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Considerações sobre a possibilidade de violação de correspondência de

investigados, acusados e condenados no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Rodrigo Almeida Gomes Moura


Advogado

Os operadores jurídicos brasileiros se deparam freqüentemente com


inúmeras dúvidas e divergências no que diz respeito à possibilidade da violação
de correspondências de indiciados, acusados e condenados. Autoridades policiais,
magistrados e membros do Ministério Público, diariamente, enfrentam questões
relacionadas ao tema. A violência urbana, principalmente a relacionada ao tráfico
de drogas, traz à tona algumas indagações: pode um presidiário ter sua
correspondência violada? Pode haver ordem judicial de violação do sigilo da
correspondência para fins de investigação criminal ou instrução processual penal?
É possível a correspondência violada servir de prova para uma possível
condenação? O sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas é
direito absoluto do réu?

A doutrina e jurisprudência brasileira divergem a respeito dessas


indagações. No sistema prisional do Brasil, por exemplo, há constantes
desrespeitos por parte das autoridades responsáveis pelos presídios, delegacias,
casas de detenção e outros estabelecimentos similares, para com dispositivos de
lei de fundamental importância para o sustentáculo de um Estado Democrático de
Direito. A Constituição Federal de 1988 vem assegurar a todo ser humano direitos
e garantias, como o respeito à dignidade da pessoa humana, à cidadania, à
igualdade entre as pessoas, à inviolabilidade da liberdade de consciência, à vida
privada, à intimidade e à inviolabilidade do sigilo de correspondência. Direitos e
garantias estes, que orientam as autoridades, o intérprete, o legislador, enfim,
todos os membros de uma sociedade, para a condução de uma vida em
comunidade consoante os princípios do Estado Democrático de Direito.
O art. 5º, "caput", da Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB), trata dos destinatários dos direitos e garantias fundamentais. Entre os
destinatários, a CRFB não relacionou a pessoa jurídica e os estrangeiros que
estão de passagem. Não se deve fazer uma interpretação literal desse "caput".
Não há dúvida de que os direitos e garantias fundamentais previstos no Título II da
Constituição Federal de 1988 se dirigem a todos os brasileiros e estrangeiros em
trânsito ou não, independentemente de serem estes praticantes de atividades
delitivas ou não. Isto é, o indiciado, acusado e o condenado são seres humanos e,
logo, também, possuidores de direitos e garantias que assegurem uma vida digna.

Ocorre que, na realidade prática do nosso país, inúmeras agressões


aos direitos e garantias fundamentais podem ser apontadas diariamente. Os
presidiários, por exemplo, além de vivenciarem a aflição do confinamento em
locais impróprios e desumanos, estão sofrendo, além da pena cominada em lei,
outras inúmeras sanções ilegais como o desrespeito à sua dignidade, privacidade
e à inviolabilidade de sua intimidade e vida privada. Os responsáveis pelos
cárceres, muitas vezes, não observam o fato de os aprisionados possuírem
direitos e devassam as correspondências tanto recebidas quanto enviadas por
aqueles que se encontram encarcerados, ferindo assim, a intimidade e privacidade
destes. Segundo a doutrina, porém, deve-se fazer a diferença entre abrir a
correspondência e se apossar do seu conteúdo. O acesso ao conteúdo é o que
retrata o desrespeito à privacidade e não a simples abertura do envelope.

Agindo dessa forma, os dirigentes e responsáveis pelos


estabelecimentos carcerários afrontam não só a Constituição, mas também as leis
e a Declaração Universal dos Direitos do Homem que em seu art. XII prescreve: “
ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu
lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo
Homem tem direito a proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. O
Código Penal, em seu art. 38, estabelece que o preso conserva todos os direitos
não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o
respeito à sua integridade física e moral. A Constituição Federal consagra o direito
à integridade física e moral dos presos ( art. 5º, XLIX ). O art. 41 da Lei de
Execução Penal elenca direitos do preso e, entre estes, no inciso XV traz o direito
de comunicação: “ contato com o mundo exterior por meio de correspondência
escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral
e os bons costumes".

