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JORGE LUÍS PINTO RODRIGUES

IMPRESSÕES DE IDENTIDADE:
Histórias e Estórias da formação da imprensa gay no Brasil
Tese de Doutorado

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


Centro de Estudos Gerais
Instituto de Letras
Doutorado em Letras

Fevereiro de 2007
JORGE LUÍS PINTO RODRIGUES

IMPRESSÕES DE IDENTIDADE:
Histórias e Estórias da formação da imprensa gay no
Brasil

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como parte dos requisitos para a obtenção do grau
de Doutor em Letras (Área de Concentração:
Estudos Literários. Subárea: Literatura Comparada).

Orientador: Mário César Lugarinho

Niterói, RJ
Fevereiro de 2007
JORGE LUÍS PINTO RODRIGUES

IMPRESSÕES DE IDENTIDADE:
Histórias e Estórias da formação da imprensa gay no Brasil

Tese de Doutorado

Niterói, 14 de fevereiro de 2007.

BANCA EXAMINADORA

MÁRIO CÉSAR LUGARINHO


Presidente – Orientador - Universidade Federal Fluminense

LUIS ANTÓNIO LUZIO COELHO


Co-Orientador – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

ELIANE BORGES BERUTTI


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

BRUNO SOUSA LEAL


Universidade Federal de Minas Gerais

EMERSON DA CRUZ INÁCIO


Universidade de São Paulo

ALDO VICTORIO FILHO


Suplente - Universidade do Estado do Rio de Janeiro

WILTON GARCIA
Suplente – Universidade Anhembi-Morumbi
Ao movimento homossexual brasileiro,
e especialmente ao
Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual.
AGRADECIMENTOS

P rimeiramente, à Secretaria da Universidade Federal Fluminense, e especialmente à


Srta. Nelma, que agüentou minha desorganização burocrática.
Esta pesquisa não seria possível sem a colaboração de Nelson Feitosa, Sylvio de Oliveira,
Dolores Rodrigues, Adão Iturrusgarai, André Villas-Boas, Felipe Taborda e Antonio Moreira, que
gentilmente me concederam um pouco do seu tempo para as minhas entrevistas. Muito obrigado.
Ao Sidney e a Paulinha, estudantes da UFF, meus assistentes no levantamento dos dados.
Ao Toni Faria, pela revisão e dicas.
As minhas irmãs, Laide, Malu e Calu, por tudo.
Um muito obrigado especial ao Prof. James Green, que orientou meus caminhos durante
minha estadia na Brown University. Muito obrigado mesmo!
A Jim Van Buskirk, diretor do Centro Gay e Lésbico da Biblioteca Pública de San
Francisco.
A todo o staff do One Archives, em Los Angeles, principalmente a Ashley.
Ao casal Bob e John, pelo carinho e estadia em Boston.
A Ney Fonseca, que deixou que eu dormisse no sofá da sala, enquanto em pesquisa no One
Archive.
A Darien Davies, diretor do Latin American Departament da Faculdade de Milddlebury,
que me convidou fazer uma palestra sobre a Música Popular Brasileira.
A Adalia Selket, que me hospedou e aturou meu banzo durante meu tempo em San
Francisco.
A Franklin Cabral e André Faria, que quando eu achava que não agüentava mais o frio, me
mostraram uma Nova York quente.
Ao meu querido John McCarthy, por ter me ajudado muito a chegar até aqui.
E gostaria de fazer um agradecimento especial ao meu amigo Aldo Victorio, pela confiança
e lealdade de tantos anos. Ao Prof. Luiz Antonio Luzio Coelho, que muito me ajudou na minha
carreira acadêmica e foi responsável pela minha vinda para a UFF, e, claro, ao Prof. Mario César
Lugarinho, meu orientador, que só ele e mais ninguém dirigiu horas para ir até Jacarepaguá nos
meus momentos de desespero, e que soube com sua simpatia me acolher e me incentivar quando
por muitas vezes me senti inseguro no Departamento de Letras. Muito obrigado, mil vezes!
E, por último, à Capes, pelo apoio financeiro durante toda a pesquisa, e pela oportunidade
de realizar parte dela nos EUA.
RESUMO

RODRIGUES, Jorge P. IMPRESSÕES DE IDENTIDADE: Histórias e estórias da formação da


imprensa gay no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense/Programa de Pós-graduação

em Letras, 2007.

Este trabalho é resultado da pesquisa sobre as “Impressões de Identidade”


recolhidas em alguns periódicos da imprensa gay do Rio de Janeiro. Partindo de uma

perspectiva interdisciplinar, a tese faz um estudo comparativo entre a linguagem

verbal (os textos das matérias) e a linguagem visual (os elementos gráficos que

compõem a página) desses periódicos, para, a partir deles, ler as histórias e estórias

da construção de diferentes identidades gays. Para trabalhar a literatura e design, o

eixo da pesquisa foi estruturado tendo por base os Estudos Culturais, ampliando a

questão da interdisciplinaridade entre áreas. O design é uma linguagem que funciona,

no processo de comunicação, como emissor, cuja enunciação se compõe de relações

ontológicas, históricas, atributos simbólicos, materiais, técnicos, etc. Foram analisados

quatro periódicos: o jornal Lampião da Esquina, lançado em 1978, que foi o primeiro

periódico distribuído nacionalmente; o jornal Nós por Exemplo, o único periódico

que abordou a Aids e suas questões para o leitor gay; o jornal ENT& que, apesar da

vida curta, foi significante para esta pesquisa; e, por último, a revista Sui Generis, que

divulgou o conceito GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) e trouxe grandes mudanças

no campo do design gráfico. Fizemos um estudo comparativo entre o que o texto

“faz ver” e o que a imagem “dá a entender” para delinear o projeto/design do

regime representativo de um determinado momento histórico e cultural. Tanto quanto

narrar a situação social e política de um grupo em determinada época, jornais e

revistas de temática libertária indiciam as concordâncias que formulam o design

identitário desse grupo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada, homossexualidade e imprensa.


ABSTRACT

RODRIGUES, Jorge P. IMPRESSIONS OF IDENTITY: History and Stories of the development


of the gay press in Brazil. Niterói: Universidade Federal Fluminense/Graduate Program in Literature,

2007.

This work is the result of research on “Impressions of Identity” gathered


from a number of periodicals of the gay press in Rio de Janeiro. Taking an

interdisciplinary view, the thesis makes a comparative study between the verbal

language (texts and articles) and the visual language (graphic elements that make up

the pages) of these periodicals. From there, it reads the history and the stories of

the construction of different gay identities. To deal with literature and design, the

axis of the research was structured based on Cultural Studies, widening the subject

of interdisciplinarity between areas. Design is a language which functions in the

process of communication as an emitter whose enunciations are composed of

ontological and historical relationships, symbolic, material and technical attributes,

etc. Four periodicals were analyzed: the newspaper Lampião da Esquina, launched

in 1978, was the first nationally-distributed periodical; the newspaper Nós por

Exemplo, the only periodical which discussed AIDS and related concerns with a gay

readership; the newspaper ENT& which, in spite of its short life span, was significant

for this research; and finally the magazine Sui Generis which popularized the concept

of GLS (Gays, Lesbians and Sympathizers) and introduced great changes in the

field of graphic design in the gay press. I made a comparative study between what

the text “makes us see” and what the image “leads us to believe” to delineate the

design project of the representational regime of a specific historical and cultural

moment. Not only do they narrate the social and political situation of a group at a

certain time, but libertarian newspapers and magazines indicate the agreements which

formulate the identity design of that group.

KEYWORDS: Comparative Literature, homosexuality and press


RESÚMEN

RODRIGUES, Jorge P. IMPRESIONES DE IDENTIDAD: Historias de la formación de la prensa


gay en Brasil. Niterói: Programa de Pós—graduação em Letras/ UFF,2007.

Este trabajo es el resultado de la investigación sobre las “Impresiones de


Identidad” recogidas en algunos periódicos que forman parte de la a prensa gay de
Río de Janeiro.
Partiendo de una perspectiva interdisciplinaria, la tesis se realizó como un
estudio comparativo entre el lenguaje verbal (los escritos que forman los temas) y el
lenguaje visual (los elementos gráficos que componen la página) de esos periódicos,
y, a partir de éstos, leer las historias y estórias* de la construcción de las diferentes
identidades de este grupo.
Para abordar la literatura y el design, el tema central de la investigación fue
estructurado teniendo como base los Estudios Culturales, ampliando la cuestión de
la interdisciplinaridad entre áreas. El design es un lenguaje que funciona, en el proceso
comunicativo, como emisor, cuya enunciación se compone de relaciones ontológicas,
históricas, atributos simbólicos, materiales, técnicos etc.
Fueron analizados cuatro periódicos: el diario Lampião da Esquina, lanzado
en 1978, fue el primer periódico distribuido nacionalmente; el diario Nós por
Exemplo, el único periódico que abordó el SIDA (Síndrome de Inmunodeficiencia
Adquirido) y sus cuestiones, dirigidas al lector gay; el diario ENT& que, a pesar de
su corta vida, fue significante para esta investigación; y por último, la revista
SuiGeneris, que divulgó el concepto GLS (Gays, Lesbianas y Simpatizantes) y trajo
grandes cambios relacionados al campo del diseño gráfico.
Realizé un estudio comparativo entre lo que el texto “hace ver” y lo que la
imagen “da a entender” para delinear el proyecto/ design del régimen representativo
de un determinado momento histórico y cultural.
Además de narrar la situación social y política de un grupo en determinada
época, diarios y revistas de temática liberadora son indicadores de las concordancias
que formulan el design de la identidad de este grupo.

PALABRAS-LLAVE: Literatura comparativa, homosexualidad y prensa

*
NT. La traducción al
español de este término
es “historias”
Sumário

INTRODUÇÃO 11
1.A LITERATURA COMPARADA E O DESIGN GRÁFICO COMO ESPAÇO PLURAL 14
2. OS LEITORES E SUAS DIFERENTES IDENTIDADES 18
3.ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS 21

CAPÍTULO I - PRIMÓRDIOS DA IMPRENSA GAY NOS EUA E NO BRASIL 21


1.1 A IMPRENSA GAY NOS ESTADOS UNIDOS 27
Vector 33
Advocate 36
1.2 A IMPRENSA NO BRASIL 40
A imprensa nanica 42
1.3 CULTURA E CIVILIZAÇÃO, ELAS QUE SE DANEM, OU NÃO 44
1.4 SURGE UMA IMPRENSA GAY NO BRASIL 55

CAPÍTULO II - O PRIMEIRO LAMPIÃO É ACESO 63


2.1 NASCE UMA CULTURA GAY ORGANIZADA (?) 66
2.2 UM LAMPIÃO NA ESQUINA 67
O número zero do Lampião 69
De cabo a rabo 73
Pelas esquinas do jornal: a linguagem verbal 79
A primeira impressão é a que fica 95
O contorno do Lampião: a linguagem gráfica 102
As capas 112
2.3 ACABOU O GÁS. O LAMPIÃO SE APAGOU. 117

CAPÍTULO III - O PRAZER TORNOU-SE RISCO DE VIDA 122


3.1 NÓS, POR EXEMPLO 125
O número 1 127
Nós somos apenas vozes 130
Nós somos apenas nós 134
3.2 CODINOME BEIJA-FLOR 142
3.3 UM NOVO ENTENDIDO 151
CAPÍTULO IV - GRAN LUXO SUPER 157
4.1 WE ARE QUEER, WE ARE HERE 163
4.2 UMA REVISTA SUI GENERIS. 168
Força na patolada 170
Ousadia indispensável 179
4.3 KILJ OU VORTEX 183
4.4 VER MAIS LONGE 198
4.5 ARTE FINAL 201
CONCLUSÃO 205
BIBLIOGRAFIA 210
Introdução
11

Resposta
Letra e música: Maysa

Ninguém pode calar dentro em mim


Essa chama que não vai passar
É mais forte que eu
E não quero dela me afastar
Eu não posso explicar como foi
E como ela veio
E só digo o que penso
Só faço o que gosto
E aquilo que creio
Se alguém não quiser entender
E falar, pois que fale
Eu não vou me importar com a maldade de quem nada sabe
E se a alguém interessa saber
Sou bem feliz assim
Muito mais do que quem já falou ou vai falar de mim

Introdução
E m 1982 tive a oportunidade de assistir à Parada do Orgulho Gay da cidade

de San Francisco. Era minha primeira viagem àquela cidade e para fora do Brasil. 12

Lembro-me que um sentimento de alegria misturado a uma euforia me deixaram

perplexo perante ao que via e ouvia. Era uma liberdade que eu não conhecia. Milhares

de gays e lésbicas, respeitando suas diferenças, marchavam com um orgulho que eu

me esforçava para compreender.

Anos depois, em 1995, eu fiz parte da organização da 17ª Conferência

Internacional de Gays e Lésbicas no Rio de Janeiro. Centenas de gays e lésbicas de

várias partes do Brasil e do mundo se reuniram durante oito dias em um hotel de

Copacabana para discutir suas formas e estratégias de luta pela igualdade de direitos

em diferentes partes do mundo. Na solenidade de abertura da Conferência, num

salão tomado de homens e mulheres de diferentes gerações por todos os cantos, a

mesma emoção que tinha conhecido 13 anos antes envolvia-me novamente. Só que

naquele momento, liberdade e orgulho eram palavras que já conhecia e compreendia.

Em 2003 entrei para o programa de Pós-graduação do Departamento de Letras

da Universidade Federal Fluminense, no qual comecei a pesquisar um assunto que

me é muito próximo – os periódicos da imprensa gay. Como o tema faz parte da

minha vida, não me coloco apenas como pesquisador, mas também como sujeito

dessa história. Conforme afirmam Lüdke e André:


É igualmente importante lembrar que, como atividade humana e social,
a pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga de valores, preferências,
interesses e princípios que orientam o pesquisador. Não há, portanto, a
possibilidade de se estabelecer uma separação nítida e asséptica entre o
pesquisador e o que ele estuda e também os resultados do que ele estuda.
(Lüdke & André, 1986: 35).

Em 2005, voltei à Califórnia, desta vez em função da minha bolsa sanduíche

concedida pela Capes. Durante minha estadia na Brown University, meu orientador,

Prof. James Green, aconselhou-me a visitar e a pesquisar em dois locais muito

importantes para a história do movimento GLBT americano: A Biblioteca Pública

de San Francisco, onde se encontra o The James C. Hormel Gay and Lesbian Center; e o

One National Gay and Lesbian Archives, localizado em Los Angeles e afiliado à University

Introdução
of Southern California.

O One tem o maior acervo de publicações GLBT. Lá entrei em contato com 13


um surpreendente volume de informações sobre a história gay. Centenas de

publicações, que vêm sendo publicadas ao longo das últimas cinco décadas, abordam

os mais variados conteúdos. O arquivo guarda desde trabalhos acadêmicos até

publicações de cunho pornográfico.

