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Aluna: Camila Teixeira Lima

Título: Os Almanaques e a Ciência Moderna: Debate entre experiência e

experimento

Introdução

Nessa pesquisa traremos o debate entre Ciência Moderna e a construção de

saberes que não são científicos. Pretendemos analisar esse debate por meio do estudo

dos Almanaques.

Os primeiros Almanaques eram publicações que reuniam informações e datas

astrológicas sobre os solstícios e as faces lunares com intuito de orientar o plantio, as

colheitas e a pesca. Com o passar do tempo, os Almanaques foram incorporando outras

informações e agregando conhecimentos diversos. O termo Almanaque é de origem

árabe, e designava o lugar onde os povos nômades paravam seus animais e iam

descansar. Nesses lugares os homens trocavam vários tipos de informações, sobre o

tempo, sobre a safra e curiosidades.

A preferência por esse objeto de estudo se deu porque o Almanaque tenta

agregar conhecimentos de várias áreas da cultura popular e da cultura erudita. É um

objeto notável que reúne informações com intuito de guiar as práticas da vida cotidiana.

Dessa forma, o Almanaque traz conhecimentos astrológicos para auxiliar na agricultura

ou na pesca; apresenta informações sobre a vida religiosa, civil, política; oferece

curiosidades, poesias e inquietações humanas sobre o tempo e o espaço. O Almanaque

tem a capacidade de reunir conhecimentos que se comunicam e se complementam.

Conhecimentos que são produzidos e construídos de formas variadas, a partir das

experiências cotidianas, sensitivas, racionalizadas e vivenciadas por seres humanos.

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A partir das definições apresentadas, percebemos uma diferença significativa

entre a construção dos saberes produzidos pelos Almanaques e a construção dos saberes

produzidos pela Ciência Moderna. Enquanto que os Almanaques oferecem, ao mesmo

tempo, conhecimentos histórico, científico e recreativo, na Teoria da Ciência o

conhecimento não-científico é tratado como inferior ou não verdadeiro em relação ao

conhecimento científico. Esse estudo parte do pressuposto que na modernidade a

racionalidade científica se afirmou como um modelo hegemônico de saber. Dessa

forma, a Ciência Moderna adquiriu um status de modelo totalitário ao não admitir

outras formas de racionalidade que não se ajustam a seus princípios epistemológicos ou

que não seguem suas regras metodológicas. O discurso científico se legitimou como o

único conhecimento capaz de produzir verdades.

Escolhemos fazer essa análise da produção de saberes científicos e não-

científicos a partir da perspectiva da Sociologia do Conhecimento. Já existem estudos

sobre a construção dos saberes nos Almanaques na Antropologia e na Teoria da

Complexidade. Estudos, inclusive, que incentivaram a escolha do nosso objeto de

estudo. A nossa escolha por outro campo para esse estudo se deu por possibilitar um

novo caminho para se debater a construção do conhecimento.

A idéia de um estudo da Sociologia do Conhecimento remonta a Descartes e

Espinosa nos primórdios do desenvolvimento da Ciência Moderna. Kant, e sua

contribuição crítica, fez com que ela se tornasse uma disciplina autônoma no século

XIX. A Teoria do Conhecimento compreende o nosso processo de conhecer e

desenvolver, de forma reflexiva, os nossos conhecimentos.

É comum confundir Teoria do Conhecimento com Teoria da Ciência, por isso,

queremos enfatizar aqui, antecipadamente, a diferença entre ambas. A primeira abrange

também os conhecimentos e a construção dos saberes que não são científicos. Enquanto
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que a segunda segue regras metodológicas e princípios epistemológicos

preestabelecidos. A Teoria do Conhecimento vai abranger, dessa forma, o estudo desse

tipo específico de conhecimento, assim como estudo de todos os outros.

Por fim, sabemos que o debate sobre teoria do conhecimento e sobre

epistemologia não se faz sem mencionar a questão do poder. A busca do conhecimento

é de certa forma, a busca da verdade. E a verdade não existe fora do poder ou sem o

poder. Assim, procuraremos fazer um estudo que não anule a questão do poder no

processo da construção dos saberes.

