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O direito

achado na rua.
Alguns
apontamentos

José Geraldo de Sousa Junior


Princípios de uma organização social da
liberdade E mais:

>> José Carlos Braga:


Jacques Alfonsin Política cambial é homicida
O direito achado na rua: positivismo
de combate
Artur Cesar Isaia:
305
>>
100 anos depois: a mudança
Roberto Efrem Filho
Ano IX radical da Igreja gaúcha
O “peso” dos movimentos sociais é
24.08.2009
ISSN 1981-8469 maior que o das “leis”
Direito achado na rua

O direito moderno é normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente, advertia o


jurista português Castanheira Neves. Por isso, “esse direito tem de ser encontrado em outro lugar,
lá na rua onde vive e sofre o povo daquela inadequação e ineficiência, porque, afinal de contas, é
dele a origem e causa de ser, tanto da lei como do Estado”, afirma Jacques Alfonsin, procurador do
Estado do Rio Grande do Sul aposentado, em entrevista concedida à IHU On-Line e publicada nesta
edição. Trata-se de reconhecer no povo a “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”.

Por sua vez, José Geraldo de Sousa Junior, reitor da Universidade de Brasília – UNB -, um dos
teóricos mais respeitados do assim chamado direito achado na rua, atesta que, quando a “constitui-
ção diz que ‘o elenco de direitos descrito dela não exclui outros direitos que derivem da natureza
do regime ou dos princípios que a constituição adota’, abre uma pauta muito larga, que tanto do
ponto de vista teórico quanto do político, nós pensemos o direito como relações legitimadas”. Ou
seja, trata-se de “pensar o direito como relação, e não como um banco de enunciados legislativos,
é criar as condições para que as lutas por reconhecimento encontrem espaço politizado adequado
para que se manifestem”.

Participam também do debate sobre o direito achado na rua, Roberto Efrem Filho, professor da
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, José Carlos Moreira da Silva Filho e Lenio Streck,
professores do PPG em Direito da Unisinos. Para Streck, “não há mais como falar em direito achado
na rua, direito alternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição é muito mais avançada que qual-
quer uma destas bandeiras”. Segundo ele, “hoje a luta é concretizar a Constituição e não buscar
alternativas a ela”.

Outros importantes temas são tratados nesta edição. José Carlos Braga, economista e professor
do Instituto de Economia da Unicamp, analisa a atual política cambial e seu impacto no projeto
desenvolvimentista brasileiro. Tendo presente o centenário da criação da Arquidiocese de Porto
Alegre, Artur Cesar Isaia, professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC -, reflete
sobre duas figuras centrais: João Becker e Vicente Scherer, arcebispos de Porto Alegre.

Uma entrevista com Marcelo Fernando da Costa, professor de História da Alimentação e Cultura
Gastronômica Internacional, da Unisinos, descreve a história dos alimentos que caracterizam as
religiões monoteístas da humanidade e que serão apresentados e consumidos na próxima edição do
evento Religiões no Mundo. Um perfil do filósofo francês Paul Valadier, que esteve recentemente
na Unisinos, a convite do IHU, é outro destaque desta edição.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
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O direito achado na rua: positivismo de combate
Jacques Alfonsin entende que o direito achado na rua gera efeitos particularmente
favoráveis ao povo pobre do Brasil, diferente daqueles que a lei prevê como direi-
tos desse mesmo povo, mas que jamais são respeitados na medida das urgências
humanas que ele padece

Por Graziela Wolfart

U
m dos principais nomes lembrados no Brasil quando o assunto é o direito achado na rua,
o advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, Jacques
Távora Alfonsin, fala à IHU On-Line, por e-mail, sobre as pessoas que têm se aproximado
deste movimento. “Conscientes dessa injustiça e dessa impropriedade manifesta, esses
juristas encontram grande aceitação das suas ideias e da sua prática entre pessoas do
povo pobre, movimentos, ONGs, estudantes, e até uma parte significativa de professoras/es, juízas/
es, promotoras/es e advogadas/os. Aí reside o diferencial que caracteriza novas posturas hermenêu-
ticas da lei, como o direito achado na rua, o ‘positivismo de combate’, o ‘direito alternativo’ e outras
denominações que se tem ouvido sobre um mesmo e saudável fenômeno. O de a dignidade humana
e a cidadania, por um lado, e o Estado democrático de direito, por outro, deixem de se submeter à
clausura formal dos seus postulados, e passem a ser realidade vivida materialmente por todo o povo”.
E Alfonsin deixa clara a sua posição quando lembra que “o direito de manifestação e opinião aqui
exercidos não foram dados de mão beijada pela lei. Até pelo contrário. Foram conquistas do povo na
rua, que ao mesmo custaram sacrifícios os mais dolorosos perpetrados por gente, à época, instituída e
apoiada por ela! Assim, se o olhar que for lançado à história reconhecer os fatos concretos que deram
origem a tais conquistas, o presente jurídico das relações do Poder Público com as pessoas deixará de
identificá-las como súditas de uma nobreza encastelada em cortes, mas sim como cidadãs, capazes
de construir democracia, não só representativa, mas também participativa”.
Jacques Alfonsin é mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. Atualmente, é
membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e colabora periodicamente com artigos para as
“Notícias do dia” do sítio do IHU. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten- que jamais são respeitados na medi- barreira formal e material ao devido
der por direito achado na rua? Qual da das urgências humanas que ele pa- processo social, de modo a fazer da
sua origem? dece. Trata-se de um direito plural, regulação um obstáculo à emancipa-
Jacques Alfonsin - Precisar, com se- no sentido de que, sem ignorar e até ção, como Boaventura de Sousa San-
gurança, o que esse direito seja, não aproveitar “brechas” de interpreta- tos insiste de forma convincente, em
me julgo capaz, tais as nuances teóri- ção e aplicação do direito como pre- seus estudos e na sua prática. Sobre a
co-práticas que a sua interpretação e visto nas leis do Estado, em favor de sua origem, talvez seja útil esclarecer
aplicação têm alcançado, mesmo sob direitos humanos não valorizados de- duas coisas.
as duras críticas que sofrem, ele e o vidamente, também cria e dá eficácia A primeira, de que o povo, particu-
seu contemporâneo “alternativo”. O a formas de convivência social, com larmente o pobre e oprimido, sempre
que posso esclarecer, por mera apro- poder sancionatório paralelo às que o  Boaventura de Sousa Santos (1940): é dou-
ximação do seu posicionamento inter- mesmo Estado prevê em suas leis. tor em sociologia do direito pela Universidade
pretativo da realidade e do ordena- Para ele, o “devido processo legal”, de Yale e professor catedrático da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra. É
mento jurídico, é que esse direito se tão enfatizado pelo Poder estatal, so- um dos principais intelectuais da área de ci-
constitui e gera efeitos particularmen- mente merece respeito e acatamento ências sociais, com mérito internacionalmente
te favoráveis ao povo pobre do Brasil, na medida em que não se constitua, reconhecido, tendo ganho especial populari-
dade no Brasil, principalmente, depois de ter
diferente daqueles que a lei prevê como a história vem testemunhando, participado nas três edições do Fórum Social
como direitos desse mesmo povo, mas num fim em si mesmo, servindo de Mundial em Porto Alegre. (Nota da IHU On-
Line)

 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


teve, historicamente, formas outras lá no mundo da lua,/ mas eu tento só de garantir-lhe efeitos. Isso ainda vale
de defender sua vida e dignidade, fora ver, sem viés deformante,/ o que pude como verdade indiscutível para grande
das regras impostas por poderes afir- encontrar bem no meio da rua.”  parte, senão a maioria, dos juristas.
mados e reconhecidos institucional- Não é fácil contestar essa ironia, Em todo o caso, fica difícil negar que
mente como legais. Aqui no nosso país, quando se avaliam os efeitos materiais aqueles mesmos efeitos desmentiram
servem de exemplo as aldeias indíge- das previsões que a lei do Estado faz, esse dogma, pela histórica incapacida-
nas, nas quais a propriedade privada, particularmente no que concerne às de que a lei e o Estado demonstraram
um dos direitos mais protegidos pelas garantias devidas aos direitos sociais e demonstram em cumprir o que lhes é
nossas leis, era e ainda é, em muitas do povo, como alimentação, habita- mais indispensável promover, ou seja,
delas, totalmente alheia ao seu modo ção, saúde, educação, por exemplo. a justiça. A lei não é onisciente nem
de vida. Os antigos quilombos dos ne- Cada vez que o povo pobre “se desa- consegue abranger, com poder sancio-
gros fugidos da escravidão, igualmen- perta”, portanto, satisfazendo por sua natório, todo o comportamento huma-
te, constituíram-se em formas visíveis própria iniciativa, essas necessidades no. Suas lacunas têm sido preenchidas
de um direito existente, válido e efi- vitais que, embora previstas na lei pelos seus intérpretes (juízes de modo
caz, a favor da liberdade, completa- como direitos humanos, ele nunca os particular) de acordo com o que se tem
mente estranho e até oposto ao direi- denominado de “espírito do sistema”.
to vigente no Estado. Embora muito Basta um juízo minimamente isento
semelhante ao último, até o direito “É um tal paradoxo, sobre a realidade social, todavia, para
canônico tem poder sancionatório, ti- se concluir que isso não está dando
picamente jurídico, sobre multidões, justamente, que o certo. A sua interpretação e aplicação
paralelamente ao Direito estatal. pelo Poder Público mal tangencia, por
A segunda, bem mais recente, pode direito achado na rua exemplo, medidas preventivas ou re-
ser localizada nas lições de um jurista pressivas das perversas consequências
professor de direito da UNB, Roberto denuncia e prova que, entre outras, os movimentos de
Lyra Filho, já falecido. Defendia ele bolsas de valores, a corrupção política
e, hoje, muitos dos seus seguidores, exercendo um direito e a devastação ambiental, para lem-
um “humanismo dialético, mais próxi- brar apenas as mais visíveis, provocam
mo da prática, da vida jurídica real, ‘terreno’, que o estatal sobre toda a humanidade. Questões
do que a teoria legalista (não confun- antigas como aborto e eutanásia, di-
damos a legalidade com o legalismo não reconhece, sempre retamente ligadas à vida das pesso-
que é a sua transformação em fetiche, as, questões outras, mais modernas,
desconhecendo tudo o que fica fora do que o examina desde a como a da engenharia genética e a dos
bitolamento legislativo e canonizando clones, ainda são objeto de dúvidas e
como jurídico tudo o que ali se põe, lua dos seus dogmas e angústias humanas para as quais o or-
ainda que não seja o Direito autênti- denamento jurídico como um todo e o
co, mas o soco do autoritarismo). Por preconceitos Estado encarregado da sua aplicação
isso mesmo dei à exposição sistemáti- enfrentam enormes dificuldades de
ca do meu humanismo dialético, num ideológicos” dar resposta convincente e eficiente.
compêndio alternativo de Introdução No que concerne à disciplina da
à Ciência do Direito, o título de Direi- alcança garantidos, quase sempre é economia, então, com tudo o que essa
to achado na rua, que aplica ao nosso julgado como violador da lei ou crimi- tem de poder para gerar injustiça so-
campo de estudos o epigrama nº 3 de noso. É um tal paradoxo, justamente, cial, não há nem necessidade de se
Marx (...): “Kant e Fichte buscavam que o direito achado na rua denuncia e acentuar a anemia dos poderes que se-
o país distante,/ pelo gosto de andar prova exercendo um direito “terreno”, ria indispensável e lícito contar para a
que o estatal não reconhece, sempre sua regulação. Por tudo isso, ainda sur-
 Roberto Lyra Filho (1926-1986) foi um ju- que o examina desde a lua dos seus preende ver-se repetido outro dogma
rista e escritor brasileiro. No início de sua
carreira jurídica se destacou por estudos dog- dogmas e preconceitos ideológicos. forte daquele monismo, presente em
máticos, área que foi perdendo importância conflitos administrativos e, ou, judi-
em seu pensamento, progressivamente mais IHU On-Line - Por que o direito acha- ciais, segundo o qual, “o que não está
ligado à Filosofia e à Sociologia Jurídica, cam-
po em que é um dos expoentes brasileiros do do na rua rejeita as concepções mo- no processo não está no mundo”, assim
pensamento jurídico de esquerda. Fundou a nistas do Direito? se advertindo as chamadas “partes”
Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), cujo Jacques Alfonsin - Porque aquelas (autores e réus) de que as suas versões
boletim era a Revista Direito & Avesso. Nela
defendia que o direito não se reduzia à norma, concepções eram pretensiosas demais, e provas são mais importantes do que
nem a norma à sanção. Contestava o monismo como se a lei fosse a única fonte de os fatos efetivamente em causa. Tal-
jurídico, o monopólio da legitimidade do direi- direito, e o Estado o único ente capaz vez sejam males desse tipo que leva-
to pelo Estado que, a seu ver, estava na práxis
histórica, na abolição da sociedade de classes  LYRA. Doreodó Araujo (org.) Desordem e ram um jurista português, Castanheira
e nos direitos humanos (sem se prender às de- processo (Porto Alegre: Sergio Fabris, 1986, p.
clarações oficiais). (Nota da IHU On-Line) 312). (Nota do entrevistado)

