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HERMENÊUTICA E

ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA

Juliana K. M. Teixeira
Revisão técnica:

Gustavo da Silva Santanna


Bacharel em Direito
Especialista em Direito Ambiental Nacional
e Internacional e em Direito Público
Mestre em Direito
Professor em cursos de graduação
e pós-graduação em Direito

E51h Eltz, Magnum Koury de Figueiredo.


Hermenêutica e argumentação jurídica [recurso
eletrônico ] / Magnum Koury de Figueiredo Eltz , Juliana
Kraemer Micelli Teixeira, Melissa de Freitas Duarte ;
[revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna]. – Porto Alegre:
SAGAH, 2018.

ISBN 978-85-9502-409-0

1. Direito – Filosofia. 2. Hermenêutica (Direito). I


Teixeira, Juliana Kraemer Micelli. II. Duarte, Melissa de
Freitas. III.Título.

CDU 340.132.6

Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin CRB -10/2147


A problemática das lacunas
no ordenamento jurídico
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Definir o que são as lacunas jurídicas.


 Apontar as formas de superação dos problemas das lacunas legais: a
integração e a interpretação.
 Identificar, na jurisprudência dos tribunais, quais são as soluções en-
contradas para o problema das lacunas do Direito.

Introdução
A questão das lacunas do Direito é bem controvertida na doutrina. Aqui,
estudaremos o conceito de lacuna no ordenamento jurídico, as correntes
que a negam e as que a aceitam, a sua classificação, e faremos um breve
histórico sobre o assunto. Além disso, vamos ver quais são as formas de
superação dessas lacunas legais e os casos existentes na jurisprudência
que apontam a solução para o problema.

Conceito e especificações de lacunas jurídicas


As lacunas no Direito são de interesse de todos os que o estudam, bem como
dos seus operadores. Existem teorias que se posicionam no sentido de negar
a existência dessas lacunas e outras que admitem a sua existência. Também
existem correntes que a aceitam e negam ao mesmo tempo. O assunto desperta
várias interpretações e respostas, dependendo das premissas que são analisadas.
O que não resta dúvidas é que o magistrado deve julgar, independentemente
de haver lacunas ou não, em função do princípio do non liquet.
2 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

Non liquet é uma expressão advinda do Direito romano, aplicada nos casos em que o juiz
não encontrava nítida resposta jurídica para fazer o julgamento e, por isso, deixava de julgar.

Os operadores do Direito, cedo ou tarde, podem se deparar com questões


cujas soluções não se encontram explicitamente no ordenamento jurídico.
Um dos escritores que aborda o tema é Lênio Streck (2007, p. 104-105), que
ressalta a importância da discussão em torno da existência ou não das lacunas:

Aliás, a discussão sobre a existência (ou não) de lacunas no Direito assume rele-
vância, basicamente, em dois aspectos: em primeiro lugar, a discussão é importante
para a própria dogmática jurídica, na medida em que a tese das lacunas serve
como forte entendimento norteador e, também, como sustentáculo ao Direito,
visto de maneira circular e controlado; em segundo lugar, serve igualmente como
argumento desmi(s)tificador do próprio dogma do Direito baseado no modelo
napoleônico, pois pode-se entender, sem dúvida, que, quando o juiz está autorizado/
obrigado a julgar nos termos dos art. 4º da LICC e art. 126 do CPC (isto é, deve
sempre proferir uma decisão), isso significa que o ordenamento é, dinamicamente,
completível, por meio de uma autorreferência ao próprio sistema jurídico.