Justificativa

O interesse em estudar a produção dos conhecimentos produzidos nos

Almanaques e na Ciência Moderna partiu de um incomodo pessoal. Um incômodo de

estar dentro de uma instituição de ensino que produz uma ciência que possui, na

sociedade moderna, um papel centralizador e hegemônico de saber. A relação entre

poder e discurso científico, e a partir disso, a desvalorização de outras formas de

conhecimento que não são produzidos por meio das regras epistemológicas e

metodológicas da Ciência Moderna, cresce dentro desse modelo institucionalizado da

ciência.

Acreditamos, mesmo assim, que nas universidades ainda exista espaço para

fazer com que o conhecimento científico se relacione com outras formas de

conhecimento, não científicos, dialogicamente, sem hierarquização de saberes. Não

conseguimos conceber a idéia de que um conhecimento seja mais válido do que outro.

Acreditamos que não há uma forma de conhecimento completo e fechado, cada saber

tem suas limitações e suas qualidades, de forma que cada conhecimento complementa o

outro.
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A partir disso, surgiu o interesse de estudar a produção do conhecimento

científico e não científico. A escolha de fazer esse estudo a partir da análise dos

Almanaques se deu porque, nos Almanaques, há uma tentativa de agregar várias formas

de saber, seja ela erudita ou não.

O estudo dos Almanaques não é um estudo novo. Encontramos análise dos

Almanaques sob a ótica da Antropologia e da Teoria da Complexidade, estudos,

inclusive, bastante relevantes e significativos. Nosso estudo, porém, irá partir da

Sociologia do Conhecimento, que é um campo que também está ameaçado pela

hegemonia da Ciência Moderna. É comum confundir, hoje, Sociologia do

Conhecimento e Filosofia da Ciência, quando na verdade a primeira abrange também

outras formas de conhecimento que não são considerados pela segunda.

Essa escolha se deu porque percebemos que alguns pontos não foram

contemplados nesse debate. Então pretendemos fazer esse estudo por meio da

problemática experiência e experimento e da relação de poder intrínseca da produção do

conhecimento.

Esse estudo pretende também auxiliar no resgate de uma forma de conhecimento

popular – o Almanaque – que reúne – como foi ressaltado anteriormente – em um

mesmo espaço, vários tipos de saberes. Esperamos, que esse resgate, acompanhado de

um estudo sobre a relação de conhecimentos científicos e não científicos, possa auxiliar

na própria construção do conhecimento.

Problematização

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Na Sociedade Moderna Ocidental, a Ciência Moderna é reconhecida e

legitimada como um discurso capaz de produzir verdades. O conhecimento científico é

produzido a partir de determinadas regras metodológicas - que são seguidas de forma

rigorosa - para que o conhecimento produzido se aproxime cada vez mais da realidade.

Assim, todo o conhecimento que não é produzido aos moldes da ciência - mesmo que

chegue a mesma conclusão que ela - não é considerado verdadeiro.

Para garantir maior legitimidade do seu discurso, a Ciência Moderna

transformou a experiência – autoridade produzida a partir de vivências de eventos

comuns e não extraordinários - em experimento – experiência calculável, controlada.

Agamben, em Infância e História: Destruição da Experiência e Origem da História

(2005) usa o termo expropriação da experiência para afirmar que ao transformar

experiência em experimento, a Ciência Moderna é responsável pela perda da

experiência. A experiência, nos dias presentes, se torna exterior aos indivíduos.

A comprovação científica da experiência que se


efetua no experimento – permitindo traduzir as
impressões sensíveis na exatidão de determinações
quantitativas e, assim, prever impressões futuras –
responde a esta perda de certeza transferindo a
experiência o mais completamente possível para fora
dos homens: aos instrumentos e aos números.
(AGAMBEN, 2005: 24)

Nos pressupostos teóricos de Agamben, na sociedade moderna, sobretudo na

vida citadina, os homens já não são capazes de produzir e transmitir experiências. A

preocupação está em constatar a realidade, e não em experimentá-la. Os indivíduos

modernos participam cotidianamente de eventos significativos, sejam eles maravilhosos

ou insuportáveis; agitados ou calmos; rápidos ou demorados; e, no final do dia, passam

por esses eventos sem ter tido nenhum tipo de experiência. Esses homens já não capazes
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de contemplar a paisagem urbana, saborear uma comida, perceber a relação do cheiro da

terra com o barulho do vento e a chegada da chuva, contemplar uma obra de arte.

