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Grande angular

A perspectiva da Dominica:

Antropoceno
Capitaloceno?
ou

Andreas Malm

A mudança climática não


decorre da mera existência
de bilhões de seres humanos
que habitam o planeta, mas
é causada pelos poucos que
controlam os meios de produção
e tomam as principais decisões
sobre o uso da energia, afirma
Andreas Malm. No que pode ser
© Jason DeCaires Taylor (www.underwatersculpture.com)

considerado mais Capitaloceno


do que Antropoceno, um
confronto direto com o capital
proveniente dos combustíveis
fósseis é indispensável para
evitar eventos climáticos
extremos, como os furacões que
devastaram a Dominica*.

A Dominica costumava ser uma cadeia de


colinas cor verde esmeralda, emergindo
The Rising Tide (A maré crescente),
diretamente do Mar do Caribe. Quando
uma instalação de esculturas do artista Sentimento de perda
visitei a nação insular em agosto de
2017, ela continuava coberta por verdes britânico Jason DeCaires Taylor, no Rio incalculável
matas, cada cume e ravina cobertos com Tâmisa, Londres, 2015.
Folhas e galhos foram espalhados pelo
vegetação. A ilha mais montanhosa da mar, troncos desfolhados permaneceram
região, com a maior cobertura florestal sudeste, onde as encostas foram cortadas em pé no que pareciam ser áreas
preservada, era uma maravilha de por deslizamentos que levaram o solo desmatadas – se a tempestade tropical
esplendor natural, mas também pobre. A superior, árvores e casas. As estradas Erika havia arranhado a ilha, o furacão
maior parte de seus 70 mil habitantes – estavam sendo reconstruídas, e novos Maria a esfolou. Dessa vez, toda a
em sua maioria descendentes de africanos assentamentos foram erguidos para infraestrutura – casas, estradas, pontes,
– subsistia da agricultura de pequena abrigar os sobreviventes. hospitais, escolas – foi pulverizada, e
escala. A banana, a banana-da-terra e o setor agrícola foi destruído. O custo
Seis semanas após a minha partida, em
o inhame eram complementados com financeiro foi estimado em duas vezes o
18 de setembro de 2017, o furacão Maria
alguma pesca e um pouco de turismo. Produto Interno Bruto (PIB) do país, mas,
acelerou subitamente para um sistema de
A ilha já havia sofrido um golpe antes. categoria 5 – uma das intensificações mais como informou a agência de notícias IRIN,
Em 2015, a tempestade tropical Erika explosivas de um furacão já registrada – e “o sentimento mais profundo de perda
derramou torrentes de água sobre as bateu diretamente na Dominica. Em uma está fora de alcance”.
colinas, até que algumas delas cederam noite, a ilha verde se tornou marrom.
e desabaram. Na época da minha visita, Os ventos extraordinariamente ferozes * A Dominica é um Estado insular situado
o país ainda estava se recuperando do simplesmente varreram a cobertura no Caribe, na região das Pequenas
desastre, claramente visível na sua parte florestal. Antilhas. Não confundir com a República
Dominicana

