Você está na página 1de 10

Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

O lado positivo da
melodia e da harmonia
negativa
Parte 1

José Fornari (Tuti) – 25 de dezembro de 2019

fornari @ unicamp . br

Nos últimos anos, muitos músicos têm comentado sobre aquilo que veio a
ser chamado de “harmonia negativa” (negative harmony). Este conceito
foi popularizado por volta de 2017, pelo famoso e talentoso músico e
youtuber, Jacob Collier. Em um video de uma de suas entrevistas, Collier
menciona o livro “A theory of harmony”, de Ernst Levy, publicado em
1985, quatro anos após a morte do autor. Pouco antes disso, Collier havia
gravado um video para o canal youtube da WIRED onde explica conceitos
de harmonia musical em 5 níveis de dificuldades; desde uma criança de 5
anos até um dos maiores ícones ainda vivos do jazz, o pianista Herbie
Hancock. Na entrevista, Collier menciona o que ele havia discutido sobre
harmonia com Hancock, que ele chama de “negative harmony”; um con-
ceito, segundo Collier, extraído do livro de Levy (apesar de Levy não men-
cionar este termo em seu livro). Collier explica na entrevista que todos os
acordes dentro de uma tonalidade tem um correspondente refletido,
como uma imagem espelhada. Este processo de inversão intervalar vem
de um conceito abordado no livro de Levy; uma séria virtual, correspon-

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 1 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

dente refletida descendente da série harmônica.

Conforme tratei anteriormente, a série harmônica é a base acústica (por-


tanto física) da música tonal, que tem um forte correspondente cognitivo
em termos de expectativas e antecipações mentais de suas elementos mu-
sicais, que vem sendo estudada e utilizada para explicar a teoria e harmo-
nia musical tonal pelo menos desde Pitágoras. Esta série harmônica, exis-
tente e facilmente comprovável (conforme mostrado anteriormente) é
chamada no livro de Levy de: serie dos “overtones” (harmônicos superi-
ores). No entanto, Levy apresenta também em seu livro um conceito to-
talmente teórico, ou seja, que não é baseado na existência factual da séria
de overtonesmas apenas na sua hipotética representação refletida da
série original, em intervalos correspondentes só que na direção oposta,
ou seja, descendentes. Em seu livro, Levy chama esta série hipotética de
série dos “undertones” (harmônicos inferiores). Em suma, a série exis-
tente na natureza, descrita pela acústica e que constitui os sons tonais,
com correspondente sensorial e cognitivo, é a série real dos “overtones”,
enquanto que a série correspondente, hipotética, construída a partir da
inversão dos intervalos entre harmônicos da série de overtones, constitui
a série virtual de “undertones”.

SÉRIE DE OVERTONES

00:00 00:00

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 2 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

SÉRIE DE UNDERTONES

00:00 00:00

Levy ratifica a existência da escala diatônica e da sua correspondente


tríade maior, como fruto direto da série real, de “overtones” (onde os seus
harmônicos 4, 5 e 6 formam a tríade maior). Por analogia, Levy infere
que a escala e sua tríade menor seriam dadas pela série virtual dos “un-
dertones” (onde os seus harmônicos 4, 5 e 6 formam a tríade menor).

Levy também menciona em seu livro um importante conceito, que ele


chama de “polarity” (polaridade) onde as notas da tríade, dentro da es-
cala diatônica, exercem como que um tipo d e“força gravitacional” em
nossa expectativa musical, como que atraindo nossa atenção para anteci-
par a resolução das notas da escala fora da tríade (graus 2, 4, 6 e 7), para
a estabilidade musical denotada pelas notas da tríade (graus 1, 3 e 5).
Apesar deste ser um processo notadamente influenciado pela encultur-
ação do ouvinte e dos aspectos estéticos de cada gênero musical, penso
que haja uma certa verdade basal nesta teoria de polaridade, que pode ser
derivada da série harmônica real, uma vez que as outras notas da escala
são representadas por harmônicos mais distantes que os da tríade. Se-
gundo Levy, a polaridade aplica-se tanto para a escala e sua tríade maior
quanto para o seu correspondente menor.

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 3 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

Eu havia explicado anteriormente os 7 modos modernos da escala di-


atônica, e como esta é derivada diretamente da série harmônica real, con-
stituída pelos overtones (ver artigo anterior). Aplicando o mesmo princí-
pio de espelhamento (dos intervalos da série, entre os overtones reais
para se criar os undertones virtuais, para os intervalos entre as notas da
escala diatônica (também conhecida como modo jônico), tem-se a criação
do seu modo espelhado, ou negativo. Conforme mostra a tabela deste ar-
tigo e considerando a sigla T para representar o intervalo entre notas con-
secutivas de 1 tom (ou 2 semitons) e S para o intervalo de 1 semitom, tem-
se o modo jônio, constituído pelos intervalos T-T-S-T-T-T-S. Ao ser inver-
tido, em seu modo negativo, este apresenta a sequência reversa, ou seja,
S-T-T-T-S-T-T, que equivale ao terceiro modo menor; o modo frígio.