Sendo assim, não há dúvidas de que os indiciados, acusados e


condenados possuem os direitos e garantias fundamentais e, dentre estes, o
direito à inviolabilidade de correspondência. Ocorre que o fato de essas pessoas
possuírem esse direito não põe um ponto final na questão, isto é, não existe
vedação absoluta do acesso ao conteúdo das correspondências ou da sua
utilização como prova. Os direitos e garantias fundamentais não são absolutos,
podem ser relativizados em detrimento de outros direitos e garantias
fundamentais. O mestre Paulo Rangel ao comentar o art. 240, § 1º, f, do CPP, que
trata da busca domiciliar, tece também, comentários sobre o art. 5º, XII da CRFB.
Dispõe o art. 240, §1º, f, do CPP: “Proceder-se-á à busca domiciliar, quando
fundadas razões a autorizarem, para apreender cartas, abertas ou não destinadas
ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do
seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato”. O professor Paulo Rangel
entende que este dispositivo legal não foi recepcionado pela CRFB, pois, não
pode haver violação de correspondência, nem por ordem judicial, conforme o art.
5º, XII da CRFB. Neste caso, o sigilo é absoluto, não há exceções.

Descreve o art. 5º , XII da CRFB: “é inviolável o sigilo da


correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma
que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal”. Para o professor Paulo Rangel, "o legislador constituinte não quis estender
o alcance da expressão 'último caso' ao sigilo da correspondência" e, sendo
assim, entende ser este sigilo absoluto.

O legislador constituinte não ressalvou no art. 5º, XII da CF a violação


do sigilo da correspondência. Ocorre que, este fato por si só não basta para
considerar o direito à inviolabilidade da correspondência como um direito absoluto.
Não há direitos e garantias absolutos, plenos, até porque os próprios direitos e
garantias se limitam reciprocamente. Os direitos podem ceder em face de outros
direitos ou em face de outros interesses assegurados pela Constituição Federal.
Nem o direito à vida é absoluto, pois existem hipóteses legislativas permissivas de
sua violação. Pode-se citar como exemplo a previsão no artigo 23 do Código
Penal de causas excludentes de ilicitude. Até a própria CRFB, no seu art. 5º,
XLVII, “a”, diz que não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada,
nos termos do art. 84, XIX da CRFB. O próprio STF ao julgar o HC nº 70.814-5/SP
entendeu que "nenhuma liberdade individual é absoluta, sendo possível,
respeitados certos parâmetros, a interceptação das correspondências e
comunicações telegráficas e de dados sempre que as liberdades públicas
estiverem sendo utilizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas”.

Sendo assim, é incontestável que o sigilo à correspondência é direito do


cidadão, porém, não é direito absoluto. Sendo assim, há hipóteses em que haverá
a permissão do acesso ao conteúdo da correspondência, seja para fins de
investigação, seja para instruir eventual processo penal, seja para se evitar uma
nova infração penal.

O tema em questão envolve um outro assunto importante: a


possibilidade de utilização de prova ilícita no processo. Todo meio de prova, via de
regra, é admissível no processo penal, não estando restritos, tais meios, aos
previstos no código, existindo também os inominados. É o denominado princípio
da Liberdade da Prova. O direito à prova é direito de acesso à justiça e, portanto,
está constitucionalmente assegurado no art. 5º, XXXV da CF. O princípio da
Liberdade da Prova, porém, não é absoluto, existem limites a este. Estes limites
estão previstos nas normas constitucionais, processuais e penais. A lei penal, por
exemplo, veda a tortura. Ora, a prova admitida mediante tortura é ilícita. Tais
limites existem, justamente, em virtude de nenhum direito ter valor absoluto, nem
mesmo o direito de provar. A liberdade de provar encontra seus limites nas
fronteiras da liberdade do sigilo.

Havendo violação a estes limites, haverá a prova proibida, vedada,


ilegal ou prova ilícita (sentido amplo). A doutrina faz distinção entre as provas
ilícitas e ilegítimas. Estas últimas são as que violam a norma processual e aquelas
as que violam norma penal ou constitucional. Para a maioria da doutrina, uma
prova ilegítima utilizada no processo será considerada relativamente nula
(nulidade relativa), sendo assim, a nulidade pode ser sanada. Se a prova utilizada
no processo for ilícita, haverá a nulidade absoluta, será desentranhada dos autos
obrigatoriamente. No que se refere aos demais atos do processo, se estes forem
independentes não serão atingidos pelo vício de nulidade, por outro lado, se forem
dependentes, serão afetados pelos efeitos que a prova sofreu.

