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ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA
Juliana K. M. Teixeira
Revisão técnica:
ISBN 978-85-9502-409-0
CDU 340.132.6
Introdução
A questão das lacunas do Direito é bem controvertida na doutrina. Aqui,
estudaremos o conceito de lacuna no ordenamento jurídico, as correntes
que a negam e as que a aceitam, a sua classificação, e faremos um breve
histórico sobre o assunto. Além disso, vamos ver quais são as formas de
superação dessas lacunas legais e os casos existentes na jurisprudência
que apontam a solução para o problema.
Non liquet é uma expressão advinda do Direito romano, aplicada nos casos em que o juiz
não encontrava nítida resposta jurídica para fazer o julgamento e, por isso, deixava de julgar.
Aliás, a discussão sobre a existência (ou não) de lacunas no Direito assume rele-
vância, basicamente, em dois aspectos: em primeiro lugar, a discussão é importante
para a própria dogmática jurídica, na medida em que a tese das lacunas serve
como forte entendimento norteador e, também, como sustentáculo ao Direito,
visto de maneira circular e controlado; em segundo lugar, serve igualmente como
argumento desmi(s)tificador do próprio dogma do Direito baseado no modelo
napoleônico, pois pode-se entender, sem dúvida, que, quando o juiz está autorizado/
obrigado a julgar nos termos dos art. 4º da LICC e art. 126 do CPC (isto é, deve
sempre proferir uma decisão), isso significa que o ordenamento é, dinamicamente,
completível, por meio de uma autorreferência ao próprio sistema jurídico.
As lacunas
As discussões sobre as lacunas no ordenamento jurídico surgiram ao final do
século XIX, após a Revolução Francesa, mediante a consolidação do liberalismo
e da teoria da separação dos poderes, elaborada por Montesquieu (OLIVEIRA,
1998). Trata-se da divisão efetiva e prática das funções dos detentores do poder,
evitando a sua concentração nas mãos de um único titular.
A divisão de composição do poder em uma pluralidade de agentes serviria
como proteção às liberdades individuais, evitando abusos e arbitrariedades —
afinal, o poder freia o poder. A partir de então, a lei passou a ser a principal fonte
do Direito e, diferentemente do que ocorreu durante o absolutismo monárquico,
verificamos a interdição do non liquet (sem causa), que era a possibilidade de
o juiz não apreciar o caso diante da ausência de norma. É que, sem a norma, o
problema jurídico não existiria (OLIVEIRA, 1998). Assim, chegamos à conclusão
que, diante da diversidade dos fatos sociais e da impossibilidade de a legislação
regular todas as condutas, surgiram as lacunas no ordenamento.
O assunto em questão causa controvérsia e a doutrina existente ainda não
conseguiu chegar a um consenso sobre o conceito de lacuna. Não há consenso
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 3
nem no ponto se elas existem ou não. Segundo Lemke (2005), lacuna da lei é
a ausência da norma legal. O autor cita Larenz, que expõe que lacuna significa
a ausência de uma regra determinada, que seria de se esperar no contexto
global daquele sistema jurídico (LARENZ apud LEMKE, 2005).
Partindo dessa ideia, a lacuna seria a inexistência de uma norma para
regular um caso concreto, o que significa o silêncio da lei. Lacuna significa
dizer que o Direito Objetivo não propõe uma solução para o desenrolar de
uma situação jurídica.
A autora Maria Helena Diniz (2007) ainda sustenta que apenas a lacuna
autêntica é uma lacuna jurídica propriamente dita, sendo a não autêntica apenas
uma lacuna política ou crítica.
Bobbio (1995) assim classifica as lacunas:
Por fim, Diniz (2007) menciona que, ante a consideração dinâmica do Di-
reito e a concepção multifária do sistema jurídico, que abrange um subsistema
de normas, de fatos e de valores, três são as principais espécies de lacunas:
A noção mais remota que se tem de lacuna repousa no período das ordálias, do
julgamento divino. O juízo das ordálias, prova judiciária praticada pelos antigos,
sobretudo no processo germânico, era feito com base em suplícios que recorriam
a elementos da natureza (teste da água fervente, do fogo da cruz, do ensacamento
com submersão no rio, do caminhar sobre brasas, etc.) e submetia o acusado à
força do acaso (interpretada como manifestação divina da inocência ou da culpa).
Ocorre que, embora o juízo das ordálias fosse utilizado tanto para suprir a prova dos
fatos como as regras jurídicas, nessa época não havia condições para tal distinção.
Sem ao menos uma diferenciação interna do sistema jurídico, sem a separação dos
domínios dos fatos e do Direito, a referência à ideia de lacuna está muito distante
da realidade que hoje conhecemos.