Seguindo o mesmo princípio, a versão refletida (negativa) do modo dóri-


co (T-S-T-T-T-S-T) é o próprio modo dórico já que, como pode se obser-
var, esta sequência é simétrica (como um palíndromo). Os modos lídio
(T-T-T-S-T-T-S) e lócrio (S-T-T-S-T-T-T) são espelhados, bem como os
modos mixolídio (T-T-S-T-T-S-T) e eólio (T-S-T-T-S-T-T).

Modo (grau) [sequência] [sequência] (grau) Modo

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 4 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

Jônio (I) [T-T-S-T-T-T-S] [S-T-T-T-S-T-T] (III) Frígio

Dórico (II) [T-S-T-T-T-S-T] [T-S-T-T-T-S-T] (II) Dórico

Lídio (IV) [T-T-T-S-T-T-S] [S-T-T-S-T-T-T] (VII) Lócrio

Mixolídio (V) [T-T-S-T-T-S-T] [T-S-T-T-S-T-T] (VI) Eólio

Improviso em E Jônio (do início até 24s) e E Frígio (de 24s até o final)

00:00 00:00

Improviso em B Lídio (do início até 30s) e B Lócrio (de 30s até o final)

00:00 00:00

Improviso em A Eólio (do início até 35s) e A Mixolídio (de 35s até o final)

00:00 00:00

Este princípio, de espelhamento dos intervalos, pode também ser aplica-


do em frases melódicas e constitui o que vem atualmente sendo chamado
de “melodia negativa”. Existe um interessante exemplo da utilização des-
ta técnica na variação 18 da “Rapsódia sobre um tema de Paganini”, com-
posta pelo famoso compositor Sergei Rachmaninoff, em 1934. A variação
18 (em lá menor, opus 43) é um dos temas melódicos mais conhecidos da
música erudita.

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 5 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

Rachmaninoff Variation 18 - Rhapsody on a Theme of Pagannini - …

Este famoso tema foi criado a partir da melodia negativa (ou seja, a técni-
ca de espelhamento dos intervalos) de um tema de Paganini, mais pre-
cisamente, o solo para violino “Caprice No. 24”:

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 6 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

Paganini Caprice no.24 [HQ]

Pode-se perceber a grande diferença entre ambas as melodias. Descon-


siderando as igualmente grandes diferenças entre estas peças musicais,
em termos de timbre (violino e piano), de harmonia (no violino, quase
que inexistente, enquanto que ao piano tem-se uma complexa estrutura
harmônica), e de andamento rítmico; conforme explica este interessante
video o início de ambas melodias estão relacionadas pela reflexão dos in-
tervalos entre suas notas. No solo para violino de Paganini, tem-se a se-
quência de notas: A C B A E. Os intervalos entre estas são (considerando
n = número de semitons entre as notas, a=ascendente e d=descendente):
3a (A C), 2d (C B), 2d (B A), 7a (A E). Refletindo a direção dos intervalos
(trocando ascendente por descendente e vice versa) desta sequência: 3a,
2d, 2d, 7a, tem-se a sequência “negativa”: 3d, 2a, 2a, 7d. Partindo da mes-
ma nota inicial A, tem-se a nova sequência melódica: A F# G A D, que é o
https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 7 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

início da famosa melodia da variação 18 de Rachmaninoff.

Áudio dos 2 excertos musicais mostrados na figura acima, inician‐


do pelo tema de Paganini, seguido por sua melodia negati‐
va que deu origem ao tema de Rachmaninoff.

00:00 00:00

No próximo artigo, continuação deste, falarei sobre o desenvolvimento


desta estratégia que deu origem à harmonia negativa.

Referências:

Ernst Levy. “A Theory of Harmony”. SUNY press. 1985

Interview: Jacob Collier (Part 1) https://youtu.be/DnBr070vcNE (up-


loaded in 2017)

Musician Explains One Concept in 5 Levels of Difficulty ft. Jacob Collier

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 8 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

& Herbie Hancock | WIRED https://www.youtube.com/watch?v=eRkg-


K4jfi6M (recorded in 2016, uploaded in 2018)

Nick Roll. “Finding Its Moment, 30 Years Later: A brief mention in an in-
terview by a British artist breathes life and sales into a niche music theory
book. July 11, 2017. https://www.insidehighered.-
com/news/2017/07/11/mentioned-youtube-interview-dormant-music-
theory-book-takes

Rick Beato. “Musical Palindromes & Negative Harmony”


https://youtu.be/Eu76BV0kzDE

MusicTheoryForGuitar. “How To Write Chord Progressions With NEGA-


TIVE HARMONY”. https://youtu.be/qHH8siNm3ts

MusicTheoryForGuitar. “How To Use NEGATIVE Melody To Write Beau-


tiful Music [Negative Harmony]” https://youtu.be/0oI2iFrzA0o

Como citar este artigo:

José Fornari. “O lado positivo da melodia e da harmonia negativa – parte


1”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-
6187. Data da publicação: 25 de dezembro de 2019. Link:
https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/12/25/42/

José Fornari (Tuti) in musicologia, teoria musical | 25 de December de 2019 | 1,559 Words | Comment

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 9 of 10
Musicologia na Mídia - Page 5 of 46 - Um blog de ciência da UNICAMP dedicado à pesquisa em música 27/1/20 18:19

Page 5 of 46 « First « ... 3 4 5 6 7 ... 10 20 30

... » Last »

Independent Publisher empowered by WordPress

https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/page/5/ Page 10 of 10

Você também pode gostar