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Parte I: PRELIMINARES
Qualquer um pode dizer que temos uma unidade košk-, com o sentido básico
de “gato”, à qual adicionamos outras unidades (como -i, -e, etc.). No entanto,
mesmo aqueles que conhecem o russo terão dificuldade de dizer exatamente,
ou mesmo aproximadamente, o que essas terminações “significam”. A melhor
maneira de caracterizá-las é em termos de uma mistura de sentido e função
gramatical. As glosas que demos acima são rudimentares, para dizer o mínimo;
uma caracterização acurada delas seria uma tarefa laboriosa. Por exemplo, é
um fato importante da morfologia nominal russa que a forma (1f), que coincide
neste exemplo com a forma (1c), só é usada quando o nome é regido por uma
preposição (embora não qualquer preposição). É também importante saber que
a forma (1e) é usada quando o gato é o agente da passiva de uma sentença (o
rato foi comido pelo gato) ou quando ele forma o predicado com certos verbos
(esse animal é um gato).
Assim, alguns estudiosos poderiam chamar a essas terminações dos
nomes russos de morfemas, e outros poderiam dizer que elas são uma outra
coisa. Discutiremos essa questão em algum detalhe mais tarde neste capítulo e
em outros capítulos.
Um dos fatos sobre morfemas que será tema recorrente neste livro é
que eles têm uma forma física (isto é, fonológica e fonética) e também um
sentido, ou uma função, dentro do sistema gramatical. Dito de outro modo,
morfemas estão na linha de frente da “dupla articulação” da linguagem, isto é, a
articulação entre a forma (o som) e o conteúdo (sentido ou função), e muito da
teoria morfológica é dedicada a estabelecer exatamente como o mapeamento
entre forma e conteúdo é obtido.
Observe a pronúncia dos exemplos abaixo:
(2) a. capas
b. capas feias
c. capas velhas
d. capas amarelas
1
Estamos aqui tomando a pronúncia padrão de São Paulo.
O que acontece aqui é que a raiz usada para o plural tem uma forma fonológica
diferente daquela que é utilizada no singular. Em outras palavras, a raiz exibe
alomorfia. Adicionalmente, essa é uma propriedade das palavras ou morfemas
do tipo de osso ou povo. Essa não é uma propriedade da categoria de plural,
pois (i) pode ocorrer com outras formações da mesma palavra, por exemplo,
em ósseo; (ii) em geral, outras palavras com forma fonológica similar não
exibem alomorfia de raiz no plural (por exemplo, repolhos ou moços).
Existe um tipo de alomorfia que não parece ser condicionada nem pela
fonologia nem pela palavra à qual o morfema se une, mas sim pela presença
de outros morfemas. Existem muitos adjetivos em português terminados em um
morfema com a forma -ável (ou -ível). Esse morfema assume uma forma
diversa, no entanto, quando adicionamos a ele o sufixo -(i)dade, formador de
nomes:
Outros adjetivos, entretanto, não sofrem esse tipo de mudança, como mostra
(5b), mesmo tendo um segmento fônico final bastante semelhante aos de (4),
como –al, como vemos em (5a):
Entretanto, em geral, um stem terminando em, digamos, uma vogal + /t/ pode
formar seu plural de vários modos:
Note que em (13c) a sílaba final do prefixo foi reduplicada. Em (14) vemos um
exemplo de uma palavra sendo inteiramente reduplicada:
b. Donnez-les-moi
/dais-os-mim/
“Me dá eles”
Em (19b), que significa o mesmo que (19a) e usa as mesmas raízes, a raiz
qora, “rena”, foi incorporada ao verbo para formar uma única palavra, Isto é
evidente pelo fato de que o prefixo de concordância com o sujeito de 1ª pessoa
do singular t - precede a raiz qora. A estrutura da palavra é então alguma coisa
como “eu-estou-rena-deixando”. Em outros casos (como o de (20) abaixo),
podemos afirmar que uma raiz foi incorporada porque ela sofre harmonia
vocálica. Isso significa que as vogais de certas raízes mudarão sob a influência
de vogais de outros morfemas. Esse processo não se estende para além das
fronteira de uma única palavra, e assim ele serve como uma indicação
fonológica para fazer a distinção entre uma palavra e um sintagma. Exemplos
muito mais complexos são possíveis, em que um verbo incorpora mais de uma
raiz. No exemplo (20), as raízes jaa, ra n e melgar, bem como a raiz mara ,
podem todas formar palavras independentes (em tempo: a palavra milger, que
aqui aparece na variante harmonizada melgar, é originariamente um composto
nome-nome, significando “arco de fogo”):
Todos os exemplos em (a) são verbos e todos os exemplos em (b) são nomes.
