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ENTRE MANHAS DE CARNAVAL E APLAUSOS AO POR-DO-SOL

Clarisse Fukelman
Resenha do livro Crônicas Efêmeras : João do Rio na Revista da Semana -
Paulo Barreto (João do Rio) Ed. Ateliê Editorial/ Oficina do Livro e Editora Giordano ,
2001

Primeiro contratempo: ao ser descoberta nos idos de 1500, a costa litorânea carioca
se apresenta ao olhar português como a embocadura de um rio, forjando um nome
(im)próprio que o futuro irá consagrar. Segundo contratempo: Paulo Barreto, rotulado como
escritor de momento, volúvel como um rio, estaria fadado ao esquecimento. Até Luís
Martins, um dos seus admiradores e responsável por uma antologia de divulgação do
escritor, aponta sua importância para o historiador da literatura e sociólogo, mas ressalva
que a obra "era demasiado uma expressão do tempo, para que pudesse conservar esse
caráter de perenidade e permanência que o transcende."
Além disso, Paulo Barreto provoca um curto-circuito em seu próprio nome ao se
chamar João do Rio e também José Antonio José, Paulo José (alter ego político), Claude,
Joe etc.. Ora, qualquer um pode recusar o batismo definido sem consulta prévia - a mudança
de nome está garantida em lei. O pseudônimo sempre foi difundido entre escritores e as
escritoras usavam do artifício para facilitar o ingresso no mundo das Letras, que se queria
viril e de fraque. Mas quando a arca deixada por Fernando Pessoa revelou um total de 72
personalidades poéticas, a coisa mudou de figura. A modernidade, que a esta altura já devia
estar familiarizada com o complexo mecanismo da identidade, foi surpreendida. O escritor
Paulo Barreto, ao se dividir ou multiplicar, criando em Godofredo de Alencar um
personagem-sósia e no Barão de Belford um heterônimo, parecia aceitar e cultuar o
desdobramento do artista. Nisso, diria ele, há a "aspiração confusa de toda humanidade":
"penso claramente, livre de partidos, o que é sonho e pesadelo da Humanidade, graças tanto
aos ministros como aos que desejam acabar com os ministros." (Celebridades, desejos).
Mas há um terceiro contratempo: chama-se a época em que João do Rio se consagra
(duas primeiras décadas do séc. 20) de pré-modernismo, nome sem nome, termo que sugere
passagem, sem cara própria, projeto do que ainda não é. Essa condição revela um misto de
má-vontade e incompreensão de historiadores literários de quilate que consideraram pouco
inovadora a literatura que antecede a Semana de Arte Moderna.
Trata-se, pois, de três contratempos ou equívocos. Mas, a crer em Clarice Lispector,
às vezes de toda uma vida só se salva o erro. No caso, constituem os elementos para a
interessante história de um certo escritor João, no Rio pré-modernista. Um homem, um
lugar e um tempo em crise de identidade constróem essa narrativa pautada por uma aparente
comédia de erros em que o rio contém um mar; a véspera (pré), um acontecimento; e um
escritor fadado ao esquecimento (por sua dicção over e por seu atrelamento à cidade), a
fama. Mas é esse descompasso que dará permanência à cidade (sempre surpreendente), à
época (fértil em provocações) e ao polêmico escritor, justificando a reedição de sua obra e o
atual lançamento que eterniza em livro crônicas tidas por efêmeras. Os três equívocos estão
plantados no tempo e, como o tempo, tornam-se ponto de referência, lugar de reflexão e
fabricação de uma nova subjetividade.
