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XI Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq

Centro Universitário Ritter dos Reis

O herói burlador dos tempos da Kalevala à contemporaneidade

Regina da Costa da Silveira1

Marcos Lampert Varnieri 2

1. Introdução

A materialização de uma cultura, a criação de obras de arte, pictóricas, esculturais, musicais e


de modo especial as obras literárias, ocorre de forma assincrônica em todos os povos. Dos
remotos egípcios e sumérios, passamos aos clássicos ocidentais helênicos e latinos e pela sua
contraparte clássica oriental hindu e chinesa, acrescentando de modo exemplar os mitos
iorubás, como um dos muitos possíveis exemplos africanos, e das culturas ameríndias, sendo
uma das primevas a mesoamericana Olmeca, permaneceu como registro histórico a sua
produção cultural, trazida a luz em diferentes momentos históricos. Tais manifestações
corporificam o ideário coletivo; geram um conjunto de representações, ao tempo em que
atendem o imaginário da comunidade em dado momento, legado e reconstrução, agora com
apoio de Stuart Hall (2003), da tradição. Assim, não é surpresa o povo finlandês ter em sua
história uma vasta coleção de tradições expressas em poesia oral. O objetivo geral do projeto
de pesquisa “Literatura, imaginação criadora e concepções da natureza: animismo, ciência e
sociedade” é enfatizar processos de leitura com a análise de obras literárias, como a obra de
João Guimarães Rosa, Tutaméia Terceiras Estórias, e a épica finlandesa Kalevala. Quanto à
metodologia, trata-se de uma pesquisa de método qualitativo, seguida da comparação de
textos e análise que ofereça resultados para a compreensão do indivíduo na sociedade
contemporânea. O conceito de animismo, que comporta os mitos, é visto como concepção da
natureza que emerge na contemporaneidade, quando relacionado a ânsia humana. Sobre o
épico finlandês, sua leitura de modo comparatista à luz do itinerário do herói Don Juan ao
longo dos séculos ancora-se no conceito de animismo, primeira concepção da natureza que
congrega os mitos, como processo de interação na imaginação criadora e na caracterização do
mito dos heróis que prescrevem a história da humanidade. Motivado pelo ideário romântico do
resgate das raízes e da formação nacional baseada numa língua comum, o finlandês Elias
Lönnrot (1802-1884), folclorista, linguista, médico e botânico, compila em 1835, Kalewala, na
tradução de Orlando Moreira: O Poema Épico da Finlândia Kalevala. Esse clássico reúne em
sua segunda e definitiva versão (1849) cinquenta cantos. Tratados nesses cantos estão a

1
Professora Titular do PPG Letras Mestrado e Doutorado em Letras UniRitter E-mail:
regina_silveira@uniritter.edu.br
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Curso de Letras UniRitter marcoslampert@yahoo.com

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SEPesq – 19 a 23 de outubro de 2015
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criação do mundo, a plantação das primeiras árvores, a forjadura da esfera celeste, a tradição
musical do Kantele, a busca de um item (amuleto ora gigante ora minúsculos) mágico, o
Sampo. À semelhança dos demais épicos, a gesta conta com três heróis Väinämöinen, o sábio
bardo, Ilmarinen, o ferreiro, e Lemminkäinen, o guerreiro e sedutor, sem esquecer de vasta
catalogação da flora, da fauna e da geografia finlandesa. À diferença das epopeias citadinas,
Kalevala destaca-se pelo espaço rural e medieval em sua entreface Marjatta-Maria, ou seja, do
xamanismo politeísta ao monoteísmo cristão, do medievo ao cristianismo. O que é O Poema
Épico da Finlândia Kalevala? O épico Kalevala compõe-se de cinquenta Cantos, divididos em
oito ciclos, de acordo com o itinerário de seus personagens:
Ciclo 1 – Canto I ao X. Vainamoinen segue o itinerário que emerge da tradição do épico e da
cultura heroica. Trata-se de um xamã, vaïna (rio de fluxo lento) relacionado ao elemento água:
Calm Waters man (Homem de Águas calmas); o Adão da Finlândia: à diferença do barro, em
sua origem, Vainamoinen é proveniente das águas. Fundador da terra de Kalevala, duas vezes
procura esposa, mas falha. Sua magia como cantor determina a procriação: o kantele (cítara
tradicional finlandesa) e a recitação poética confere anima à natureza que procria.