As lacunas
As discussões sobre as lacunas no ordenamento jurídico surgiram ao final do
século XIX, após a Revolução Francesa, mediante a consolidação do liberalismo
e da teoria da separação dos poderes, elaborada por Montesquieu (OLIVEIRA,
1998). Trata-se da divisão efetiva e prática das funções dos detentores do poder,
evitando a sua concentração nas mãos de um único titular.
A divisão de composição do poder em uma pluralidade de agentes serviria
como proteção às liberdades individuais, evitando abusos e arbitrariedades —
afinal, o poder freia o poder. A partir de então, a lei passou a ser a principal fonte
do Direito e, diferentemente do que ocorreu durante o absolutismo monárquico,
verificamos a interdição do non liquet (sem causa), que era a possibilidade de
o juiz não apreciar o caso diante da ausência de norma. É que, sem a norma, o
problema jurídico não existiria (OLIVEIRA, 1998). Assim, chegamos à conclusão
que, diante da diversidade dos fatos sociais e da impossibilidade de a legislação
regular todas as condutas, surgiram as lacunas no ordenamento.
O assunto em questão causa controvérsia e a doutrina existente ainda não
conseguiu chegar a um consenso sobre o conceito de lacuna. Não há consenso
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 3

nem no ponto se elas existem ou não. Segundo Lemke (2005), lacuna da lei é
a ausência da norma legal. O autor cita Larenz, que expõe que lacuna significa
a ausência de uma regra determinada, que seria de se esperar no contexto
global daquele sistema jurídico (LARENZ apud LEMKE, 2005).
Partindo dessa ideia, a lacuna seria a inexistência de uma norma para
regular um caso concreto, o que significa o silêncio da lei. Lacuna significa
dizer que o Direito Objetivo não propõe uma solução para o desenrolar de
uma situação jurídica.

Classificação das lacunas


Podemos encontrar nas obras escritas sobre o tema várias classificações das
lacunas, com nomenclatura bem diversa. Nesse estudo, adotaremos as prin-
cipais classificações das lacunas.
Diniz (2007) sustenta que a mais antiga das classificações é a de Zitelmann,
que alega que as lacunas se dividem em autênticas e não autênticas:

 lacunas autênticas — ocorrem quando a lei não dispõe de resposta


para o caso concreto;
 lacunas não autênticas — ocorrem quando a lei não apresenta uma solu-
ção desejável para o caso concreto, considerando a solução insatisfatória.

A autora Maria Helena Diniz (2007) ainda sustenta que apenas a lacuna
autêntica é uma lacuna jurídica propriamente dita, sendo a não autêntica apenas
uma lacuna política ou crítica.
Bobbio (1995) assim classifica as lacunas:

 lacunas reais (iure conditio) — são as lacunas propriamente ditas;


 lacunas ideológicas ou impróprias (iure condendo) — aparecem com
o confronto entre o que é um sistema real e o que é um sistema ideal,
significando a ausência da norma considerada justa.

Existe ainda uma classificação na doutrina que diferencia as lacunas em


intencionais e não intencionais. As intencionais são as que o legislador, de forma
proposital, deixa em aberto e as não intencionais são aquelas que surgiram
ou porque o legislador não observou o Direito com a precisão necessária, ou
porque a matéria não existia na época que a norma foi elaborada.
Diniz (2007) afirma que a doutrina alemã distinguiu as lacunas em pri-
márias (ou originárias) e secundárias (posteriores ou derivadas). As primeiras
4 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

existem desde o surgimento da norma e as segundas são as que aparecem pos-


teriormente, decorrendo de modificações nos valores ou das situações de fato.
Lemke (2005) alega a distinção entre as lacunas normativas e as axiológicas:

 lacunas normativas — significam a ausência de solução no sistema;


 lacunas axiológicas — ocorrem quando existe uma regra insatisfatória
ou injusta na opinião do aplicador da decisão.

De acordo com ele, as normativas levam a uma interpretação praeter


legem, enquanto as axiológicas produzem uma interpretação contra legem
(LEMKE, 2005).
Perelman (2004) destaca a classificação das lacunas em:

 lacunas intra legem — são resultantes da omissão do legislador;


 lacunas praeter legem — são as lacunas criadas pelos intérpretes que
acreditam que determinada área deveria ser regida por uma disposição
normativa, quando não o é expressamente;
 lacunas contra legem — são aquelas que ocorrem quando o intérprete,
desejando evitar a aplicação da lei em dada espécie, restringem-lhe o
alcance, introduzindo um princípio geral que a limita.