Los Angeles, e mais precisamente West Hollywood (uma pequena cidade dentro

da grande Los Angeles), é uma espécie de “Oz” para a comunidade gay. Assim

como San Francisco, Amsterdam e outras cidades do mundo, os gays e lésbicas

desfrutam de benefícios em W. H. que em outras partes ainda estão brigando para

conseguir. Durante esta viagem pude entender claramente a supracitada afirmação

de Lüdke e André.

A pluralidade de identidades na cidade pode ser vista nas várias capas das

publicações expostas numa loja do Boulevard Santa Mônica (ver fotos a seguir).

Existem, hoje, nos Estados Unidos, mais de


Estande de revistas GLBT de uma loja no
55 diferentes periódicos para a comunidade Santa Mônica Boulevard, Los Angeles.

GLBT vendidas em bancas. Além destes,

existe um outro tipo de publicação: os periódicos que são distribuídos gratuitamente.

Essas publicações são encontradas em cafés, bares e em alguns restaurantes. O grande

número de anunciantes faz com que a publicação sobreviva sem precisar do assinante

Introdução
ou do comprador esporádico. Já encontramos no Rio de Janeiro alguns jornais feitos

dessa maneira. Como lá fora, os jornais aqui são distribuídos em pontos específicos 14
freqüentados por homossexuais.

No Brasil e no Rio não temos uma imprensa gay como a dos Estados Unidos.

Apesar de já ter sido há 28 anos o lançamento da primeira publicação gay brasileira,

o investimento nesta área é ainda muito parco. Compreendo como imprensa gay as

publicações periódicas que orientam sua linguagem verbal, assim como a linguagem

gráfica, para leitores que se identificam como homossexuais. Assim como uma

“imprensa afro” congregaria publicações dirigidas as pessoas que se identificam como

afro-descendentes.

Esta pesquisa resulta de um enredamento de vários interesses meus, tanto no

plano intelectual, como no afetivo. Minha formação e atuação profissional é de

designer, e no campo do design tenho especial interesse pelos objetos produzidos

pela cultura de massa. Minha formação e atuação cidadã, por outro lado, me levou a

participar do início do movimento homossexual brasileiro. Fui integrante do Grupo

Somos-Rio e do Grupo Auê. Estive presente no primeiro Encontro Nacional de

Grupos Gays e Lésbicas, que aconteceu em São Paulo, em 1980, e fui um dos

fundadores do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, grupo que desde

1993 trabalha pelos direitos de gays e lésbicas. Desta forma, sinto-me próximo e à

vontade para investigar os discursos apresentados nas publicações dirigidas ao público

homossexual na, por vezes tímida, mas expressiva, imprensa gay carioca.

1. A Literatura Comparada E O Design Gráfico Como Espaço Plural

Karl Erik Schollhammer nos diz que:


O campo da Literatura comparativa é um “campo expandido” que
continua abrindo-se para outras áreas, outras disciplinas e para um leque
de temas não estritamente literários, recolhidos às vezes sob o rótulo de
“Estudos Culturais”, que cruzam as fronteiras tradicionais entre as
ciências humanas, sociais e exatas (2001: 28).

A partir desta afirmação, pergunto: Como situar o design neste campo? Eu

acredito que a própria natureza do objeto propicia esta inserção. Um periódico é

Introdução
feito de textos e imagens – elementos textuais e não-textuais – que obedecem a um

ordenamento estético-formal determinado pelo designer. O design gráfico cumpre, 15


assim, seu papel de promover uma espécie de interlocução, um diálogo entre o objeto

e o usuário. Gustavo Bomfim nos diz que “o design é uma práxis que confirma ou

questiona a cultura de uma determinada sociedade” (2000: 150). Impossível negar

que vivemos hoje numa sociedade cada vez mais dominada pela cultura da imagem.

Nos diferentes aspectos da “aldeia global”, a cultura visual é de extrema importância.

Conforme afirma Maurizio Vitta:


The object in our system is at the same time a sign of social identification,
a communication instrument, a use-image, an oppressive simulacron, a
fetish, and a tool, design cannot help but be an instrument of social
analysis, an area of intervention in everyday life, a language, a fashion, a
theory of form, a show, a fetishism, a merchandise (1989:35).1

E quem do mundo da cultura material sintetiza todos esses atributos se não os

periódicos! Angela Mc Robbie, analisando Jackie, uma revista para adolescentes

femininas dos anos 70, diz que a revista “is a system of messages, a signifying system

and a bearer of a certain ideology, an ideology which deals with the construction of

a teenage femininity” (1991: 82). A revista, segundo a autora, “operates to win and

shape the consent of the readers to a particular set of values”2 (idem).

Acompanho o pensamento de McRobbie e estendo sua afirmação para as

revistas segmentadas para o público gay. Os periódicos dirigidos às questões

homoeróticas também espelham as dúvidas, lutas e valores desta comunidade. E

acredito que os periódicos façam parte da rede de informação de grande parte da

comunidade gay que vive ainda clandestinizada, de certa forma invisibilizada no dia-

a-dia da sociedade.

As histórias e estórias desses periódicos, além dos processos de criação das

possíveis identidades do sujeito, serão a investigação que nosso trabalho pretende

realizar sobre a imprensa dirigida ao público gay. A investigação das tensões forma/

conteúdo de alguns importantes periódicos gays terá como elemento central o próprio

design identitário formulado por e para esses grupos.

Em grande parte do planeta, os anos 1960 foram marcados pela emergência

Introdução
dos movimentos sociais das minorias – mulheres, negros e homossexuais –, cada

qual à sua moda, ou melhor, criando suas formas, lutando para afirmar sua cidadania. 16
Os homossexuais, que até então viviam suas vidas invisíveis para a sociedade e isolados

dentro da sua própria comunidade, passam a exibir um novo padrão histórico de

homossexualidade. Gays e lésbicas iniciam um movimento de emancipação como

forma de negar a posição inferior que a sociedade hegemônica lhes tinha reservado.

Este novo movimento acabou por constituir uma nova “cultura gay”.

Este trabalho pretende averiguar os desdobramentos da cultura gay, que toma

vulto a partir dos anos 70, refletidos nas publicações periódicas que trataram e tratam

de suas questões e que surgem no Brasil a partir do fim daquela década. Pretendi

documentar a formação desta imprensa específica e observar a relação entre a

ideologia expressa no discurso verbal destes periódicos e no discurso gráfico

apresentado em suas páginas.

O levantamento desses objetos é necessário à pesquisa por propiciar uma

maior compreensão da possível construção de uma identidade gay nacional e da

história da imprensa gay no Brasil. Para a análise do discurso (linguagem) verbal,

recorri aos editoriais e, em alguns casos, às reportagens; para analisar o discurso

(linguagem) gráfico, abordo o design gráfico desenvolvido para os periódicos e as

mudanças visuais ocorridas ao longo da sua existência, aqui apoiado na idéia

barthesiana de que “a imagem se transforma numa escrita, a partir do momento em

que é significativa (...) Entender-se-á...(...) por linguagem, discurso, fala, etc., toda a unidade

ou toda a síntese significativa, quer seja verbal ou visual” (Barthes, 1993: 132-3. Grifo do

autor).

Há muito se discute a homossexualidade de diferentes formas e com múltiplas

abordagens. Gostaria de poder contribuir para esta discussão com este novo viés

dado pela a união do design com a literatura. Dentro dos “novos movimentos sociais”

que emergiram durante os anos 1960, o movimento gay foi aquele que talvez mais

dificuldades teve para se estabelecer, ou nas palavras de Stuart Hall (2000), encontrar

sua “política de identidade – uma identidade para cada movimento”. Como em toda

forma de legitimação, foi necessário criar todo um aparato de valores, idéias e

Introdução
discursos. E os periódicos, dentre as várias formas de mídia da sociedade moderna,

levam estas informações de forma direta e acessível. 17


Não temos dúvida de que a imprensa desempenha um papel muito importante

na sociedade. Como nos dizem Woer e Gregorius: “The printed medium makes our

affiliation visible. Many people display their favorite magazine on coffee tables to

signal their attitudes to others” (1998: 25).3 Ainda podemos ver os periódicos como

contadores de estórias (storytelling). Aqueles que recriam o mundo para o leitor e

criam um senso de comunidade.

Parafraseando Schollhammer, minha abordagem se situa na relação entre o

que o texto “faz ver” e o que a imagem “dá a entender” para delinear o projeto/

design do regime representativo de um determinado momento histórico e cultural.

O design desempenha também um papel de tradutor e mantenedor da sociedade na

qual ele se inscreve. O designer italiano Alberto Alessi fala que o design tende mais

para a arte e poesia do que tecnologia e mercado (apud Couto & Oliveira, 1999). Na

nossa sociedade os objetos assumem cada vez mais o papel de interlocutores dos

indivíduos, expressando valores, status e personalidade. Alessi se refere à tensão que

teve origem no século XVIII, quando a mecanização trazida pela primeira revolução

industrial vai criar a distinção entre a esfera artística e a esfera produtiva, tensão esta

que se intensificará no século XIX, configurando uma separação de atividades até

então vistas como unas. A partir daí vamos ter as chamadas “arte pura”, enaltecendo

o espírito, e a “arte aplicada”, feita para a produção, para a esfera econômica. As

pessoas compram objetos visando ao prazer intelectual ou espiritual.

Na área das ciências humanas e sociais, cada vez mais os estudos tendem a ser

interdisciplinares, uma vez que isolar uma disciplina de outra significa deixar de lado

um saber que pode ser imprescindível para a compreensão do objeto em questão. A

necessidade de interdisciplinaridade na produção do conhecimento funda-se no

caráter dialético da realidade social – que é, ao mesmo tempo, una e diversa – e na

natureza intersubjetiva de sua apreensão.

O conhecimento que se constitui se amplia ou se modifica, não decorre de

uma arbitrariedade racional ou abstrata. Advém da própria complexidade da forma

Introdução
através da qual o homem se constrói enquanto ser social e enquanto sujeito e objeto

de conhecimento social. 18

2. Os Leitores E Suas Diferentes Identidades

As grandes mudanças gráficas nos periódicos gays aparecem paralelamente à

necessidade da afirmação e das possíveis manifestações da homossexualidade.

Dentro da proposta do professor Schollhammer – “uma abordagem aos

Estudos Culturais a partir da relação entre discurso e visibilidade” (2001: 28) –, e com

a hipótese de que há uma mudança no design gráfico que acompanha a mudança

dos desejos e expectativas dos leitores, proponho-me a fazer uma análise comparativa

entre o discurso verbal (a partir dos editoriais e das reportagens dos periódicos

gays), e o discurso visual (a partir dos elementos estéticos-formais destes objetos).

Com isso, pretendo mostrar como estas mudanças refletem a construção e afirmação

das inúmeras facetas identitárias da cultura gay.

O conceito de identidade será trabalhado dentro da perspectiva dos Estudos

Culturais. Isto é, o conceito de identidade não é fechado. A identidade se dá através

da diferença. Uma identidade depende, para existir, de algo fora dela: quer dizer,

outra identidade. De acordo com Stuart Hall,


As identidades não são nunca unificadas; elas são, na modernidade tardia,
cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca,
singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas
e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos (Hall, 2000: 108).

A identidade é marcada pela diferença e construída por meio de símbolos.

Outra questão importante para os Estudos Culturais é a dinâmica dos sistemas

simbólicos. Conforme afirma Kathryn Woodward: “É por meio dos significados

produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo

que somos. A representação é compreendida como um processo cultural, estabelece

identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia

fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderei ser?

Quem eu quero ser?” (2000: 17). A representação é vista, neste caso, como um sistema

Introdução
de signos. Ela expressa-se por meio de diferentes linguagens, tais como as artes

plásticas, a fotografia, o cinema, a literatura, o design, além de circular também pela 19


vida cotidiana e o mundo do trabalho.

A despeito de a produção teórica a respeito da identidade gay ser vasta, e de

esse tema guardar estreita relação com a tese aqui apresentada, não a restringirei a

nenhuma teoria específica, mesmo porque a discussão de qualquer uma destas não

caberia nas páginas deste trabalho.4 O que interessa à pesquisa aqui apresentada é

que pessoas que têm exigências comuns tendem a experimentar vivências coletivas

e, desta forma, a criarem um fortalecimento a partir da noção de pertencimento

(Goffman, 1983). Dito de outra forma, muitos homossexuais partilham das mesmas

vivências, dores e alegrias, e, conseqüentemente, se reconhecem nas necessidades

do coletivo, no qual, neste caso, se inserem ou se identificam como pertencentes.

Também procuro evidenciar que a identidade gay é um aspecto da identidade de um

indivíduo. Como disse Trevisan (2000: 40): “(...) [homossexual] será um adjetivo a

mais num conjunto inevitável de qualificativos, que definirá alguém como

homossexual além de brasileiro ou inglês, nordestino ou gaúcho, jovem ou velho,

alto ou baixo, etc.”.

Não é demais afirmar que


... a homossexualidade é uma infinita variação sobre um mesmo tema:
o das relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo. [E] ...
que não há nenhuma verdade absoluta sobre o que é homossexualidade
e que as idéias e práticas a ela associadas são produzidas historicamente
no interior de sociedades concretas e que são intimamente relacionadas
com o todo destas sociedades (Fry & MacRae, 1983: 7-10).

Muito embora esta tese não se ocupe centralmente com uma nova discussão

sobre o universo da homossexualidade, pretendo, como já afirmei, fortalecê-la com

a investigação do design.

Segundo Foucault (1988) as questões que envolvem sexo e sexualidade humana

foram motivo de exaustivos estudos das esferas de poder a partir do século XVIII.

As liberdades comportamentais, “uma certa franqueza, discursos sem vergonha,

anatomias mostradas”, tudo isso se cala a partir do século XVII. A repressão à

Introdução
sexualidade vai estar intimamente ligada às relações de poder e saber. No século

XVIII dá-se a multiplicação dos discursos sobre o sexo, não só no campo do fazer, 20
descobrir, ensinar, como também, no exercício do poder:
(...) é a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante, uma
sociedade afirma que seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente
ao número e à virtude dos cidadãos, não apenas às regras de casamentos
e à organização familiar, mas à maneira como cada qual usa seu sexo. O
sexo não se julga, administra-se (Foucault, 1988:9,22,27 e 28).

Esta administração do sexo e dos papéis socialmente criados e impostos a

cada indivíduo quase nunca vai estar de acordo com o desejo e a orientação sexual

de cada um. E algumas práticas sexuais, dentre elas a sodomia, foram vistas, revistas,

discutidas e analisadas à luz de “controle pedagógico e tratamentos médicos”. E o

sujeito ator dessas práticas passa a ser visto como uma persona: o homossexual,

trazendo consigo as idéias de homossexualismo e homossexualidade. Conforme

afirma Jurandir Costa (1992: 44) “A atual divisão dos homens em homossexuais e

heterossexuais é tão arbitrária e datada quanto qualquer outra”. E tão pobremente

reducionista.