Os pressupostos teóricos de Agamben serão debatidos e analisados nessa

pesquisa. Um dos pontos centrais desse estudo, é analisar a problemática experiência e

experimento na produção do conhecimento, seja ele científico ou não. Embora

consideremos os atestados de Agamben bastante significativos para esse debate,

acreditamos que ainda seja possível falar de experiência na sociedade moderna. Embora

partamos da hipótese que a racionalidade cognitivo-instrumental da Ciência Moderna

tenha “invadido” as demais racionalidades, ainda podemos perceber resquícios de

produção do saber por meio – também – da experiência. Assim, pretendemos nesse

estudo fazer um debate sobre a produção de conhecimento do discurso científico, que

fez o experimento o lugar e o meio da experiência; e a produção do conhecimento

realizado nos Almanaques, que ainda é produzido – pelo menos uma parte dele - por

meio da experiência – vivência cotidiana de eventos simples e não extraordinários.

Atualmente, o Almanaque é um gênero literário que designa um conjunto

complexo de informações, vivências, curiosidades, relatos, que até então eram

transmitidos via oralidade. O conhecimento expresso nos Almanaques advém da tensão

entre o homem e o meio no qual está imerso. Por meio de observações e vivências

diárias, o almanaqueiro produz o seu saber. O saber desenvolvido nos Almanaques,

como na Ciência Moderna, é feita por meio de uma observação sistemática da natureza.

Mas essa observação sistemática, muitas vezes bastante rigorosa, se faz – também - por

intermédio da experiência. Não há uma total separação entre sujeito observador e objeto

observado, há uma combinação complexa entre o homem e a natureza. E é nessa

combinação que o saber do almanaqueiro é produzido.

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Os saberes desenvolvidos nos Almanaques não pretendem, necessariamente,

afirmar, constatar, informar algo. Nos Almanaques, os saberes dialogam e se

complementam. Os Almanaques optaram por abdicar ao crescente afunilamento

conceitual, para conseguir obter um saber geral, interdisciplinar, concreto, mais

próximo as pessoas, de suas vivências e do imaginário popular.

Por desenvolver um saber pouco institucionalizado, o conhecimento produzido

pelos almanaqueiros é um conhecimento que não possui a crescente necessidade de

especialização, não precisa obedecer a padrões estilísticos de produção, assim como não

possui um comprometimento com instituições maiores geridas pela economia

capitalista. Longe dessas amarras tão caras a Ciência Moderna, o saber produzido nos

Almanaques são saberes que possibilitam um olhar interdisciplinar, com uma escrita

simples, penetrável e concreta.

Nesse estudo, escolhemos analisar especificamente os saberes produzidos em

um Almanaque Sertanejo: o Calendário Nordestino, de Costa Leite. Essa escolha se

deu, em primeiro lugar, porque queríamos analisar o discurso popular produzido em um

ambiente em que a necessidade gera laços mais efetivos do homem com o meio; e, em

segundo lugar, porque não tínhamos condições de analisar toda a produção do saber

expressa nos Almanaques, que é um gênero que existe há séculos e em diversas regiões.

Essa relação entre almanaqueiro e o meio em que está imerso, que nos incitou a

escolher como estudo o Almanaque Nordestino, é explanada no livro de Aparecida

Nogueira, Almanaque: Toda Oficina da Vida:

Ao decidir conhecer as determinações que os


envolvem (dos astros, dos ventos, das florações, dos
animais), repito, os sertanejos tornam-se mais capazes de
criar condições para o enfretamento e o manuseio do meio no
qual habitam. De tão entrelaçados com a terra, o céu, os
animais e as plantas, seus próprios corpos acabam também –
por circunscreverem os sinais de chuva: suor pesado,
mormaço, calor úmido.

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Nesses termos, o conhecimento produzido é
inseparável da corporalidade, constituída dos corpos, da
linguagem e da história social.
(NOGUEIRA, 2008:74)

O Calendário Nordestino – chamado inicialmente de Calendário Brasileiro -,é

escrito pelo almanaqueiro Costa Leite e tem cerca de 50 anos. Costa Leite nasceu no dia

27 de Julho de 1927, na cidade de Sapé, na Paraíba. No final da década de 1930, fixa

residência na Mata Norte de Pernambuco, onde começa a escrever cordéis, produzir

xilogravuras e praticar astrologia amadora. Trabalhou na indústria açucareira, além de

trabalhar como mascate, ambulante e cambista. Atualmente vende seus Cordéis em

Itambé e Itabaiana, continua produzindo Xilogravuras e escreve seu Almanaque

popular.