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Neves, a advertir que o direito mo- re, de modo visível, na dominação da de “medo” que se tinha do juiz?
derno é normativamente inadequado e terra. Jacques Alfonsin - Esse é, sem dú-
institucionalmente ineficiente. Outra Conscientes dessa injustiça e des- vida, um dos seus maiores méritos.
não é a razão, por isso mesmo, de que sa impropriedade manifesta, esses Sabendo-se que a distância entre o
esse direito tem de ser encontrado em juristas encontram grande aceitação poder da autoridade e o abuso da arro-
outro lugar, lá na rua onde vive e sofre das suas ideias e da sua prática, entre gante prepotência é muito curta, até
o povo daquela inadequação e inefici- pessoas do povo pobre, movimentos, alguns/mas juízes/as e promotoras/es
ência, porque, afinal de contas, é dele ONGs, estudantes, e até uma parte censuram seus colegas quando essa
a origem e causa de ser, tanto da lei significativa de professoras/es, juízas/ distância é vencida cumprindo aquele
como do Estado. es, promotoras/es e advogadas/os. Aí inconveniente trajeto. Três casos re-
reside o diferencial que caracteriza centes comprovam esse fato. Segundo
IHU On-Line - O que faz com que ju- novas posturas hermenêuticas da lei, o Estadão, edição de 23 de junho de
ristas e outros operadores jurídicos, como o direito achado na rua, o “posi- 2007, um juiz de Vara do Trabalho de
intérpretes do Direito Constitucio- tivismo de combate”, o “direito alter- Cascavel, no dia 13 do mesmo mês,
nal, voltem às ruas para ter contato nativo” e outras denominações que se apoiado no poder de polícia que tem,
com o povo pobre? Qual o diferencial tem ouvido, sobre um mesmo e sau- “cancelou uma audiência (...) apenas
que faz aumentar o número de adep- dável fenômeno. O de a dignidade hu- por ter constatado que as sandálias de
tos do direito alternativo? mana e a cidadania, por um lado, e o dedo vestiam os pés de uma das par-
Jacques Alfonsin - Há uma inspiração Estado democrático de direito, por ou- tes.” Segundo sua decisão, isso “é in-
axiológica nesse tipo de conduta pro- tro, deixem de se submeter à clausura compatível com a dignidade do Poder
fissional que, a meu ver, encontra fun- formal dos seus postulados, e passem Judiciário.” A repercussão foi muito
damento numa justificada indignação a ser realidade vivida materialmente negativa e as muitas críticas contrá-
ética diante da injustiça social que o por todo o povo. rias àquela atitude logo se fizeram
sistema capitalista gera e reproduz ouvir. Até o presidente da Anamatra
sobre o povo, inclusive com apoio de (Associação Nacional dos Magistrados
grande parte da mídia e de intérpretes
“A lei não é onisciente da Justiça do Trabalho), colega daque-
da lei. A dominação ideológica positi- le juiz, traduziu bem a indignação que
vista, normativa e liberal, de cunho
nem consegue abranger, o incidente provocou: “Não se pode
marcadamente privatista e patrimo- considerar que a roupa do trabalha-
nialista, é dotada de um tal poder de
com poder sancionatório, dor, muitas vezes a única que possui,
dominação, que o mundo todo do di- atenta contra a dignidade da Justiça,
reito fica sujeito, aí, apenas aos que
todo o comportamento pois assim se está dizendo que os mais
já têm, contra os que não têm (“or- humildes não são dignos da atenção do
dem econômica”?), aos que já podem
humano” juiz e que apenas os bem vestidos a
contra os que não podem (“ordem po- merecem.”
lítica”?), os que já são cidadãos com Aí se conta com outro apoio sólido. Em Ponta Porã, por ocasião de outra
seus direitos garantidos, contra os que Uma reinterpretação moderna que a audiência realizada em julho passado,
ainda não são (“ordem social”?). Como teologia da libertação fez do chamado uma juíza federal exigiu de um advo-
se observa, essa realidade testemunha “direito natural” e dos direitos huma- gado, não só que a tratasse por exce-
o completo fracasso das três principais nos trouxe um grande número de cris- lência, como se levantasse cada vez
ordens constitucionais, sobre o povo tãos leigos para trabalhar com as CEBS que ela entrasse na sala onde jurisdi-
pobre do país, sem acesso ao ser, ao (comunidades eclesiais de base), estu- cionava. O curioso, mesmo desconside-
poder e ao ter. Assim, os chamados di- dando e trabalhando sob a inspiração rada a grosseria da sua atitude, é que
reitos adquiridos, por mais que o seu do evangelho, formas novas de denun- a referida juíza provou desconhecer a
exercício gere injustiça, impedem a ciar injustiças e ilegalidades, reivindi- própria lei. O Estatuto da Ordem dos
aquisição dos novos, coisa que ocor- cando direitos sociais violados. Gente Advogados do Brasil permite, em seu
 António Castanheira Neves (1929) é um muito pobre, como índios, catadores art. 7º que a/o advogada/o ingresse
filósofo do direito português, professor jubi-
lado da Faculdade de Direito da Universidade de material, miseráveis desemprega- livremente nessas salas de audiência e
de Coimbra. Para Castanheira Neves, o direito dos, quilombolas, boias frias, mora- em outras dependências dos tribunais
deve ser entendido através da ideia de pro- dores de rua, essa multidão até hoje e repartições públicas, podendo não
blema jurídico, de que são principal exemplo
os casos judiciais. Os problemas têm de ser historicamente desprezada e abando- só “permanecer sentado ou em pé”,
resolvidos no sistema jurídico, o que já inclui nada passou a tomar consciência de como delas “retirar-se”, “independen-
uma relação necessária com a moral. O autor que é digna, titula direitos, deve ser temente de licença” (inciso VII). Pelo
afirma que o direito não é um dado, não é algo
prévio, mas a totalidade das soluções dos pro- respeitada, amar e ser amada. inciso XII do mesmo artigo, a/o advo-
blemas jurídicos. Estes, sim, são o ponto de gada/o também pode “falar, sentado
partida necessário. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line - O direito achado na rua ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão
pode ser capaz de mudar a imagem de deliberação coletiva da Administra-

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ção Pública ou do Poder Legislativo.” qual o direito é estudado, não a partir
Por denúncia de violação dos direi-
“Ao humanismo dialético de códigos e de doutrinas, mas sim a
tos humanos das/os agricultores sem- partir da dura realidade fática sofri-
terra, feitas pelo MST contra ações pro-
pregado pelo Dr. Roberto da pelo povo. Depois desse trabalho é
postas pelo Ministério Público Estadual que tudo chega nas salas de aula e nas
do Rio Grande do Sul, no ano passado,
Lyra Filho, acima bibliotecas, nas pesquisas de Internet,
liminarmente acolhidas por quatro juí- em relação dialético-crítica com o “di-
zes/as de diferentes comarcas do Esta-
lembrado, somam-se, reito legal”, valorizando suas virtudes,
do, até a Associação dos Juízes para a é verdade, mas sem deixar de questio-
democracia, vendo os vídeos relaciona-
hoje, vários outros nar os mais notáveis defeitos gerados
dos com o abuso de poder que vitimou por grande número de quantas/os têm
as/os sem-terra, reagiu, publicando em
paradigmas poder de interpretar a aplicar as leis.
um dos seus boletins, o seguinte: “As
imagens divulgadas chocam pela bruta-
interpretativos da lei e IHU On-Line - O direito e a justiça
lidade: bombas jogadas em meio a fa- hoje se encontram mais na lei ou
mílias com crianças, balas de borracha
do direito, influenciando mais na rua?
disparadas à altura das cabeças e es- Jacques Alfonsin - Segundo o atual mi-
pancamentos. É contra essas medidas
novas maneiras de nistro presidente do Supremo Tribunal
de cunho autoritário e ditatorial que Federal, Gilmar Mendes, somente na
vimos a público manifestar nosso apoio
considerar os fatos que lei, o que, com o respeito que se lhe
ao MST. Democracia não pode ser uma deve, me parece um pronunciamento
palavra vazia. Dissolver o MST, torná-
lhe deram origem e extremamente infeliz, para dizer o
lo ilegal, processar e criminalizar suas mínimo. Ele nem seria presidente se
ações e seus militantes políticos para
vigência, para que o a lei que hoje garante o seu cargo não
‘quebrar sua espinha dorsal’ significa, tivesse sido conquistada com o sangue
sem meias palavras: cassar os direitos
legalismo não sepulte, de que o povo teve de derramar nas ruas
democráticos dos trabalhadores rurais para defender a democracia e o Estado
sem-terra.”
vez, a legalidade, como de direito. Uma afirmação daquele tipo
Grande parte do povo, felizmente, revela a antiga concepção de poder,
toma conhecimento disso e já sabe
aquele jurista que já deveria ter sido ultrapassada,
que juiz/as são servidores/as públi- da espécie vertical, piramidal, todo
cos/as muito importantes, mas não
denunciou” feito de dominação e não de serviço,
deixam, de ser servidoras/es. Merece- um tipo de “direito de propriedade”
dora de respeito, isso toda a pessoa é, dendo as ideias do Dr. Roberto Lyra sobre a lei, como se essa somente pu-
nenhuma outra tendo mais obrigação Filho, desde Brasília. O atual reitor da desse ser reconhecida como respeitada
de cumprir esse dever que não aquela UNB, José Geraldo de Sousa Junior, é quando pronunciada por um tribunal.
que está encarregada de, justamente, um dos principais inspiradores e incen- Aliás, o fato de os Tribunais, até hoje,
garantir que uma tal regra não seja le- tivadores dessa moderna fundamenta- admitirem ser chamados de “Cortes”
tra morta. ção ética, jurídico-social, de conce- parece um sintoma grave dessa doen-
ber o direito. Os cursos de extensão ça. Bem ao contrário do que afirma o
IHU On-Line - Como o direito achado e à distância que a UNB promove, a Dr. Gilmar, não são poucos os juristas
na rua tem sido estudado e discutido propósito, sustentam um novo méto- que reconhecem no povo a “comuni-
nas faculdades de direito? do pedagógico, em tudo semelhante dade aberta dos intérpretes da Cons-
Jacques Alfonsin - Como toda a ideia ao que aconselhava Paulo Freire, no tituição”, coisa que, por sinal, está
de mudança, enfrentando bastante  José Geraldo de Sousa Junior possui gra- acontecendo agora mesmo, na medida
oposição, às vezes, até, debochada duação em Ciências Jurídicas e Sociais pela em que a pergunta me é formulada li-
Associação de Ensino Unificado do Distrito Fe-
e humilhante. As adesões, mesmo as- deral, mestrado em Direito pela Universidade vremente, eu a respondo livremente
sim, são crescentes, pelo reconheci- de Brasília e doutorado em Direito (Direito, Es- e as/os leitoras/es acolhem, ou não,
mento dos estudantes, de modo par- tado e Constituição) pela Faculdade de Direito livremente, a minha crítica.
da UnB. Atualmente é membro de associação
ticular, do método teórico-prático de corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil, O direito de manifestação e opinião
sua ação, marcadamente favorável ao professor e reitor da Universidade de Brasília. aqui exercidos não foram dados de
povo pobre, divulgado com um conte- Confira, nesta edição, uma entrevista exclusi- mão beijada pela lei. Até pelo contrá-
va com ele. (Nota da IHU On-Line)
údo profundamente humanístico, ago-  Paulo Freire (1921-1997): educador bra- rio. Foram conquistas do povo na rua,
ra apoiado pelo chamado NEP (Núcleo sileiro. Como diretor do Serviço de Extensão também professor da Unicamp (1979) e secre-
de Estudos para a Paz e os Direitos Cultural da Universidade de Recife, obteve su- tário de Educação da prefeitura de São Paulo
cesso em programas de alfabetização, depois (1989-1993). Confira a edição número 223 da
Humanos) e a “nova escola jurídica” adotados pelo governo federal (1963). Esteve IHU On-Line, de 11-06-2007, intitulada Paulo
(NAIR), aquela que prossegue defen- exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Institu- Freire. Pedagogo da esperança. (Nota da IHU
to de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 


