas mais complexas.
Os sistemas flexionais mais ricos e mais complexos se encontram com
os nomes e especialmente com os verbos. Além dessas partes do discurso, é
claro, muitos (embora não todas) línguas têm a categoria de adjetivo, que
frequëntemente têm propriedades flexionais similares às dos nomes. Vimos
isso no russo: os adjetivos concordam com seus nomes em número, gênero e
caso. Encontra-se freqüentemente uma forma flexional peculiar aos adjetivos
indicando comparação, como as formas positiva, comparativa e superlativa
do inglês: long – longer – longest. Isso, no entanto, não é de modo algum
universal. Algumas línguas têm sistemas de comparação mais complexos,
incluindo, por exemplo, flexões especiais para equativos (que no inglês se
traduziria por algo como as long as).
As categorias flexionais de nomes, verbos e adjetivos que vimos até aqui
são de um certo modo prototípicas. Entretanto, é extremamente comum que
nomes adotem o que parecem ser flexões verbais, verbos flexões nominais, e
adjetivos ambos os tipos de flexão. Muitas delas são de não pouca importância
teórica.
Em português, podemos usar nomes e adjetivos junto com verbos como
ser ou tornar-se para formar predicados referentes ao sujeito (como em João é
um médico e o João tornou-se importante). Em chukchee, quando nomes e
adjetivos são usados predicativamente deste modo, eles concordam em
pessoa e número com o sujeito ao qual eles são predicados:

(60) a. np nacg n “homem velho”


b. muri np nacg -more
nós homens velhos-1pl.
“Nós somos homens velhos”

(61) G m n -ermej -g m
Eu ADJ-forte-1sg.
“Eu sou forte”

Em enets (e em outras línguas samoiédicas do nordeste da Sibéria), nominais


usados predicativamente podem também se flexionar em tempo:

(62) : ? “Eu sou mãe” : od “Eu fui mãe”


: “Você é mãe” : os’ “Você foi mãe”
: “Ela é mãe” :s’ “Ela foi mãe”

Os casos mais importantes (e mais freqüentes) de categorias flexionais


aparecendo com a classe “errada” de palavras são os particípios e
gerúndios. Um particípio é uma forma adjetival derivada de um verbo. Em
inglês, há um particípio presente (em -ing) e um particípio passado (a forma em
-en), como em a performing seal (uma foca malabarista?) ou a broken vase
(um vaso quebrado). Nós já ilustramos as formas participiais dos verbos em
russo. Os particípios dados nos exemplos (10)-(11), na seção 1.3.1, são todos
flexionados como adjetivos e o particípio presente ativo e os dois particípios
passivos podem ser usados atributivamente (isto é, podem modificar um nome
dentro de um sintagma nominal, como performing ou broken nos exemplos
citados acima). Outras línguas exploram um conjunto mais completo de
categorias flexionais verbais em seus particípios e em muitos casos as
construções participiais são a maneira usual ou a única maneira de expressar o
equivalente de uma sentença relativa do português (tal como “a casa que o
Pedro construiu”).
Um gerúndio é um verbo flexionado como um nome (e é freqüentemente
chamado de nome verbal). O seu uso em muitas línguas é formar orações
adverbiais e complementos sentenciais (orações usadas como objeto direto de
verbos como dizer ou pensar). Chukchee provê abundante exemplificação.
Os nomes em chukchee aparecem em nove formas de caso. A
declinação do singular de kupren “rede” é mostrada em (63) (note que os casos
Ablativo, Dativo/Alativo e Comitativo II condicionam harmonia vocálica):

(63) Absolutivo kupre-n


Ergativo/Instrumental kupre-te por meio de
Locativo kupre-k em
Ablativo kopra-jp de
Allativo kopra-gt para
Orientativo kupre-gjit de acordo com
Comitativo I ge-kupre-te junto com
Comitativo II ga-kopra-ma junto com
Designativo kupre-nu na qualidade de