Na íntima associação entre personagem e espaço, entre autor e cidade, revela-se, mais
do que a origem, o forte vínculo afetivo. Ele pertencia à cidade, ou, de outro modo, a cidade
ajudou a moldá-lo. Filho de um matemático positivista ortodoxo e de uma dona de casa alto
astral, Paulo Barreto escreve numa época de transformações que afetaram a arquitetura, o
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urbanismo e a organização social do espaço urbano, reforçando a idéia de uma identidade
em movimento, como a da cidade. Era a reforma Pereira Passos. O Rio vivia uma mudança
de status muito alardeada (queria emancipar-se, virar coquete) e também sofrida - o rosto
novo e moderno foi modelado com o sacrifício dos pobres expulsos para a periferia. A
"cirurgia urbana", apontada pelo próprio João do Rio e inspirada na Europa, revelava o
quanto a capital da República se preparava para uma nova era e a que preço. A cidade
ganhava em símbolo de sofisticação, consolidava-se como mito, afastando dramaticamente
a miséria que, anos depois, vem se instalar, rebelde, em sua alma. Também João do Rio era
duplo: apologista dos bailes de carnaval e suas máscaras, circulando no dia-a-dia com trajes
à Oscar Wilde e adotando a vida de intelectual-boêmio e de mulato-doutor que não desistiu
do projeto de ingressar na Academia Brasileira de Letras, enfrentando duas derrotas até ser
eleito - esse João era adepto de experiências radicais, que o impulsionavam a conhecer a
cidade em todos os seus nichos. Para falar daquela geografia mutante renovou a maneira de
se fazer jornalismo. Não era um qualquer João ninguém - era o João do Rio, nome cunhado
em 1903, que observava o alto e o baixo, o rico e o pobre, num misto de argúcia, ironia,
ceticismo - e, às vezes, saudosismo.
Mas se a situação era de transe, de trânsito, trata-se mesmo de equívocos? Cem anos
depois, ainda existiria aquela cidade do Rio de Janeiro à qual colou sua escrita, na qual
fixou sua imagem? Afinal, o rio não seria mesmo a melhor imagem para traduzir uma
"cidade partida"? Mais: a "adesão" à cidade não teria impregnado e datado seus textos de tal
forma que o leitor perderia o ponto de diálogo? Pelo lado documental, pode-se traçar desde
já analogias com a atualidade, em vôo rasante: a permanente busca de embelezamento
persegue a cidade maravilhosa (inconformada em ter apenas a bênção da geografia), a
mania de importar modelos (compensada pelo cosmopolitismo, pela capacidade de aceitar
o que vem de fora - pelo menos, de prestar atenção), as tensões sociais (ordens de despejo,
população sem teto levada à casa de detenção, etc.) e também o entendimento de que o Rio
era emblema do Brasil.
Mas esse lado será suficiente para manter João do Rio na mira não só da história,
mas também do jornalismo e da literatura? Como os contemporâneos Machado de Assis e
Lima Barreto, quem o lê logo percebe a cara do Rio. Esses escritores ainda espelham a
cidade - de modo nítido ou desfocado - porque respondem a inquietações existenciais e
sociais de hoje. A edição inédita em livro das Crônicas efêmeras, publicadas originalmente
na Revista da Semana nos idos de 1916, testemunham a sobrevivência de João do Rio
graças à perspectiva, ao ângulo com que trata de fatos banais (no caso desta coletânea) ou
demasiadamente cruéis (como no livro "Dentro da Noite").
A nova visão, que o faz romper os limites do tempo e permanecer atual, se constrói
exatamente no gênero crônica, a princípio descartável, mas que João do Rio reinventa,
aliando-o à reportagem e dramatizando o transitório. Para Baudelaire, o tempo é o "obscuro
inimigo que nos corrói o coração", traduzindo desse modo o estado de espírito do
Decadentismo na Europa, que muito influenciou João do Rio. Cheio de contradições e
tratando de temas ora aristocráticos, ora populares, expressava os medos, modos e modas de
uma época que não prometia estabilidade para o artista, cujo papel na sociedade passava por
uma crise e cuja sobrevivência, agora sem o mecenas, dependia de emprego regular na
imprensa e de um público leitor sobretudo burguês. A aura e o ouro se perderam e nada
parecia preencher o vazio. Apenas a sensação da velocidade mesclada ao sentimento do
perecível.