O seu Almanaque, O Calendário Nordestino, agrega, principalmente,

informações do campo da Astrologia. Quando o Calendário Nordestino expressa

informações sobre o tempo, a lunação e fenômenos astronômicos baseia-se no Lunário

Perpétuo – editado pela primeira vez em 1703 e escrito por Jerônimo Cortez

Valenciano. O Lunário Perpétuo é uma grande referência entre os Almanaques

Sertanejos, sendo um dos livros mais lidos no Nordeste Brasileiro. Além de

informações astrológicas, o Calendário Nordestino traz dicas para os cuidados com a

saúde e uso de remédios caseiros, curiosidades, divertimento e um manual prático de

Astrologia.

A partir do debate entre Ciência Moderna e a construção de saberes não

científicos, que buscaremos trazer nesse estudo, procuraremos responder as seguintes

questões: “Todo o conhecimento produzido nos Almanaques advém da experiência, ou

a racionalidade cognitivo-instrumental da Ciência Moderna, de alguma, forma já

penetrou na produção dos Almanaques?”, “Há uma total dissociação entre o discurso

científico e o saber não científico produzido nos Almanaques?”, “É possível encontrar


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algum tipo de continuidade entre esses saberes científicos e não científicos?”, “Como se

coloca as problemáticas da verdade e certeza nos saberes eruditos e populares?”

Quadro Teórico

Usamos nesse estudo algumas das concepções teóricas de Boaventura de Souza

Santos, Michael Foucault, Giorgio Agamben e Max Weber. No conjunto dos estudos

desses autores, acreditamos que eles contribuíram significativamente no que diz respeito

à Ciência Moderna, a relação de poder que existe no discurso científico e sua relação

com a verdade, a relação entre experiência e experimento na sociedade moderna e o alto

grau de especialização que o discurso científico produz. Escolhemos esses temas porque

consideramos importantes para analisar a produção de saberes científicos e a produção

de saberes desenvolvida nos Almanaques, que é a proposta desse estudo. Embora esses

autores não tenham, necessariamente, uma mesma linha teórica, algumas de suas

teorias, de certa forma, se complementam.

Em seu livro A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da

Experiência, Boaventura de Souza Santos explana o projeto histórico da modernidade

mostrando, por meio desse projeto, a imposição da racionalidade científica sobre as

demais racionalidades. Ao fazer esse estudo, Souza Santos considera que o projeto da

modernidade se definiu sobre dois pilares de conhecimento: o da regulação e o da

emancipação. Segundo esse autor, o pilar da regulação acentuou-se sobre três princípios

- o do estado, o do mercado e o da comunidade. E o pilar da emancipação, por sua vez,

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acentuou-se a partir das três lógicas de racionalidade weberiana – a moral-prática,

estético-expressiva e cognitivo-instrumental.

Esse projeto julgava possível o desenvolvimento harmonioso do conhecimento

regulador e do conhecimento emancipação por meio de uma racionalidade completa da

vida individual e coletiva. Todavia, a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e

da tecnologia impôs-se as demais racionalidades. Com isso, a tensão entre a regulação e

emancipação assegurou uma gradual e crescente transformação das forças

emancipatórias em forças reguladoras.

Para Souza Santos, o conhecimento reconhece-se num certo tipo de saber a que

se contrapõe certo tipo de ignorância. No conhecimento regulador há uma trajetória

entre um estado de ignorância – caos – para certo tipo de saber – ordem. Enquanto no

conhecimento emancipação, há uma trajetória do estado de ignorância – colonialismo 1 –

para certo tipo de saber – solidariedade2. Como o conhecimento-regulador conquistou a

soberania sobre o conhecimento-emancipação, a ordem transformou-se na forma

hegemônica de saber e o caos na forma hegemônica de ignorância. Esse desequilíbrio a

favor da regulação permitiu que essa recodificasse o conhecimento emancipação:

Assim, o estado de saber no conhecimento-emancipação


passou a estado de ignorância no conhecimento-regulação - a
solidariedade foi recodificada como caos - e, inversamente, a
ignorância no conhecimento-emancipação passou a estado de
saber no conhecimento regulação - o colonialismo foi
recodificado como ordem.
(SANTOS, 2009: 79).