Este mesmo autor propõe que os ter mos “homossexualismo” e

“homossexualidade” sejam substituídos pelo termo “homoerótico”, cunhado em

1911, por F. Karsh-Haak e utilizado por Sandor Ferenczi, psicanalista contemporâneo

de Freud. As palavras “homossexualismo” e “homossexualidade” carregam consigo

o preconceito, pois elas remetem ao vocabulário científico-moral dos séculos XVIII

e XIX, quando foram criadas, e desta forma sua utilização reforçaria tal preconceito

institucionalizado. Homoerotismo, segundo Costa, é uma noção mais flexível e que

descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same sex-oriented
(Ver Costa, 1992; e Nunan, 2003). Sem desprezar esta contribuição, usarei os termos

“homossexual”, “gay”, e “homossexualidade” indistintamente. A palavra

homossexualismo aparecerá sempre que os periódicos estudados a ela assim se

referirem.

Introdução
3. Aspectos Teórico-Metodológicos

Pretendo estruturar o eixo da pesquisa tendo por base o que hoje tem sido 21
contemplado através dos chamados Estudos Culturais, ampliando o seu panorama

interdisciplinar. Os Estudos Culturais expressam a não-conformidade com as

limitações de algumas disciplinas, propondo a interdisciplinaridade com a intenção

de construir um novo campo de estudos, uma área na qual se observe com mais

conforto a interação de disciplinas diversas. Segundo Agger:


Os Estudos Culturais são inerentemente interdisciplinares. Têm de ser
interdisciplinares porque as disciplinas tradicionais não dão conta dos
fenômenos da cultura popular de forma a harmonizar as teorias críticas,
literárias, da análise do discurso, dos estudos feministas, da sociologia e
da economia política (Agger, 1992: 17).

Essa prática metodológica e/ou ferramenta de pesquisa se caracteriza por sua

interdisciplinaridade e diversidade metodológica, que permite ao pesquisador lançar

mão de dispositivos de análise exógenos à sua própria disciplina, mas pertinentes ao

objeto de estudo. Toma-se por objeto não só os artefatos produzidos por determinada

cultura, mas também (e sobretudo) as relações entre estes e os valores, identidades,

laços socioculturais, etc., que regulamentam aquela cultura. “Cultura”, para os Estudos

Culturais, não é o equivalente à noção dada pelos cânones da elite cultural ou da

filosofia. Pelo contrário, trata-se de cultura no sentido mais amplo: qualquer atividade

que contribui para o aprendizado social.

A agenda temática dos Estudos Culturais compreende os estudos sobre gênero

e sexualidade, identidades nacionais, etnia, cultura popular e seus públicos, ecologia,

política de identidades, práticas político-estéticas, discurso e textualidade, pós-

modernidade, entre outros. Parafraseando Agger (1992), poderíamos dizer que os

Estudos Culturais enfatizam a idéia de que a cultura é um conflito acerca de

significações; ou de como atribuir valores à experiência, expressão e existência

humana. Os Estudos Culturais são propostos de forma a enfatizar a falta de consenso

sobre valores comuns.

Por outro lado, os Estudos Culturais ressaltam o conflito natural dos valores e

significados nas sociedades capitalistas, sexistas e racistas. Observa-se que os temas

Introdução
tendem a ser associados às questões de marginalidade cultural, exclusão social e a

relação entre identidade e mídia. Acreditamos, então, que os Estudos Culturais podem 22
se revelar como um caminho (com certeza há outros) para se obter uma

instrumentalização que proporcione a articulação entre linguagem, design e cultura

popular.

O corpus da minha pesquisa consistirá de alguns jornais e revistas lançados

no Brasil, e impressos industrialmente, que assumiram uma postura política em relação

à homossexualidade.

Selecionamos o jornal Lampião da Esquina por ter sido ele o primeiro a discutir

publica e nacionalmente a homossexualidade. O jornal existiu de abril de 1978 até

junho de 1981, tendo lançado neste período 37 números. Com o aparecimento da

Aids, que acabou abrindo espaços na mídia para a discussão da sexualidade, e

diretamente da homossexualidade, várias publicações surgem com o intuito de alertar

a comunidade sobre o impacto da doença na vida social.

O jornal Nós por Exemplo foi uma dessas publicações em que o nu masculino

convivia sem culpa com a longos textos didatizados sobre as novas formas “seguras”

de se obter prazer. Publicado entre 1991 e 1995, teve 24 edições.

Com uma vida muito breve o jornal Ent& também merece destaque. Além de

seu discurso iconoclasta, o jornal em suas 10 edições apresentou um novo conceito

gráfico para estas publicações.

Com o boom do pink market (conceito mercadológico que atribui um alto

poder aquisitivo aos gays – sobre este assunto aprofundarei a discussão no capítulo

IV) começam a surgir publicações que já não se encaixam sob o rótulo de

“alternativas”. Nasce então a segunda geração das publicações gays no Brasil. É este

o caso da Sui Generis, que em seus poucos anos de vida teve muito sucesso entre o

público ao qual se destinava. A revista publicou 56 números nos seus seis anos de

vida.

O meu corpus será composto de toda a coleção do Lampião da Esquina, a

coleção Nós por Exemplo, a coleção do Ent& e alguns exemplares da revista Sui Generis,

além de exemplares das revistas americanas Vector, Advocate e Out. Essas publicações

Introdução
foram escolhidas por terem sido contemporâneas das publicações brasileiras aqui

analisadas. Por implicações metodológicas, fotografei todas as capas dos periódicos 23


brasileiros, assim como algumas páginas internas que usei como ferramenta de análise.

Os periódicos americanos foram xerocopiados.

Normalmente, os periódicos são divididos em seções e dentro destas seções

encontram-se as matérias. Para melhor compreensão do processo de análise, vou

utilizar a inicial maiúscula para grafar os nomes das seções; os títulos das matérias

foram transcritos entre aspas, bem como as categorias de análise criadas.

Dois livros foram muito importantes para a concretização deste trabalho:

Unspeakable: the Rise of the Gay and Lesbian Press in America, de Rodger Streitmatter e

Beyond Carnival de James N. Green. Unspeakable é uma excelente pesquisa sobre a

imprensa gay/lésbica americana, e Beyond Carnival é uma profunda investigação sobre

a homossexualidade masculina no Brasil no século XX.

A análise dos periódicos se dá por meio de sua representação material, seus

textos e seu projeto gráfico, tomando como referência os estudos desenvolvidos

por Michael Twyman. Professor e pesquisador da Universidade de Reading, ele

desenvolveu um estudo a respeito da “linguagem visual gráfica” muito próximo aos

estudos da lingüística, mas direcionada para o design gráfico. Discutindo como a

linguagem gráfica pode ajudar ou prejudicar a comunicação feita através da linguagem

verbal, Twyman assinala que devemos estar atentos à importância do elemento

linguagem na comunicação gráfica – que é o conteúdo da informação e sua

apresentação visual. Segundo ele, “as representações gráficas podem reforçar o sentido

dado pelo texto” (Twyman, 1985: 245). Outros autores importantes para o nosso trabalho

foram Gunther Kress e Theo van Leeuwen, no seu livro Reading Images: the Grammar

of Visual Design.

No número que comemorava seu primeiro aniversário, o jornal Nós por

exemplo trazia a seguinte frase no seu editorial: “Não adianta ser produzido um

jornal bonito, com bom conteúdo, com fotos lindas, em excelente papel, se não

houver um público interessado em lê-lo”. Que leitor é esse pelo qual os editores se

preocupam, a ponto de estamparem suas preocupações nos seus editoriais?

Introdução
Foi esta preocupação que me guiou. Como o design pode firmar-se enquanto

ponte entre o leitor e o texto? Que significados de outros níveis o design agrega à 24
linguagem verbal? Penso, como M. Helena Martins, que o “ato de ler se refere tanto

a algo escrito quanto a outros tipos de expressão do fazer humano, caracterizando-

se também como acontecimento histórico e estabelecendo uma relação igualmente

histórica entre o leitor e o que é lido” (1991: 30). Do mesmo modo, acreditamos que

os periódicos assumem um papel de identificação para aquele que os consome. De

acordo com John Storey:


The readers’ letters and editorial responses often reveal a profound
commitment to the “individual solution”. Both “teach” the same parable:
“individual effort will overcome all odds” (Storey, 1996:86).5

Os editoriais que definem a ideologia dos periódicos, as cartas dos leitores

que confessam suas necessidades, e as diversas seções que compõem um jornal ou

uma revista são amalgamadas através de fotos, ilustrações, fios e vinhetas. A

distribuição dos elementos visuais numa página é determinante para a qualidade do

resultado final. Ainda segundo Storey:


Magazines and newspapers consist of more than words on the page.
Their popularity is unthinkable without taking into account the
photographs, the ilustrations and the advertisements which appear on
almost every page (Storey, 1996: 87).6

Os periódicos trazem o mundo para o leitor, ou melhor, recriam e constroem

um senso de comunidade para aqueles que o lêem. Henrik Dahr diz que “A magazine

must be like holding a mirror in front of the reader – if he sees himself, it´s a

success. Readers need to feel affliation” (Dahr, 1998: 20).7

O capítulo I da tese trata do início da imprensa gay nos Estados Unidos e no

Brasil, com destaque para as publicações Vector e Advocate nos Estados Unidos.

Situamos o aparecimento da imprensa gay no Brasil através da história da chegada

da imprensa no Brasil, e, mais tarde, da imprensa alternativa durante a ditadura militar

brasileira. No capítulo II busquei apresentar um breve histórico do movimento

homossexual brasileiro, e também analisei o surgimento e a história do jornal Lampião

da Esquina, investigando seus temas e imagem gráfica. No capítulo III pontuei as

Introdução
mudanças ocorridas tanto no discurso verbal quanto no visual que ocorreram nos

periódicos gays, utilizando Nós por exemplo e Ent& como exemplos. No capítulo IV 25
abordei a época GLS, a concretização do “macho-gay tropical” e a estética “gay-

pride” da revista Sui Generis.

Assim como os objetos analisados na minha dissertação de mestrado – as

capas de disco –, habitam minha casa os periódicos aqui relidos e revistos, também

personagens da minha história particular. Foram eles que, contando suas estórias,

me ajudaram a construir a minha própria história.

Traduções

“O objeto, no nosso sistema, é, ao mesmo tempo, um signo de identificação social, um


1

instrumento de comunicação, uma imagem para uso, um simulacro opressivo, um fetiche e uma
ferramenta. O design só pode ser um instrumento de análise social, uma área de intervenção na
vida cotidiana, uma linguagem, uma moda, uma teoria da forma, um espetáculo, um fetichismo,
uma mercadoria” (Vitta, 1989: 35).

“(...) é um sistema de mensagens, um sistema de significados e portador de uma certa


2

ideologia, a qual lida com a construção da feminilidade adolescente. (...) opera para conquistar
e moldar o consentimento dos leitores para com um determinado conjunto de valores” (McRobbie,
1991: 82).

“A mídia impressa torna nossa afiliação visível. Muitas pessoas colocam sua revista
3

predileta sobre a mesa de centro para demonstrar suas atitudes para os outros” (1998: 25).

4
A esse respeito, ver: Goffman (1983); Fry & MacCrae (1983); Costa (2002), e Nunan
(2003).

5
“As cartas dos leitores e as respostas editoriais muitas vezes revelam um comprometimento
profundo com a ‘solução individual’. Ambos ‘ensinam’ a mesma parábola: ‘o esforço individual
vencerá todos os obstáculos’” (Storey, 1996: 86).

6
“Revistas e jornais consistem em mais do que palavras numa página. Sua popularidade
seria inimaginável sem levarmos em conta as fotografias, as ilustrações e os anúncios que figuram
em quase todas as páginas” (Storey, 1996: 87).

7
“Uma revista deve ser como colocar um espelho diante do leitor – se este se enxerga ali,
então é bem sucedida. Os leitores precisam sentir-se afiliados” (Dahr, 1998: 20).

Introdução
Capítulo I
26

PRIMÓRDIOS DA IMPRENSA GAY


NOS EUA E NO BRASIL

O veado
Letra e música: Gilberto Gil

O veado
Como é lindo
Escapulindo pulando, Evoluindo
Correndo evasivo
Ei-lo do outro lado
Quase parado um instante, Evanescente
Quase que olhando pra gente
Evaporante, Eva pirante

O veado, Greta Garbo


Garbo, a palavra mais justa
Que me gusta, Que me ocorre
Para explicar um veado Quando corre
Garbo esplendor de uma dama das camélias
Garbo vertiqualidade
Animália, Anamélia

Ó, veado, Quanto tato


Preciso pra chegar perto
Ando tanto
Querendo o teu pulo certo, Teu encanto
Teu porte esperto, delgado

Ser veado, Ser veado


Ter as costelas à mostra
E uma delas
Tê-la extraída das costas
Tê-la Eva bem exposta
Tê-la Eva bem à vista

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


1.1 A Imprensa Gay Nos Estados Unidos

A década de 1950 foi uma das mais retrógradas na história para os gays norte- 27

americanos. As posições do Senado e as posições anti-homossexuais do senador

Joseph McCarthy fizeram do período um dos mais repressivos para a comunidade

homossexual. Porém, dentro do processo histórico, as relações da economia

capitalista, a industrialização, a socialização da produção e o crescimento urbano

criavam um contexto no qual o desejo homossexual começava a se manifestar e a se

constituir em identidades mais definidas, seja no âmbito pessoal, seja socialmente.

Segundo John D´Emilio: “As men and women who were inclined toward their own

sex took on a self-definition as homosexual or lesbian, they searched for others like

themselves and gradually created a group life” (D´Emilio, 1998: 22).1

O alistamento de milhares de homens e mulheres nas forças armadas americanas

durante a Segunda Guerra mundial traz intensas mudanças na expressão sexual destes

recrutas. Centenas de homens e mulheres que sentiam atração por pessoas do mesmo

sexo de repente encontram-se sós, longe de seus familiares, tendo à sua volta somente

homens ou somente mulheres. Esta situação acabou proporcionando uma atmosfera

na qual, ainda que de maneira camuflada ou escondida, eles puderam manifestar seu

desejos homoeróticos. De acordo com D´Emilio, as condições incomuns da guerra

permitiram que os homossexuais se expressassem mais facilmente:


People who had already come to a self-definition as homosexual or
lesbian found greater opportunities during the war to meet others like
themselves. At the same time, those who experienced strong same-sex
attraction but felt inhibited from acting upon it suddenly possessed
relatively more freedom to enter into homosexual relationships (D´Emilio,
1998: 24).2

Ao fim da guerra e depois de terem vivido experiências muito pessoais, a volta

dos recrutas (homens e mulheres) ao cotidiano de suas pequenas cidades de origem

não será tranqüila. Muitos deles não conseguem se adaptar ao ambiente hostil

prevalecente nas pequenas cidades. Nova York, Los Angeles e San Francisco serão

algumas das grandes cidades nas quais eles vão tentar se estabelecer como cidadãos

plenos. E, neste caso, a identidade sexual não podia mais ser negada.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


É neste contexto de mudanças e afirmações que surge em Los Angeles aquele

que viria a ser o primeiro periódico feito por e dirigido a uma comunidade 28

homossexual, neste caso especifico, para as lésbicas. Em 1947 uma jovem secretária,

usando o pseudônimo de Lisa Ben (anagrama de LESBIAN), lança o jornal Vice-

Versa.