Por fim, Diniz (2007) menciona que, ante a consideração dinâmica do Di-
reito e a concepção multifária do sistema jurídico, que abrange um subsistema
de normas, de fatos e de valores, três são as principais espécies de lacunas:

 normativa, quando tivermos ausência de norma sobre determinado caso;


 ontológica, se houver norma, mas ela não corresponder aos fatos so-
ciais (por exemplo, o grande desenvolvimento das relações sociais e
o progresso técnico acarretarem o ancilosamento da norma positiva);
 axiológica, no caso de ausência de norma justa, ou seja, quando existe
um preceito normativo, mas, se for aplicado, a sua solução será insa-
tisfatória ou injusta.

Ancilosamento é a perda da flexibilidade.


A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 5

Conforme foi dito, existem várias outras classificações, mas as mencionadas


nesse capítulo são as mais importantes para a compreensão do tema.
Assim, como podemos observar, a doutrina se divide em duas principais
correntes: a que afirma a inexistência de lacunas, com o argumento de que o
sistema jurídico forma um todo orgânico, o bastante para disciplinar todos
os comportamentos humanos, e a que defende a existência de lacunas no
sistema, que, por mais perfeito que seja, não pode prever todas as situações
de fato, que constantemente se alteram em razão dos reclamos sociais.
A existência ou não da lacuna está ligada diretamente à forma de conceber
o sistema. Em um sistema normativo como um todo ordenado, fechado e
completo, não há que se falar em lacunas. Por outro lado, em um sistema
jurídico aberto e incompleto, revelando o Direito como uma realidade com-
plexa, podemos falar na existência de lacunas quando é vislumbrado que
não há uma solução expressa para determinado caso. Nesse contexto, as
lacunas aparecem durante a análise de um caso concreto em que não há
normas expressas para resolvê-lo.

A noção mais remota que se tem de lacuna repousa no período das ordálias, do
julgamento divino. O juízo das ordálias, prova judiciária praticada pelos antigos,
sobretudo no processo germânico, era feito com base em suplícios que recorriam
a elementos da natureza (teste da água fervente, do fogo da cruz, do ensacamento
com submersão no rio, do caminhar sobre brasas, etc.) e submetia o acusado à
força do acaso (interpretada como manifestação divina da inocência ou da culpa).
Ocorre que, embora o juízo das ordálias fosse utilizado tanto para suprir a prova dos
fatos como as regras jurídicas, nessa época não havia condições para tal distinção.
Sem ao menos uma diferenciação interna do sistema jurídico, sem a separação dos
domínios dos fatos e do Direito, a referência à ideia de lacuna está muito distante
da realidade que hoje conhecemos.

Superação das lacunas: a integração


e a interpretação
Estudaremos a seguir as duas formas de superação dos problemas das lacunas
legais: a integração e a interpretação.
6 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

Interpretação
Betti (1969), ao abordar as lacunas dentro da sua obra Teoria geral do negócio
jurídico, impõe sentido ao estudo da occasio legis quanto aos seus efeitos mais
civis. Vemos, ao analisar a sua teoria, a diferença existente entre interpretação
ou valoração jurídica e interpretação ou integração do negócio.
A interpretação se presta a conferir coerência lógica à fórmula da
declaração ou à estrutura do ato em busca da ideia mais apropriada. Já
a interpretação integrativa, que veremos a seguir, incide sobre pontos
do regulamento de interesse que, embora não tendo sido abrangidos pela
fórmula, estão compreendidos na ideia que ela exprime e, por isso, estão
enquadrados no negócio.
Betti (1969) sustenta que é certo que entre a interpretação destinada a
esclarecer o significado objetivo e a integração com normas supletivas ou
dispositivas há o seguinte aspecto comum: ambas tomam por base a causa
do tipo abstrato do negócio em questão e aplicam, em conformidade com
ela, critérios deduzidos de fontes comuns, como a boa-fé (art. 1.366 e 1.375,
Código Civil italiano). Mas a interpretação pressupõe, conceitualmente, um
dado conteúdo do negócio concreto, quer explícito, quer implícito, uma ideia
(preceito) do negócio, expressa ou não com fórmula adequada. Pelo contrário,
a integração com normas supletivas ou dispositivas pressupõe, precisamente,
a falta de um preceito dedutível da fórmula, portanto uma lacuna não só
nessa, mas também na própria ideia (preceito), no regulamento de interesses.
Esse regulamento diz respeito não à ação típica ( fattispecie) do negócio, mas
unicamente aos seus efeitos. Ele é a própria integração dos efeitos.
Ainda, sustenta o jurista (BETTI, 1969), só é possível existir uma lacuna
com fórmula do negócio quando recorremos à interpretação integrativa, que
é a reconstituição da ideia concreta do negócio, decorrente do conteúdo lógico
e prático do negócio concreto — a presente correção se realiza por meio de
uma transformação da qualificação jurídica, chamada de precedência lógica
da interpretação.