que ao mesmo custaram sacrifícios os “Políticos e pel do povo e dos políticos para que
mais dolorosos perpetrados por gente, o direito achado na rua cresça e se
à época, instituída e apoiada por ela! representantes seus, desenvolva com mais força na socie-
Assim, se o olhar que for lançado à dade?
história reconhecer os fatos concretos junto à administração Jacques Alfonsin - Apesar de vivermos
que deram origem a tais conquistas, o numa sociedade sujeita a uma econo-
presente jurídico das relações do Po- pública e ao Judiciário, mia consagradora de desigualdades
der Público com as pessoas deixará de extremamente injustas, há sinais cla-
identificá-las como súditas de uma no- se quiserem ser fiéis a ros de que grande parte do povo já se
breza encastelada em cortes, mas sim organizou e tem força de pressão atu-
como cidadãs, capazes de construir esse mesmo povo, ante em favor dos seus direitos, a pon-
democracia, não só representativa, to de empoderar formas de defender
mas também participativa. As relações precisam recuperar um direito contrário, ou no mínimo
sociais, aquelas que geram conflito e paralelo ao “direto oficial”, não con-
injustiça entre essas mesmas pessoas, o sentido etimológico taminado por sanções que preservem
não escamotearão origens viciadas de aquelas desigualdades, em nome da
opressão que possam se fantasiar ide- do mandato que igualdade, sustentem opressões, em
ológica e juridicamente de direito. O nome da liberdade e, principalmente,
lugar social da fala do poder jurídico receberam dele” reduza toda a relação humana à pro-
não será ocupado, com exclusividade, priedade. Políticos e representantes
pelas instituições de direito, antes de seus, junto à administração pública e
órico-práticas, que estão descobrindo
ouvir quem desse é o verdadeiro titu- ao Judiciário, se quiserem ser fiéis a
as vias concretas de, especialmente os
lar. Para tanto, é urgente que a lingua- esse mesmo povo, precisam recuperar
direitos sociais, alcançarem respeito e
gem da lei, sua interpretação e apli- o sentido etimológico do mandato que
garantia concretamente. Talvez baste
cação, abandone o seu dizer pedante receberam dele. Essa palavra vem do
lembrar que elas estejam alcançando
e incompreensível, que, muitas vezes, latim e significa mão dada. Que essa
o “acesso ao mundo da vida”, inclusive
disfarça, cinicamente, fantasiado de mão nunca o abandone, de modo todo
no terreno processual, que tenta dar
“o único e soberano direito oficial”, particular hoje, bem no meio da rua,
solução aos conflitos humanos, para
obediência servil à preservação da in- onde ele se encontra e sofre.
que esse seja auxiliado pela “herme-
justiça.
nêutica, naturalmente incompatível
com o pensamento dogmático”, como
IHU On-Line - Quais são os novos pa-
ensinou um velho professor de direito Leia mais...
radigmas de concepção das garantias
aqui da Unisinos que, lamentavelmen- >> Jacques Alfonsin já concedeu outras
materiais que devem sustentar os di- entrevistas à IHU On-Line. O material está
te, também já nos deixou. Do vício
reitos humanos das/os pobres defen- disponível na nossa página eletrônica (www.ihu.
de se atribuir a pecha de ideológicos unisinos.br)
didos pelo direito achado na rua?
apenas aos outros, como ele lembrou,
Jacques Alfonsin - Ao humanismo dia- Entrevistas:
com base em Terry Eagleton (“os par-
lético pregado pelo Dr. Roberto Lyra Fi-
tidários do socialismo são ideológicos, * “O povo gaúcho merece mais do que ‘transpa-
lho, acima lembrado, somam-se, hoje,
mas os do capitalismo, não”)  o direi- rência’”. Publicada nas Notícias do Dia, de 12-
vários outros paradigmas interpretati- 08-2009, e disponível no link http://www.ihu.
to achado na rua parece se defender
vos da lei e do direito, influenciando unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Ite
muito bem como o NEP e a Nova Es- mid=18&task=detalhe&id=24733;
novas maneiras de considerar os fatos
cola jurídica fazem hoje. O primeiro, * Estado é incapaz de remediar a justiça social.
que lhe deram origem e vigência, para Publicada na edição número 266, de 28-07-2008,
em sua página na Internet, deixa claro
que o legalismo não sepulte, de vez, e disponível no link http://www.ihuonline.unisi-
que “diversifica os papéis e as respon- nos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemi
a legalidade, como aquele jurista de-
sabilidades do direito por meio da in- d=23&task=detalhe&id=1189;
nunciou. Doutrinas garantistas, subs-
tegração compreensiva de seus deter-
tancialistas estão passando em revista Alguns artigos:
minantes sociais. A prática jurídica é
o positivismo normativista que, talvez,
contextualizada, obtendo-se com isso * Do direito alternativo até aquele que a própria
ainda conte com a maioria dos intér- Constituição Federal encontra na rua. Publicado
uma aplicação e inteligibilidade mais
pretes da realidade, da lei e do direi- nas Notícias do Dia, de 15-07-2009, e disponí-
seguras.”   vel no link http://www.ihu.unisinos.br/index.
to. As obrigações públicas do Estado php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detal
democrático de direito são cobradas he&id=23899;
IHU On-Line – Qual deve ser o pa-
com mais rigor e até a tão traída fun-  SILVA, Ovidio Araujo Baptista da. Processo e * Uma dura crítica da Anistia Internacional aos
carrascos das/os Agricultoras/es Sem-Terra. Pu-
ção social da propriedade começa a ideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 1
blicado nas Notícias do Dia, de 21-06-2009, e
ter algum efeito prático contra quem (Nota do entrevistado)
disponível no link http://www.ihu.unisinos.br/
 Terry Eagleton (1943) é um filósofo e crítico
a infringe. Não conheço, como deve- literário britânico identificado com o marxis- index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task
=detalhe&id=23286.
ria, todas essas novas concepções te- mo. (Nota da IHU On-Line)
 Idem, p. 16. (Nota do entrevistado)

10 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


Princípios de uma organização social da liberdade
Na opinião de José Geraldo de Sousa Junior, a repercussão do direito achado na
rua é ampla e não apenas técnica, teórica e do ponto de vista do conhecimento do
direito, mas, também, política e social e de suas formas de realização

Por Graziela Wolfart, Greyce Vargas e Juliana Spitaliere

P
odemos considerar que o principal mentor do movimento pelo direito achado na rua tenha
sido o professor Roberto Lyra Filho, já falecido. No entanto um exemplar aluno seu encar-
regou-se de tocar em frente o projeto iniciado pelo mestre. E, hoje, é o grande nome no
Brasil quando o assunto é o direito achado na rua: José Geraldo de Sousa Junior. Ao gentil-
mente aceitar conceder a entrevista que segue à IHU On-Line, por telefone, o professor
José Geraldo, atual reitor da Universidade de Brasília, afirma que “pensar o direito como relação, e
não como um banco de enunciados legislativos, é criar as condições para que as lutas por reconhe-
cimento encontrem espaço politizado adequado para que se manifestem”. Para ele, “muitas vezes,
sob a forma de legalidade, a plenitude da realização subjetiva dos direitos humanos fica limitada,
portanto, lutar pelo reconhecimento é conseguir a resposta fundamentadora para que as demandas
estabelecidas se integrem ao mundo alargado do direito, que é mais amplo que a legislação”.
José Geraldo de Sousa Junior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de
Ensino Unificado do Distrito Federal, mestrado em Direito pela Universidade de Brasília e doutorado em
Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB. Atualmente é membro de as-
sociação corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil, professor e reitor da Universidade de Brasília.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a origem do direi- horizonte de crítica que coincidia com pouco sobre a experiência do curso
to achado na rua? o que muitos hoje chamam de pós-mo- a distância de capacitação de atores
José Geraldo de Sousa Junior - A ori- dernidade, que é a mudança de para- populares no direito, que iniciou em
gem surge com um grau de curiosida- digmas no campo do conhecimento. 1987?
de, pois combina a metáfora com a Em seu trabalho na UnB, sobretudo José Geraldo de Sousa Junior - Tra-
indicação de uma certa disposição po- com os alunos de pós-graduação, en- balhei com o professor Roberto Lyra
lítica e teórica. É preciso recordar que tre os quais eu me incluía, ele lançou Filho na revista “Direito e Avesso” e
os anos 1970 foram de crítica jurídica. uma revista que se chamou “Direito e chegamos a editar três números. Ele
Na Europa, houve movimentos de uso Avesso”. Lyra queria aplicar no cam- era presidente do Conselho Editorial
alternativo do direito, como “Critique po do direito a extensão da metáfo- da revista e eu, diretor. Com sua mor-
de Droit”, na França, que notabilizou ra e procurar o direito na rua. Desta te, pensei que, ao invés de dar conti-
personalidades como Michel Miaille e origem do direito achado na rua está nuidade à revista, que era muito iden-
Antoine Jeammaud; tivemos o criti- em causa o movimento de crítica jurí- tificada com a construção editorial de
cismo nos Estados Unidos; e o movi- dica que procurava construir uma base Lyra Filho, o melhor era trabalhar em
mento do direito alternativo no Brasil. epistemológica para a formulação de um outro projeto que realizasse o seu
Na UnB um professor que fazia parte uma nova construção de sentido em programa. Como professor da UnB,
desta reflexão crítica, Roberto Lyra que o direito, segundo Lyra Filho, fos- propus à universidade, no ano de 1987,
Filho, lançou um manifesto em 1978, se entendido como a enunciação dos quando a instituição começou a rever
mesmo ano em que Granoble e o gru- princípios de uma legítima organiza- uma planta epistemológica e repen-
po Critique de Droit também lança- ção social da liberdade. Esta era sua sar seu projeto político e pedagógico
vam seu manifesto. Lyra Filho falava definição de Direito. com a redemocratização, de criar um
do direito sem dogmas, buscando uma programa de capacitação jurídica de
leitura mais problematizada. Este é o IHU On-Line – O senhor pode falar um assessorias populares de movimentos