João do Rio fala e abusa do tempo, dentro da moldura a princípio passageira da
crônica (de Cronos, deus grego do tempo, devorador de seus próprios filhos). Tira proveito
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de sua natureza anfíbia, entre o registro e a representação do fato, entre a pressão e a
invenção do cotidiano. Como a notícia, flagra o episódico – mas pode e deve romper
limites. É na condição ambígua (submissa e rebelde ao calendário) que crônicas de ontem
superam barreiras temporais. Ele transforma a nota de pé de página do jornal em espaço de
liberdade para o exercício da palavra; na chave decadentista que apregoa a abolição de
fronteiras entre as artes, experimenta diferentes usos de linguagem - opinativa, poética, etc. -
e trata de banalidades enquanto, malandro, dribla o olhar do leitor jogando-o no centro de
cenas inesperadas. Em "Crônicas efêmeras" encontramos um pouco de editorial, teatro,
divagações, fragmentos. Para exibir a vida carioca faz uso do personagem do dândi, que
busca viver o presente fugaz sem esquecer o passado próspero e estável. O dândi do Rio tem
a duplicidade de quem perdeu privilégios e reage à decadência através do apego ao carpe
diem e ao jogo teatral em que, sem papel definido por sangue e dinheiro, se constrói
diariamente. Ele terá de estar em todos os lugares, freqüentando o Five O'clock em
diferentes casas, começando às quatro e terminando sabe-se lá a que hora ("Um chá das
cinco").
A Revista da Semana, como ele afirma, "não é política. É um semanário da elegância,
de senha fotográfica da semana, um pouco a preocupação da expressão externa dos
costumes cariocas". Daí pouco explorar a fratura decorrente do processo de higienização
que levou à exclusão de uma "cidade real, por onde circulava uma rica tradição popular"
que "não cabia na visão da ‘ordem’" (Renato Cordeiro Gomes). Mas se não toca no lado
miserável que conhece bem, não poupa os personagens frívolos da elite carioca.
Ao acompanhar os meses que se sucedem inexoravelmente ou ao retratar modismos,
João do Rio dá destaque ao atrito entre tempo, ação e criação, ficando em primeiro plano a
inércia. O passageiro, o artificialismo dos gestos da alta sociedade carioca, têm como pano
de fundo festas religiosas e cívicas misturadas às mudanças das estações. Juntam-se evento
social, tradição, natureza e cultura. Nesta gangorra, ora desponta o lado rebelde, ora o lado
tradicionalista e saudosista do escritor que gostaria de manter estáveis antigos valores e
denuncia a banalização dos rituais: "Carnaval é uma festa a data fixa. O seu interesse está
no seu limite: esperar o ano inteiro para brincar só quatro dias de uma certa maneira. Desde
que todos os dias pode haver uma batalha de lança-perfumes (...) - não há entusiasmo que
resista" Nessa avidez de uma vida permanentemente em festa João do Rio anuncia uma era
em que o excesso de trabalho, miséria, competição ou violência fazem da vida uma eterna
embriaguez que suprime a pausa para reabastecer energias.
Alguns traços do escritor foram objeto de crítica. O artificialismo e tendência à
repetição são inegáveis. Mas com esse modo excessivo ganhou o passaporte de
permanência. Em "Necessidade da caricatura", valoriza o traço carregado que ajuda no
"quadro de costumes". Para o cronista, vale empregar dois termos usados por Monica
Pimenta Velloso para os caricaturistas da mesma época. No traço e no tom, João do Rio
combina a figura do turuna (cordão carnavalesco, remetendo também ao malandro carioca,
chefe, "negro poderoso") e a do quixote, sonhador que antevê realidades apenas esboçadas.
A distância entre os dois tipos se anula no que eles têm de outsider. Como intelectual e
artista João do Rio funcionou meio à margem e até por isso terá sido objeto de extremos nos
admiradores e detratores. Elegendo a dicção do humor, reforça seu vínculo com a
modernidade e, para o bem e para o mal, contribui para tornar a descontração/
desconstrução uma marca do jeito de ser carioca. Dentro do humor, prefere a caricatura,
outra manifestação do gosto pelo excesso e da perplexidade diante do tempo. De fato, nada
nele é discreto, a começar pelos trajes carnavalescos com que veste Paulo Barreto e no tom
acima que dá a personagens e enredos, em contraste com a informalidade blasé. Deixa claro
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que não se preocupa em obedecer à cartilha do "bom moço". E com o tom às vezes
alambicado, rococó, constrói uma tensão com a realidade rápida da nova urbe. Mesmo que
se identifique nisso o falso, este pode ser encarado como uma faceta do João ator num novo
cenário (leia-se, a propósito, a tese recém-defendida por Lidia Kosovski, sobre a
teatralização do espaço). Nào por acaso é o fundador da Sociedade Brasileira de Autores
Teatrais - SBAT.