Integração normativa
O art. 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) dispõe
quais são os métodos de integração normativa (BRASIL, 1942):
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 7

 analogia;
 costumes;
 princípios gerais do Direito.

Apesar dessa divisão, observamos no Direito contemporâneo uma pro-


funda alteração na teoria das fontes, o que gerou uma alteração no quadro
proposto. Atualmente, é reconhecida a eficácia normativa dos princípios e
da jurisprudência. Assim, o disposto no art. 4° da LINDB (BRASIL, 1942),
embora ainda vigente, encontra-se parcialmente superado, exigindo do
legislador a necessária diligência para a sua atualização, acompanhando o
avanço da ciência jurídica.
A norma jurídica não pode regular todas as situações possíveis e imaginá-
veis da convivência humana. Existem situações em que apenas é necessário
ao aplicador do Direito fazer a relação do fato concreto com a lei abstrata
e genérica, movimento a que damos o nome de subsunção. É possível que
ocorram situações em que tal construção não possa ser feita. Isso significa
que nem sempre a subsunção é aplicável a todas as situações jurídicas.
Quando tal situação ocorre, estamos diante de uma lacuna normativa, não
havendo lei prévia tratando do tema. A lei, nessa hipótese, é omissa, existindo
uma lacuna. Não existe a possibilidade de haver subsunção do fato à norma,
situação que se resolve por meio da integração normativa.
A integração normativa é totalmente o oposto do acontecimento de um
conflito entre normas que, em tese, são reguladoras de um mesmo fato. Na
integração normativa acontece o contrário, ou seja, não há conflito entre
normas, não há nenhuma norma a regular o fato. O que faz o juiz nesse caso?
Ele pode deixar de julgar o caso? Teríamos que aguardar a promulgação de
uma lei para saciar a lacuna existente?
A resposta, obviamente, é não. Existe no nosso ordenamento jurídico o
princípio da vedação ao non liquet, que significa a vedação ao não julgar. Um
exemplo é o art. 126 do Código de Processo Civil, que assim dispõe (BRASIL,
1973): “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou
obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais;
não as havendo, recorrerá à analogia, costumes e princípios gerais de direito”.
A partir dessa ideia, fica claro que o juiz tem o dever de julgar. Mas julgar
com base em que, já que não existe lei? Não havendo lei, o juiz deve aplicar
a integração ou colmatação normativa.
8 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

Colmatar significa aterrar, tapar fendas, fechar brechas, integrar o ordenamento jurídico,
daí falamos em integração ou colmatação normativa, como decorrência do princípio
geral de vedação ao non liquet, que significa que o juiz não pode deixar de julgar
sustentando lacuna ou omissão da lei.

Métodos de integração normativa


Assim estabelece o art. 4° da LINDB (BRASIL, 1942): “Quando a lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito”.