O que parece estar acontecendo aqui é que a posição do acento é usada como
um dispositivo derivacional para assinalar a categoria sintática da palavra. No
caso de perfect vemos que a mesma coisa acontece com o par adjetivo-verbo.
Hausa, uma língua chádica do nordeste da Nigéria, tem elementos que
fazem lembrar os auxiliares do inglês, pois aparecem antes dos verbos para
assinalar tempo/aspecto (isto é, o tempo em que e a maneira na qual alguma
coisa aconteceu). Os marcadores de aspecto completivo estão ilustrados em
(22) (vogais duplas são longas, ou seja, “aa” = [a:]):
(24) Binyan
I katab “escrever”
II kattab “causar escrever”
III kaatab “corresponder-se”
IV ?aktab “causar escrever”
VI takaatab “escrever um para o outro”
VII nkatab “subscrever”
VIII ktatab “escrever, ser registrado”
X staktab “escrever, fazer escrever”
A partir das glosas fica claro que o sentido básico da raiz se relaciona com
escrever. Os diferentes binyanim representam em sua maioria classes
derivacionais (tais como “causativo” ou “recíproco”), embora isso não seja
sistemático para todos os verbos.
O árabe também tem um conjunto rico de classes flexionais para os
verbos. O quadro em (25) dá algumas delas para os oito binyanim de (24)
(“Pftv.” = perfectivo; “Impf.” = imperfectivo; “Act.” = ativa; “Pass.” = passiva;
para os presentes propósitos, não interessa o que estes termos significam):
Por estes dados, parece que podemos livremente usar um nome como um
verbo e vice-versa, a despeito do fato de que o inglês tem uma variedade de
sufixos que fazem a mesma coisa.
Uma outra ocorrência disso é o que vemos nos dados (33)-(35):
1.3.5 Sumário
b. Ek k k tg ntatg?e
filho-ERG correu
“O filho correu”
Ora, a passiva serve para promover o objeto direto a sujeito e demover o
sujeito para um adjunto opcional (ou um advérbio) marcado por uma
preposição, ou por um caso oblíquo (um caso oblíquo neste livro é qualquer
caso que não é direto, isto é, que não é nem nominativo, nem acusativo, nem
ergativo, nem absolutivo). Línguas ergativas freqüentemente têm uma voz na
qual o objeto direto é demovido a um adjunto opcional em um caso oblíquo,
enquanto ao mesmo tempo o ST de uma construção transitiva se torna um SI
no caso absolutivo. Esta construção é conhecida como antipassiva. Uma
maneira de fazer isso em chukchee é pelo uso do prefixo ine-. O objeto direto
demovido pode aparecer no caso dativo, locativo ou instrumental, dependendo
do verbo, como vemos em (48)-(50) – onde AP=antipassiva:
b. I -babayad ko na salapi
AFF -pay-FUT eu PTCL dinheiro
(lit. “Em dinheiro será pagado por mim”)
As categorias discutidas até aqui tendem a interagir de maneira bastante
óbvia com a sintaxe. Outras categorias flexionais verbais têm pouca ou
nenhuma função sintática, mas codificam aspectos gramaticalizados do
significado. As mais comuns destas categorias são as categorias de tempo e
aspecto, modo e modalidade.
Tempo em geral significa referência ao tempo de um evento ou estado.
O português, por exemplo, distingue entre um tempo passado e um tempo não-
passado. Uma distinção aspectual comum é entre uma ação que está
completada (aspecto completivo ou perfectivo) e um que está em andamento
ou não-completado ou um estado que não tem ponto final (imperfectivo).
Algumas das formas do hausa e do árabe vistas na seção anterior expressa
tais categorias. É muito comum que o tempo e o aspecto sejam combinados
em um único sistema flexional (ver, por exemplo, os exemplos do chiche a
citados em (29)).