Rodger Streimatter, em seu livro Unspeakable: The Rise of The Gay and Lesbian

Press in America (1995), nos fala do jornal de Lisa Ben, uma lésbica californiana. Ele

era feito de forma artesanal. Ela datilografava usando o recurso do papel carbono.

Lisa Ben fazia 12 cópias, as quais distribuía pessoalmente, pedindo que após a leitura

o jornal fosse passado adiante.

Segundo Streitmatter, o Vice-Versa parecia mais um trabalho acadêmico do

que um jornal. De acordo com o autor:


This appearance communicates a strong sense of precision, far different
from the nonconformist and rag-tag images common among movement
publications. This highly conventional form suggests another
distinguishing characteristic of the lesbian and gay press would be strong
commitment to form and appearance (1995: 16).3

Streimatter fala da importância dos primeiros periódicos para a vida dos gays

e das lésbicas, assim como D´Emilio:


But their most important accomplishment was that the magazines did,
indeed, speak. They created a national venue for homosexuals, forming
an arena in which lesbians and gay men could,, for the first time, speak
above a whisper about issues fundamental to their lives. The magazines
gave an oppressed minority the chance to express thoughts that
previously had been barred from public discourse. Their readers
appreciated the courage the editors exhibited (1995:18).4

The pioneering effort to publish magazines about homosexuality


brought the gay movement its only significant victory during the 1950s
(D´Emilio, 1998:115).5

Os primeiros periódicos impressos de forma industrial e distribuídos

nacionalmente nos Estados Unidos vão surgir também na Califórnia. Em 1953 foi

fundado o One; em 1955, o Mattachine Review; e, em 1956, o The Ladder. Estas três

revistas foram publicados por mais de doze anos.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


Em 1950 existia em Los Angeles a “Mattachine Society”. Esta sociedade secreta

tinha sido criada por um grupos de homossexuais, com fortes tendências esquerdistas, 29

para discutir o papel do homossexual na sociedade. Eles enfatizavam a contribuição

que os homossexuais tinham dado à sociedade, e além disso participavam de

programas assistenciais, tais como doação de sangue, doação de roupas em hospitais,

etc.

Durante esses primeiros anos, a visão dos homossexuais era uma visão para

dentro de si próprio. Existia uma culpa internalizada em grande parte da comunidade

homossexual. O papel da Mattachine Society era procurar soluções para seus

“problemas” na medicina e/ou na lei, ao mesmo tempo em que pediam tolerância

da a sociedade.

Talvez, para os fundadores do One, isso não fosse algo consciente naquela

época. Mas, de alguma forma, eles deviam saber que transpor a barreira das reuniões

secretas para a comunicação em público foi um ato de profundo impacto político. E

o mais importante é que estes periódicos constituíram o primeiro foro público onde

gays e lésbicas puderam pela primeira vez discutir assuntos fundamentais para sua

vida. Estes periódicos pioneiros vão estar preocupados não só com o conteúdo,

mas também com a aparência.

Aos poucos desaparece o mimeógrafo e surge a impressão off-set, o que

contribui para dar aos jornais uma aparência mais profissional. O processo de

impressão off-set possibilita novos desafios no design dos periódicos. De acordo

com Streitmatter:
Another characteristic of the 1950 publications that refined an element
introduced by their predecessor revolved around design. Ben
demonstrated a strong commitment to her magazine’s appearance, and
the founders of One and The Ladder advanced this commitment by
using bold graphics and arresting images to make design one of the
publications´ most distinctive elements. One further emphasized visuals
by introducing suggestive images of men, destined to become a staple
of the gay press (1995: 49).6

Em janeiro de 1953, um grupo de amigos que vinham se encontrando

secretamente com intuito de discutir um “problema” que os atingia, resolveram lançar

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


a revista One. O problema deles era a homossexualidade de cada um, que eles já não

sabiam como esconder. Segundo Streitmatter, eles estavam cansados de falar para si 30

próprios. Era chegado o momento de falar com outras pessoas.

One torna-se o marco principal da imprensa gay nos Estados

Unidos e a referência para um estudo sobre imprensa gay no ocidente.

Os ensaios pessoais dominavam a linha editorial da revista. Mensalmente

a revista aparecia trazendo um editorial, descrições de projetos de pesquisa

pertinente à comunidade gay e lésbica (apesar de a revista ser

essencialmente masculina), lista de livros recentemente publicados, artigos

sobre a homossexualidade e cartas do leitor. A revista proporcionava

aos leitores uma visão positiva do mundo gay.

Outro fator importante para o sucesso da revista foi o audacioso

projeto gráfico. Assumindo a idéia de que gays (na sua maioria) têm bom

gosto e são refinados, os editores não medem esforços para imprimir

uma revista moderna, vibrante e de fácil leitura. Conforme afirma

Streitmatter:
One was the most dramatic in design. In keeping
with high level of taste and style many gay men
possess, the founders insisted their magazine
be typeset and printed rather than typewritten
and mimeographed. This was a daring decision
because the magazine had no consistent source
of revenue beyond the pockets of the founders.
But those men saw professional printing as
essential for the proper reproduction of the
strong, modern graphics that became the
magazine’s trademark. Those graphics
reflected the audacious step the founders
took in creating the country´s first widely
distributed gay publication (1998: 23).7

No Brasil, conforme veremos

nos próximos capítulos, a preocupação

com o design gráfico não vai ser ponto

importante para o primeiro jornal gay


Capas e páginas internas do One. Elegante e sofisticada, a
revista foi um marco para o movimento gay norte-amricano.
feito de forma industrial, e lançado em
Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil
1978. Embora o design gráfico atue na área de comunicação, facilitando uma estreita

relação com quem o consome, as pessoas que começaram a história da imprensa gay 31

no Brasil, talvez por falta de recursos, ou porque simplesmente porque estavam mais

preocupadas em assumir uma postura política, não deram muita importância para

esta questão.

Nos Estados Unidos, a década de 1960 se inicia com a eleição de um jovem

democrata católico – John Kennedy – que mobilizou a nação com seu carisma e

comprometimento com a luta pelos direitos dos negros. Foi uma década que também

veio a ser marcada pelo início da Guerra do Vietnã e pela morte prematura do

presidente.

A década trouxe um período de grandes transformações sociais, não só nos

Estados Unidos como no mundo todo. No seu decorrer assistimos a um fenômeno

de dimensões psicológicas, sociais e culturais ate então nunca visto. Seu destaque

sociológico reside na confluência de idéias, oriundas das mais diferentes esferas, que

vão colaborar para configurar o imaginário revolucionário daquele período. O

emprego maciço dos novos meios de comunicação e os satélites de telecomunicação,

entre outros fatores, afetam de forma profunda as relações entre jovens. Como

descreve Heloísa Buarque de Hollanda:


Nos Estados Unidos, as contradições da Guerra do Vietnã davam lugar
a um forte movimento de resistência pacifista. A deserção e a
desobediência civil assumiam dimensões de radical atitude política. Surgia
uma Nova Esquerda, valorizando o domínio da problemática pessoal
ou de lutas até então tidas como secundárias – a liberação sexual, a luta
dos negros, das mulheres, as reivindicações minoritárias. O movimento
hippie fervilhava, chocando a sisudez ocidental, inconformada diante
da sujeira e da promiscuidade dos jovens de cabelos crescidos que faziam
do erotismo, da sensualidade e da liberdade comportamental suas armas
para combater a violência do way-of-life industrializado. O uso da droga
como busca de uma nova sensibilidade, o amor livre, a preferência pela
expressão artística em detrimento do discurso político, assumiam um
sentido “contracultural” que empolgava toda uma geração, não só nos
EUA mas em diversos países (1982: 69).

Ou ainda, conforme Streitmatter:


The counterculture made its most significant contribution to gay

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


liberation by defying the conventional definition of acceptable sexual
behavior. For in the context of the sexual revolution that had erupted
as part of the Counterculture Movement, homosexuality was no longer 32
being considered – at least by some segments of American society – a
drastic departure from sexual normality (1998: 92).8

Fortalecidos pela luta de outros grupos considerados minorias (negros,

mulheres e estudantes), os homossexuais começam a tomar uma atitude diferente

daquela dos anos 1950, durante a qual o “armário” era o lugar ideal para discutir seus

desejos.9 Os homossexuais que alcançam uma maturidade sexual e política na década

de 1960 não vão tolerar o que Christopher Isherwood nomeou – “a ditadura

heterossexual” (apud Streitmatter, 1998: 51). Eles vão se espelhar nas manifestações

públicas dos outros grupos e vão para as ruas. O armário ficou pequeno, quente e

abafado. Chegou a hora de ir para as esquinas e praças; chegou a hora de chamar a

atenção da sociedade.

Junto com esta nova atitude, desponta uma nova geração de publicações. Jornais

e revistas assumem um novo rumo: a militança política. E já não olham só para si,

para a comunidade gay, mas para fora, para os outros. A “questão” da

homossexualidade não é mais um problema para os homossexuais. O problema é a

sociedade que ainda teima em querer mudá-los, escondê-los ou negá-los. Se os afro-

americanos, as mulheres e os estudantes tinham conseguido um lugar na agenda

nacional, agora chegou o momento dos gays e lésbicas. Desta forma os homossexuais

adotam uma estratégia do assumir-se, e brigar pelo seu espaço em todos os lugares

da sociedade, dos bares ao seio familiar. E os periódicos começam a surgir por todo

o país, não só nas grandes cidades, como também nas pequenas. Conforme nos

conta Streitmatter:
Because gay leaders recognized that effective internal communication
is essential for an organization to articulate its ideology, develop a political
* Expressão
utilizada pela consciousness among its members, increase its size, and sustain itself,
comunidade gay the leaders established that producing publications would be a central
que significa “não element in their strategy for social change (1998: 53).9
assumir-se”, “não
di-vulgar sua ho-
mossexualidade”,
isto é, “ficar Dentre os periódicos desta “segunda fase” vou me ater a duas: a Vector e o
escondido dentro
do armário”. Advocate. Vector foi a publicação mais importante na costa oeste dos Estados Unidos;

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


e Advocate a publicação de vida mais longa na história da imprensa gay americana.
33

1.1.1 Vector

A revista Vector foi fundada em dezembro de 1964, na cidade de San Francisco,

por uma organização que lutava pelos direitos dos gays, a “Society for Individual

Rights”. O periódico destaca-se das outras publicações primeiramente pelo seu

formato. Eles adotam um formato mais confortável de ler e manusear: o tamanho

do papel carta. Podemos observar que a mudança é muito importante, pois eles

começam a ficar mais próximos das publicações da grande imprensa, dando aos

periódicos uma aparência mais profissional. E isto é o que acontece quando um ano

após seu lançamento eles passam a ser impressos em papel couché e a empregar

uma segunda cor na impressão, deixando para trás em definitivo a aparência de um

jornal estudantil. Conforme assinala D´Emilio:


SIR´s monthly magazine, Vector was sold on newsstands throughout
the city. Its attractive, glossy format included news about the progress
of gay rights as well as entertainment and gossip to widen its appeal
(1998: 191).10

Além disso, Vector expande o conceito de militância gay. Para a revista, qualquer

evento abertamente envolvendo a comunidade homossexual é uma ação social. Em

outras palavras, a dança, a ida ao teatro ou ao boliche, os bares, os passeios nos

parques públicos servem como declaração política. De acordo Streitmatter:


Vector thereby became the first publication to recognize that there would
be no revolution until activists coaxed larger numbers of gays to come
out of the bars and into the streets. (1995: 65).11

Ao longo de sua trajetória, que findou em 1976, Vector discute assuntos tais

como: “Homossexualidade como crime” (jan, 1965); “Sexo em espaços públicos”

(mai, 1967); “São os homossexuais doentes?” (jan, 1969); “Casamento gay: (1970);

“Gay em Cuba” (mai, 1971); “A igreja é o opressor” (jun, 1972); “Pais gays” (nov,

1972); “Transexual” (set, 1975). Estas matérias demonstram como a revista se

preocupava em mapear os interesses pessoais e coletivos da comunidade.

Como veremos mais adiante, alguns desses temas estarão estampados nas capas

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


do primeiro periódico brasileiro. São assuntos que habitavam e ainda

habitam o imaginário da comunidade gay, não só a americana como 34

a brasileira. A preocupação em agradar ao leitor é uma constante

nos editoriais do periódico. Com o título de “Your Magazine”, o

editorial de novembro de 1970 da Vector demonstra esta preocupação.


One of the major difficulties in editing a magazine is that the editor
must determine what is of interest to you, the reader, collectively (...)
The answer has been that we have tried to give everyone something.
The magazine is now well rounded, based on our assumption of who
VECTOR, vol. 1, nº 1, dezembro
de 1964, capa.
reads Vector. In this issue you will find a statement by a teenage gay
liberationist, our complete Gay Guide, what goes on at a sex and drug
forum, (...) , and frank talk about “crabs” (not the Fisherman´s Wharf
variety) (Vector, nov, 70: 6).12

Como eles gostavam de repetir, “[Vector] is a magazine for

and by homosexuals and dealing with the one thing our readers

have in common… their homosexuality” (Vector, 1971: 6).14 Pela

primeira vez, uma revista como a Vector mostrava a comunidade

gay divertindo-se, seja por meio de fotos de eventos sociais (Vector,


VECTOR, vol. 1, nº 2, janeiro de
set, 1965: 5), ou de matérias enfocando a vida cotidiana dos gays, tais
1965, capa.

como “Strolling Castro Street”, uma matéria sobre a famosa rua de

San Francisco, considerada a meca gay dos Estados Unidos (Vector,

jul, 1971: 30); ou ainda, “Restaurants”, enfocando os diferente tipos

de restaurantes simpatizantes aos gays (Vector, dez, 1973: 29).

A partir da proliferação dos bares e saunas dirigidas ao publico

Vector, vol. 2,
setembro de 1967,
capa.