Analogia

Sabemos que os juízos, de valores gerais, oriundos da lei e do Direito Consue-


tudinário, devem sempre regular e dominar não só os casos a que respeitam,
mas também aqueles que apresentam uma configuração semelhante. A analogia
pressupõe a ideia de que o Direito é um sistema de fins (REALE, 2002).
Analogia significa que casos parecidos devem ser julgados de maneira
semelhante. Esse é o conceito. Consiste em aplicar à hipótese não prevista
especialmente em lei um dispositivo relativo a caso semelhante. Nesse caso, o
juiz amplia e estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos
na descrição legal, mas parecidos. Não se trata de interpretação extensiva,
caso em que existe lei subsumindo-se ao fato. A analogia ocorre quando,
não havendo lei que se subsuma à hipótese, aplicamos a lei de caso análogo.
A analogia pode ser dividida em:

 legal (legis), quando o juiz pega uma única lei que regula o caso parecido
e aplica-a por analogia;
 jurídica (iuris), quando o juiz pega um conjunto de normas e aplica-o por
analogia diante da lacuna, não utilizando uma única lei como paradigma.
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 9

Um exemplo de analogia iuris é a união homoafetiva. A ela aplicamos, por analogia,


todo o disciplinamento da união estável, não apenas a lei, mas todo o conjunto de
normas aplicadas por analogia ante a lacuna.

A analogia legis e a iuris são diferentes, sendo a primeira fundamentada


em um conjunto de normas e a segunda baseada em uma lei apenas.
A aplicação da analogia não é ilimitada, uma vez que no Direito Penal e no
Direito Tributário só é possível a integração por analogia in bonam partem, ou
seja, a favor da parte. Isso significa que não se pode aplicar a analogia indis-
criminadamente para preencher lacunas, principalmente no Direito Penal e no
Tributário, com relação à aplicação de penas, caso em que apenas é permitida
a analogia em benefício da parte, nunca para o seu prejuízo.

Costumes

Os costumes são a prática reiterada no tempo, que se acaba se tornando obri-


gatória. Eles possuem dois elementos: elemento objetivo (reiteração no tempo)
e elemento subjetivo (obrigatoriedade social). Por causa desses elementos, os
costumes não se confundem com a praxe administrativa. O costume exige
cumulativamente os requisitos objetivo (uso continuado) e subjetivo (convic-
ção generalizada da sua obrigatoriedade). Já na praxe administrativa ocorre
apenas o requisito objetivo. O costume, portanto, é fonte do Direito, método
de integração normativa, já a praxe administrativa não é.
Uma vez preenchidos os dois requisitos, surge o costume na sociedade.
Cabe frisar que as relações jurídicas, no seu nascedouro, eram tipicamente
consuetudinárias, baseadas nos costumes. Com o tempo, a lei tomou o pa-
pel principal e os costumes se tornaram secundários na hora de resolver os
conflitos sociais.
Os costumes são divididos em três modalidades:

 costumes secundum legem (segundo a lei);


 costumes praetar legem (ao lado da lei);
 costumes contra legem (contra a lei).
10 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

Os costumes secundum legem dizem respeito aos costumes segundo a lei.


A própria norma, por opção legislativa, ordena a aplicação dos costumes. Um
exemplo desse tipo de costume é o art. 113 do Código Civil (BRASIL, 2002), que
dispõe que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar da sua celebração. Porém, por estarem nesses casos expressos em
lei, não são considerados métodos de integração, mas a própria aplicação da lei.
Já os costumes praeter legem são os costumes ao lado da lei. Significam
que na falta da lei incidem no silêncio da norma. Esse conceito é o verdadeiro
método de integração pelos costumes. Um exemplo que podemos observar
no dia a dia é a questão do cheque pré-datado, que não é criação jurídica,
sendo títulos à vista, mas é costume a sua prática, de tal forma que o Superior
Tribunal de Justiça (STJ), na sua Súmula 370 (BRASIL, 2009), afirma que a
apresentação antecipada do cheque pré-datado caracteriza dano moral.
Já os costumes contra legem, por fim, ocorrem de maneira que contrariam o
que dispõe a lei. Podem ocorrer no desuso da lei, que passa a ser letra morta, e
quando o costume cria nova regra contrária à lei. Um exemplo é o jogo do bicho,
costume habitual na nossa sociedade, mas que é tipificado como uma contravenção
penal, sendo contrário à lei. Os costumes contra legem geram inúmeras discussões,
mas a doutrina majoritária entende como inadmissível no Direito brasileiro. Não
é admissível um costume que põe em desuso uma lei ou a ela é contrário.