Souza Santos afirma que, essa distinção entre sujeito e objeto, acentuada a partir

do momento que o colonialismo - nos termos do autor- foi recodificado como ordem,

aprofunda a distinção entre o humano e o não-humano. Essa desumanização foi

1
Incide na ignorância da reciprocidade e na ineptidão de compreender o outro a não ser como objeto.
2
É o conhecimento adquirido no procedimento, sempre inacabado, de nos tornarmos capazes de
reciprocidade por meio da construção e do reconhecimento da intersubjetividade.
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imprescindível para consolidar uma concepção instrumental e regulatória, num

entendimento de saber que sobrepõe o caos pela ordem. A absorção da emancipação

pela regulação é fruto da hipercientificização. A hipercientificização ou Ciência

Moderna faz com que a relação sujeito-objeto torne-se uma relação que interioriza o

sujeito enquanto exterioriza o objeto, tornando-os incomunicáveis. Assim a concepção

causal/maniqueísta se tornou a matriz da Ciência Moderna.

Souza Santos afirma, ainda, que, para garantir seus princípios epistemológicos e

suas regras metodológicas a Ciência Moderna rejeita qualquer tipo de conhecimento que

possa desequilibrar a concepção regulatória que tem como forma de saber a ordem.

Paixão, emoção, inconsciente, sonhos, retórica, literatura, fé, experiência, podem

perturbar os dualismos propostos pela ciência. Só pertencem a um domínio da

cientificidade as pressuposições que obedecem a essas sistematizações propostas pela

ciência. Qualquer afirmação que tiver o mesmo sentido que o proposto pela ciência, que

diga o mesmo que ela, se não obedecer a certas leis de construção são excluídos do

domínio da verdade. Os atestados científicos, por supostamente produzir verdades, são

eficientes para desencadear decisões e comportamentos.

A partir desses pressupostos de Souza Santos, chegamos ao ponto da relação

entre discurso científico e verdade. Escolhemos analisar essa relação, a partir de alguns

atestados teóricos de Michael Foucault, em obras como Microfisica do Poder e em

Defesa da Sociedade. Essa escolha se dá, porque não há como falar de produção de

conhecimento e relação de saberes sem considerar a questão de poder que se estabelece

nesses instantes. Consideramos a contribuição de Foucault, nesse âmbito, significativa

para esse estudo.

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Foucault argumenta que as relações de poder não decorrem essencialmente da

esfera do direito, do Estado, da violência ou se sintetizam na repressão. O poder não se

resume como algo que diz não, que apenas tolhe, impõe limites. A sociedade moderna

ocidental e seus regimes políticos e econômicos não se sustentariam se o poder se

limitasse exclusivamente na coação. Segundo Foucault, o poder causa uma eficácia

produtiva, uma positividade. Ele não nega o sujeito, ele cria o sujeito, para que possa

controlar suas ações, controlar suas escolhas, e utilizá-los ao máximo. Afirma, ainda,

que, o poder constrói o indivíduo, e não o anula.

A partir dessas constatações, Foucault afirma que o controle dos indivíduos – o

controle disciplinar – é exercido por técnicas disciplinares. Dessas técnicas

disciplinares, nasce um tipo particular de saber que é a ciência humana. Esse saber está

completamente vinculado ao poder, pois não existe, para esse autor, um saber neutro.

Como o saber do discurso científico adquire um status centralizador na sociedade

moderna, há uma institucionalização da ciência, e essa adquire um corpo nas

universidades, nas instituições psiquiátricas, nos aparelhos políticos. Foucault propõe

então, uma anti-ciência, mas não no sentido de abolir o discurso científico e os

conhecimentos produzidos pela ciência, mas uma abolição dos “efeitos centralizadores

de poder que são vinculados a instituição e ao funcionamento de um discurso cientifico

organizado no interior de uma sociedade como a nossa”. (FOUCAULT, 2005: 14) O

objetivo é, então, neutralizar a idéia de dissociação entre ciência e as condições

políticas. A idéia de que a ciência é um conhecimento que o sujeito ultrapassa suas

necessidades e limitações por meio de uma objetividade universal, é anulada por esse

autor. A investigação do saber reflete as relações de poder.