VECTOR, fevereiro de 1972, VECTOR, fevereiro de 1975,


capa. página 4, Editorial.
Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil
gay nas grandes cidades americanas em meados dos anos 1970, a revista passa a

publicar vários anúncios destes estabelecimentos, além de artigos que promoviam a 35

necessidade de sua presença para a comunidade. Isto não era exclusividade da Vector.

A grande maioria dos periódicos deste período passam a ter o sexo como elemento

fundamental no seu editorial.

No aspecto gráfico, Vector não era tão audaz quanto a One. Nos primeiros anos

o projeto gráfico é rígido e obedece aos limites da mancha gráfica estabelecida.

Contudo, a partir do terceiro ano de existência podemos observar mudanças gráficas

na revista. Uma das dessas principais características é um numero muito maior de

fotos do que a maioria das outras publicações – nas quais se nota um esforço também

maior em mostrar a face dos indivíduos. A partir de 1969, as publicações começam

uma campanha, inicialmente muito discreta, mas que mais tarde toma um peso muito

importante para a movimento gay nos Estados Unidos, que é o “assumir-se”. Eles

pediam que todos os gays deveriam dizer para seu amigo, para sua família, para os

colegas de trabalho, enfim, para quem pudessem, que eram homossexuais. Desta

forma dariam mais visibilidade à comunidade gay.

Sua logomarca passa por várias transformações. Inicialmente a tipografia era

acompanhada de uma seta. Que indicava o futuro, lançando a revista para a frente.

Com pequenas variações esta será a identidade da revista entre os anos de 1964 a

1973, quando a seta desaparece da logomarca, ficando apenas a tipografia. O futuro

passa a ser o presente. Nesta nova fase, fontes “fantasias”* irão ocupar o alto da

página.

Já mais próximo ao fim da revista, a logomarca assume um aspecto mais sério,

mas ao mesmo tempo leve, com o uso de uma fonte bastão outline. Outro aspecto

importante da revista é que a partir de 1969 ela passa a estampar fotos de nu frontal

masculino, elemento que se tornará uma característica da maioria dos periódicos da


*
São fontes que imprensa gay americana a partir dos anos 1970.
parecem mais
desenhos do que
propriamente
letras. Não se
destinam a textos
corridos.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


1.1.2 Advocate

O jornal Advocate é lançado em setembro de 1967, na cidade de Los Angeles. 36

É interessante observar que se o One era uma revista, e a Vector se

autodenominava uma revista, apesar de parecer mais um jornal, o

Advocate surge como um jornal e só muitos anos mais tarde se tornará

uma revista. Los Angeles Advocate, seu nome inicial, é o primeiro jornal

gay dos Estados Unidos. Ele é renomeado Advocate em maio de 1970,

e a partir de 1975 torna-se uma revista bisemanal.

O jornal inicialmente publicava apenas reportagens jornalísticas

e não tinha ficção. O periódico tinha a intenção de publicar o que a


ADVOCATE, vol.1, nº 1,
setembro de 1967, capa. grande imprensa não publicava, ou, nas palavras do seu primeiro

editor, Dick Michael, “print what the straight press wouldn´t print”

(apud Streitmatter,1998: 88).14 Embora a grande arma do Advocate fosse

divulgar as conquistas do movimento gay, ou denunciar as injustiças

cometidas contra os homossexuais, ele tinha colunas pessoais, editorial,

crítica de filmes e livros, e um calendário de atividades sociais na

cidade. O periódico desde o inicio foi implacável na sua posição de

defender os direitos dos gays:


Happy birthday to us! We are born. And like all infants, we are and will
for a time be clumsy, awkward, full of innocence, and perhaps even a
ADVOCATE, vol.2, nº 1, janeiro little ugly, except of course, to our parents. (...) Homosexuals, more
de 1968, capa.
than ever before, are out to win their legal rights, to end the injustices
against them, to experience their share of happiness in their own way.
(...) As a newspaper, the Advocate´s main purpose is to publish news
that is important to the homosexual – legal steps, social news,
developments in the various organizations – anything that the
homosexual needs to know or wants to know. (...) We exist to serve
you, but we cannot do it well without your help. (The Los Angeles
Advocate, n. 1, set, 1967: 6).15

Desta forma, o jornal se mantém até 1974, quando ele é

comprado por David B. Goodstein, milionário gay que resolve investir

sua fortuna na imprensa gay. A compra trouxe mudanças gráficas e


ADVOCATE, vol.2, nº 9,
setembro de 1968, capa. ideológicas para o jornal. Primeiro ele deixa de ser um jornal para se

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


tornar uma revista, com um projeto gráfico bem mais moderno e

audacioso. E passa a ser o porta voz de uma nova geração de gays 37

que já não se preocupa em esconder sua orientação sexual. Pelo

contrário, os gays dos anos 1970 exibem seus corpos e desejos por

dezenas de bares, boate e saunas que se proliferam pelas cidades dos

Estados Unidos. Com o subtítulo de “Touching Your Lifestyle”, o

Advocate torna-se uma revista de entretenimento e cultura, feita para


ADVOCATE, setembro de 1969,
capa.
este público pós-Stonewall. No editorial da edição número 29,

intitulado “Our Challenge”, Goodstein escrevia:


You are employed and a useful, responsible citizen. You have an attractive
body, nice clothes and an inviting home. The “Advocate man” live the
good life – working out, spending several nights a week at the bars,
enriching his gay sensibility by reading literature and enjoying art
(Advocate, n. 29, jan, 1975: 3).16

Nesse processo de mudança, o projeto gráfico foi muito

importante. A revista passa a ter um layout mais dramático, com

muitos claros, fotos que ocupam toda a página, fios gráficos que
ADVOCATE, nº 232, janeiro de sustentam e valorizam o texto. Além disso, a nudez masculina passa
1978, capa.
a ser o maior interesse dos leitores, depois de muitas lutas contra as

leis que proibiam a publicação e as remessa pelo correio de periódicos

com fotos de nudez frontal. Agora as fotos passam a ocupar um lugar

de destaque nos jornais e revistas da imprensa gay americana.

Conforme afirmou o designer

Dennis Forbes, em entrevista para

Streitmatter: “Every graphic artist

knows images draw readers into editorial

ADVOCATE, nº 241, maio de content, and we knew exactly the kinds


1978, sumário.
of images our readers were looking for”
(Streitmatter, 1998: 191).17 Assim, a revista passou a dedicar

páginas inteiras a fotos de homens totalmente nus. Se a


ADVOCATE, janeiro de 2006,
sexualidade era apenas sugerida nos anúncios da revista capa.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


One, em 1954, no meio da década de 1970 a imprensa gay americana reflete o valor

que a comunidade gay deposita na beleza física e na liberdade de usar o próprio 38

corpo como bem quisesse. Os anos seguintes ao conflito de Stonewall é um período

marcado pelo assumir-se.

The Stonewall Inn é um bar localizado no coração do Village, em Nova York.

No dia 28 de junho de 1969, um dia após o funeral de Judy Garland, vários

homossexuais, ainda consternados com o falecimento da cantora, voltavam a se

encontrar no The Stonewall Inn. Há muito tempo eles eram vítimas da opressão e da

discriminação que a sociedade branca machista americana lhes impunha. Empurrados

e acuados para os becos e bares da cidade, eles próprios não sabiam que naquele fim

de semana em que perdiam um dos seus ídolos ganhavam o primeiro round de uma

luta que se estende até os dias de hoje.

Durante vários anos, o Departamento de Controle de Bebidas Alcoólicas,

alegando violação contra as leis do uso de bebidas alcoólicas, inspecionava o

estabelecimento, inspecionava os clientes e, ao mesmo tempo, dirigia comentários

homofóbicos aos fregueses, que quase sempre eram postos para fora do bar. Naquela

noite a cena se repetiu. Só que ao invés de saírem pacificamente como faziam há

anos, gays, travestis, estudantes, boêmios e outros fregueses fincaram o pé e revidaram

a agressão. A luta tomou proporções enormes. Por cinco dias, aquelas pessoas

revidaram as agressões da polícia. E, pela primeira vez, depois de anos de opressão,

pôde-se ouvir a voz de mais uma parcela da sociedade que vivia à margem.

Este incidente acaba por se tornar um marco histórico, conhecido como o

início da luta dos gays pela cidadania plena. É claro que já houvera outros indivíduos

que lutaram por uma vida fora dos guetos, mas estou aqui me referindo à manifestação

de uma nova postura perante a sociedade, de acordo com a qual é possível viver sem

constrangimentos e com mais dignidade; esta atitude ainda pode ser vista nas inúmeras

manifestações públicas que aconteceram pós-Stonewall.

Como já sugerimos acima, “sair do armário” é uma questão política. Da mesma

maneira, a atividade sexual deveria ser praticada sem medo ou limite. Múltiplos

parceiros e uma infinidade de tipos de fantasias sexuais deviam ser exercidas pelo

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


prazer, pela liberdade conquistada, e, também, como uma afirmação política.
39
Sex was the oxygen of our lives. Stonewall had bestowed upon gay men
a visceral sense of freedom, and we defined that, quite literally, as giving
us the license to indulge in multiple sex partners and play out an infinite
variety of sexual fantasies (Jim Kepner apud Streitmatter, 1995: 194).18

Os periódicos acompanham e divulgam todo os passos da luta pela conquista

do território. Não importando se se tratava de questões ligadas ao sexo, ou ao

entretenimento do mercado. E é bom lembrar que nem todas as mudanças foram

totalmente aceitas pelos líderes do movimento gay norte-americano, ou por uma

imprensa gay que mantinha uma posição radical contra o sistema. Em 1976, o então

candidato à Presidência da República, Jimmy Carter, comprava uma página inteira

do Advocate para colocar seu anúncio de campanha. A revista era simpática ao futuro

governo. As colunas de entretenimento cultural ocupavam agora muito mais espaço

do que as notícias do movimento gay. Fatos como estes não agradavam a grupos do

movimento gay que mantinham uma postura mais esquerdista.

Estas mudanças não foram exclusivas do Advocate. A própria Vector também

muda seu enfoque político no final de sua existência. Para alguns, isto era traição ao

movimento. O jornal Gay Liberation denunciava em sua edição de setembro de 1976:


News coverage now consists of articles about how gays are trying to
get in touch with the status-quo and nothing on what activist groups
are doing. At one point we could think of two opposing groups, gay
and anti-gay, but no longer: the enemy is among us. (apud Streitmatter,
1998: 186).19

Esse era o início das grandes mudanças, não só na imprensa gay, como também,

e principalmente, na vida de milhares de homens que sentiam atração por outros

homens.

Todo este processo de nascimento e implantação da imprensa gay norte-

americana é totalmente diferente, como veremos a seguir, do que aconteceu no Brasil,

especificamente no Rio de Janeiro. Entretanto, os sonhos e desejos daqueles que

vislumbravam uma sociedade mais justa, na qual os homossexuais pudessem ser

respeitados como cidadãos, foram iguais. Com as diferenças naturais que existem
Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil
entre a cultura brasileira e a norte-americana, a imprensa gay brasileira também surge

discreta – era para poucos e sofisticada – apesar dos poucos recursos gráficos. Porém, 40

nem por isso menos importante na construção de uma rede de amigos ou ainda na

solidificação de uma base para o futuro movimento gay brasileiro.

1.2 A Imprensa No Brasil

Ao contrário de outros países, a implantação e o desenvolvimento da imprensa

no Brasil demoraram a acontecer. A administração da Colônia portuguesa impedia o

uso da tipografia nas terras ultramarinas, e a invenção de Gutemberg só aportaria no

Brasil em 1808, juntamente com a Família real. Apesar de se difundir pela Europa

logo após a sua invenção, e de ter desembarcado no solo norte-americano ainda no

século XVII, a imprensa só pisaria o solo brasileiro quase quatro séculos mais tarde.

A imprensa atraca na costa brasileira de uma forma inusitada. Antônio de

Azevedo, futuro Conde da Barca, tinha adquirido um prelo inglês. A máquina, que

deveria ter sido desembarcada em Lisboa, acabou vindo no mesmo navio em que se

encontrava a Família real. Foi a partir de então que se deu início à impressão de

periódicos no Brasil.

Apesar de já circular por aqui o jornal Correio Brasiliense, este não foi o primeiro

jornal impresso no solo brasileiro: ele era impresso em Londres. O primeiro jornal

que vem a ser impresso e editado aqui é o Gazeta do Rio de Janeiro, no ano de 1808. Em

1812 é lançado em Salvador o folhetim As Variedades, que é considerada a primeira

revista a circular no Brasil, apesar de o termo “revista” só vir a ser adotado em 1828,

no mesmo ano em que é lançada no Rio a Revista Semanária dos Trabalhos Legislativos da

Câmara dos Senhores Deputados. Revista e jornal, aliás, são designações que na verdade

não se encaixavam muito bem naqueles produtos – a Gazeta do Rio de Janeiro e As

Variedades – no que diz respeito à forma, pois se pareciam muito mais com livros.

O início da imprensa brasileira é um período de produções despojadas e simples,

ainda com poucos recursos tipográficos. Conforme afirma Nelson Werneck Sodré

(1999: 20), o jornal, feito na Imprensa Oficial, não “constituirá atrativo para o público,

nem essa era a preocupação dos que o faziam, como a dos que o haviam criado”. De

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


acordo com a Editora Abril, no seu estudo sobre as revistas no Brasil, os primeiro

periódicos tiveram pouca importância para a sociedade. Não se preocupavam em 41

refleti-la: tratava-se mais de publicações eruditas, não noticiosas (Cf. Ed. Abril, 2000).

A partir de 1817, o processo gráfico de impressão ganha um novo aliado: a

litografia. A litografia vai permitir um uso maior da ilustração e da cor. Vários

periódicos, assim como livros e cartazes, começam a ser impressos por meio deste

processo. Desta forma temos em 1860 o lançamento de um dos mais bonitos

periódicos, a Semana Ilustrada. Publicada por Henrique Fleiuss, a revista vive até 1876.

Outra grande publicação foi a Revista Ilustrada, publicada por Angelo Agostini. A

publicação foi um dos principais meios para a divulgação de arte de seu tempo.

Simultaneamente, promovia uma participação dos seus leitores na vida política do

país. Agostini, artista italiano, caricaturista, ilustrador e crítico de arte criou um marco

para a imprensa brasileira. A revista exerceu forte influência na opinião publica da

época.

Segundo Nelson W. Sodré:


A história da imprensa é a própria história do desenvolvimento da
sociedade capitalista. (...) Mas há, ainda, um traço ostensivo, que
comprova a estreita ligação entre o desenvolvimento da imprensa e o
desenvolvimento da sociedade capitalista, aquele acompanhando a este
numa ligação dialética e não simplesmente mecânica. A ligação dialética
é facilmente perceptível pela constatação da influência que a difusão
impressa exerce sobre o comportamento das massas e dos indivíduos
(1999:1).