João do Rio se repetia, tinha obsessões. Colecionava personagens e situações
parecidas - algumas estào nessas Crônicas Efêmeras. Mas sua coleção está carregada de
significados. A partir dos "pequenos fatos frívolos" e das repetições antevê outra maneira
de fazer história - ou sem o sublime, ou tão abarrotada de detalhes inúteis que chama a
atenção para o vazio instalado na cidade. Colecionar é apaixonar-se pelas lembranças.
Quem coleciona traz para si o passado de outras pessoas – e, através delas, o da cidade.
Escrevendo tantos tipos fúteis e sem perspectiva, Joào do Rio, mais do que um depositário,
torna-se a expressão do oco do tempo, do baldio trazido pela transformação da cidade. Ao
construir sua história imaginária ligando ao acaso peças e objetos, alinhava diferentes
lugares e tempos e revela a tensão entre ordem e desordem, entre a tradiçào e a ruptura. A
partir de Walter Benjamin podemos dizer, portanto, que o colecionador tem uma relação
com as coisas que não põe em destaque o valor funcional ou utilitário, mas que as estuda e
as ama como o palco, como o cenário de seu destino. João do Rio, colecionador de
pequenos casos, ou porque muito sórdidos, ou porque muito fúteis, é um fisiognomonista
do mundo dos objetos, intérprete do destino.
O cronista da modernidade adere ao flagrante e num relance identifica a exclusão
social sob as vestes da democracia. E através da cidade, já então emblemática, se abre ao
questionamento do país. Parece prever a fala de João Paulo II: se Deus é brasileiro, o
papa é carioca. Com o mesmo traquejo, ainda na peça de teatro "Um chá das cinco",
trabalha com o que capta, pondo no palco uma grande crônica. Cenas superpostas anunciam
o futuro besteirol. Destituída de tensão, a peça perde em dramaticidade; em compensação, o
sem-sentido das ações salta aos olhos.
A cidade de hoje se desvela através de sua "propensão para os ângulos agudos", que
vê como se perdeu o hábito do aconselhamento, fruto da experiência. Ao se presentear com
o nome da sua cidade, assume tudo o que ela tem: exuberância, superficialidade, direito de
se contradizer. Sente prazer em sair da medida e, assim, pinçar no detalhe o embrião do está
sendo gestado no presente. Por aí ele lança seu enredo sobre nós, nesse século 21. O que
parecia modismo não é. A mania de usar termos estrangeiros ecoa no mouse, no happy
hour, no funk, no nonsense; a valorização do consumo e frivolity abre as portas dos
shoppings. Outra ponta do iceberg pode ser colhida na comparação com as recentes
manchetes de jornal indicando pesquisas da ONU sobre o IDH (índice de Desenvolvimento
Humano). Um abismo secular separa a Zona Norte da Zona Sul, o asfalto da favela. Em
Crônicas efêmeras afirma que a "civilização do Brasil divide-se em duas épocas: antes e
depois da Avenida. Entre a rua do Ouvidor e a Avenida vai um distância assim como do
Saara a Marselha". Este Rio, modelo do Brasil, flagrado com trágica sagacidade é que deu a
ele a autoria de "um dos escritos mais corajosos e lúcidos que um escritor brasileiro nào
militante político produziu sobre a situação do trabalhador", dirá Antonio Candido a
propósito da crônica "Os humildes", de Cinematographo. Joào do Rio soube perceber o
futuro que estava ali. A crônica identificou aquilo que, sob os braços abertos do Cristo,
tornou-se crônico.
Os três contratempos ou equívocos fabricaram uma cidade com muita personalidade
e muita ferida a ser curada; um escritor que aceita o desafio de olhar fundo, deixa-se levar
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pelo olhar raso ou capta a agonia instalada pronta a explodir a qualquer momento, como se
anunciasse o drama social espetacular de um ônibus 174, o ambiente da incerteza e da
descrença, assim como essa facilidade com que o carioca muda de pele sem perder a
vocação para revelar em cada curva a possibilidade de na areia da praia bater palmas para o
por do sol.
FIM

Título: Crônicas Efêmeras : João do Rio na Revista da Semana -


Autor: Paulo Barreto (João do Rio)
Ed. Ateliê Editorial/ Oficina do Livro e Editora Giordano

Por Clarisse Fukelman

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