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 11


sociais por meio da educação à distân- de um processo de criminalização dos audiovisual do mesmo tema, foi pre-
cia. Buscamos uma construção inter- movimentos sociais que defendem a miado em festival de cinema.
disciplinar que envolvesse o diálogo à reforma agrária, falando dos defen-
luz dessas premissas, do direito como sores de direitos humanos, sobretudo IHU On-Line – O “direito achado na
liberdade e a dimensão emancipatória aqueles que, na questão da terra, so- rua” é academicamente reconheci-
do direito, e chamamos o programa de frem mais diretamente as consequên- do? De que forma ele é tratado nos
“O direito achado na rua”. Lançamos, cias dessa atitude de criminalização, cursos de direito?
então, um curso a distância pela UnB e com o assassinato de advogados de José Geraldo de Sousa Junior - Sim.
pelo seu Centro de Educação a Distân- lideranças. O quarto volume acabou Na faculdade de direito da UnB, o di-
cia, elaborado no espaço do Núcleo de de ser lançado com o título de “Intro- reito achado na rua é uma linha de
Estudos para Paz e Direitos Humanos, dução crítica ao direito da saúde”. Na pesquisa da pós-graduação e integra
que permitiu o diálogo entre as várias esteira das grandes formulações do a plataforma Lattes de grupos de pes-
áreas, inclusive as jurídicas. Esse cur- modelo de constituição participativa, quisa. Enquanto linha de pesquisa se
so de capacitação recebeu várias edi- elaborado em 1988, a ideia é da exis- chama “O direito achado na rua e o
ções e foi reeditado inúmeras vezes, tência de um sistema único de saúde, pluralismo jurídico”, já que a concep-
ganhando uma atenção muito grande, o SUS, que incorporava o princípio da ção se apoia na ideia de que no mesmo
não só das assessorias jurídicas dos universalização do acesso e do contro- espaço social podem vigorar diferen-
movimentos sociais mas, surpreenden- le social com a ativação dos mecanis- tes ordens jurídicas em concorrência e
temente, dos estudantes de direito mos de cidadania participativa que a em cooperação, aludindo a bases fun-
das escolas brasileiras, que encontra- constituição prevê. Este volume serve dantes diferentes. O direito achado na
ram na proposta uma espécie de alter- de elemento de capacitação, sobretu- rua é de referência internacional, pois
nativa crítica ao estudo formal do di- como é uma experiência de universida-
reito nos manuais tradicionais. Não só de, serve de fundamento para a elabo-
esses estudantes, mas também muitos “São as lutas por ração de inúmeras teses, dissertações
professores, pediram à UnB a continui- e monografias. Seus autores circulam
dade desse projeto. Editamos o volu- reconhecimentos de nos congressos. A graduação da facul-
me “O direito achado na rua” várias dade de direito também tem servido
vezes e também começamos uma série normas que podem ser de base para o desenvolvimento de
que passou a dar nome à continuida- conteúdo de cadeiras que têm conteú-
de do projeto, esta também chamada tanto mais fortalecidas do variável. Uma experiência foi criar
“O direito achado na rua”. A partir de uma coluna num jornal da cidade de
1993 tomou forma o primeiro volume, quanto mais a nossa Brasília chamada “O direito achado na
com o título de “Introdução crítica ao rua” que respondia questões de leito-
direito”; em seguida, editou-se o se- sociedade se eduque, res. Isto se fazia dentro de uma dimen-
gundo volume com o título de “Intro- são emancipatória, não se trabalhava
dução crítica ao direito do trabalho”, por exemplo, para os a resposta que fosse deduzida dos có-
um diálogo com os juízes trabalhistas digos e da legislação, mas que impli-
que, no final de década de 1990, em direitos humanos” casse abrir horizontes tanto políticos
suas entidades, faziam uma discussão quanto teóricos para novas demandas
da crise do direito, do sistema sócio- jurídicas. Um exemplo disso são os
econômico, do juiz e da lei. Eles se co- do de juízes e membros do Ministério questionamentos: “A união estável en-
locavam na perspectiva de enfrentar Público e também de conselheiros dos tre homem e mulher, que não é deriva-
a síntese dessas crises em dois prin- conselhos de saúde e de estudiosos, de da do casamento, produz direitos? E se
cipais movimentos, um que procurava um chamado direito sanitário, que se tratar de homossexuais?”. A legislação
rever os fundamentos da função social desenvolveu a partir dessa premissa. O tem limites, pois a própria constitui-
do magistrado e outro que procurava volume continua com a mesma carac- ção formalmente se refere a homem
pensar aquilo que eles chamavam de terística, preparado pela editora da e mulher. Porém os estudantes busca-
limitação da base legalista da forma- UnB, e tem a incorporação de parcei- vam referências no direito comparado
ção jurídica dos operadores do direito. ros como a Fiocruz e a OPAS (Organiza- e nas lutas dos movimentos sociais, e
No começo dos anos 2000 lançamos um ção Pan-Americana da Saúde). Além do enunciavam uma possibilidade jurídica
terceiro volume com o título de “Intro- material teórico, também elaboramos com base nesse arranjo político e te-
dução crítica ao direito agrário”. Tra- vídeos. O primeiro vídeo “O direito órico. Da criação desta coluna em um
ta-se de um debate sobre a condição achado na rua”, que faz a abordagem jornal surgiu um livro sobre a prática
da apropriação da terra, as dificulda-  Sobre o Sistema Único de Saúde, confira a re- jurídica da UnB, em que os professores
des de se pensar uma forma solidária vista IHU On-Line número 260, de 02-06-2008, refletem sobre as condições da prática
de uso social da terra e a função social intitulada SUS: 20 anos de curas e batalhas, jurídica, uma das categorias do mo-
disponível no link http://www.ihuonline.uni-
da propriedade. Discutimos o começo sinos.br//index.php?id_edicao=288 (Nota da derno currículo jurídico, ao lado das
IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


matérias fundamentais e profissionais, e também, base para políticas públi- de, a plenitude da realização subjeti-
que vê a prática como uma dimensão cas de realização de direitos humanos. va dos direitos humanos fica limitada,
do conhecimento. O livro conta tam- A repercussão é ampla e não apenas portanto, lutar pelo reconhecimento é
bém com artigos dos alunos publicados técnica, teórica e do ponto de vista do conseguir a resposta fundamentadora
no jornal. Existia na sala de aula uma conhecimento do direito, mas, tam- para que as demandas estabelecidas se
disciplina de produção de textos que bém, política e social e de suas formas integrem ao mundo alargado do direi-
permitia que alunos, de diferentes ní- de realização. to, que é mais amplo que a legislação.
veis do curso, trabalhassem qualquer O direito de morar, que hoje já está
questão que fosse apresentada por lei- IHU On-Line – Como o senhor acha consagrado na legislação, durante mui-
tores do jornal ou de temas que sur- que o Direito deve ser trabalhado na to tempo foi discurso reinvidicativo das
gissem nos balcões de atendimento da conjuntura atual brasileira? comunidades excluídas das periferias
faculdade de direito. O direito achado José Geraldo de Sousa Junior - Dentro das cidades lançadas nas favelas e nas
na rua teve um papel requalificador da da dimensão, cada vez mais forte, de palafitas. Esse discurso pela mediação
estrutura e do desempenho do currí- que os direitos são relações. Quando a dos direitos humanos foi transformado
culo acadêmico em direção ao ensino constituição diz que “o elenco de di- em pauta para o alargamento do reco-
jurídico com outro perfil, outra cons- reitos descrito dela não exclui outros nhecimento de direitos. E a teoria jurí-
trução político-pedagógica e com uma direitos que derivem da natureza do dica, que é inspirada no direito achado
outra perspectiva de desempenho do na rua, permite identificar as fontes,
estudante e da relação pedagógica. tanto teóricas quanto jurisprudenciais,
“Com o discurso de que que sustentam esses direitos. Pensar o
IHU On-Line – Qual o impacto do di- direito como relação, e não como um
reito achado na rua para o Direito, a ação em defesa da banco de enunciados legislativos, é
em si? criar as condições para que as lutas por
José Geraldo de Sousa Junior - O im- reforma agrária se faz reconhecimento encontrem espaço po-
pacto é quanto ele interpela o conhe- litizado adequado para que se manifes-
cimento do direito e sua aplicação. por ocupação se politiza tem. Isto, sobretudo, em um contexto
Não é por acaso que hoje esse impacto de uma sociedade ainda muito desigual
chega a setores inesperados. Há pou- uma prática que é em que há dificuldades para discernir o
co tempo o presidente do STF, Gilmar sentido legitimado dessas lutas. Eu mes-
Mendes, fez uma afirmação, que de- constitutiva de direito. mo estou vivenciando, na UnB, a tensão
pois foi retomada como artigo da re- decorrente do fato da nossa construção
vista Veja, sob o fundamento de que Usar o discurso da de uma ideia de legitimação jurídica,
o direito é achado na lei e não na rua. fruto da luta por reconhecimento dos
A revista fazia crítica à abordagem do invasão é criminalizar movimentos negros e indígenas, que
que se chamava o movimento do “di- conseguiram formular uma política pú-
reito achado na rua”. Isto enseja uma esta prática, retirá-la do blica de ações afirmativas, incluindo a
dimensão de impacto e de repercus- política de cotas. Infelizmente sempre
são que vai além da sala de aula e que reconhecimento e há os que dizem que isto é ilegal. Um
interpela a própria atitude política da partido apresentou uma arguição de
aplicação do direito. O direito deixa desqualificar o seu descumprimento de preceito funda-
de ser, sob esse ângulo, apenas uma mental para desconstituir a nossa po-
questão para os acadêmicos e para os agente” lítica de cotas, afirmando que no Brasil
especialistas e se torna objeto de in- não há racismo, país que há pouco tem-
teresse no âmbito do senso comum da po mantinha a escravidão e que ainda
sua realização. Tal como nesse caso, regime ou dos princípios que a consti- mantém o tipo penal do plágio da redu-
frequentemente temos assistido mo- tuição adota”, abre uma pauta muito ção de alguém à condição análoga a de
bilizações em que essa perspectiva se larga, que tanto do ponto de vista te- escravo. É muito importante, portanto,
espalha. Um exemplo: em Minas Ge- órico quanto do político, nós pensemos poder trabalhar na linha da luta por
rais, dentro de uma política de acesso o direito como relações legitimadas. É reconhecimento, do caráter relacional
à justiça, uma prefeitura municipal preciso trabalhar as estratégias de re- dos direitos, e ter a consciência de que
criou um programa de assessoria ju- conhecimento. São as lutas por reco- os direitos não são quantidades que
rídica à cidadania e deu a esse pro- nhecimentos de normas que podem ser estão estocadas em um repertório. Os
grama o título de “Direito achado na tanto mais fortalecidas quanto mais a direitos são cotidianamente construí-
rua”. Mais tarde isto se espalhou para nossa sociedade se eduque, por exem- dos. Então, é preciso educação jurídica
outros programas. Assim se trabalha plo, para os direitos humanos. O res- e capacidade de tradução de deman-
crítica jurídica, diretriz para aplica- peito aos direitos humanos é um dos das legítimas que venham baseadas nos
ção jurídica por meio dos operadores princípios que a constituição adota. direitos humanos, para positivá-los no
de direito, magistrados e advogados, Muitas vezes, sob a forma de legalida- sentido de sua aplicação. E positivar
SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 13
não é somente legalizar, mas é o que a do direito achado na rua está claramen-
jurisprudência realiza. te inscrita nesta fundamentação. O texto
clássico de Roberto Lyra Filho, “Direito
IHU On-Line – Quais as principais di- que se ensina errado”, diz que o direito
ferenças entre o Direito e o direito se ensina errado pela inadequada apre-
achado na rua? ensão do objeto de conhecimento, pois
José Geraldo de Sousa Junior - Uma quem só vê o direito como lei não vê as
delas, que já citei anteriormente, é o manifestações jurídicas que se realizam
trabalho de assessoramento jurídico, na sociedade e que interpela a própria
que a partir da linha teórica do direito legislação existente. Daí deriva o que ele
achado na rua e com o aporte da capa- chamava de “defeito da pedagogia”, que
citação dos operadores de direito, se faz “não ensina bem quem aprende mal o
em função da luta pelo reconhecimento objeto de conhecimento”. A partir daí o
do direito de moradia em face do direito direito achado na rua teve uma influên-
de propriedade. São inúmeras as formu- cia muito grande na formulação dos prin-
lações que elaboramos, como em asses- cipais trabalhos, que desde a portaria nº