Desde que surgiram, no início do século XIX no Brasil, jornais e revistas

lutam para participar dos vários aspectos da realidade brasileira, e de uma forma ou

de outra espelharem parte da rica diversidade da realidade brasileira, como veremos

a seguir.

No início os periódicos eram dedicados principalmente ao publico masculino.

No Brasil do século XIX, raríssimas mulheres sabiam ler. Segundo a publicação A

Revista no Brasil: “Dos 4 milhões de brasileiros contabilizados na década de 1870,

apenas 550 mil eram alfabetizados” (Ed. Abril, 2000: 157). A primeira revista feminina
aparece em 1827, e foi denominada de O Espelho Diamantino: Periódico de Política,

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


Literattura, Bellas Artes, Theatro e Modas dedicado as Senhoras Brasilienses. Em 1831 surge

em Recife a segunda publicação dedicado ao público feminino: Espelho das Brasileiras. 42

A partir da primeira década do século XX, muitas publicações passam a dedicar

espaço para o mundo feminino e várias outras revistas começam a surgir, tais como

a Cigarra, em 1914, e o Jornal das Moças, em 1919. É também neste período que os

editores se preocupam em lançar uma revista para meninos e adolescentes. Em 1905

surge o Tico-tico, uma revista que unia seções de educação com as aventuras de

Chiquinho, o herói infantil. A revista tem vida longa. Com a entrada dos comics

estrangeiros a partir da década de 1930, a revista começa a perder fôlego. Mas, mesmo

assim, ela sobrevive até a década de 1960.

Ao longo do século XX, o progressivo enraizamento dos periódicos na vida

nacional acabaria por criar a necessidade de atender públicos cada mais diversificados.

De certa forma, a segmentação do público pelo mercado editorial acompanha e

reflete o fato de que certos grupos sociais que sofrem algum tipo de discriminação

passam ocupar mais espaço na sociedade. Assim, chegaremos à década de 1960 com

periódicos para quase todos os grupos sociais, com exceção dos homossexuais, que

só ganharão seu jornal em 1978, e os negros, cuja primeira revista data de 1996.

1.2.1 A imprensa nanica

Em 1969, seis meses após o Ato Institucional nº 5, surge aquele que viria a ser

o primeiro jornal conhecido, inicialmente, como “alternativo” – o Pasquim. Conforme

afirma Rivaldo Chinem:


O Pasquim não era um jornal político, era apenas um jornal debochado,
de contestação, indignado, que queria sair do sufoco. Irreverente,
moleque, com uma linguagem desabrida, bastante atrevido para os
padrões da época (1995: 43).

Ou nas palavras de Bernardo Kucinski:


O Pasquim mudou hábitos e valores, empolgando jovens e adolescentes
nos anos de 1970, em especial nas cidades interioranas, que haviam
florescido durante o milagre econômico (2003:15).

Nos anos seguintes vários jornais alternativos surgem, cada um dirigido a um

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


tipo de leitor, mas todos se caracterizando como alternativos, isto é, fugindo em

forma e conteúdo da chamada grande imprensa. Podemos dividi-los em duas grandes 43

classes: alguns predominantes políticos, que tinham raízes nos ideais de valorização

do nacional e do popular dos anos 50, e do marxismo dos meios estudantis nos anos

60; outros tinham suas raízes nos movimentos de contracultura norte-americanos e,

através deles, no orientalismo, no anarquismo e no existencialismo (Cf. Kucinski,

2003). Nesta época surgem: o Flor do Mal, em 1971; o Bondinho, em 1971; o Opinião,

em 1972; o Ex, em 1973; o Versus, em 1975; e o Movimento, em 1975. Circulavam

ainda publicações que defendiam temas que iam da contracultura, passando pela

ecologia, política e ao direito à defesa do direito de fazer poesia.

Segundo Kucinski, cerca de 150 periódicos nasceram e morreram entre 1964

e 1980. De tamanho tablóide – metade do usado nos jornais convencionais – eles se

caracterizavam pela oposição ferrenha ao regime militar e ficaram conhecidos como

“nanicos”, “de leitor”, “independente”, “underground” ou ainda como “imprensa

alternativa”. Em 1974, ano do apogeu da imprensa nanica, a diversidade temática

dos nanicos incluía os gramscianos, os leninistas, os feministas, os ecológicos, os

pregadores da importância da sexualidade, etc.:


A imprensa alternativa surgiu da articulação de duas forças igualmente
compulsivas: o desejo das esquerdas de protagonizar as transformações
que propunham, e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços
alternativos à grande imprensa e à universidade. É na dupla oposição ao
sistema representado pelo regime militar e às limitações à produção
intelectual-jornalística, sob o autoritarismo, que se encontra o nexo dessa
articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos.
Compartilhavam, em grande parte, um mesmo imaginário social, ou
seja, um mesmo conjunto de crenças, significações e desejos, alguns
conscientes e até expressos na forma de uma ideologia; outros ocultos,
na forma de um inconsciente coletivo. À medida que se modificava o
imaginário social e com ele o tipo de articulação entre jornalistas,
intelectuais e ativistas políticos, instituíam-se nova modalidades de jornais
alternativos (Kucinski, 2003: 16).

A partir do início da década de 1980 estes jornais começam a desaparecer.

Apesar de haver algumas exceções – como o Bondinho, de São Paulo, o Lampião, de

Porto Alegre, ou O Beijo, do Rio de Janeiro, entre outros –, tratava-se de jornais que

não davam muita ênfase à sua apresentação visual, cuja diagramação, de maneira

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


geral, era pesada, com textos longos e tijolados, e com corpo da letra (tamanho)

pequeno e difícil de ler. Fortuna, caricaturista e artista gráfico, afirma ter conversado 44

várias vezes com os dirigentes destes jornais, sugerindo que fosse desenvolvido um

projeto gráfico a fim de os tornarem mais legíveis (Fortuna apud Chinem, 1995), mas

aparentemente a preocupação dos editores era muito mais com o conteúdo do que

com a forma.

1.3 Cultura E Civilização, Elas Que Se Danem, Ou Não*

Pode-se dizer que a imagem de revolução político-cultural, decalcada da década

de 1960, é herdeira do movimento beat dos anos 1950, do existencialismo do pós-

guerra, e das novidades libertárias germinadas nos anos 1920. Dito desta forma,

pode parecer que a década não inaugura nada de novo. Porém sua importância

histórica é inquestionável. As novidades dos anos 1960 vão além desses enredamentos.

Seu destaque sociológico reside na confluência de idéias oriundas das mais diferentes

esferas, e que irão configurar o imaginário revolucionário daquele momento. A

abrangência alcançada graças aos novos meios de comunicação, apoiados agora nos

modernos satélites de telecomunicação, afetam de forma profunda as relações entre

os povos. Surge a “aldeia global”, e com ela as diferentes formas de protesto.

O ano de 1968 apresenta-se como um divisor de águas na política internacional.

A ofensiva Tet, na Guerra do Vietnã, em janeiro; o assassinato de Martin Luther

King, em abril; assassinato de Robert Kennedy, em junho; a greve geral e protesto

dos estudantes em Paris, em maio; a grande manifestação pacifista antiguerra dos

estudantes da Universidade de Berkeley, em maio; a invasão da Checoslováquia pela

forças do Pacto de Varsóvia, em agosto; as atitudes iconoclastas dos hippies perante

o status quo; e a Convenção Nacional do Partido Democrata, em Chicago, no mês

de agosto, são alguns exemplos notáveis do “design da década”. O crescente ativismo

político, sobretudo no que tange à questão dos direitos humanos dentro de vários

setores da sociedade – tais como as feministas, os gays, e o movimento black power


*
Título de uma
música de Gilberto –, faz emergir novas e poderosas vozes de protesto.
Gil, LP Gal Costa,
Philips, 1969. Contestava-se tudo. Surgiam comunidades alternativas baseadas no anarquismo;

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


outras, num bucolismo; ainda outras no trabalho artesanal ou no vegetarianismo.

Como afirma Maciel (1987: 8): “Na raiz interna, o inconformismo era existencial. 45

Não era apenas a sociedade que estava errada; era o jeito que a gente vivia”. A

palavra de ordem foi “liberdade”.

No Brasil, a década de 1960 tem seu início marcado pela mudança geográfica

da capital da República. Brasília era a imagem da esperança de milhões de brasileiros

pela emancipação nacional nos planos político, econômico e social, esperanças estas

que seriam ceifadas a partir do golpe de 64. Em março de 68, após o assassinato do

estudante Edson Luís, os movimentos de protesto contra o regime instaurado ganham

intensidade e relevância. Em junho do mesmo ano realiza-se a “Passeata dos Cem

Mil”, considerada o ápice das manifestações de repúdio à ditadura.

No entanto, esse grande movimento de revolta que aconteceu não só no Brasil,

mas em todo mundo, terá vida curta, ainda que seus efeitos posteriores irão se

prolongar por muito tempo. Conforme diz Harvey (2000: 44):


Embora fracassado, ao menos a partir dos seus próprios termos, o
movimento de 1968 tem de ser considerado, no entanto, o arauto cultural
e político da subseqüente virada para o pós-modernismo. Em algum
ponto entre 1968 e 1972, portanto, vemos o pós-modernismo emergir
como um movimento maduro, embora ainda incoerente, a partir da
crisálida do movimento antimoderno dos anos 60.

No Brasil, a Tropicália foi um dos mais significativos arautos, em termos

culturais e políticos, que expressou todo um panorama de mudanças e enredamentos,

e influenciou o comportamento e o sentimento de toda uma geração, abrindo novos

caminhos para o cenário artístico, notadamente o musical e estético, além de trazer

novas discussões sobre o imaginário brasileiro.

A Tropicália, enquanto movimento basicamente musical, foi abortada pela

prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e durou menos que dois anos. Durante o

III Festival de Música Popular Brasileira, em 1967, Caetano e Gil, seus personagens

mais importantes, apresentaram as duas músicas que mudariam o caminho da MPB:

“Alegria, alegria” e “Domingo no parque”. Em dezembro de 1968, duas semanas

após a promulgação do Ato Institucional nº 5, que reduziu drasticamente os direitos

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


civis, Caetano e Gil são presos. Seis meses depois são obrigados a partir para o

exílio. Mesmo assim a Tropicália deixou marcas e mostrou novos caminhos para a 46

juventude brasileira.

É por essa época que, mesmo tardiamente, começam a chegar ao país

informações da contracultura: debates acerca do uso das drogas, a utilização da

psicanálise, o uso do corpo, os circuitos alternativos, os poetas beats americanos, o

feminismo, o movimento gay e o black power. A juventude da pós-Tropicália,

inconformada diante da repressão e do conservadorismo vigente no país,


vai desconfiar da direita e da esquerda ortodoxa, dando lugar a uma
radicalização da crítica comportamental e a um novo tipo de atuação, já
presente na Tropicália, que privilegia a intervenção múltipla, guerrilheira,
diversificada e de tom anarquista nos canais de sistema (Hollanda, 1981:
63).

Shelton Waldrep afirma que nos anos 1970 continua a tentativa da década de

1960 de abraçar as mudanças sociais e formais. Na suas palavras: “The seventies are

as much the product of a generation´s view of themselves as they are the symptoms

of a series of historical moments. (...) as that decade´s search for a ‘self ’” (2000: 3).20

Apesar do momento político em que vivíamos no Brasil, a década de 70, como

disse José Miguel Wisnick (1980), “sem movimentos culturais típicos, sem grandes

bandeiras, sem grandes alardes, chegou a dar impressão de que nada acontecia”. Mas

apesar do terror dos tempos, uma parcela da juventude não se deixava abater: o

“desbunde”,* a contracultura, a imprensa marginal, o cinema marginal, tudo isso

contrastando com a luta armada e a ditadura que teimavam em nos oprimir, foram

os principiais personagens culturais dessa década.


*
Expressão que Em janeiro de 1972, após dois anos em Londres, Caetano e Gil retornam do
surge na década
de 1970, e que
traduzia o
exílio. O frio daquela experiência é deixado para trás. No calor no hemisfério sul eles
comportamento
de alguns jovens vão encontrar uma juventude antenada com os acontecimentos do mundo. Marcada
que tinham
como política a pelos agenciamentos emblemáticos da Tropicália, aquela juventude enfrentava às
liberdade sexual,
o uso das drogas imposições do regime político como podia, inventando modos novos de encarar a
e a música, em
contraste com
outros que repressão vigente, buscando de forma inédita a liberdade através do exercício do
aderiram à luta
armada. corpo, pelo sexo, e da mente, pelas drogas. Formalmente, o “movimento Tropicalista”

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


tinha acabado, contudo suas idéias tinham sido incorporadas e aglutinadas por essa

juventude a todas as manifestações artísticas da época. 47

A juventude vivia o desbunde. As pessoas reinventavam o modo de viver e o

inconformismo era geral. Vivia-se a contracultura. Caetano e Gil de alguma forma

haviam iniciado esta transformação, colaborando fortemente com a deflagração das

transformações comportamentais, ou pelo menos foram eles que deram as

coordenadas a serem seguidas.

No campo da sexualidade, a discussão sobre os papéis sexuais era uma das

questões que o grupo baiano, notadamente atiçado por Caetano Veloso, tinha iniciado

ainda na Tropicália, e que tomaria vulto maior com a volta do cantor de Londres.

Conforme Silviano Santiago, o repórter da revista Veja que cobriu a chegada de

Caetano e o seu show no Teatro João Caetano, em 1972, não se furta em chamar

atenção para a roupa com que Caetano se apresenta:


Uma modesta calça cor de areia, estilo “tomara-que-caia”, e um blusão
Lee muito curto, desabotoado, com o umbigo de fora. Uma roupa no
mínimo “diferente”, como a jardineira que usava ao desembarcar no
aeroporto do Galeão… (apud Santiago, 2000: 151).

A apresentação de Caetano e Gil, usando batas femininas e beijando-se na

boca no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, provocou discussões sobre um novo

ser “andrógino”. Em 1973, uma banda de rock despontou no cenário musical do

Brasil – os Secos & Molhados. O grupo causou grande impacto e muita curiosidade.

Não só pelos cabelos compridos dos seus integrantes, nem só pela música, mas

principalmente pelo visual andrógino e diferente que eles apresentavam. Outro grupo

que serve para exemplificar a emergência no campo da arte de manifestações

polêmicas a respeito das diagramações de gênero, sexuais e comportamentais foi o

Dzi Croquete. O grupo, liderado pelo bailarino Lennie Dale, fazia um espetáculo

que misturava teatro e dança, onde a fronteira entre masculino e feminino era

destruída. Os rapazes vestiam-se de mulher, mas não raspavam o bigode. Este era,

em linhas gerais, o cenário no qual a partir de 1978 um Lampião pôde ser aceso nas

esquinas do Brasil.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


O aparecimento da Aids nos anos 80 vai desestabilizar um movimento que 48

havia se iniciado nos anos 1960 e tinha se fortalecido na década de 1970. Mudanças

das convenções sociais e do comportamento sexual de vários segmentos da sociedade

vinham adquirindo espaço e força nos debates sobre os direitos humanos. No fim

da década de 1970, os homossexuais gozavam nos grandes centros urbanos de uma

certa liberdade, refletida nas inserções na mídia, no considerável aumento de espaços

sociais, tais como bares, boates, restaurantes, praias, muito embora o preconceito se

manifestasse forte em diversas áreas. De qualquer forma, a conjuntura daqueles anos

proporcionava à comunidade gay uma liberdade na qual o hedonismo era o

personagem de maior destaque.