Em línguas indo-européias, o termo “modo” usualmente se refere às
categorias de modo indicativo (usado para declarar fatos de que o falante está
relativamente seguro), modo imperativo, usado para emitir ordens, modo
subjuntivo, usado em questões ou declarações das quais o falante não está
tão seguro (por exemplo, em orações subordinadas de verbos como duvidar ou
temer), modo condicional, para proposições hipotéticas e o modo optativo,
que indica um desejo. Em algumas línguas, no entanto, existe um paradigma
verbal separado usado em sentenças interrogativas, e muitas línguas
distinguem uma variedade de tipos de imperativas (freqüentemente referidas
como jussivas). Modalidade inclui não somente possibilidade, obrigação,
necessidade etc., mas também comumente desiderativos (traduzindo a
expressão “querer fazer...” do português). Muitas línguas têm ricos conjuntos
de flexões para expressar as diferentes modalidades e graus de modalidade,
do tipo veiculado por meio de verbos auxiliares e advérbios em línguas indo-
européias. Muitas línguas têm flexões verbais indicado a extensão em que o
falante pode pessoalmente garantir a verdade de sua declaração
(evidnecialidade). Não é incomum encontrar a negação como uma categoria
flexional do verbo. Várias línguas da Ásia e da Meso-América (América
Central?) têm um conjunto complexo de honoríficos para expressar polidez e
para indicar a percepção do falante do estatuto social relativo de si mesmo e de
seus interlocutores.
Os exemplos do japonês em (59) ilustram várias dessas categorias:
(61) G m n -ermej -g m
Eu ADJ-forte-1sg.
“Eu sou forte”
Em (67), a ação expressa pelo gerúndio precede a expressa pelo verbo matriz:
1.5 Sumário
Isso completa o nosso panorama dos fenômenos morfológicos mais comuns.
Vimos que as palavras têm uma estrutura prontamente identificável,
permitindo-nos, nos casos mais simples, analisa-las em seus morfemas
componentes. Os morfemas em si, no entanto, aparecem em uma variedade
de formas, e essa variação é chamada de alomorfia. Alguns tipos de alomorfia
representam uma das principais interfaces entre a morfologia e o resto a
gramática, nomeadamente a interface morfologia-fonologia.
Esboçamos então a distinção tradicional entre flexão, na qual a
morfologia altera a forma de uma dada palavra, e derivação, na qual
construímos novas palavras (tipicamente na base de palavras dadas).
Examinamos os diferentes modo em que a morfologia pode se manifestar.
Superficialmente, pelo menos, parece haver dois tipos de fenômenos
morfológicos. De um lado, a morfologia pode ser vista como a concatenação de
objetos (como na afixação, composição e cliticização). De outro, podemos
algumas vezes vê-la como uma operação de regras e processos, por exemplo
processos fonológicos tais como ablaut ou mutação consonântica, ou
processos morfossintáticos tais como a conversão morfológica.
Finalmente, examinamos as funções a que a morfologia pode
tipicamente servir. Aqui vimos uma segunda grande interface, aquela entre a
morfologia e a sintaxe.
Deve-se frisar que, embora tenhamos feito referência a um grande
número de noções teóricas tradicionais tais como “morfemas” ou a distinção
entre flexão e derivação, algumas dessas noções são atualmente matéria de
intenso debate. Adicionalmente, há alguns morfólogos que encaram toda a
morfologia como essencialmente a concatenação de coisas, e outros que
preferem vê-la como essencialmente a operação de processos. Saber se estas
distinções são genuínas ou meramente superficiais deverá esperar pesquisa
ulterior. O que apresentamos aqui é uma visão geral descritiva mais ou menos
neutra teoricamente do tipo de categorias que lingüistas freqüentemente
discutem. No resto do livro, veremos como lingüistas têm tentado construir
teorias gerais que procuram explicar a enorme variedade de estruturas
morfológicas encontradas nas línguas do mundo e ao mesmo tempo
desenvolver uma teoria da interface entre a morfologia e o resto da gramática,
isto é, para explicar o modo em que a morfologia interage com outros
componentes, particularmente o léxico, a fonologia e a sintaxe.