Informações no endereço www.ihu.unisinos.br


Participe dos eventos do IHU.
soramento a movimentos populares e 1886 do MEC, baliza a questão do ensino
em assessoramento na linha da atuação do direito no país.
dos advogados trabalhistas e dos advo-
gados desses movimentos para a defesa Plus
jurídica da modificação do sentido de
entendimento, em termos de construir A recepção do direito achado na rua
discursos que pudessem assimilar o senti- não é só nacional, mas internacional
do emancipatório das demandas sociais. também. É com o direito achado na
Um exemplo em um campo próximo é rua”que podemos estabelecer um de-
a questão da terra: ocupar ou invadir? bate muito forte com um participante
Com o discurso de que a ação em defesa do primeiro momento desta discussão,
da reforma agrária se faz por ocupação o professor Boaventura de Sousa San-
se politiza uma prática que é constituti- tos, com sua ideia de interlegalidade,
va de direito. Usar o discurso da invasão contextos espaciais e temporais, cons-
é criminalizar esta prática, retirá-la do truções de cartografias de cidades, e
reconhecimento e desqualificar o seu como ele apresentou desde seus estu-
agente. A construção de sentido na le- dos nas favelas brasileiras, a ideia de
gitimação de discursos é também outra pluralismo jurídico. Também há o diá-
estratégia que temos trabalhado e que logo com os principais juristas que se
caracteriza o “direito achado na rua” e engajam nesta dimensão crítica da te-
seu programa. Sempre que nos defronta- oria jurídica, André-Jean Arnaud e Jo-
mos com estas situações limites, como, aquim Herrera Flores. Joaquim Gomes
por exemplo, a criminalização dos movi- Canotilho, o principal constitucionalis-
mentos sociais e dos defensores de direi- ta em língua portuguesa, ao discutir na
tos humanos, são formas pelas quais nós sua obra Teoria da constituição e do di-
atuamos e que, de alguma maneira, fa- reito constitucional, alude ao fato de
zem parte desta plataforma de atuação que se coloca hoje uma exigência para
do “direito achado na rua” e de outros o direito constitucional que é escapar
modos de considerar o direito. ao formalismo positivista em que ele se
aprisiona e se abrir a outros modos de
IHU On-Line – O que o direito achado consideração da regra do direito que
na rua nos ensina? dialoguem com as teorias da socieda-
José Geraldo de Sousa Junior - O direi- de e da justiça. Ele menciona que uma
to achado na rua tem suscitado inúmeras das formas de diálogo que é preciso es-
teses e dissertações. Temos hoje, no âm- tabelecer é com o “direito achado na
bito da reforma de ensino do direito, um rua” e menciona exatamente o projeto
enunciado de premissas que modificaram desenvolvido na UnB.
suas diretrizes curriculares. Se tomar-
mos algumas das fundamentações que, a  André-Jean Arnaud: professor na Universi-
partir dos anos 1990, estão presentes no (Nota da IHU On-Line)
dade de Paris. ���������
campo do ensino do direito, veremos que  Joaquín Herrera Flores: professor na Uni-
versidad Pablo Olavide, de Sevilha, Espanha
muito do que foi a base da teoria crítica (Nota da IHU On-Line)

14 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


Um direito mais amplo e interdisciplinar
Na visão de José Carlos Moreira da Silva Filho, a concepção de justiça que sustenta
o direito achado na rua é toda aquela que se revela sensível às concretas, diversas
e históricas manifestações de afirmação de direitos que tomam corpo nas dinâmi-
cas reais e contraditórias das sociedades

Por Graziela Wolfart

E
m entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, o professor José Carlos Moreira
da Silva Filho entende que o direito achado na rua “não identifica o direito com a norma,
pura e simplesmente, e muito menos com a lei. O direito é visto como um processo social
de lutas e conquistas de grupos organizados, em especial dos novos movimentos sociais, na
busca da emancipação de situações opressoras caracterizadas pela experiência da falta de
satisfação de necessidades fundamentais”. Ele destaca que “é muito fácil aprendermos e ensinarmos,
nas faculdades de Direito, que as leis e os direitos que elas abrigam são para todos, mas nem sempre
é cômodo e conveniente perceber que, de fato, uma boa parte das pessoas em nosso país está alijada
da esfera de concretização dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal”.
E dispara: “Creio que o poder judiciário brasileiro ainda tem um longo caminho a percorrer para agir
com base na compreensão de que ele é um poder que tem de prestar contas à sociedade brasileira,
e não apenas aos entendimentos dos seus próprios pares”.
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, José Carlos Mo-
reira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
- UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente, é professor no Programa
de Pós-Graduação em Direito e na graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Uni-
sinos, além de Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que conceito de jus- “Temos, pois, um claro problema de hermenêutica
tiça prevalece no direito achado na
rua? Quais são os seus princípios ju- em nossa cultura jurídica”
rídicos?
José Carlos Moreira da Silva Filho
- O direito achado na rua não ignora processos existentes dentro de uma são no Estado do Rio Grande do Sul,
ou despreza a lei e o Estado, tanto sociedade desigual como a nossa, per- em especial a partir da atuação de
que muitas das lutas propostas e de- cebendo também que o Estado é um Amilton Bueno de Carvalho, Rui Por-
senvolvidas pelos movimentos sociais espaço de tensões e lutas acessíveis à tanova, Marcos Scarpini e do saudoso
desembocam justamente no apelo ao política e à participação, não somente  Amilton Bueno de Carvalho é desembarga-
através do voto, e que o ordenamento dor no Rio Grande do Sul, sendo juiz de car-
cumprimento das leis e princípios já reira. Foi um dos integrantes do grupo que,
existentes. Basta perceber também jurídico compõe um sistema de nor- nos anos 1980, tornou-se conhecido como o
que a própria Constituição de 1988 mas a ser interpretado de acordo com movimento fundador do Direito Alternativo no
as circunstâncias reais e concretas que Brasil. É palestrante respeitado no País e no
foi, em grande parte, resultado da Exterior, além de professor de Direito Penal e
mobilização de diferentes movimen- envolvem a aplicação da lei. de Processo Penal. (Nota da IHU On-Line)
 Rui Portanova: bacharel em Direito pela
tos e grupos sociais. O que diferencia PUCRS, foi nomeado Juiz de Direito em 1976,
a abordagem crítica do direito acha- Direito alternativo
atuou nas comarcas de São Luiz Gonzaga, São
do na rua da abordagem dogmática Vicente do Sul, Santo Augusto, Nova Prata,
do Direito é o fato de que aquela se A expressão “Direito Alternativo” Novo Hamburgo e Porto Alegre. Foi promovido
está mais próxima, em seu sentido não a Juiz do Tribunal de Alçada em maio de 1995,
apoia em um espectro de visão muito e a desembargador do Tribunal de Justiça em
mais amplo e interdisciplinar do que pejorativo, ao movimento de juízes maio de 1998. É autor de, entre outros, Mo-
esta, sendo por isso mesmo capaz de brasileiros que, inspirados na magis- tivações Ideológicas da Sentença (Porto Ale-
tratura democrática italiana do final gre: Livraria do Advogado, 2003). Confira uma
perceber as contradições, conflitos e entrevista concedida por ele na IHU On-Line
dos anos 1960, teve grande repercus- número 253, de 07 de abril de 2008, intitula-