A Aids vem perturbar e desestabilizar esse cenário de conquistas. Luto e ameaça

apagam as luzes das boates, e tiram os rapazes das saunas. A “questão homossexual”

ganha, dessa vez, uma discussão pública. Os homossexuais tornam-se, uma vez mais,

malditos, pois são vistos como os vilões dessa história. Por outro lado, passos sem

retorno haviam sido dados, e a sexualidade humana foi posta na mesa e discutida

sob diferentes ângulos, interessando agora também aos sociólogos, médicos, políticos,

economistas, etc.

Durante a década de 1980 as informações sobre Aids estavam nas páginas dos

grandes periódicos. Não existia naquele momento uma publicação especificamente

direcionada para os gays que criasse um espaço de militância, ou congregasse ações

direcionadas ao grande problema que emergia. Contudo, essa ausência de

manifestações midiáticas não significa que reações não estivessem sendo gestadas.

Ou seja, sob o silêncio de publicações específicas, discussões e reflexões inevitáveis

engendravam as muitas iniciativas, algumas delas de importância capital no

enfrentamento da Aids e de suas decorrências, e que eclodiriam alguns anos depois.

Uma das características da década de 1980 foi a mobilização da sociedade civil

pela luta dos direitos básicos da população. Em várias partes do mundo, grupos se

organizam em defesa das causas ecológicas, dos direitos de cidadania de segmentos

socialmente marginalizados, uma luta pela vida. A luta que teve início nos anos 1960,

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


ainda que de uma forma idílica, é retomada nos anos 1980 com um caráter mais

pragmático. 49

No Brasil vivíamos o fim da ditadura militar e o início da redemocratização. É

o momento no qual os movimentos sociais aparecem para suprir as muitas demandas

acumuladas ao longo das últimas décadas pela maior parte da sociedade brasileira.

Surgem novos partidos, e dentro deles o mais expressivo é o PT. O Brasil organiza

uma nova Constituinte, e a militância política passa a ser mais relacionada ao dia-a-

dia e aos interesses de indivíduos. Conforme afirma Cristina Câmara da Silva:


O pluralismo e a diversidade trazidos à luz por estes movimentos marcam
o cenário social no qual surge a problemática da Aids, que gradativamente
constitui um movimento social próprio (1998:132).

Os ativistas remanescentes dos primeiros grupos organizados, de certa forma

desiludidos com o movimento – ou, como disse Trevisan (2000), com a “mera

movimentação mundana” – passam a se envolver efetivamente com a política

partidária. Muitos se filiam ao PT e começam a atuar dentro dos partidos. Vários

grupos políticos, tais como o PCB e o PT, que anteriormente tinham se posicionado

de forma avessa à luta dos homossexuais, incluem a discussão dos direitos

homossexuais nas suas plataformas.

O deputado Listz Vieira, eleito para a Assembléia Estadual do Rio de Janeiro,

em 1982, pelo PT, tinha como assessor Herbet Daniel, ex-guerrilheiro que na volta

do exílio envolveu-se com a luta partidária e com o ativismo homossexual. O Grupo

Gay da Bahia (GGB), fundado em 1980, começa a se destacar por sua contundente

luta contra as injustiças dirigidas aos homossexuais. O grupo lidera um abaixo assinado

nacional para que o Ministério da Saúde não mais adotasse o Código 302.0, da

Classificação Internacional de Doenças, que incluía a homossexualidade como desvio

e transtorno sexual. É também o GGB que começa a divulgar, como uma forma de

protesto, os assassinatos de homossexuais.

Dentro deste contexto, as organizações não-governamentais (ONGs) se

fortalecem no Brasil e no mundo. E, com o início da epidemia da Aids, passam a

surgir ações direcionadas a uma união mais solidária entre os diferentes grupos e

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


segmentos sociais, notadamente entre aqueles que lidavam com as vítimas do HIV.

Em 21 de julho de 1985, o Jornal do Brasil publicava uma matéria por meio da qual 50

soube-se que o Brasil era o terceiro país em incidência da Aids. As expectativas para

o que estava por vir eram as piores. A doença passou a ser assunto constante em

quase todas as mídias. Não só a doença, como também a sexualidade humana, e

sobretudo a homossexualidade.

Apesar disso, as pessoas atingidas pelo vírus viviam um sentimento de

desamparo e solidão que nenhuma outra doença havia provocado antes. Sem respostas

alentadoras dos órgãos públicos e da medicina, as vítimas da Aids foram levadas a

procurar umas a outras, e dessa forma começaram a se organizar. Foi o início dos

grupos de apoio aos portadores do vírus. Naqueles dramáticos tempos, ser portador

do vírus significava o fim da vida, uma terrível dupla condenação – física e moral –

, pois o vírus também trazia o “estigma da homossexualidade”.

A idéia da Aids estar associada à homossexualidade vai permanecer por muito

tempo no imaginário popular. Eram tempos orientados por uma equação simplista:

ser gay significava ter Aids; ou “quem tem Aids é gay”. Isto fez com que os

homossexuais, no Brasil e no mundo, os primeiros afetados pela doença, fossem

aqueles que primeiramente se organizaram na luta contra a epidemia. A Aids, por ser

considerada como nenhuma outra doença antes uma “doença só de gays”, levou a

deflagração de ações preventivas e emergenciais no meio da comunidade

homossexual. Porém, ironicamente, ela passou a atingir também, e de forma

alarmante, à população heterossexual, como seria visto alguns anos mais tarde.

Em 1979, o sociólogo Herbet José de Souza, o Betinho, depois de um longo

exílio, retornou ao Brasil e passa a se dedicar às lutas sociais e políticas. Betinho e

seus dois irmãos – o cartunista Henfil e o músico Chico Mário – eram hemofílicos.

Obrigados a freqüentes transfusões de sangue, acabaram por contrair o vírus HIV.

Betinho, então, começa a lutar pelo direito à vida digna aos portadores do HIV/

Aids. Uma luta que não era só no plano pessoal ou familiar, mas abrangeu um nível

mais amplo – o da defesa da dignidade humana.

Em 1986, Betinho e um grupo de profissionais de diversos setores da vida

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


política e do movimento social criam a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids

(ABIA). A ABIA é uma dentre as várias ONGs que surgem para acompanhar as 51

políticas públicas de saúde. Dentre suas atuações constava um intenso trabalho de

educação e prevenção, e também de assistência e tratamento aos portadores do HIV/

Aids. Henfil e Chico morrem em 1988, e Betinho vem a falecer em 1997.

Outro nome que se tornou importante na luta pelos direitos humanos das

pessoas que viviam com Aids foi Herbert Daniel. Escritor, homossexual e ex-exilado

político, ele foi um dos fundadores da ABIA junto com Betinho. Herbert dedicou-

se a luta pela valorização e dignidade das pessoas vivendo com Aids, até sua morte

em 1992.

Em março de 1989, em uma matéria no Jornal do Brasil intitulada “Notícias da

outra vida”, este ex-guerrilheiro torna público seu status sorológico. Ainda no mesmo

texto, Daniel inicia sua luta contra a discriminação e o preconceito que aflige as

pessoas vivendo com o vírus. Ele dizia: “Eu, por mim, descobri que não sou aidético.

Continuo sendo eu mesmo. Estou com Aids” (apud Bessa, 2002). A partir dessa matéria

o escritor dará várias entrevistas, escreverá vários artigos e livros sobre a epidemia.

No mesmo ano, apesar de ele já fazer parte da ABIA, cria também o Grupo Pela

Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Pela VIDDA). Conforme

afirma Bessa:
No Pela VIDDA os soropositivos deveriam ser um elemento importante
nas decisões e ações, fazendo com que, além de estratégias de prevenção,
discutissem-se coisas específicas de e para as pessoas com HIV/Aids
(2002: 86. Grifos do autor).

Outra ONG importante é o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA-

RJ), criado em março de 1987 por Artur Carvalho de Amaral Gurgel e Antônio

Carlos Barros de Freitas, ambos homossexuais. O GAPA-RJ surge depois que Artur

e Toni assistem à uma reportagem sobre o GAPA-SP, que já funcionava desde 1986.

Estas e outras ONGs desenvolveram, aqui e fora do Brasil, um trabalho que

nenhum governo conseguiu realizar: conscientizar e defender a dignidade daqueles

que vivem com o HIV/Aids. Um dos trabalhos dessas ONGs era publicar

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


periodicamente boletins com informações sobre a doença. A maioria destes boletins

trazia notícias positivas sobre as novas descobertas no campo da medicina e da 52

farmacologia. Surgem, assim: o Boletim da ABIA; o Boletim Pela Vidda/RJ; o Beijo da

Rua, publicado pelo ISER; o Boletim do Grupo de Incentivo a Vida, de São Paulo; o

Boletim Informativo Folha de Parreira, de Curitiba; o Boletim Epidemológico Aids, publicado

pelo Ministério da Saúde; e o Boletim Informativo ATOBA. Todos estes boletins passam

a ser publicados a partir de 1986, mas têm uma periodicidade instável.

Embora o plano Collor de 1990 tenha intensificado os muitos problemas

econômicos brasileiros, principalmente através do congelamento do dinheiro da

sociedade, grandes mudanças socioeconômicas tinham acontecido durante a década

de 1980. O fim da década apresenta um quadro de expansão monetária, mas uma

hiperinflação iludia grande parte da população, fazendo-os crer em um aumento de

ganhos financeiros. De todo modo, muitos cidadãos ascenderam socialmente. É

neste período que a indústria do turismo brasileira começa a investir em programas

direcionados para os gays. Este panorama vai se tornar muito mais forte nos próximos

anos, com o aparecimento do pink market e do conceito GLS (Gays, Lésbicas e

Simpatizantes). No capítulo IV retornarei a esse assunto.

Os primeiros anos da década de 1990, época do surgimento do jornal Nós Por

Exemplo – que será tema do capítulo III – é um período de grandes transformações

na comunidade gay brasileira. Começam a surgir vários grupos organizados no Brasil.

Estes grupos começam a se articular entre si, buscam parceiros e apoio em órgãos

do governo, fazem articulações importantes, tais como a retirada da homossexualidade

como patologia da Classificação Internacional de Doenças; tentam a possibilidade

de incluir na Constituição Federal a proibição da discriminação por orientação sexual;

é lançado um guia Gay Rio; e um candidato, assumidamente gay, concorre a vereador

no Rio de Janeiro. Estes acontecimentos demonstram que a comunidade gay avança

na consolidação da luta pelos direitos que lhe são devidos. Hoje observamos que a

comunidade gay de alguns estados brasileiros tem um papel importante, ainda que

pequeno, no contexto sociopolítico do Brasil.

No Brasil, a partir dos anos 1990, depois de quase uma década que convivíamos

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


com HIV e com um número muito grande de perdas, ganha espaço a discussão

sobre direitos patrimoniais de parcerias homossexuais, tema este que tem ocupado 53

muitas páginas de jornais. Estas discussões trouxeram à tona um debate mais

abrangente sobre as novas famílias e novas possibilidades de parentabilidade.

Em vários lugares do mundo, homossexuais formam famílias. Em 1993, já se

encontravam registrados mais de 3 milhões de gay e lésbicas que tinham filhos (Cf.

Martin, 1993). É óbvio que este desejo não é uma coisa nova. Mas onde encaixar esta

família? Como encaixá-la na rígida matriz tradicional da família brasileira. Este desejo

de constituir família, seguir os padrões tradicionais, e (por que não?) ter filhos é um

desejo pessoal e ponto! Inclusive de muitos gays. Uns almejam o “viver felizes para

sempre” e outros não.

Historicamente, a paternidade para os homossexuais, sobretudo nas sociedades

cristãs, foi vista como algo inconcebível. Isso gerou e incutiu um sentimento de

negação internalizado, e se acreditava que gays e lésbicas não tinham competência

nem direito de educarem crianças, mesmo sendo seus filhos. A grande questão seria:

“Como um gay ou uma lésbica poderiam educar uma criança?” A radicalidade do

preconceito contra a homossexualidade estava embutida nesta questão. O pensamento

da fé judaico-cristã de que o sexo é para procriação deixou os homossexuais por

muito tempo à margem da paternidade como instituição, na medida que muitos

destes foram, são e serão pais, a despeito do que quer e pensa o poder dominante.

A idéia de família que nós conhecemos e que é aceita – a família conjugal – é

resultado de um processo do regime de repressão ao sexo iniciado no século XVIII.

Baseado no patriarcado, este é o paradigma que vai se estender até a década de 1960,

quando parte da juventude em vários lugares do mundo começa a discutir novas

formas de famílias. Segundo Anna Paula Uziel, no Brasil a Constituição de 1988

inova ao “conceber como família quaisquer dos pais e seus descendentes, rompendo

o formato único existente anteriormente” (2004: 29).

No Brasil, a união civil entre pessoas do mesmo sexo ganha destaque apenas

nas edições da Sui Generis, como vereremos no capítulo IV. Primeiramente em 1996,

trazendo a deputada Marta Sulicy na capa e, em 1998, “a família gay” é capa da

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


edição número 40. Segundo Jurandir Freire:
A imensa maioria quer o modelo conjugal do amor romântico onde 54
fomos socializados. As pessoas têm essa fome do afeto, de serem
importantes para o outro, de estabilidade no relacionamento (1993: 5).

Em 1995, a então deputada Marta Suplicy apresentou ao Congresso Nacional

o projeto de lei, nº 1.151, propondo a legalização da união de pessoas do mesmo

sexo. O projeto gerou grandes debates na sociedade brasileira, e foi substancialmente

alterado na comissão que o discutiu (Uziel, 2005). Apesar de toda discussão, o projeto

ainda está à espera de votação no Congresso Nacional.

Embora o assunto já tenha mais de 50 anos nas páginas da impressa gay,

demonstrando um interesse de parte da comunidade, e projetos de lei tramitem nos

Congressos Nacionais e internacionais, a união civil legal ainda é sonho para muitos!

Segundo Anna Paula Uziel:


Nos anos 1990, com a emergência da Aids na década anterior, em muitos
países, projetos de lei visando ao reconhecimento da conjugalidade entre
pessoas do mesmo sexo foram propostos, votados, aprovados, retirados
de votação (2005: 113).