Exatamente como no russo, essas formas de caso são usadas onde no


português freqüentemente teríamos uma preposição regendo um nome, como
implicado pelas glosas em (63).
Como o sistema de caso do russo, os casos em chukchee também são
freqüentemente usados com um sentido menos concreto para funções mais ou
menos gramaticalizadas. Por exemplo, o sentido básico do caso Allativo é
movimento em direção a um objeto, mas ele também é usado para marcar o
recipiente (digamos, de um presente ou de uma comunicação). Neste uso, ele
se parece com o caso Dativo das línguas indo-européias como o russo. De
maneira ainda mais abstrata, ele pode ser usado com o sentido de “para a
finalidade de”. Este é o significado da terminação casual quando ela é
adjungida a um radical verbal ao invés de um nome. O resultado é um gerúndio
de finalidade, significando “a fim de...” [conferir se to order to = in order to]. Por
outro lado, quando adicionamos ao radical verbal a terminação do Ablativo ,
cujo sentido básico é “longe de”, formamos um gerúndio casual, “por causa
(de)...”. (A associação semântica é similar àquela encontrada no uso casual de
out of em inglês, como em he insulted her out of spite “ele a insultou por
despeito”).
Várias das outras terminações aparecem igualmente com radicais
verbais para formar uma série de outros gerúndios. Os exemplos (64)-(66) são
de gerúndios interpretados como contemporâneos ao verbo matriz:

(64) Wak?o-gt , t taalg lat k


sentando, eu olhei ao redor
“Enquanto eu estava sentando, olhei ao redor”
(65) Qlaw lte tw tko-ma, ew sqetti n migciretqinet a qacorm k
os-homens caçando, as-mulheres trabalham na-praia
“Enquanto os homens estão caçando (no mar), mas mulheres trabalham
na praia.”

(66) tlon, ga-g ntaw-ma, kulil? r?ug?i


Ele correndo gritou
“Quando ele estava correndo, ele gritou”

Em (67), a ação expressa pelo gerúndio precede a expressa pelo verbo matriz:

(67) R jul? t pelq ntet- k lw l?ep , ew sqetti cajpatg?at


o-vaqueiro tendo-retornado da-manada, as mulheres fizeram-chá
“Depois que os homens voltaram do pasto, as mulheres fizeram o chá.”

Em (68)-(70) o gerúndio tem uma interpretação causal, enquanto em (71) ele


tem o sentido de “na medida em que”, “em relação a“:

(68) ?aacek opcatko-jp ermekw?i


o-menino tendo-praticado-levantamento-de-peso se-tornou-forte
“Praticando levantamento de peso, o menino se tornou forte”

(69) Tumg tum pinkutku-te ejmekw?i r rkagt


o-companheiro por saltar se-aproximou da morsa
“Saltando, o companheiro se aproximou da morsa”

(70) tla em-?elere-te aakagt , l giqupqetg?i


a mãe, por-sentir-falta a filha, se-tornou-muito-magra
“Por sentir muito a falta de sua filha, a mãe emagreceu muito.”

(71) ew sqete rint -gjit utt t?ul ? tt? n penr tkoqen


a-mulher jogando o-bastão o cão corre-atrás
“Onde quer que a mulher jogue o bastão, o cão corre para pegá-lo”

O exemplo (72) é um par mínimo, em que a mesma terminação do caso


Orientativo –gjit está adjungida a um radical nominal em (72a), e a um radical
verbal em (72b):

(72) a. Migcir -gjit n m ng kwanmore


de-acordo-com-o-nosso-trabalho ele-nos-pagará
“Ele vai nos pagar de acordo com o nosso trabalho”

b. Migciret -gjit n m ng kwanmore


de-acordo-com-o-modo-como-trabalhamos ele nos pagará
“Ele vai nos pagar segundo o modo como trabalharmos”

Até aqui, discutimos as categorias lexicais maiores do nome, verbo e


adjetivo. Em algumas poucas línguas (por exemplo, do grupo céltico), nós
encontramos preposições que se flexionam. Certas preposições comuns em
welsh se flexionam para pessoa e número, por exemplo, como pode ser visto
em (73):

(73) am “acerca de” yn “em” gan com”


1sg. amdanaf ynof gennyf
2sg. amdanat ynot gennyt
3sg. masc. amdano ynddo ganddo
3sg. fem. amdani ynddi ganddi
1pl. amdanom ynom gennym
2pl. amdanoch ynoch gennych
3pl. amdanynt ynddynt ganddynt