O fato de os direitos e garantias fundamentais não serem absolutos


possibilita, em certos casos excepcionais, a aceitação de provas proibidas no
processo.

Um exemplo da permissão de provas proibidas no processo são as


provas obtidas em estado de necessidade e legítima defesa. Se uma pessoa está
sendo ameaçada de morte de forma constante, por exemplo, e no intuito de se
defender procede à gravação da ameaça, sem o conhecimento do outro
interlocutor, esta prova, a princípio proibida, poderá vir a ser utilizada em processo
penal para instruir uma possível condenação. Esta permissão se torna possível
em face de o próprio agente do ato criminoso, primeiramente, ter invadido a
esfera de liberdades públicas da vítima, ao ameaçá-la ou coagi-la. Esta última, por
sua vez, em legítima defesa de suas liberdades públicas, obteve uma prova
necessária para responsabilizar o agente. A doutrina majoritária defende que
provas como esta utilizadas em processo penal não se encaixam no conceito de
provas ilícitas. Para a doutrina, o que ocorre é a ausência de ilicitude dessa prova,
vez que aqueles que a produziram agiram em legítima defesa. A ilicitude,
portanto, estaria afastada.

Uma outra hipótese de utilização de prova proibida, no processo penal,


está relacionada com a aplicação do princípio da proporcionalidade. Este princípio
desponta como solucionador do conflito de direitos e garantias fundamentais. A
solução do impasse entre dois direitos e garantias fundamentais há de ser
estabelecida mediante a devida ponderação dos bens e valores concretamente
analisados de modo a que se identifique uma relação específica de prevalência
entre eles. Deve-se observar, no caso concreto, o direito que prepondera. De um
lado, geralmente, situa-se o direito à prova, oriundo do princípio do Acesso à
Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da CF e do outro lado, se encontra o direito do
réu à intimidade, à privacidade e à inviolabilidade das suas correspondências, por
exemplo. No caso concreto, devera´ o magistrado analisar qual o interesse
constitucional que está preponderando, se o direito à prova ou o direito à
inviolabilidade, por exemplo.

Grande parte da doutrina brasileira que trata do assunto defende que o


princípio da Ponderação de Interesses deve ser aplicado quando estão presentes,
no caso sob análise, dois direitos constitucionais em conflito. Ocorre, porém, o
seguinte questionamento: pode o Estado utilizar-se do direito à prova para
condenar? Ou melhor, pode o Estado valer-se dos direitos e garantias
fundamentais contra o cidadão? A maioria da doutrina brasileira afirma que os
direitos e garantias fundamentais são limitações constitucionais ao direito de punir
do Estado, logo, não podem ser utilizados pelo Estado a seu favor. Na linha desse
raciocínio, o princípio da proporcionalidade só poderá ser aplicado pro reo,
somente o réu pode produzir provas ilícitas nos casos excepcionais analisados
acima e não o Estado.
Apesar das argumentações acima apontadas, defendemos a tese de
que o titular do direito de punir, o titular do direito à prova é a sociedade e não o
Estado. A doutrina Alemã admite e defende a adoção do princípio da
proporcionalidade contra o réu, justamente pelo fato de que, por trás de uma
possível condenação, sempre há o interesse público.

O Estado, quando atua na busca da paz social, repelindo o crime, o faz


em busca de um interesse público, e não, defendendo seus próprios interesses
como pessoa jurídica de direito público interno. Aliás, o Estado, deve sempre atuar
em busca do interesse público ou primário e não em busca de interesses
secundários, aqueles que o Estado, pelo só fato de ser sujeito de direitos, poderia
ter como qualquer outra pessoa. Sendo assim, o Estado, quando exerce o jus
puniendi, o faz com o fim de preservar interesses públicos.

O conceito de interesse público dado pelo professor Celso Antônio


Bandeira de Mello é bastante esclarecedor. Ensina o autor que o interesse público
não é uma categoria contraposta à de interesse privado e afirma que há um falso
antagonismo entre o interesse das partes e o interesse do todo: “ embora seja
claro que pode haver um interesse público contraposto a um dado interesse
individual, sem embargo, a toda evidência, não pode existir um interesse público
que se choque com os interesses de cada um dos membros da sociedade.”.