A relação de poder da ciência na sociedade moderna ocidental está

completamente localizada na relação da ciência com a “verdade”:

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A verdade não existe fora do poder ou sem poder
(...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele
graças as múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como sanciona uns
dos outros; as técnicas e os procedimentos que são
valorizados para obtenção das verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro.
(FOUCAULT, 2000: 12)

Nos atestados teóricos de Agamben, assim como em Foucault, encontramos a

relação ciência e verdade. Nos pressupostos de Agamben, porém, essa relação é

percebida como a relação entre saber científico e experimento. Segundo esse autor, para

buscar a certeza a Ciência Moderna anula a experiência e produz o experimento,

tornando o problema do conhecimento a relação sujeito e objeto. Agamben afirma,

ainda, que a Ciência Moderna nasce de uma descrença sem precedentes em relação à

experiência, como é tradicionalmente entendida – como a capacidade de transformar

eventos cotidianos comuns e não extraordinários em autoridade.

Segundo Agamben, em certo sentido, a expropriação da experiência estava

implícita no projeto fundamental da Ciência Moderna. Devido a essa expropriação: “O

que caracteriza o tempo presente é que toda autoridade tem o seu fundamento no

‘inexperienciável’, e ninguém admitiria aceitar como válida uma autoridade cujo único

título de legitimação fosse à experiência” (2005: 22).

A partir dessas concepções, Agamben afirma que não há como falar de

experiência na sociedade moderna. Segundo esse autor, o homem é incapaz de fazer e

transmitir experiências. Afirma que a humanidade perdeu a experiência, que ela existe,

mas que se realiza exteriormente aos indivíduos. Em Infância e História: Destruição da

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Experiência e Origem da História (2005), Agamben nos explica essa exteriorização da

experiência:

Uma visita a um Museu ou a um lugar de


peregrinação turística é, desse ponto de vista,
particularmente instrutiva. Posta diante das maiores
maravilhas da terra (digamos, o patio de los leones,
no Alhambra), a esmagadora maioria da humanidade
recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a
máquina fotográfica a ter experiência delas. Não se
trata aqui, naturalmente, de deplorar a realidade, mas
de constatá-la.
(AGAMBEN, 2005: 21)

A expropriação da experiência criou um distanciamento do sujeito em relação


ao meio no qual habita. O discurso científico, para garantir legitimidade, incentiva esse
distanciamento do sujeito observador em relação ao objeto observado.
Consideramos o estudo de Agamben - sobre destruição da experiência - muito
válido para qualquer análise que se propõe a estudar a produção do conhecimento. No
entanto, ainda consideramos válido se falar de experiência na sociedade moderna. Por
isso a proposta do presente estudo é analisar o discurso centralizador e
institucionalizado da Ciência Moderna e a produção dos saberes nos Almanaques, sob a
problemática experiência e experimento
Na problemática experiência e experimento, encontramos um dos pontos muito
caros a Ciência Moderna e que será destaque nesse estudo: a especialização. A Ciência
Moderna, ao contrário de outras formas de produção do saber, para garantir a “certeza”,
alcançou um grau rigoroso de especialização.
.Em ciência como vocação, Max Weber pergunta se a Ciência Moderna possui
um conhecimento superior aos antigos a respeito de suas próprias condições de vida.
Weber responde negativamente. A Ciência Moderna atingiu um patamar de
especialização tão alto que cada especialista, embora seja muito competente em sua
área, é incapaz de perceber e compreender os instrumentos de que se utiliza. A
racionalização e a intelectualização crescente não equivale um conhecimento crescente
a respeito do que vivemos, a técnica excessiva da ciência busca o controle e a previsão.

No início pensava-se que tais especializações


produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isto não ocorreu. O que
ocorre, freqüentemente, é que cada músico é surdo para o que os
outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos, que não
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sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não
compreendem a linguagem da economia, e assim por diante. A
especialização pode transformar-se numa perigosa fraqueza.
Um animal que só desenvolvesse e especializasse os olhos se tornaria
um gênio no mundo das cores e das formas, mas se tornaria incapaz de
perceber o mundo dos sons e dos odores. E isto pode ser fatal para a
sobrevivência.
(ALVES: 1981, 8-9)

Embora os autores escolhidos não pertençam a uma mesma linha teórica, como
foi dito anteriormente, podemos perceber, de certa forma, que alguns de seus
pressupostos teóricos se complementam. A partir disso, optamos por fazer um estudo
desses autores de forma que possamos aproveitar suas constatações como
complementares umas das outras. Pois, consideramos que se estudássemos um ou outro
isoladamente, não seria suficiente para analisar o que estamos propondo nesse estudo.