Ciclo 2 – Canto XI ao XV – O primeiro dos dois ciclos do herói Lemminkainen, cuja origem
do nome provém de lempi, equivalente ao eros grego, é um aventureiro de muitos nomes,
qualificando em diferentes situações. Deixa a primeira esposa, Killikki, para cortejar a
dama anônima do Norte. Morto no submundo da Tuonela ou Manala (Hades, “descida aos
infernos”), é restaurado à vida pela insólita intervenção de sua mãe, figura singular,
denominada no texto apenas “a mãe de Lemminkainen”. Para a reconstituição do filho,
com um ancinho de ferro, a mãe retira os fragmentos conjura as forças da natureza:
hidromel, seiva do carvalho, deuses e passarinhos, e Suonetar, “a tecelã de veias” (p.
122).
Ciclo 3 – Canto XVI ao XXV – Segundo ciclo de Vainamoinen e sua disputa com o irmão
mais moço Ilmarinen para conquistar a inominada dama do Norte. Ilmarinen vence e
Vainamoinen é mestre de cerimônias no casamento do irmão.
Ciclo 4 – Cantos XXVI a XXX – Segundo ciclo de Lemminkainen. Excluído da lista de
convidados para o casamento do Ilmarinen, furioso, Lemminkainen, o Mente Errante,
contrariando as admoestações e súplicas maternas, ingressa na moradia da noiva e penetra na
festa, não sem antes passar por provas cruéis. Além dos bichos peçonhentos a quem persuade,
servem-lhe cerveja minada por vermes nocivos introduzidos na cerveja, entre outras
provações. Depara-se com o senhor da Pojola a quem enfrenta e derrota.
Ciclo 5 – Cantos XXXI a XXXVI – Kullervo é vendido como servo para Ilmarinen, após
disputa familiar, no lugar em que seu pai é morto pelo próprio irmão, tio de Kullervo. Este, por
sua vez, causa a morte da esposa de Ilmarinen, a inominada dama do Norte, que o havia
desdenhado por seu trabalho ínfimo de pastor. De modo involuntário, Kullervo envolve-se em
sedução com sua própria irmã, entra em conflito com seus parentes, é derrotado e se mata.

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Ciclo 6 – Canto XXXVII e XXXVIII – Ilmarinen, de Ilma , que significa céu ou ar. No épico
Kalevala, é o ferreiro, irmão e companheiro de Vainamoinen. Uma vez viúvo, serve-se de sua
arte para recriar em ouro a esposa perdida, mas é mal sucedido. Não obstante o físico perfeito,
a boneca dourada é desprovida de anima e não interage como mulher, do que resulta a rejeição
por parte do líder espiritual, poeta xamã Vainamoinen.
Ciclo 7 – Canto XXXIX a XLIX – Terceiro ciclo de Vainamoinen. O clímax do épico: os
homens da Kalevala navegam para a terra do Norte, com vistas a roubar o Sampo (pote “com
seu colorido tampo” (p. 88), o grande amuleto da fertilidade, gerador de sementes, antes
oferecido à Louhi, a senhora da Pohjola, mãe da inominada dama do Norte, como dote de
casamento da filha. Recuperado em seus fragmentos, o Sampo possibilita aos heróis
prosseguirem viagem em direção à Kalevala. Durante a viagem, as espinhas de um peixe do
tipo lúcio dão origem à cítara tradicional, o Kantele, do firme e velho Vainamoinen. Louhi, a
senhora da Pohjola, envia uma série de inimigos para vingar o roubo do Sampo. Os heróis
vencem todas essas provações, perdendo no entanto o Kantele.
Ciclo 8 – Canto L – A virgem Marjatta, uma palavra finlandesa correspondente à Maria ou à
Margarete é fecundada por uma frutinha e produz um filho diante do qual os céus se curvam.
Contrariado, Vainamoinen entrega a Finlândia para o Menino, filho de Maria, numa clara
alusão ao surgimento do cristianismo. Como um retorno às origens, Vainamoinen, o das águas
calmas, em seu fluxo lento de rio, abandona a terra da Kaleva encerrando a idade mítica da
Finlândia. Os muitos sedutores: No mundo inteiro, a ubiquidade do mito ocorre graças à
transposição da oralidade das lendas à literatura e daí para o cinema e para teatro. Para dar
conta da gênese e trajetória literária donjuanesca, lê-se no verbete “Don Juan”, pela Real
Academia Española, o significado de o “sedutor de mujeres”, conhecido também como “o
burlador”, “o conquistador”. No livro Kalevala, dentre a troica ou trinca de heróis fínicos
(finlandeses), é Lemminkäinen o que ecoa as aventuras amorosas desse lendário personagem,
o conquistador Don Juan. As encarnações literárias de Don Juan começam com Tirso de
Molina e seu O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra (1630); passando por Don Juan
ou o Convidado de Pedra (1665), de Molière, pela ópera de Mozart, Don Giovanni (1787),
LIBRETO. Com o Romantismo, é de 1813, o conto alemão de E.T.A Hoffmann, Don Juan: A
supernatural episode in the life of a traveling music lover (ou Don Giovanni), fonte de Edgar
Allan Poe e do gótico literário; segue-se o longo e inacabado épico satírico Don Juan (1821),
de Lord Byron; a comédia de dois atos sucintos de O Convidado de Pedra (1830), de
Alexandro Púchkin; o Don Juan de Marana ou La chute d’um ange (A queda de um anjo),
(1836), de Alexandre Dumas; ainda no Romantismo espanhol, Don Juan Tenorio (1844), de
José Zorilla; de volta aos franceses, Don Juan nos Infernos (1846), poema de Charles
Baudelaire. No início do século XX, 1907, o brasileiro Manuel Bandeira publica o soneto “D.
Juan” no livro A Cinza das Horas; em Portugal, José Saramago publica Don Giovanni ou o
dissoluto absolvido (2005). Importante verificar a influência da ópera na criação de Don Juan
em Hoffmann, em Púchkin e em José Saramago, em cujos textos é comum a figura do
personagem Leporello, o servo de Don Giovanni.
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Byron Dumas Pushkin Saramago Lönnrot