Vai além o autor nos seus ensinamentos quando afirma que o


interesse privado aponta em direção a dois sentidos. Existe o interesse individual
de cada indivíduo atinente a sua vida em particular, mas também há o interesse
individual destas mesmas pessoas enquanto partícipes de uma coletividade e é
esse último interesse que se denomina de interesse público. Logo, este nada
mais é do que uma faceta dos interesses dos indivíduos.

Portanto, quando o Estado atua defendendo um interesse público está


também defendendo uma faceta dos interesses individuais de cada pessoa na
condição de membro da sociedade. Esse pensamento justifica a utilização,
quando extremamente necessária, dos direitos e garantias fundamentais pelo
Estado quando este atua em prol de um interesse público, pois na realidade está
exercendo um direito que é da coletividade.

Na sociedade em que vivemos, com o aumento desenfreado da


violência, principalmente nas grandes cidades onde criminosos organizam o tráfico
de drogas e comandam a onda de violência de dentro das delegacias e dos
presídios, não é cabível sustentar que aos criminosos e infratores é permitida a
utilização dos direitos e garantias individuais como proteção de práticas delitivas.
Não é razoável sustentar então que o direito à inviolabilidade do sigilo das
correspondências é direito absoluto. Não é lógico sustentar também que o
Estado, exercente do jus puniendi, não possa se utilizar do direito à prova,
produzindo uma prova proibida, em um caso extremamente necessário, contra o
réu, sob a alegação de que os direitos e garantias fundamentais foram feitos
apenas para proteger o cidadão. Não é imaginável supor que uma
correspondência enviada por um traficante de drogas a outro e que contém um
mapa da rota do tráfico, por exemplo, seja absolutamente inviolável.

Sendo assim, como o direito à inviolabilidade de correspondências e


das comunicações telegráficas é relativo, conclui-se que, em certos casos
excepcionais, quando houver os pressupostos da medida cautelar e fundadas
razões, é possível haver violação de correspondência da pessoa investigada, bem
como de condenado que já esteja cumprindo pena. No último caso a fim de que se
evite a prática de novas infrações penais. Contudo, vale ressaltar que medida de
tal monta deve ser promovida dentro dos limites legais, para que, assim, não se
atinja o campo da arbitrariedade.

No que se refere à utilização de correspondência violada como prova


em processo penal, esta deve ser admitida. Ressalte-se, porém, que esta
admissão só se dará em certas hipóteses excepcionais, ou seja, desde que esta
prova seja produzida em legítima defesa ou estado de necessidade pela vítima ou
na hipótese em que, no caso concreto, em lados opostos, se situe mais de um
direito ou garantia fundamental previsto na Constituição Federal. Nesta situação,
o princípio da Proporcionalidade deve ser aplicado para a solução do caso.

E, por fim, quanto à possibilidade de aplicação do princípio da


Proporcionalidade pelo Estado, isto é, da utilização de direitos e garantias
fundamentais no intuito de se produzir prova contra o réu, entendemos ser
possível, uma vez que o Estado deve atuar sempre tendo em vista o interesse
público e este nada mais é do que uma faceta do interesse individual de cada um.
A aplicação do princípio da Proporcionalidade contra o réu, porém, deve ser
utilizada em casos extremos, onde não se vislumbra um outro meio de prova
cabível, e tudo deve ser feito sem arbitrariedade ou abuso de poder.

Bibliografia:

Constituição da República Federativa do Brasil, 3ª ed., São Paulo:


editora Riddel, 2003.

( coord.) FRANCO, Alberto Silva & STOCO, Rui. Código de Processo


Penal e sua interpretação jurisprudencial. Volume 2. Editora
Revista dos Tribunais.1ª ed.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.


13ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 14ª ed., São Paulo: editora
Atlas, 2003.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13ª ed., São Paulo:
editora Atlas, 2003.

RANGEL, Pulo. Direito Processual Penal. 7ª ed., Rio de Janeiro: editora


Lumen Juris, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª


ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

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