Então – de forma resumida - a análise de Souza Santos sobre o projeto histórico


da modernidade é fundamental para compreendermos como o discurso científico se
tornou um discurso centralizador e autoritário ao se legitimar a partir da negação de
outros saberes não científicos. A partir disso, percebemos que não há como analisar a
produção e o desenvolvimento de saberes sem considerarmos a questão de poder que
existe nessa produção e relação. E para isso, buscamos nos atestados de Foucault a
análise de como na sociedade moderna a “verdade” é centrada no discurso científico e
nas instituições que o produzem; e como a produção de conhecimento só pode existir a
partir de condições política que formam os sujeitos e seus saberes. Para entendermos
melhor a questão de como o discurso científico se legitimou como o produtor de
“verdades”, trazemos os estudos de Agamben sobre experiência e experimento, para por
fim, fecharmos o debate com a análise da especialização crescente da ciência moderna –
explanada por Weber – que é, inclusive, no nosso entendimento, um resultado da
expropriação da experiência – nos termos de Agamben - que a Ciência Moderna faz em
nome do experimento.

Objetivos

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Objetivo Geral: Analisar como se coloca a problemática experiência e
experimento na produção dos saberes dos Almanaques e da Ciência Moderna.

Objetivos específicos:

• Analisar como se dá a relação entre o discurso científico e os saberes não


científicos, especificamente, os saberes desenvolvidos nos Almanaques.

• Analisar a relação de poder que existe na produção e relação dos saberes.

• Debater sobre o espaço dos Almanaques na sociedade moderna.

Perguntas:

1. Podemos afirmar que o saber produzido pela Ciência Moderna é

expropriado de experiência?

2. Todo o conhecimento produzido nos Almanaques advém da experiência,

ou a racionalidade cognitivo-instrumental da Ciência Moderna, de

alguma, forma já penetrou na produção dos Almanaques?

3. Há uma total dissociação entre o discurso científico e o saber não

científico produzido nos Almanaques?

4. É possível encontrar algum tipo de continuidade entre esses saberes

científicos e não científicos?

5. Como se coloca as problemáticas da verdade e certeza nos saberes

eruditos e populares?

6. Como se faz a relação entre experiência, conhecimento, verdade e

experimento?

7. Como os saberes produzidos nos Almanaques penetram na sociedade

moderna?

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Metodologia

Como foi dito anteriormente, esse estudo pretende analisar o debate entre os
saberes produzidos no discurso cientifico e os saberes produzidos nos Almanaques.
Dentre esse gênero literário, escolhemos analisar os Almanaques Nordestinos, mais
especificamente, o Calendário Nordestino de Costa Leite.

Tendo em vista a discussão construída até aqui, acreditamos que o estudo


bibliográfico sobre a Filosofia da Ciência, a Teoria do Conhecimento e sobre os
Almanaques é a melhor escolha para analisar os debates entre os saberes estudados
nessa pesquisa. O debate trazido nesse estudo será um debate teórico, um debate que
procura compreender a relação entre os saberes produzidos pela ciência e produzidos
pelos Almanaques por meio de autores que estudam e escrevem sobre ( e “dentro”) da
Ciência e dos Almanaques. A leitura e análise de Almanaques Nordestinos, com ênfase
na leitura do Calendário Nordestino, também será realizada nesse estudo, que pretende
ler, estudar e compreender o discurso dos almanaqueiros, assim como o discurso dos
cientistas.

Pretendemos conhecer e acompanhar um dia de trabalho de Costa Leite, escritor


e poeta do Calendário Nordestino. Não pretendemos pré-estabelecer a contribuição
desse encontro no presente estudo. A proposta é fazer desse encontro uma experiência, e
a partir disso, escolhermos a melhor forma de compreendê-lo na pesquisa.

Bibliografia

AGAMBEN, G. Infância e história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. 8. Ed. São
Paulo: Brasiliense, 1986.

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FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-
1976), (trad. de. Maria Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. Almanaque Toda a Oficina da Vida. Recife:


Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente contra o desperdício da


experiência. São. Paulo: Cortez, 2000.

WEBER, Max. Ciência como vocação. Campinas: Ed. UNICAMP, 1993.

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