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Interesse público

e Jornalismo

Rogério Christofoletti

A pesar de pouco extensa, a biblio-


grafia brasileira sobre ética jor-
nalística já tem importantes contri-
para uma expressão tão evocada a
torto e a direito que se dilui nos seus
muitos sentidos: “interesse público”.
buições aos estudos da área e à pró- Pois é em nome desse propósito que se
pria categoria. De Mario Erbolato a equilibra também o jornalismo, e Ka-
Eugênio Bucci, passando por Cláudio ram trata desse quase-axioma tendo
Abramo, Bernardo Kucinski e tantos como suporte a Semiótica da Cultura. 193
outros, os trabalhos apontam para Conforme demonstra, cada vez mais,
diferentes vertentes e não ficam cir- os acontecimentos são traduzidos pelo
cunscritos ao meio acadêmico. jornalismo, embalados por uma retó-
O que se percebe é que os últimos rica eficaz e recheados de um cinismo
vinte anos têm sido pródigos na pro- atroz. Foi assim com a enxurrada de
dução de obras que se debrucem sobre notícias carimbando a “ineficiência”
a conduta dos jornalistas no exercício do Banco do Brasil nos anos 90 e com
da profissão. Neste contexto, destaca- discursos semelhantes que deram sus-
se, sem dúvida, a presença de Fran- tentáculo à campanha pela privatiza-
cisco José Castilhos Karam, seja com ção de empresas como a Companhia
seu já largamente conhecido Jornalis- Vale do Rio Doce, a Rede Ferroviária
mo, ética e liberdade (Summus Edi- Federal e o sistema Telebrás. Um am-
torial, 1997 e 2003, 2a ed.) ou ainda biente onde a retórica se mistura à so-
com artigos publicados em periódicos fística, onde emerge um cinismo ético
nacionais e internacionais. Agora, a que desorienta os padrões de conduta
chegada de A ética jornalística e o in- já sedimentados, e reescreve – de for-
teresse público (pela mesma editora) ma descarada! – o rótulo do “interesse
reforça a relevância da produção de público”. É como escreve o autor:
Karam, plena de rigor conceitual e de “...há casos em que o acontecimento
entusiasmo analítico. vem num pacote de fatos ou declara-
Desta vez, o autor aponta seu olhar ções, a título de interesse público, em-
balado numa retórica eficaz e, do ponto de “Cinicamente éticos, de qualquer aplicabilidade e de alguma
vista ética, subsumido em certo cinismo, crença efetiva de sua viabilidade. Assim,
os enunciados
que resulta em conseqüências bastante gra- ao passo em que esbravejam por uma
ves.” (p.50) dos empresários imprensa livre, os barões da imprensa
não encontram muito cuidadosamente escanteiam fon-
É sem perder esse cinismo de vista que correspondência nem tes indesejadas de informação e selam as
o autor transita pelo noticiário nacional, bocas dos funcionários quando as versões
esbarrando no massacre dos sem-terra na esfera prática nem não são convenientes. Ao mesmo tempo
em Eldorado de Carajás, ocorrido em 1996 na moral...” em que os barões da imprensa alardeiam
no Pará, e tocando em assuntos que são pela informação livre e de qualidade,
muito recentes, e têm muita pertinência e sorrateiramente atenuam declarações
prioridade nos debates nacionais, como as que colidam contra seus interesses, e
megafusões empresariais e a permanente carregam nas tintas quando aquelas os
tensão entre interesses privados e espaço favorecem. Evidentemente, esses traqui-
público. nagens não são realizadas exclusivamen-
Elegante na condução do tema e bem te pelos barões. Eles contam com a ser-
fundamentado nos exemplos – que dão ventia de alguns sabujos nas redações. A
frescor à obra – , Karam opera no estreito informação passa a ter dono. O processo
trilho da denúncia desse cinismo subter- comunicativo se vicia, pois passa pelos
râneo, tentacular e contagiante. Seu ponto filtros e pelas garras (peludas e bem ves-
de partida é o entendimento de que o exer- tidas com punhos rendados) dos barões.
194 cício ético do jornalismo ajuda a combater E tudo se dá sob a mesma atmosfera de
o chamado pensamento único, as sagazes tranqüilidade que reina sobre a corte.
estratégias retóricas e o cinismo. A luta Cinismo ético, caracteriza Karam.
política dos diferentes atores sociais se É nesses processos que o autor identifica
alimenta do jornalismo também para pro- elementos que “menosprezam a referência
por novas óticas e práticas. O cinismo de- da resistência política, da luta conseqüen-
nunciado escapa aos poros das empresas te e, também, do debate público de temas
e da máquina pública, do cidadão comum relevantes” (p.250). Isto é, lá se vão pelo
e do engravatado. Focando o jornalismo, ralo os reais interesses públicos. A lógica
como negócio e atividade, Karam revela que domina e determina é a familiar, a pa-
os interstícios desse “cinismo ético” e as roquial, a feudal (com roupagem de trans-
suas formas de evidência. Numa delas, os parência e boa governança).
proprietários de jornais produzem cartas É contra esse “cinismo ético” que se
de intenção à sociedade, defendendo a li- sustenta por risinhos baixos e postura
berdade de expressão e o pleno acesso às de homem-de-bem que um jornalismo
informações por todos os cidadãos. Lindo. verdadeiramente ético se insurge e se
Legítimo. Não fossem outras também as contrapõe. E entenda-se aqui que um jor-
práticas tecidas em bastidores. nalismo verdadeiramente ético é aque-
Cinicamente éticos, os enunciados dos le que encarna como real e permanente
empresários não encontram correspon- preocupação a satisfação do interesse
dência nem na esfera prática nem na mo- público. Na lida diária, no cotidiano dos
ral, e, portanto, pairam no ar, descoladas fechamentos das edições. É neste enfren-