Obra Don Juan Don Juan de The Stone Don Giovanni Kalevala (1835)
(1819-1824) Marana (1836) Guest (1830) ou o dissoluto
absolvido
(2005)

Esposa/noiva ------------ Kyllikki

Seduzidas Dona Julia Carolina Inez Dona Elvira Virgens da Ilha


Juana Laura Dona Ana das Mulheres
Dona Anna Zerlina

Mãe Dona Inês ------------- Lempi

Pai Dom José Le Comte Dom Luis ----------

Companheiro Don Cristoval Leporello Leporello Tiera


Vainamoinen
Ilmarinen

Rival Don José (irmão) Dom Octávio

Antagonista Don Alfonso Comendador Louhi (Frio)


(estátua) Chapéu-
Molhado

Tabela Comparativa: Don Juan X Lemminkäinen


Em seu comentário introdutório à peça de Tirso de Molina, Ignacio Arellano (GUINSBURG,
2012, p.463) constata interpretações diversas acerca do conquistador: “Encarnação de
impulsos psíquicos; rebeldia contra a sociedade e contra a lei paterna; personagem edípica, que
em cada mulher procura a mãe, vingando-se do pai e da mãe que o abandonou; ou bode
expiatório que assegura a coesão social por meio de seu sacrifício.” O burlador é a primeira

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forma que toma Don Juan na literatura, pela pena do padre Tirso de Molina. Em sua obra, Juan
burla as regras para delas abusar, vale-se de sua condição de nobre e de sua inteligência para
seduzir e enganar nobres e camponeses. Seu ponto fraco, no entanto, é a honra, pois empenha
sua palavra diante da estátua reanimada do comendador, o que o levará à condenação final. Por
sua intransigência diante do arrependimento, encontra o fogo infernal, ao aceitar o convite de
cear com a estátua em sua capela. Na obra Don Juan Tenorio, de Zorilla, o pecador já tem
direito a absolvição, concedida pela figura santificada de Dona Inês, situação que lhe é
desfavorável, culminando com sua morte, tanto nos textos barroco, como no clássico e na
produção operística. A expressão “desce aos infernos” caracteriza os textos donjuanescos
posteriores, tais como o Don Juan, de Púchkin, e sobremaneira o de Baudelaire. Com o
protótipo de sedutor, o leitor encontra Don Juan mediante a figura feminina arrebatada ora
como mãe Dona Ana, ora como amante.
Conclui-se que o tema da sedução, na figura do sedutor e incorrigível Don Juan, habita o
imaginário coletivo e tomou forma no flaneur contemporâneo, exemplificado entre a multidão
dos shoppings, a caverna consumista, exemplificada por Saramago, a ânsia do desejo na
fabricação da boneca de ouro, forjada por Ilmarinen, o cobiçado Sampo pela abundância e
desperdício agrícola dos grandes supermercados... Emblemáticas são, em diferentes épocas,
as atitudes específicas da sedução nos relacionamento interpessoais pelo uso da linguagem
corporal, fato que na contemporaneidade estende-se, como se vê, aos objetos, com promessas
quase sempre de ludíbrio para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Manuel. Dom Juan. Poesia completa e prosa: volume único. 4. ed. Rio de
Janeiro: ova Aguilar, 1993.
BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal. Paris: Gallimard, 2013.
BYRON, Lord. Don Juan. London: Penguin, 2004.
GUINSBURG, J.; CUNHA, N. (Org.). Teatro espanhol do século de ouro. São Paulo:
Perspectiva, 2012.
HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Orga. Liv Sovik; trad.
Adelaide Resende et all. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
LÖNNROT, E. Kalevala. Tradutor: MOREIRA, O.; Lisboa: Ministério dos Livros, 2007.
MOLIÈRE. Don Juan. São Paulo: Hedra, 2010.
SARAMAGO, José. Don Diovanni. Lisboa: Caminho, 2005.
ZORILLA, J. Don Juan Tenorio. Madrid: Cátedra, 2013.

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