No nosso ordenamento jurídico, é proibida a revogação da lei pelos costumes, seja na


hipótese de provocarem o seu desuso, seja no caso de serem contrários à lei. A fonte
primária prevalece, os meios de integração são acessórios. Obviamente, os costumes
contra legem não poderiam prevalecer, sendo atualmente inadmissíveis. Somente os
costumes secundum legem e praeter legem são aceitos, ressaltando que só o segundo
deles é visto como meio de integração.

Princípios gerais do Direito


Os princípios são as fontes básicas para qualquer ramo do Direito, com in-
fluência na sua formação e na sua aplicação. Podemos usar o conceito de
princípios que encontramos nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de
Mello (1988, p. 451), na sua memorável lição:
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 11

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro


alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas,
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão
e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o co-
nhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes
componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Os princípios constituem o fundamento maior de uma ciência jurídica e


possuem importância dentro dos vários campos do Direito, seja na elaboração
da norma legal ou na aplicação frente aos casos concretos, configurando ideias
informadoras da organização jurídica, reconhecida a sua eficácia normativa.
Quando ferimos uma norma, estamos ferindo um princípio daquele sistema,
uma vez que a norma, direta ou indiretamente, está embutida na sua essência.
Isso significa que os princípios devem ser a base de todas as atividades jurídicas
interpretativas, normativas, aplicativas ou integrativas.
Porém, os princípios, na sua origem, não tinham força de norma jurídica:
eram apenas normas de ordem moral ou política, uma sugestão, uma ideia a
seguir. No nosso país, até a Constituição Federal de 1988, os princípios jurídicos
não eram efetivos, uma vez que não eram reconhecidos como força normativa.
Também pela falta de vontade política de lhes conferir aplicação imediata e direta.
Com o passar do tempo, os princípios foram reconhecidos como normas com
eficácia jurídica e aplicabilidade direta e imediata, deixando de ser simples orien-
tações ou exortações morais, tornando-se ordens com efetividade e juridicidade.
Resumindo, os princípios gerais do Direito serão invocados quando não
houver lei ou costume aplicável ao ponto controvertido. Eles podem ser enten-
didos como regras consagradas na ciência do Direito; na maioria das vezes,
estão implícitos nas normas jurídicas. São exemplos de princípios contidos
no nosso ordenamento jurídico:

 moralidade;
 igualdade de direitos e deveres frente ao ordenamento jurídico;
 proibição do locupletamento ilícito;
 função social da propriedade;
 boa-fé.
12 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

Ao preencher as lacunas, o aplicador da lei não cria Direito novo, apenas preenche o
Direito positivado in casu e desvenda as normas que implicitamente estão contidas
no sistema jurídico.
As lacunas só interessam no ato da aplicação do Direito, no momento da decisão
jurisdicional. O problema relacionado às lacunas só surge na prática, na aplicação, após
o ato interpretativo. Desse modo, para todos os efeitos, quando o juiz prolata uma
decisão de um caso cuja norma específica inexistia, ele está, sim, preenchendo lacunas.
Está sim solucionando a questão utilizando um dos métodos de integração jurídica.