Para terminar a nossa discussão, notaremos que em certas línguas


complementizadores (freqüentemente referidos por seu nome mais tradicional
de conjunção subordinativa) pode se flexionar. Em português (e outras línguas
européias), complementizadores ocorrem no começo de orações subordinadas,
servindo para indicar o tipo de oração subordinada. Assim, a palavra que em
João pensa que o Pedro ama a Maria introduz a oração subordinada o Pedro
ama a Maria, que funciona como o complemento (efetivamente o objeto direto)
do verbo pensar.
O flamengo ocidental (uma língua falada na Bélgica, freqüentemente
considerada como um dialeto do holandês) tem um complementizador da(n),
que é cognato do inglês that (que). Um exemplo do seu uso é mostrado em
(74):

(74) Kpeinzen da Valère goa moeten


Eu-penso que Valère vai olhar
“Penso que Valère irá olhar”

Diferentemente das contrapartes do inglês ou do português, entretanto, os


complementizadores do flamengo concordam com o sujeito da sua oração.
Assim, encontramos exemplos tais como (75) (tomado de uma gramática do
flamengo ocidental que está sendo preparada por Liliane Haegeman):

(75) a. Kpeinzen dan-k (ik) goan moeten


que-eu (eu) irei olhar
b. da-j (gie) goa moeten
que-você (você) irá olhar
c. da-se (zie) goa moeten
que-ela (ela) irá olhar
d. da-me (wunder goan moeten
que-nós (nós) iremos olhar
e. da-j (gunder) goa moeten
que-vocês (vocês) irão olhar
f. dan-ze (zunder) goan moeten
que-eles (eles) irão olhar
g. dan Valère em Pol goan moeten
que Valère e Paulo irão olhar
Embora as formas pronominais (ik, gie, zie, etc.) sejam opcionais, as flexões
sobre os complementizadores são obrigatórias. Note, também, que o
complementizador exibe concordância com o sujeito, quer este seja um
pronome, quer não seja expresso, quer seja um sintagma nominal lexical, como
em (74) e (75g). Em particular, note que em (74), em que temos um nome
singular como sujeito, o complementizador é da, ao passo que quando o sujeito
é plural (como os nomes coordenados em (75g)), o complementizador é dan.

1.5 Sumário
Isso completa o nosso panorama dos fenômenos morfológicos mais comuns.
Vimos que as palavras têm uma estrutura prontamente identificável,
permitindo-nos, nos casos mais simples, analisa-las em seus morfemas
componentes. Os morfemas em si, no entanto, aparecem em uma variedade
de formas, e essa variação é chamada de alomorfia. Alguns tipos de alomorfia
representam uma das principais interfaces entre a morfologia e o resto a
gramática, nomeadamente a interface morfologia-fonologia.
Esboçamos então a distinção tradicional entre flexão, na qual a
morfologia altera a forma de uma dada palavra, e derivação, na qual
construímos novas palavras (tipicamente na base de palavras dadas).
Examinamos os diferentes modo em que a morfologia pode se manifestar.
Superficialmente, pelo menos, parece haver dois tipos de fenômenos
morfológicos. De um lado, a morfologia pode ser vista como a concatenação de
objetos (como na afixação, composição e cliticização). De outro, podemos
algumas vezes vê-la como uma operação de regras e processos, por exemplo
processos fonológicos tais como ablaut ou mutação consonântica, ou
processos morfossintáticos tais como a conversão morfológica.
Finalmente, examinamos as funções a que a morfologia pode
tipicamente servir. Aqui vimos uma segunda grande interface, aquela entre a
morfologia e a sintaxe.
Deve-se frisar que, embora tenhamos feito referência a um grande
número de noções teóricas tradicionais tais como “morfemas” ou a distinção
entre flexão e derivação, algumas dessas noções são atualmente matéria de
intenso debate. Adicionalmente, há alguns morfólogos que encaram toda a
morfologia como essencialmente a concatenação de coisas, e outros que
preferem vê-la como essencialmente a operação de processos. Saber se estas
distinções são genuínas ou meramente superficiais deverá esperar pesquisa
ulterior. O que apresentamos aqui é uma visão geral descritiva mais ou menos
neutra teoricamente do tipo de categorias que lingüistas freqüentemente
discutem. No resto do livro, veremos como lingüistas têm tentado construir
teorias gerais que procuram explicar a enorme variedade de estruturas
morfológicas encontradas nas línguas do mundo e ao mesmo tempo
desenvolver uma teoria da interface entre a morfologia e o resto da gramática,
isto é, para explicar o modo em que a morfologia interage com outros
componentes, particularmente o léxico, a fonologia e a sintaxe.

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