Interpretação
Betti (1969), ao abordar as lacunas dentro da sua obra Teoria geral do negócio
jurídico, impõe sentido ao estudo da occasio legis quanto aos seus efeitos mais
civis. Vemos, ao analisar a sua teoria, a diferença existente entre interpretação
ou valoração jurídica e interpretação ou integração do negócio.
A interpretação se presta a conferir coerência lógica à fórmula da
declaração ou à estrutura do ato em busca da ideia mais apropriada. Já
a interpretação integrativa, que veremos a seguir, incide sobre pontos
do regulamento de interesse que, embora não tendo sido abrangidos pela
fórmula, estão compreendidos na ideia que ela exprime e, por isso, estão
enquadrados no negócio.
Betti (1969) sustenta que é certo que entre a interpretação destinada a
esclarecer o significado objetivo e a integração com normas supletivas ou
dispositivas há o seguinte aspecto comum: ambas tomam por base a causa
do tipo abstrato do negócio em questão e aplicam, em conformidade com
ela, critérios deduzidos de fontes comuns, como a boa-fé (art. 1.366 e 1.375,
Código Civil italiano). Mas a interpretação pressupõe, conceitualmente, um
dado conteúdo do negócio concreto, quer explícito, quer implícito, uma ideia
(preceito) do negócio, expressa ou não com fórmula adequada. Pelo contrário,
a integração com normas supletivas ou dispositivas pressupõe, precisamente,
a falta de um preceito dedutível da fórmula, portanto uma lacuna não só
nessa, mas também na própria ideia (preceito), no regulamento de interesses.
Esse regulamento diz respeito não à ação típica ( fattispecie) do negócio, mas
unicamente aos seus efeitos. Ele é a própria integração dos efeitos.
Ainda, sustenta o jurista (BETTI, 1969), só é possível existir uma lacuna
com fórmula do negócio quando recorremos à interpretação integrativa, que
é a reconstituição da ideia concreta do negócio, decorrente do conteúdo lógico
e prático do negócio concreto — a presente correção se realiza por meio de
uma transformação da qualificação jurídica, chamada de precedência lógica
da interpretação.
Integração normativa
O art. 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) dispõe
quais são os métodos de integração normativa (BRASIL, 1942):
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 7
analogia;
costumes;
princípios gerais do Direito.
Colmatar significa aterrar, tapar fendas, fechar brechas, integrar o ordenamento jurídico,
daí falamos em integração ou colmatação normativa, como decorrência do princípio
geral de vedação ao non liquet, que significa que o juiz não pode deixar de julgar
sustentando lacuna ou omissão da lei.
Analogia
legal (legis), quando o juiz pega uma única lei que regula o caso parecido
e aplica-a por analogia;
jurídica (iuris), quando o juiz pega um conjunto de normas e aplica-o por
analogia diante da lacuna, não utilizando uma única lei como paradigma.
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 9
Costumes
moralidade;
igualdade de direitos e deveres frente ao ordenamento jurídico;
proibição do locupletamento ilícito;
função social da propriedade;
boa-fé.
12 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico
Ao preencher as lacunas, o aplicador da lei não cria Direito novo, apenas preenche o
Direito positivado in casu e desvenda as normas que implicitamente estão contidas
no sistema jurídico.
As lacunas só interessam no ato da aplicação do Direito, no momento da decisão
jurisdicional. O problema relacionado às lacunas só surge na prática, na aplicação, após
o ato interpretativo. Desse modo, para todos os efeitos, quando o juiz prolata uma
decisão de um caso cuja norma específica inexistia, ele está, sim, preenchendo lacunas.
Está sim solucionando a questão utilizando um dos métodos de integração jurídica.
Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a ana-
logia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige
e às exigências do bem comum.
Leituras recomendadas
ENGISCH, K. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
FERREIRA, F. G. B. Dos métodos de integração normativa e a superação parcial do art. 4°
da LINDB. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3837, 02 jan. 2014. Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/26203/dos-metodos-de-integracao-normativa-e-
-a-superacao-parcial-do-art-4-da-lindb>. Acesso em: 07 abr. 2018.
GOMES, M. F.; FREITAS, F. O. Lacunas no Direito. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII,
n. 75, abr. 2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.
php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7291>. Acesso em: 10 abr. 2018.
REALE, M. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
SOUZA, L. S. F. Lacunas no Direito. São Paulo: Enciclopédia jurídica da PUC-SP, 2017.
Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/159/edicao-1/lacunas-
-no-direito>. Acesso em: 07 abr. 2018.
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