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 15


Márcio Puggina. A ideia básica do mo- tenta o direito achado na rua é toda mais amplas, o que nos leva a uma to-
vimento foi a de explorar as brechas e aquela que se revela sensível a este tal inversão hierárquica na aplicação
conflitos do próprio ordenamento jurí- olhar, e, em especial, às concretas, das leis, priorizando-se as normas in-
dico, apoiando-se principalmente nos diversas e históricas manifestações de fraconstitucionais às constitucionais.
princípios e valores protegidos, para afirmação de direitos que tomam cor- Temos, pois, um claro problema de
realizar uma interpretação da lei que po nas dinâmicas reais e contraditórias hermenêutica em nossa cultura jurídi-
fosse mais inclusiva em relação aos das sociedades em questão. ca. Esta é uma das razões de por que
grupos mais vitimados na sociedade o curso de Pós-Graduação em Direito
brasileira, excluídos do acesso à satis- IHU On-Line - Em que medida o lega- da Unisinos, de cujo corpo docente me
fação de necessidades fundamentais. lismo pode ser visto como um instru- orgulho de fazer parte, tem como uma
Este movimento teve um papel impor- mento de injustiça social? de suas linhas de pesquisa prioritárias
tantíssimo na formação e fortaleci- José Carlos Moreira da Silva Filho - O o tema da hermenêutica jurídica asso-
mento de uma cultura crítica do direi- problema não é a lei em si. Roberto ciada à concretização de direitos. A lei
to no país. Não é demais lembrar que Lyra Filho já recomendava aos grupos e é um parâmetro fundamental para a
saímos da ditadura apenas na segunda movimentos empenhados na busca de afirmação de uma sociedade mais livre
metade dos anos 1980, e que questio- maior igualdade e afirmação de direi- e justa, é instrumento indispensável
namentos, críticas ou qualquer forma tos que fizessem um bom uso do “posi- do que chamamos de Estado Demo-
de pensamento mais elaborado era tivismo de combate”. São inúmeras as crático de Direito. Temos que enten-
algo vetado e combatido pelos agen- situações nas quais a injustiça social der que muito da injustiça social que
tes do governo autoritário, ainda mais poderia ser combatida ou diminuída assola a sociedade brasileira vem do
no seio de uma das instituições histori- bastando a mera aplicação da lei, mui- fato de que ainda são frágeis as nossas
camente mais conservadoras e menos tas vezes, no seu sentido mais literal. instituições democráticas, pois a de-
democráticas do país, que é o Poder Imagine, por exemplo, se o Código de mocracia que se concentra apenas no
Judiciário. Como estudante de Direito âmbito político-partidário e deixa sob
fui atingido em cheio por esta inquie- princípios nada democráticos a econo-
tude e por este exemplo, e se hoje “Muito da injustiça social mia e a educação, por exemplo, não
temos um amplo espaço de atuação é uma verdadeira democracia. O que
na interpretação e concretização do que assola a sociedade deve ser buscado é uma via de diálogo
Direito Constitucional, muito se deve e participação entre o Estado e os mo-
aos questionamentos e grupos pio- brasileira vem do fato de vimentos sociais organizados, manten-
neiros que lograram quebrar a dura e do-se uma tensão dialética constante,
opaca casca do enfoque exclusivamen- que ainda são frágeis as afinal, tanto a democracia como a
te dogmático do direito. Romper com própria ideia de justiça devem sempre
este viés simplista e rasteiro, contudo, nossas instituições ser vistas como algo inacabado e um
segue sendo ainda uma tarefa urgente processo em curso.
e inacabada, especialmente nos cur- democráticas”
sos de direito, que em grande parte IHU On-Line - A proposta do direito
ainda se deixam seduzir pela cantilena achado na rua evidencia a desatua-
positivista. Defesa do Consumidor, ou as normas e lização de nossas leis ou a falta de
O direito achado na rua, a par de re- princípios do Sistema Único de Saúde, confiança no poder judiciário?
presentar um compromisso ético com ou ainda o Estatuto da Criança e do José Carlos Moreira da Silva Filho -
a eliminação da desigualdade intolerá- Adolescente fossem fielmente cumpri- Creio que ela evidencia os dois aspec-
vel e com a afirmação de identidades, dos? O problema, como já deixa en- tos. Diante da desatualização das leis
direitos e participações dos grupos trever a sua pergunta, é o “ismo”. O ou de um texto legal insatisfatório e
e movimentos sociais que partilham legalismo, a meu ver, padece de duas inadequado, especialmente na opi-
experiências de exclusão no acesso à grandes deficiências: a primeira delas nião das pessoas que são os destinatá-
satisfação de necessidades fundamen- é que não consegue ver o direito que rios diretos desta lei, é preciso buscar
tais, representa uma lupa de observa- existe e se forma fora do espaço da tanto a via do debate, do protesto e
ção, análise e reflexão que percebe lei, seja antes de virar lei, indo além da participação política que objeti-
o fenômeno jurídico como algo bem dela ou até mesmo contra ela, o que vam a reforma do texto em si, como
maior e complexo do que se pensa nos contraria, portanto, o enfoque mais também o trabalho hermenêutico de
meios mais conservadores e dogmáti- amplo e adequado que sustenta o di- construção judicial das interpretações
cos. A concepção de justiça que sus- reito achado na rua. E, em segundo mais adequadas, capazes de compen-
lugar, o legalismo costuma apegar-se a sar, muitas vezes, as falhas do texto
da “A sociedade não acredita que haja amor
entre as pessoas homossexuais”, disponível no uma leitura pobre e tacanha do orde- legal. Desde a Constituição de 1988 é
link http://www.ihuonline.unisinos.br/index. namento jurídico, concentrando-se na muito visível a abertura desse flanco
php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task literalidade das regras mais específicas hermenêutico na via judicial, daí por-
=detalhe&id=968&id_edicao=281 (Nota da IHU
On-Line) e no desprezo aos princípios e normas que muitos juristas, como o meu co-
16 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305
lega Lenio Luiz Streck, por exemplo, sua tese de doutorado, defendida na sistemáticas exercidas sobre inte-
afirmam ter sido o Poder Judiciário Universidade de Yale, Boaventura de grantes do seu próprio grupo. Temos
alçado à condição de mediador entre Sousa Santos viveu durante meses em aqui, por exemplo, os povos indígenas
os outros dois poderes do Estado, pas- uma favela situada na cidade do Rio de e os movimentos sociais organizados,
sando a assumir um protagonismo que Janeiro. Logo ele pôde perceber que como o Movimento dos Trabalhadores
não existia em tempos nos quais se no vácuo da não satisfação de direitos Rurais Sem Terra. Importante lem-
acreditava ser o juiz “a boca da lei”. básicos, inscritos na legislação e na brar também que as exclusões não
Contudo, não se pode esquecer, como ausência da presença das instituições são apenas relativas às questões de
já afirmei antes, que o Poder Judici- estatais, a não ser para repressão e classe. Na agenda dos direitos huma-
ário no Brasil é uma das instituições violação de direitos, constituiu-se o nos, no Brasil, há muitos outros gru-
historicamente mais conservadoras e espaço de um sistema jurídico para- pos cuja questão central não se limita
menos democráticas do país, na qual lelo. Importante perceber que não se ao tema da pobreza, embora por ele
predomina o princípio da autoridade trata de defender pura e simplesmen- perpassem. São questões de gênero,
e o apego a rituais e a termos de di- te a existência desses sistemas, mas étnicas, ecológicas de opção sexual,
fícil compreensão para a maior parte sim de entender o fato e as razões de entre outras.
da população. É um poder ainda opa- eles existirem. A ausência do Estado Quanto à afirmação de que a justi-
co, que muitas vezes não fundamenta e de políticas públicas mais integra- ça convencional não atende às cama-
as razões dos seus entendimentos e os das economicamente desfavorecidas
meandros do funcionamento de seus da população, eu diria que em muitas
órgãos e agentes, permanecendo, via situações ela atende sim, mas ainda
de regra, muito reticente a críticas “A democracia que se padece de problemas estruturais que
e a questionamentos feitos sobre si, impedem que ela o faça de um modo
que são logo apontados como amea- concentra apenas no mais global e satisfatório. Dou como
ças à sua independência. Creio que o um bom sintoma disto o fato de que
poder judiciário brasileiro ainda tem âmbito as Defensorias Públicas no Brasil não
um longo caminho a percorrer para possuem pessoas e estrutura suficien-
agir com base na compreensão de que político-partidário e tes para cumprir a sua missão princi-
ele é um poder que tem de prestar pal. Costumam ter mais sucesso nas
contas à sociedade brasileira, e não deixa sob princípios nada demandas judiciais aqueles que po-
apenas aos entendimentos dos seus dem pagar bons advogados. Além dis-
próprios pares. democráticos a economia so, se formos olhar de um modo ain-
da mais global, perceberemos que os
IHU On-Line - Podemos dizer que a e a educação, por problemas sociais do país não dizem
proposta do direito achado na rua respeito apenas à atuação do judici-
está relacionada com a defesa dos exemplo, não é uma ário ou às ações do ministério públi-
direitos humanos dos pobres? Se co, mas sim a questões diretamente
sim, podemos entender que a justiça verdadeira democracia” relacionadas à política, ao sistema
convencional não atende às camadas produtivo, à educação e ao atual qua-
economicamente desfavorecidas da dro de relações de força na sociedade
população? brasileira. Devemos sempre nos lem-
José Carlos Moreira da Silva Filho - doras e inclusivas estimula também a brar que instituições como o Estado e
Como já disse na resposta à primeira constituição de sociedades criminosas o Mercado não são neutras, que o dis-
pergunta, a realidade da sociedade que também oprimem e reprimem a curso técnico do qual muitas das suas
brasileira está muito longe do ideal população que vive nas favelas e nas decisões se revestem apenas encobre
assumido pelo direito moderno dos demais periferias do país, interme- a realização de escolhas sustentadas
Estados Nacionais, qual seja, a de que diando esta violência com o atendi- em configurações morais e opções
o direito é para todos. Em um qua- mento de demandas que o Estado dei- axiológicas que estruturam imaginá-
dro como este não é de admirar que xou desamparadas. A legitimidade das rios e modelos de compreensão so-
nasçam sistemas jurídicos paralelos, sociedades de traficantes, por exem- ciais que acabam por ser naturaliza-
desvinculados da instituição estatal, plo, é algo extremamente ambíguo e dos. Daí porque, creio eu, a canção
ainda que com ela pretendam, em não deve ser visto com o olhar mani- de Caetano Veloso, intitulada “Um
muitos casos, dialogar. Ao reconhe- queísta e infantil de um Bush Jr. e sua índio”, traz, no seu último verso, a
cimento deste fenômeno social cha- “sociedade do mal”. Por outro lado, afirmação de que o que surpreenderá
mamos de “pluralismo jurídico”. Em também existem outros sistemas ju- a todos não será o exótico, mas sim
 Lenio Streck é professor no PPG em Direito rídicos paralelos que são a expressão o “fato de poder ter sempre estado
da Unisinos. Confira uma entrevista exclusiva da legítima organização popular e que oculto quando terá sido o óbvio”.
com ele publicada nesta edição. (Nota da IHU
On-Line)
não recorrem à violência e à opressão

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 17


O “peso” dos movimentos sociais é maior que o das “leis”
Para o professor Roberto Efrem Filho, com o direito achado na rua, os movimentos
sociais puderam começar a ser reconhecidos, embora não sem a resistência dos
setores conservadores do campo jurídico, como sujeitos coletivos de direito

Por Graziela Wolfart

“O
direito achado na rua (...) constituiu um movimento teórico - inexoravelmente
político - de afirmação de um estilo específico de fazer o direito, aquele con-
duzido pelos movimentos sociais em meio às suas lutas por libertação”. É assim
que o professor Roberto Efrem Filho define o termo “direito achado na rua”,
nosso tema de capa na edição desta semana. Na entrevista que concedeu, por
e-mail, à IHU On-Line, Efrem Filho lembra que “as teses do direito achado na rua servem às classes
subalternas e sujeitos oprimidos ao tempo em que são capazes de reconhecer tais sujeitos e de, com
eles, encontrar caminhos para a formação de uma contra-hegemonia”. No entanto, “definitivamente
não se trata, nesse contexto, de qualquer hipótese de panacéia judicial”, alerta ele.
Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela Universidade Federal de Pernambuco, professor subs-
tituto da mesma instituição e assessor jurídico popular da Terra de Direitos, organização de Direitos
Humanos. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten- nas, o que se está a defender é que movimentos sociais de afirmar (e, por-
der por direito achado na rua? Qual existem direitos atinentes à organiza- tanto, criar) direitos, ainda que esses
sua origem? ção popular e que só essa organização direitos não sejam, a priori, conheci-
Roberto Efrem Filho - O direito acha- poderá acessar. dos pelo Estado. É o direito à terra,
do na rua, assim como boa parte das proposto pelo MST, por exemplo, em
teses relativas ao “direito alternati- A legitimidade dos oposição ao habitus estatal, que me-
vo”, constituiu um movimento teórico movimentos sociais ramente reconhece o direito à pro-
- inexoravelmente político - de afir- priedade.
mação de um estilo específico de fa- O segundo é o reconhecimento da O direito achado na rua e todas as
zer o direito, aquele conduzido pelos legitimidade dos movimentos sociais demais teses do direito alternativo
movimentos sociais em meio às suas na criação de direitos e na feitura da reúnem diversas proposições, por ve-
lutas por libertação. Isso significa, em história. Está aí a ideia de que os di- zes com certas divergências internas,
outras palavras, que, com o direito reitos não estão limitados ao monismo mas que, sem dúvida, estabeleceram
achado na rua, os movimentos sociais estatal, ou seja, ao monopólio estatal um marco histórico para a esquerda
puderam começar a ser reconhecidos, da criação do direito, e de que há, do campo jurídico nacional. Nas duas
embora não sem a resistência dos seto- destarte, o que Antonio Carlos Wolk- últimas décadas, não houve membro
res conservadores do campo jurídico, mer chamou de “pluralismo jurídico”. da esquerda desse campo, ainda que,
como sujeitos coletivos de direito. Há Numa das vertentes do pluralismo, com severas críticas e discordâncias,
aí, portanto, no mínimo, dois avanços discute-se acerca da legitimidade dos não precisasse prestar contas ao direi-
teóricos merecedores de destaque. O to achado na rua. A origem do direito
 Antonio Carlos Wolkmer: professor e advo-
primeiro é o da revisão do conceito de gado brasileiro. É um teórico do direito vin-
achado na rua está ligada aos traba-
“sujeito de direito”, costumeiramente culado aos estudos sobre Pluralismo Jurídico. lhos de Roberto Lyra Filho e de sua
encarado pela tradição liberal de modo Professor titular de História do Direito na Uni- Nova Escola Jurídica. Possuiu, assim,
versidade Federal de Santa Catarina, atua na
individualista e correspondente àque- graduação e no curso de pós-graduação em
ao menos inicialmente, algumas inter-
le modelo do “homem ideal” burguês, direito dessa instituição. Conferencista convi- ferências de pensamentos de caráter
de origem europeia, branco, do gêne- dado em universidades do Brasil e do exterior, marxista, dos quais suas teses foram
é considerado um dos iniciadores do debate
ro masculino etc., de que fala Marx. sobre o Direito Alternativo no Brasil. (Nota da
se afastando pouco a pouco. Encontra-
Se o Movimento Negro é um sujeito de IHU On-Line) se hoje numa fase “humanista” - cuja
direito, e não cada pessoa negra ape- influência também não foge a Lyra Fi-