O Correio da UNESCO • abril-junho 2018 | 23


Grande angular

No primeiro mês após o furacão Maria, um Uma afirmação explícita dessa lógica pode
quinto dos habitantes pegaram os poucos ser encontrada em um dos mais célebres
bens que puderam ser recuperados e livros sobre o tema nos últimos anos: The
partiram. Aqueles que ficaram falavam de Great Derangement: Climate Change and
si mesmos como soldados em um campo the Unthinkable, Amitay Ghosh, no qual
de batalha: o discurso bélico varreu o país. aprendemos que o aquecimento global
Cinco dias após o furacão, o primeiro- “é a consequência indesejada da própria
ministro Roosevelt Skerrit, ele próprio existência dos seres humanos como
desabrigado, dirigiu-se à Assembleia Geral espécie”. Mais do que isso, é “o produto da
das Nações Unidas: “Venho até vocês totalidade das ações humanas ao longo
diretamente da linha de frente da guerra. do tempo. Todos os seres humanos que
[...] À medida que os dominiquenses já viveram desempenharam um papel
sofrem com o peso da mudança em nos tornar a espécie dominante
climática, nós estamos arcando com as neste planeta e, nesse sentido, todos os
consequências das ações de outros, ações seres humanos, passados e presentes,
que colocam em risco a nossa própria contribuíram para o atual ciclo da mudança
existência, e tudo para o enriquecimento climática”. Por essa perspectiva, o produtor
de alguns poucos em outros lugares”. de café comum na Dominica contribuiu
para o furacão Maria simplesmente por
Os descendentes de escravos que habitam
pertencer à espécie Homo sapiens. Assim
a Dominica não fizeram nada para aquecer
como seus antepassados escravos trazidos
este planeta, nem tampouco a pequena
para a ilha. Assim como o povo kalinago,
população indígena sobrevivente. Os
que lá vivia em paz antes de os europeus
agricultores de subsistência, que recorriam
chegarem à ilha em 1492.
à condução de táxis ou à venda ambulante
para complementar sua renda, tinham
pegadas de carbono insignificantes e Narrativa falha
nenhum poder sobre o abastecimento de
energia mundial. Ainda assim, no ataque É extremamente difícil enxergar os
do hiperfuracão, as principais vítimas fundamentos científicos que podem existir
foram exatamente esses agricultores: em tal perspectiva; contudo, inúmeros
Sigue a los Líderes (Siga os líderes),
eles foram mortos, suas vidas foram intelectuais que abordaram o Antropoceno
uma instalação do artista espanhol
devastadas, e a própria terra em que se fizeram afirmações semelhantes. Para
Isaac Cordal na exposição Fragil (Frágil,
encontravam foi destruída. escolher apenas um outro caso, o
Bruxelas, 2015). As pequenas esculturas
historiador Dipesh Chakrabarty, talvez o
representam homens de negócios
mais influente intérprete do conceito nas
Somos todos ciências humanas e sociais, argumenta
quase se afogando em uma mistura
de água e petróleo.
responsáveis? que, quando se trata da produção da
mudança climática, “os pobres participam
No discurso sobre a mudança climática, tal daquela história compartilhada da
como se desenvolveu no meio acadêmico evolução humana, tanto quanto os ricos”. um fato incontestável, mas por se deslocar
ocidental, na mídia e nos grupos que (CHAKRABARTY; D. Climate and Capital: daquela observação para a representação
formulam as políticas ao longo da última on Conjoined Histories, Critical Inquiry: the da espécie humana como protagonista
década, uma outra narrativa se instalou. University of Chicago Press Journals, 41, unificado. É tudo menos isso.
Ela diz que o problema foi criado por n. 1, 2014).
Nos últimos milhares de anos, desde
todos nós. O aquecimento global é culpa
Nessa visão, o furacão Maria foi mais um que as sociedades de classes existem,
da espécie humana como um todo.
suicídio do que uma guerra-relâmpago o Homo sapiens tem sido uma entidade
Vivemos no Antropoceno, a época em que
(blitzkrieg). Foi um caso de “aqui se faz, profundamente fragmentada, e nunca
nossa própria espécie superou as forças
aqui se paga”, sem nenhuma injustiça mais do que neste planeta que vem
naturais na determinação da trajetória
flagrante envolvida de forma especial. se aquecendo rapidamente – onde os
deste planeta, de forma mais óbvia no
Das encostas desnudas da Dominica, a oito homens mais ricos do mundo têm
campo do clima – portanto, os seres
realidade, é claro, parece muito diferente. tanta riqueza (US$ 426 bilhões) quanto
humanos em geral são responsáveis pelas
A narrativa do Antropoceno é falha a metade mais pobre da população
catástrofes subsequentes.
porque distorce e ofusca aquela realidade mundial somada (US$ 409 bilhões),
– não por dizer que as ações humanas segundo a Oxfam (janeiro de 2017).
causaram a mudança climática, o que é Sabe-se que a riqueza está estreitamente

24 | O Correio da UNESCO • abril-junho 2018


© Isaac Cordal (cementeclipses.com)
correlacionada com as emissões de CO2. Para citar apenas um exemplo, em o mundo, que devem se multiplicar a
É o sinal dos lucros da forma habitual dezembro de 2017, o jornal The Guardian cada ano – a menos que comece agora
de se fazer negócios e a melhor prova noticiou que a produção de plástico nos mesmo um confronto direto com o
contra as suas consequências. Embebido Estados Unidos deverá aumentar em capital proveniente dos combustíveis
em combustíveis fósseis, é o motor da 40% na próxima década, uma vez que a fósseis – nunca viveram no que se
tempestade. ExxonMobil, a Shell e outras empresas de denomina Antropoceno, e suas ações não
combustíveis fósseis têm usado a contínua podem ser culpadas por causar danos ao
Epidemia de plástico expansão do gás de xisto para investir
massivamente em novas fábricas de
planeta. Eles sofrem os golpes de uma
era rotulada de forma mais apropriada
Somos informados que a mudança plástico. Elas prenderão a economia norte- como Capitaloceno. É uma forma de
climática é criada por uma massa anônima -americana e, por conseguinte, a guerra estrutural e sistemática, mas nós
de milhões e bilhões de seres humanos, economia global, ainda mais em sua podemos esperar que os eventos naturais
quando, como recentemente argumentou dependência por produtos plásticos. súbitos de choque e temor se tornem
o geógrafo norte-americano Matt Huber, Em algum momento, estes acabarão mais frequentes nos próximos anos. Uma
na realidade, é um segmento muito alcançando as praias de todo o mundo questão mais aberta é quando, ou se,
limitado da espécie que controla os e, no que diz respeito aos combustíveis uma reação começará. Culpar a espécie
meios de produção e toma as decisões fósseis, seu calor encontrará novas ilhas humana não fará isso acontecer.
mais importantes sobre o uso da energia. para destruir. Da perspectiva do capital,
Esse segmento opera com um objetivo esta é exatamente a coisa certa a se fazer:
em vista – expandir ainda mais as suas investir na produção e no consumo de Andreas Malm (Suécia) leciona ecologia
riquezas. O processo é conhecido como combustíveis fósseis para gerar lucros. humana na Universidade Lund, na Suécia.
acúmulo de capital e segue de forma Esse é o processo que tem alimentado Ele é autor de vários livros, incluindo, mais
implacável, sem considerar o destino dos o aquecimento global desde o início. A recentemente, The Progress of This Storm:
dominiquenses ou os alarmes cada vez população da Dominica e seus muitos Nature and Society in a Warming World (2018).
mais desesperados da ciência do clima. companheiros de infortúnio em todo

The UNESCO Courier • April-June 2018 | 25

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