Estudos em Jornalismo e Mídia


Vol.II Nº 1 - 1º Semestre de 2005
tamento que o pensamento único pode conhecimento num campo tão intangível
esfarelar nas beiradas, que as estraté- quanto o da ética. Para os jornalistas, o
gias discursivas podem se alquebrar, que livro é essencial na articulação da aná-
o cinismo se revela. Aí, sim, jornalismo e lise de casos jornalísticos com a prática
jornalistas “contribuem para a formação cotidiana. Já para os demais públicos,
de uma esfera pública mais qualificada e a obra auxilia – no mínimo – a reler o
visível” (p.260). A missão se cumpre. passado recente de forma mais equili-
Como toda boa produção reflexiva, a brada, facilitando também a respirar o
teoria em A ética jornalística e o interes- presente sem as máscaras do cinismo e
se público não está descolada da prática da retórica sofismática. Nos tempos atu-
cotidiana, mas a alimenta com densidade ais, isso já é muito.
e nitidez conceitual. A linguagem empre-
gada por Karam é perceptivelmente mais
elaborada que no livro anterior, o que po-
deria fazer supor que este lançamento Rogério Christofoletti
não fosse indicado aos iniciantes. Neste Rogério Christofoletti é doutor em Ciên-
caso, vale o empenho do leitor. Na verda- cias da Comunicação pela USP, vice-presi-
de, A ética jornalística e o interesse pú- dente do Sindicado dos Jornalistas de San-
blico deve ser devorado por professores e ta Catarina e professor do Curso de Jorna-
alunos, por jornalistas e não-jornalistas. lismo da Univali.
Sem pressa e com muito critério: com pa-
radas estratégicas para olhar pelas ja- 195
nelas do mundo (as de casa, as telas das Bibliografia
TVs e as páginas dos jornais). KARAM, F.J. K. A Ética Jornalística e o Interesse
Aos acadêmicos, a obra oferece um Público. São Paulo, Summus, 2004, 274 p. ISBN
claro exemplo de como se pode produzir 85-323-0858-9.

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