18 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


lho - mas, sobretudo, “pós-moderniza- O tema é complexo e sua discussão direito achado na rua é de relevância
da”, como se pode constatar a partir não cabe numa entrevista, é verdade. evidente. Os sujeitos atualmente orga-
da leitura da tese de doutoramento de Pretendo com essa referência, apenas nizados entre os setores progressistas
Jose Geraldo de Sousa Júnior, talvez a dizer que as teses do direito achado na do direito devem, sem dúvida, parte
maior referência no tema. rua servem às classes subalternas e su- significativa de seu acúmulo ao achado
jeitos oprimidos ao tempo em que são na rua. É o que se dá, por exemplo,
Sobrevalorização do judiciário capazes de reconhecer tais sujeitos e com a assessoria jurídica popular. Os
de, com eles, encontrar caminhos para núcleos pertencentes à Rede Nacional
Um dos problemas decorrentes das a formação de uma contra-hegemonia. de Assessoria Jurídica Universitária,
mudanças citadas é o do nascimento Mas definitivamente não se trata, nes- a RENAJU, organizações não-gover-
de uma sobrevalorização do Judiciário se contexto, de qualquer hipótese de namentais como a Terra de Direitos
e do direito como um todo, diretamen- panacéia judicial. Se o direito achado e a Themis, e inclusive alguns grupos
te relacionada a uma maior litigância na rua um dia reconheceu os movi- acadêmicos vinculados a Programas
jurisdicional dos movimentos sociais mentos sociais como sujeitos de direi- de Pós-Graduação em Direitos Huma-
com vistas à efetivação dos direitos já tos é porque, nas lutas históricas des- nos e Sociologia Jurídica compõem,
constitucionalizados em 1988. Existe, ses movimentos, está sua legitimidade com suas variáveis, a tradição teórica
nesse cenário, uma linha bastante tê- para a criação desses direitos. Uma iniciada pelo direito achado na rua.
nue entre acreditar no direito estatal contra-hegemonia no campo jurídico Acontece atualmente um interessan-
como a panacéia das transformações te movimento conjuntural: os/as ex-
sociais - o que se lê em trabalhos te- graduandos(as) partícipes dos núcleos
óricos substancialistas, como o de Le- “O direito achado na rua de assessoria têm ocupado cada dia
nio Streck - e acreditar que a disputa mais os Programas de Pós-Graduação
tática de certas questões no Judiciário e todas as demais teses em Direito, notadamente os da UFSC,
pode servir conjunturalmente à con- UFPB e UFPA, dada seja à história
quista de certos avanços democráticos do direito alternativo progressista desses Programas, como
- concepção coerente com a noção ocorre com o de Santa Catarina, seja
gramsciana de disputa de hegemonia. reúnem diversas a existência neles de linhas específicas
Fico, certamente, com esta última em Direitos Humanos. É o que se dá
concepção. Enxergar o direito como proposições (...) que, com a UFPA e a UFPB, por exemplo.
“solução para os conflitos sociais” é Outros Programas, certamente por
parte da crença legitimadora do pró- sem dúvida, conta da existência de núcleos de as-
prio campo jurídico no espaço social. sessoria fortes nas universidades, têm
As estruturas do campo jurídico e seus estabeleceram um demonstrado maior aceitabilidade
agentes cumprem um intrínseco papel com relação aos sujeitos deles advin-
de dominação simbólica e material, marco histórico para a dos. É que tem sucedido com a UFPE.
que toma maior ou menor relevância Isto, claro, com o companheirismo de
a depender das relações de poder for- esquerda do campo docentes comprometidos com os ci-
madoras do bloco histórico. Em tem- tados setores progressistas, como é o
pos de descrença no campo político jurídico nacional” caso de Luciano Oliveira, Gustavo San-
ou em tempos de disciplinamento, a tos, Larissa Leal e Alexandre da Maia,
importância do Judiciário para a ma- apenas para citar alguns nomes.
nutenção das relações de dominação não reivindicaria para si a legitimida-
aumenta. Noutras conjunturas, quan- de de efetivação da democracia e de IHU On-Line - Os movimentos e or-
do a dominância sofre menos media- desconstrução das desigualdades. Isto ganizações sociais têm demonstrado
ções sociais e a “violência” é mais seja porque as estruturas do campo força para representar os reclames
eficaz para as classes dominantes do jurídico alimentam-se dessa crença no de nossa sociedade?
que a “hegemonia” e o aparato simbó- próprio campo como salvador demo- Roberto Efrem Filho - Os movimentos
lico, a importância do direito diminui. crático para perpetuar a hegemonia; sociais brasileiros atravessam, dentre
Numa ou noutra conjuntura, contudo, seja porque tal crença usurpa dos mo- outros problemas, um difícil e bastan-
a estrutura do campo jurídico mantém vimentos sociais e das classes popula- te peculiar processo de fragmentação.
cumplicidades com as estruturas do res a competência para a real trans- As novas facetas simbólicas do modo
espaço social, ou seja, com o modo de formação que não advém do direito, de produção capitalista - em que esta-
produção capitalista. Tais cumplicida- mas da luta e do fazer histórico. mos todos(as) imbuídos(as), inexora-
des, de modo algum correspondem às velmente, ainda que dele discordemos
panacéias ou ao fim das desigualdades, IHU On-Line - Quem são os adeptos - têm prendido os movimentos numa
senão a uma negação dos conflitos so- do direito achado na rua no Brasil, disputa interna e autofágica pela cen-
ciais que passam a assumir feição de hoje? O que os caracteriza? tralidade da pauta. Isto significa que
“direitos ainda não efetivados”. Roberto Efrem Filho - O legado do os diversos movimentos terminam
SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 19
por ingressar numa concorrência para inclusive, das desigualdades de classe. oprimidos. Noutros termos, os Direitos
provar “quem mais sofre” com as de- A concorrência pelo financiamento ou Humanos advindos das legítimas lutas
sigualdades sociais, ou “quem é mais pela política pública constitui, portan- dos movimentos sociais, restam rifados
oprimido”, em razão de, enfim, de- to, um dos fatores de impossibilidade por lobbies. Os movimentos sociais,
monstrar “quem merece mais recursos de construção de uma pauta política por essas razões, encontram-se numa
financeiros ou quem deve mais rapida- comum que fortaleça as reivindica- encruzilhada que, se não é culpa sua
mente ser alvo de políticas públicas”. ções dos movimentos sociais. Além - porque o papel das estruturas sociais
A alegada “escassez” de orçamento es- dessa determinação diretamente eco- de dominação não pode ser negado -
tatal para a efetivação dos chamados nômica, uma outra, oriunda das rela- conta com seu consentimento incons-
Direitos Humanos Econômicos, Sociais, ções próprias à economia simbólica do ciente e com a inexorável reprodução
Culturais e Ambientais é parte fundan- campo político, perfaz-se. Não é rara a dos vínculos hegemônicos com as clas-
te desse cruel processo de fragmen- concorrência no seio do Poder Legisla- ses subalternas e grupos oprimidos.
tação. Em outras palavras, a “reserva tivo, pela pauta sustentável na lógica Nada disso quer dizer, entretanto, que
do possível econômico” - assim deno- das coalizões e da governabilidade. É tais movimentos são sujeitos coletivos
minada por alguns constitucionalistas o que ocorre atualmente, apenas para menos legítimos para a afirmação de
- faz-se fator de concorrência. A lógica citar um exemplo, com o Projeto de direitos. Pelo contrário, são eles os su-
é mais ou menos a seguinte: se o Esta- Lei do Estatuto da Igualdade Racial. jeitos sociais capazes da organização
do afirma que os recursos financeiros O Estatuto vem sendo cercado, des- popular, sem a qual, por certo, nunca
para políticas sociais são limitados, de sua propositura, por diversos Parti- haverá rastro qualquer de democracia
nem todos(as) se beneficiarão de tais ou soberania popular.
recursos. É assim que o Movimento Ne-
IHU On-Line - Em que medida os mo-
gro disputa financiamento com o Movi-
mento de Mulheres, que disputa com
“Nas duas últimas vimentos sociais e demais organiza-
ções da sociedade civil podem ter
o Movimento Camponês, que disputa
com o Movimento Quilombola etc.
décadas, não houve mais peso do que as leis na hora de
fazer justiça?
Certamente, tal concorrência não
é consciente ou intencional, o que,
membro da esquerda Roberto Efrem Filho - A tradição ju-
como notaria Pierre Bourdieu, faz as
relações de dominação simbólica ain-
desse campo, ainda que, rídica costuma neutralizar as leis e as
normas. O Ensino Jurídico pouco ou
da mais eficazes. Não é preciso que
o Movimento de Mulheres, por exem-
com severas críticas e nada diz das relações de poder res-
ponsáveis pela legislação ser desta e
plo, intencione excluir o Movimento
Negro do acesso a recursos públicos.
discordâncias, não não daquela maneira. A norma resta,
assim, desprovida de história, o que
Para que a fragmentação se reprodu-
za eficientemente, basta que o Movi-
precisasse prestar é sobremaneira contrário à concep-
ção de justiça comprometida com a
mento de Mulheres se perca em suas
“especificidades” - sem notar que a
contas ao direito achado libertação das classes e sujeitos opri-
midos. A negação da história das leis,
desconstrução do machismo está im-
bricada à desconstrução do racismo e,
na rua” dos interesses sociais que as movem, é
um dos instrumentos simbólicos atra-
vés dos quais a hegemonia se perfaz,
 Pierre Bourdieu (1930 - 2002) sociólogo
francês. De origem campesina, filósofo de for-
fabricando consensos e naturalizando
mação, chegou a docente na École de Socio- dos Políticos conservadores. Primeiro, relações. A afirmação de direitos, le-
logie du Collège de France, instituição que o notadamente, por conta da proposta vada a cabo pelos movimentos sociais,
consagrou como um dos maiores intelectuais
de seu tempo. Desenvolveu, ao longo de sua
da instituição nacional das Cotas So- em razão da garantia da justiça é (jus-
vida, mais de trezentos trabalhos abordando ciorraciais, como política afirmativa tamente) a antípoda da naturalização
a questão da dominação, e é, sem dúvida, efetiva de combate ao racismo; segun- com a qual o campo jurídico legitima
um dos autores mais lidos, em todo mundo,
nos campos da Antropologia e Sociologia, cuja
do, por causa do dispositivo que trata suas posições conservadoras. É na “fei-
contribuição alcança as mais variadas áreas do da demarcação de terras de rema- tura da história”, citando Paulo Frei-
conhecimento humano, discutindo em sua obra nescentes de quilombos. Atualmente, re, que os direitos são conquistados e,
temas como educação, cultura, literatura,
arte, mídia, linguística e política. Seu primei-
ocorre um jogo de poderes pelo o que dialeticamente, as identidades reco-
ro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute “passará com o Estatuto”: ou as cotas nhecidas. Acontece com os movimen-
a organização social da sociedade cabila, e em ou os direitos dos quilombolas. Isso tos sociais que suas lutas por direitos
particular, como o sistema colonial interferiu
na sociedade cabila, em suas estruturas e des-
porque as coalizões políticas do Go- são o que os formam como sujeitos, o
culturação. Dirigiu, por muitos anos, a revista verno Federal e a disputa com os Par- que conduz ao reconhecimento um do
Actes de la recherche en sciences sociales e tidos de oposição parecem “impedir” outro e, necessariamente, ao autor-
presidiu o CISIA (Comitê Internacional de Apoio
aos Intelectuais Argelinos), sempre se posicio-
que ambos os direitos sejam garanti- reconhecimento, numa desconstrução
nado clara e lucidamente contra o liberalismo dos aos povos negros historicamente daquilo que Marx chamou de “estra-
e a globalização. (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305


nhamento”. Enquanto a história das Rurais Sem Terra pode cobrar junto
leis e dos interesses que as movem nos ao Estado brasileiro que seja ela efe-
é estranha, visto que diuturnamente tivada. É porque ela está na lei e não
negada, a história dos movimentos é realizada que podemos demonstrar
é sua luta diária pela justiça e pela o quanto o Estado parece indispos-
transformação. to à sua concretização e como esse
Posso dizer, respondendo dire- mesmo Estado capitalista nos deve
tamente a pergunta, que o “peso” justificativas. Se a “cobrança” pela