Soluções de lacunas na jurisprudência dos


tribunais superiores
A jurisprudência, segundo Paulo Nader (1988), é a coletânea de decisões
proferidas pelos juízes e tribunais sobre uma determinada matéria jurídica.
Essa coletânea de decisões é considerada uma fonte do Direito, principal-
mente no tocante da sua incidência juntamente com a lei. Etimologicamente,
“jus” (Direito) e “prudens” (prudente), “jurisprudente” (sábio do Direito), ela,
igualmente como fonte, surge no momento em que o Direito se emerge na
sociedade. Como afirmou o ilustre jurista Miguel Reale (2002), se uma regra
é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado,
não há como negar à jurisprudência a categoria de fonte do Direito. O magis-
trado, em suma, interpreta a norma legal situada em uma estrutura de poder,
que lhe confere competência para converter em sentença, que é uma norma
particular, o seu entendimento da lei.
Segundo Maximiliano (1995), a jurisprudência preenche as lacunas com
o auxílio da analogia e dos princípios gerais. É um verdadeiro suplemento de
legislação, instrumento importantíssimo e autorizado da hermenêutica, que
traduz o modo de entender e aplicar os textos em determinada época e lugar.
Ainda segundo o autor, o sistema jurídico se desenvolve externamente por
meio da lei, e internamente pela secreção de novas regras, produto da exegese
judicial das disposições em vigor (MAXIMILIANO, 1995).
Porém, não podemos negar que a lei é principal frente à jurisprudência.
Todavia, também reconhecemos que a lei apenas não é suficiente para realizar
uma aplicação, tornando imprescindível uma interpretação. Nesse momento,
temos a figura do juiz como destinatário da lei, que faz uma interpretação do
A problemática das lacunas no ordenamento jurídico 13

texto contido na norma e o adapta, com o intuito de facilitar o cumprimento


do que outrora fora estabelecido.
Com base nessas premissas, passamos à análise uma decisão de nosso
Tribunal Superior, que ajudou a construir a jurisprudência que hoje norteia
nosso ordenamento jurídico.

No Brasil, destacamos a situação existente antes da edição da Súmula Vinculante


nº. 13 (BRASIL, 2008), que aborda o tema do nepotismo.
Anteriormente, não havia proibição da nomeação de parentes para cargos em
comissão ou de confiança, ou ainda função gratificada na administração federal, sendo
prática comum no País. O fato de a pessoa nomeada ser cônjuge, filho, filha, irmão ou
irmã era irrelevante para o sistema normativo, mas era um aspecto importante, que
deveria ter sido levado em consideração no momento da edição da norma que trata
da nomeação para os referidos cargos. Com a edição da referida Súmula, a lacuna
axiológica foi preenchida.
A decisão celebre se fundamentou, principalmente, no princípio da dignidade
humana, na dimensão constitucional do afeto e no direito constitucional à busca
pela felicidade, que decorre, implicitamente, do núcleo de que se irradia o postulado
da dignidade.

REsp 1.183.378/RS, Relator(a): Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA


TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012. Súmula Vinculante nº 13:
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou porafinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou
de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia
ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança
ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta
em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a
Constituição Federal (BRASIL, 2012).

A jurisprudência opera na brecha existente entre o Direito e a lei, cabendo


ao jurista tentar construir da melhor forma possível o Direito por meio dessa
lacuna, fazendo com que a jurisprudência seja a ponte que conduza corre-
tamente os valores da sociedade, da lei promulgada pelo Estado à justiça
esperada por todos e ao bem comum. Cabe ao juiz seguir a lei, buscando a
justiça social, como aponta a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei
14 A problemática das lacunas no ordenamento jurídico

nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942), chamada por alguns doutrinadores de


“lei de introdução às leis” (BRASIL, 1942):

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a ana-
logia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige
e às exigências do bem comum.

Assim, chegamos à conclusão de que a palavra jurisprudência pode ser


empregada em sentido amplo, significando a decisão ou o conjunto de deci-
sões judiciais, e em sentido estrito, significando o entendimento ou diretiva
resultante de decisões reiteradas dos tribunais sobre um determinado assunto
(MACHADO, 2000).

BETTI, E. Teoria geral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra, 1969. t. 2.


BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
BRASIL. Decreto-Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas
do Direito Brasileiro. Brasília, DF, 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em: 08 abr. 2018.
BRASIL. Lei nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Brasília,
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Leituras recomendadas
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da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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