Religiões do Mundo | De 10-08-2009 a 08-10-2009


dos movimentos sociais é maior que efetivação da lei inexoravelmente le-
o das “leis”, porque os movimentos gitima o Estado e as casamatas que o
não negam ou neutralizam a história, sustentam, também evidencia as con-
constroem-na. Os Direitos Humanos tradições - não eternamente suportá-
não estão na lei porque a lei é a lei, veis - desse Estado e do modo de pro-
simplesmente. Se tais direitos estão dução. Talvez, na atual conjuntura,
nas leis - e nem sempre nelas estão a maior contribuição dos movimentos
- é por conta de uma história de lutas sociais, em suas lutas pela afirmação
sociais que se consubstanciou numa de direitos, seja a de aprofundar as
determinada legislação. Contudo, é contradições do mundo em que vive-

Informações em www.ihu.unisinos.br
preciso evitar duas manifestações da mos, resistindo.
ingenuidade purista normalmente pre- A segunda ingenuidade citada, qual
sente em debates como este: a) a de seja, a de que os movimentos sociais
que a positivação de direitos neces- são absolutamente justos e livres de
sariamente constitui uma conquista e contradições, é tão repleta de ele-
b) a de que os movimentos sociais são mentos hegemônicos como a primeira.
absolutamente justos e livres de con- Os movimentos - como todos(as) nós,
tradições. inclusos numa realidade de domina-
Acerca da primeira delas, oriunda ção - são contraditórios e muitas ve-
do discurso liberal que mais ou me- zes reproduzem, por exemplo, fatores
nos inconscientemente nos forma, opressivos de discriminação presentes
nota-se certo caráter “evolucionista” no espaço social. Não há de se falar,
bastante funcional à manutenção das portanto, em qualquer “bom selva-
relações de dominação. Nela, vê-se, gem”. Nem sempre a “justiça alter-
equivocadamente, a história como nativa”, aplicada por um movimento
uma linha reta, de começo, meio e popular, constitui uma decisão “justa”
fim: primeiro, há pessoas oprimidas, segundo os princípios que orientam
depois elas se reúnem, então lutam os processos históricos de libertação
e conquistam direitos reconhecidos dos sujeitos oprimidos. Reconhecer as
pela legislação, e, assim, acabam contradições existentes nos movimen-
com a opressão. Dá-se, no entanto, tos sociais é fundamental, sobretudo,
que a absorção pelo Estado do “dis- para sua superação.
curso de justiça” afirmado pelos mo-
vimentos sociais funda-se, não rara-
mente, em “concessões de direitos” Leia mais...
sob o objetivo de garantir a manu-
tenção de relações de poder. O “di- >> Roberto Efrem Filho já concedeu ou-
tras entrevistas à IHU On-Line. O material está
reito” na “lei”, por mais que pareça disponível na nossa página eletrônica
justo, lá está envolto em negociações
materiais e simbólicas que mantêm Entrevista:
* “A” verdade jurídica é um monopólio. A trans-
os sujeitos oprimidos esperançosos ferência da política para o direito. Publicada na
para com o Estado, ao tempo em que edição número 266, de 28-07-2008, e disponível
legitimam o Estado como “democrá- no link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
tico”, ainda que as desigualdades e etalhe&id=1186&id_edicao=294;
opressões se aprofundem. Isso não * Veja criminaliza a política brasileira. Publicada
significa, porém, que eu esteja a des- na edição número 292, de 11-05-2009, e dispo-
nível no link http://www.ihuonline.unisinos.br/
considerar completamente as leis. É index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&t
porque a reforma agrária está na lei ask=detalhe&id=1606&id_edicao=320
que o Movimento dos Trabalhadores

SÃO LEOPOLDO, 24 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 305 21


Uma análise sociológica do direito
Na opinião de Lenio Luiz Streck, professor no PPG em Direito da Unisinos, a
Constituição incorporou em seu texto tudo aquilo que se queria nas décadas de
1970 e 1980. Hoje a luta é concretizar a Constituição e não buscar alternativas
a ela, defende ele

Por Graziela Wolfart

“N
esta quadra da história, não é mais possível colocar-se de forma ‘alternativa’
buscando um direito que ‘esteja na rua’ ou, simplesmente, no cotidiano. Vive-
mos sob a égide de uma Constituição democrática que, aliás, é prenhe em direi-
tos fundamentais”. A contundente opinião é do professor Lenio Luiz Streck, do
PPG em Direito da Unisinos. Ferrenho defensor da Constituição Federal, Streck
afirma, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, que a “luta atual é criar condições
para que a legalidade tenha um terreno fértil para produzir seus frutos. Ser crítico hoje é concre-
tizar a Constituição. Em outras palavras, não há mais como falar em direito achado na rua, direito
alternativo ou pluralismo jurídico. A Constituição é muito mais avançada que qualquer uma destas
bandeiras”.
Lenio Luiz Streck possui mestrado e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina. Atualmente, além de professor da Unisinos, é colaborador da Unesa e visitante da Universidade
de Coimbra; presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica; e membro da comissão per-
manente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Direito do Estado, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, her-
menêutica, constituição, jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Entre seus livros publicados
citamos Hermenêutica Jurídica E(m) Crise (8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) e Verdade
e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas - da possibilidade à necessidade de res-
postas corretas em direito (3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009). Seu site pessoal é http://www.
leniostreck.com.br/. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que podemos enten-


der por direito achado na rua? Qual
“Temos uma Constituição democrática
sua origem?
Lenio Streck - Trata-se de um movi-
compromissória que estabelece as condições para
mento e não uma teoria sobre ou do
direito. Seu criador foi o jusfilósofo
o resgate daquilo que venho chamando de promessas
Roberto Lyra Filho, jurista marxista,
que foi uma espécie de ícone das te-
incumpridas da modernidade”
orias críticas do direito na década de
1970.
de pensamento de esquerda. De todo Afinal, o corolário do movimento era
IHU On-Line - Qual a fundamentação modo, embora o próprio Roberto Lyra uma análise sociológica do direito,
filosófica do direito achado na rua? não admitisse, também havia, mor- com o que passavam a depender do
Lenio Streck - Penso que a principal mente nos seguidores do direito acha- ativismo judicial, criando, assim, um
influência filosófica seja a do mate- do na rua, uma pitada daquilo que, em parentesco com o direito alternativo.
rialismo dialético, temperado por al- teoria do direito, chamamos de “posi-
gumas das teses das teorias críticas tivismo fático” (por todos, Alf Ross). IHU On-Line - Que novas perspecti-
frankfurtianas, enfim, trata-se daqui- vas hermenêuticas da realidade e da
 Alf Niels Christian Ross (1899-1979) foi um
lo que, classicamente, era chamado jurista e filósofo dinamarquês, além de pro- como um dos fundadores do realismo jurídico
fessor de Direito Internacional. É conhecido escandinavo. (Nota da IHU On-Line)

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lei são apontadas pelo direito alter- do na rua e o direito alternativo, é que qualquer uma destas bandeiras.
nativo? possível responder que, nesta quadra
Lenio Streck - Você perguntou primei- da história, não é mais possível co- IHU On-Line - Quais os limites e en-
ro sobre o direito achado na rua. Ago- locar-se de forma “alternativa” bus- traves do direito achado na rua?
ra, pergunta sobre direito alternativo. cando um direito que “esteja na rua” Quais são as principais críticas feitas
Advirto, desde logo, que os dois mo- ou, simplesmente, no cotidiano. Vive- a ele?
vimentos tratam de coisas diferentes. mos sob a égide de uma Constituição Lenio Streck - A resposta a essa per-
Mais do que isso, os dois movimentos democrática que, aliás, é prenhe em gunta está entrelaçada com a da per-
possuem matrizes diversas, embora, direitos fundamentais. Para ser mais gunta anterior. Como disse, em nosso
como já dito, teleologicamente pos- simples: a Constituição incorporou, contexto atual, não faz mais sentido
sam apontar para a mesma direção, em seu texto, tudo aquilo que que- defender bandeiras como o direito
isto é, os fatos sociais é que deter- ríamos nas décadas de 1970 e 1980. achado na rua ou o direito alternati-
minam a normatividade. Na especi- Hoje a luta é concretizar a Constitui- vo. Isso pelo simples motivo de que
ficidade, o direito alternativo é um ção e não buscar alternativas a ela. temos uma Constituição democráti-
movimento – portanto, também não se Ou seja, para preservação das insti- ca compromissória que estabelece
trata de uma teoria sobre ou do direi- tuições democráticas – conquistadas a as condições para o resgate daquilo
to – político, surgido na Itália, nos anos tão duras penas – não cabe hoje falar que venho chamando de promessas
1970. Mas note-se: na Itália havia por em uma “legalidade alternativa” ou incumpridas da modernidade. Ora,
parte dos assim chamados “juízes al- em “pluralismo normativo”, como, nossa batalha atual passa pela con-
ternativos”, um ferrenho compromisso por exemplo, coisas velhas como o cretização dessas medidas que foram
com a Constituição, com o que usavam introduzidas pela Constituição que
o direito alternativo como uma “ins- representa o grande marco da lega-
tância normativa” contra o direito in- lidade. Não pela construção de espa-
fraconstitucional e, para isso, usavam
“Nossa batalha atual ços alternativos a ela. Pelo contrário,
a Constituição como um instrumento defender um tal posicionamento pode
de correção e filtragem. Já no Brasil,
passa pela enfraquecer as conquistas democráti-
no contexto em que surge o alterna- cas dos últimos anos, na medida em
tivismo, não tínhamos – propriamente
concretização dessas que, ao fim e ao cabo, tais posturas
– uma Constituição (lembro que vi- acabam por apostar demasiadamente
víamos sob a égide de um regime de
medidas que foram no poder dos juízes. É por isso que na
exceção, ditatorial). O movimento do última edição de minha obra Verdade
direito alternativo se colocava, então,
introduzidas pela e Consenso (Lumen Juris, 2009) pro-
como uma alternativa contra o status curo demonstrar a possibilidade e a
quo. Era a sociedade contra o Estado.
Constituição que necessidade de respostas corretas em
Por isso, em termos teóricos, era uma direito. Resposta correta entenda-se:
mistura de marxistas, positivistas fáti-
representa o grande adequadas à Constituição.
cos, jusnaturalistas de combate, todos
comungando de uma luta em comum:
marco da legalidade. IHU On-Line – Como entra nesse de-
mesmo que o direito fosse autoritário, bate a questão da democracia?
ainda assim se lutava contra a ditadura
Não pela construção Lenio Streck - Até 1988, aqueles que
buscando “brechas da lei”, buscando militavam em alguma corrente crítica
atuar naquilo que se chamam de “la-
de espaços alternativos do direito apostavam numa espécie
cunas” para conquistar uma espécie de “democracia judicial” pela qual se
de “legitimidade fática”. Achávamos
a ela” buscava fortalecer as posturas acio-
– e nisso me incluo – que o direito era nalistas acerca do direito. Em termos
um instrumento de dominação e da re- simples: na ausência de uma democra-
produção dos privilégios das camadas cia “de direito”, apostávamos na vi-
dominantes. Buscávamos, assim, tirar “direito da favela” de que falava Bo- vacidade dos fatos, na infraestrutura
“leite de pedra”. aventura de Sousa Santos. Nossa luta que determinasse a superestrutura. E,
atual é criar condições para que a le- portanto, queríamos que os juízes não
IHU On-Line - Em que medida o direi- galidade tenha um terreno fértil para fossem a “boca da lei”. Com a vitória
to achado na rua pode ser visto como produzir seus frutos. Ser crítico hoje da democracia, não é necessário mais
um instrumento de erradicação da é concretizar a Constituição. Em ou- fazer esse tipo de aposta. Aliás, se eu
pobreza e de redução das desigual- tras palavras, não há mais como fa- fosse fazer uma escolha, no atual mo-
dades? lar em direito achado na rua, direito mento, melhor mesmo é que os juízes
Lenio Streck - Considerando que há alternativo ou pluralismo jurídico. A sejam a “boca que pronuncia a Cons-
pontos comuns entre o direito acha- Constituição é muito mais avançada tituição”.

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