Mas não restam dúvidas de que nos anos 1990 o crescimento do movimento

a favor das causas dos homossexuais trouxe mudanças não só no campo político, na

medida em que o homossexual se coloca como cidadão e ganha visibilidade na

sociedade brasileira. Como decorrência, os gays ganham destaque nas suas

individualidades, sendo estimulados e apoiados na luta para assumir as suas

identidades. Isto pode ser visto nos diferentes termos empregados para definir o

reflorescimento do ativismo homossexual no Brasil.

Com o passar dos anos constatamos que houve um amadurecimento das

identidades públicas. Foi necessário um longo período para que os gays, as lésbicas

e os travestis conseguissem ir para as ruas reivindicar os seus direitos. Esse

amadurecimento é fruto de vários fatores que de certa forma beneficiaram a vida de

boa parte dos gays e lésbicas. A medicina trouxe esperanças, com a descoberta dos

retrovirais; o mercado financeiro percebe que os gays e as lésbicas consomem; uma

legião de heteros passam a viver, de forma aberta, muito próximos dos homossexuais,

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


e até ganham um nome: “simpatizantes”. Conforme veremos no capítulo IV, será

este o universo refletido pela Sui Generis, uma revista de comportamento típico dos 55

gays dos anos 1990. Treze anos depois da primeira tentativa de organizar uma parada

gay, o Brasil tem a maior parada GLBT do mundo.

1.4 Surge Uma Imprensa Gay No Brasil

A imprensa gay no Brasil, como no mundo, surge da necessidade que uma

parcela da sociedade teve em procurar seus semelhantes, buscar uma união com os

iguais, construir um refúgio coletivo, lutar contra um sistema que os tornava invisíveis.

Assim como ocorreu na Califórnia, onde Lisa Bem distribuía em 1947 seu jornal

Vice-Versa de mão-em-mão pelos bares de Los Angeles, conforme comentamos

adiante, no Rio de Janeiro a coisa não foi tão diferente. A grande diferença é que

aqui no Brasil os primeiros jornais só apareceram na década de 1960.

Durante as décadas de 1940 e 1950 as revistas voltadas para o fisiculturismo e

as que incentivavam o naturismo como opção de vida povoavam o imaginário dos

homossexuais masculinos. Estas revistas estampavam várias fotos de homens seminus

ou nus em suas páginas. Por muito tempo estas revistas foram objeto de desejo de

muitos homossexuais. Apesar de fazer parte da cobiça dos gays, estas revistas não

eram direcionadas para este público.

De acordo com o jornal Lampião da Esquina, no início da década de 60 surgiram

as primeiras publicações dirigidas para o público homossexual. No Rio tínhamos,

de restritíssima circulação, as publicações Snob, Le Femme, Subúrbio à Noite, Gente Gay,

Aliança de Ativistas Homossexuais, Eros, La Saison, O Centauro, O Vic, O Grupo, Darling,

Gay Press Magazin, 20 de Abril, e O Centro; em Niterói existiam Os Felinos, Opinião, O

Mito; em Campos havia o Le Sophistique; na Bahia contava com O Gay e O Gay Society,

O Tiraninho, Fatos e fofocas, Baby Zéfiro, Little Darling e Ello. Segundo os editores do

Lampião, eram jornais que versavam sobre amenidades e badalações sociais, sem

esquecer de falar de acontecimentos culturais, reportagens e classificados. Eram jornais

feitos por alguns amigos para seus amigos. Nem por isso eram vistos como algo

menor.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


No inicio da década de 1960, alguns editores destes jornais resolveram criar a

Associação Brasileira de Impressa Gay (ABIG). O número de jornais já demonstravam 56

que a busca por um território social tinha tomado outras feições. O jornal, a mídia

impressa, fazia-se necessária como uma forma de afirmação. Conforme afirma Anuar

Farah: “Nós tínhamos um ideal, queríamos mostrar que éramos pessoas normais,

que fazíamos o que todas as outras faziam” (Lampião, n. 28, p.7).

A associação durou apenas até 1964, mas os jornais prosseguiram sendo

publicados. Eles eram produzidos artesanalmente, feitos à mão, alguns xerocados

ou mimeografados. De acordo com o Lampião, alguns bem eram “obras de arte”,

como o único exemplar do Di Paula, da Bahia. Outros tinham uma diagramação

moderna, como o Gente Gay. Em sua maioria estes jornais usavam a ilustração como

ornato, vinhetas sem sentido ilustrativo, porém todas icônicas. Se, para Corbusier

todo ornato tem que ir para o lixo, é algo desnecessário, para a turma do Snob os

ornatos traduziam uma faceta da vida deles. Neste caso ornato é signo, e como tal

faz-se necessário. Além do que eles respondiam melhor aos processos do mimeógrafo

do que as fotografias. Quando a xerox passa a ser mais conhecida e mais acessível,

os desenhos começam a desaparecer e a fotografia começa a ocupar seu lugar. Apesar

de vida efêmera e frágil, estas publicações sofreram transformações não só na sua

narrativa verbal, como também na narrativa visual.

Em seu livro Beyond Carnival (Green, 1999), um grande painel sobre a realidade

sociocultural da homossexualidade brasileira, o historiador James

Green fala destas publicações que antecederam aquelas que me

proponho a analisar, mas que ajudaram na construção de uma

identidade gay. Uma delas, talvez a mais importante, chamava-se Snob

(talvez o primeiro jornal homossexual, e de vida mais longa do Brasil,

criado no início dos anos 60 por Agildo Guimarães). É importante

observar como as vinhetas rococós, elaboradas ilustrações de modelos

femininos estampadas no Snob, vão aos poucos desaparecer. Feito de

forma artesanal, o jornal era mimeografado e distribuído entre amigos,


SNOB, número 10, 1965, capa. tendo sido quase exclusivamente um veículo para registrar as festas e

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


reuniões desse grupo, além de dar dicas sobre locais de “pegação”, moda e os últimos

acontecimentos na cidade. Apesar de suas tiragens terem se limitado quase 57

exclusivamente a um pequeno grupo, seu pionerismo e originalidade são muito

importantes para analisarmos questões de gênero, a visão política dos editores e

leitores e questão da construção de identidades. De 1963 até 1969, o Snob apresentou

mudanças significativas não só em seu discurso verbal assim como no seu discurso

visual. No editorial do número 1, o jornal se apresentava desta forma:


Apresentamos nosso jornalzinho: Finalmente estamos lançado o número
1 do nosso jornal. O jornal do nosso grupo. Para falarmos de nossas
festas, fazermos fofocas e discutir as últimas novidades. Nós não
pretendemos ter uma grande circulação ou competir com O Globo ou
Última Hora e, não somos da esquerda nem da direita, é melhor ficar
no meio. Ele terá um milhão de defeitos e erros. Nós pedimos desculpas
(...) (apud Green, 1999: 184).

Já no primeiro editorial podemos ver que o editor

define a estatura do seu produto para sua defesa. De

acordo com Green (1999), o Snob definia-se a si próprio

como “um jornal de notícias para entendidos. Um jornal

para o público certo. Um jornal para quem tem bom

gosto”. O Snob fornecia uma entrada sui generis para o

mundo das “bichas”, “bofes”,

“bonecas”, e “entendidos”. SNOB, ano III, número 4,


março de 1965, página
Na capa da edição de

agosto de 1968, a imagem apresentada traduz o imaginário

deste pequeno grupo de amigos. A ilustração apresenta

uma figura “de uma mulher” vestida em traje de gala,

sentada em uma cadeira que mais parece um trono, cheio

de volutas e ornamentos. Era a imagem das “bonecas”.

Figuras com estilo, graça, personalidade, “muito bom

gosto”, que estavam “acima do resto da sociedade”,

imagem esta que durante muito tempo foi aquela idealizada


SNOB, número8, agosto de 1968, capa. por um certo grupo homossexuais: a imagem do

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


diminutivo (“nosso jornalzinho”), da futilidade (“festas, fofocas e novidades”) e da

culpa (“temos um milhão de defeitos, nós pedimos desculpas”). Esta imagem 58

associada à futilidade, e preconceituosamente a uma certa feminilidade, começa a ser

questionada por membros do grupo que realizavam o Snob, que passaram a se

interessar pela construção de uma identidade homossexual masculinizada, e não de

uma “boneca”. Em 1969, último ano de publicação do jornal, um dos seus editoriais

trazia o seguinte discurso:


1969 parece ser um ano de novelties. Pelo menos para nós, do Snob,
muitas coisas irão acontecer no curso do deste ano. Nós iniciamos um
jornal mais adulto, onde as crônicas, poesias, artigos de real interesse,
contos, e um colunismo social saudável sem fofocas, o que foi
abandonado por nosso colunista por um tempo, e sem desenhos de
figuras femininas (…) Nós vamos mostrar que agora nós estamos
revelando quem realmente somos. Nós estamos perto do século 21, a
dois passos da lua, e não podemos permitir pessoas com certas fantasias
ficarem estacionadas um século atrás do nosso (apud Green, 1999: 194).

Desta vez a capa não estampava uma boneca, mas dois homens nus fazendo

sexo. O discurso era outro: “um

jornal mais adulto”

(apresentando dois homens se

amando), “sem desenhos de

figuras femininas” (a ilustração

traz dois homens), procurando

mostrar “quem realmente

somos” (um dos homens tem o

pênis ereto e eles estão de mãos


SNOB, ano 7, nº 2, maio de 1969, capa.
dadas, dando idéia de união). A

figura da “deslumbrada” ou das “bonecas” que apareciam no Snob começa a dar

lugar ao “entendido”.

Segundo antropólogos que estudaram a homossexualidade no Brasil, esta nova

identidade surge a partir dos anos 60 entre a classe média do Rio de Janeiro e São

Paulo. Os “entendidos” negavam termos pejorativos, tais como “viado”, “louca” ou

“bicha”, assim como também recusavam o maneirismo efeminado. Eles preferiam o


Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil
termo “entendido”, pois este refletia uma pessoa mais reservada. Além disso, o

termo trazia uma posição mais igualitária, identificada sobretudo com o modelo 59

norte-americano, em termos de comportamento sexual, que não imitava as dualidades

ativo/passivo, e masculino/feminino, associadas às posturas hierárquicas, estabelecidas

a partir de um “índice de masculinidade”. Definitivamente aquele que penetra não é

mais homem do que aquele que é penetrado (Ver, a respeito: Green, 1999; MacRae, 1990; e

Guimarães, 2004). Como se vê, significativas mudanças que estavam acontecendo no

coletivo passaram a se refletir no tratamento editorial dos periódicos.

Antes de o Lampião ocupar as esquinas do Brasil, outros jornais tentaram esta

façanha. Em dezembro de 1976, algumas das pessoas que faziam o Snob resolvem

lançar o Gente Gay. Feito de forma artesanal – o jornal era reproduzido por xerox –

Gente Gay teve uma boa repercussão, chegando a ser impresso de forma industrial

em dois números. Mas, sendo lançado ao mesmo tempo que o Lampião, e não

amparado pelo profissionalismo técnico com que o Lampião se armou, veio a falir.

Em 1977, em São Paulo, é lançado o jornal Entender. Inicialmente artesanal, o jornal

depois de alguns números resolveu também se industrializar, mas não obteve sucesso.

Ainda existiram de forma bem discreta o Mundo Gay e o Jornal dos Entendidos (Cf.

Green, 1999).

Durante a década de 1970, com a mudanças comportamentais por que passava

a sociedade brasileira, jornais da grande imprensa passam a ter colunas sociais gays.

“Tudo Entendido”, de Fernando Moreno, na Gazeta de Notícias; “Guei”, de Glorinha

Pereira, no Correio de Copacabana; e a mais famosa, e com grande destaque na

mídia, a “Coluna do Meio”, do jornalista Celso Curi, publicada no jornal Última

Hora, de São Paulo, de fevereiro 1976 até novembro de 1977. A coluna causou grande

alvoroço no meio jornalístico e social, o que levou o autor da coluna a ser processado

por atentado aos bons costumes. Conforme o número zero do Lampião, o

superintendente do Departamento Regional de São Paulo da Polícia Federal acusava

a coluna de “promover a licença de costumes e o homossexualismo especificamente”

(p. 6).

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


Mas tudo isso mudaria em poucos anos. A tempestade que se abatia sobre a

sociedade brasileira desde 1964 começava a se dissipar. Os estudantes voltavam às 60

ruas. A UNE ressurge, e uma oposição ao regime militar intensifica-se a partir de

1978. São estes ventos da bonança que vão permitir o aparecimento do Lampião da

Esquina, uma nova luz nos becos escuros do preconceito, conforme veremos no

próximo capítulo.

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


Traduções
1
“Conforme homens e mulheres que se sentiam atraídos por pessoa do mesmo sexo foram assumindo
61
uma autodefinição de homossexual ou lésbica, começavam a buscar outros como eles, e aos poucos foram
criando uma vida de grupo” (D´Emilio, 1998: 22). Todas as traduções a seguir, transcritas nas notas de rodapé,
são de nossa autoria.

2
“As pessoas que já chegaram a uma autodefinição como homossexual ou lésbica encontraram melhores
oportunidades durante a Segunda Guerra para conhecer outros como eles. Ao mesmo tempo, aqueles que
experimentavam uma forte atração pelo mesmo sexo, mas se sentiam inibidos de agir, subitamente tinham
relativamente mais liberdade de iniciar um relacionamento homossexual” (D´Emilio, 1998: 24).

3
“Essa aparência comunica um forte sentido de precisão, muito diferente das imagens não-conformistas
e aleatórias, comuns entre publicações de movimentos sociais. Essa forma altamente convencional sugere que
uma outra característica a distinguir a imprensa gay e lésbica seria um forte compromisso com a forma e a
aparência” (Streitmatter, 1995: 16).

4
“Mas o feito mais importante foi que as revistas, de fato, falavam. Criavam um espaço nacional para os
homossexuais, uma arena na qual lésbicas e gays poderiam, pela primeira vez, falar um tom acima de um sussurro
sobre assuntos fundamentais de suas vidas. As revistas davam a uma minoria oprimida uma chance de exprimir
pensamentos que antes haviam sido barrados do discurso público. Os leitores admiravam a coragem exibida
pelos editores” (Streimatter, 1995: 18).

5
“Este esforço pioneiro de publicar revistas sobre a homossexualidade trouxe ao movimento gay sua
única vitória significativa durante os anos 1950” (D´Emilio, 1998: 115).

6
“Outra característica das publicações dos anos 1950 que refinou um elemento introduzido pelo seu
predecessor girava em torno do design. Ben demonstrou um compromisso forte para com a aparência de sua
revista, e os fundadores de One e The Ladder levaram esse compromisso adiante, usando elementos gráficos
arrojados e imagens cativantes para tornar o design um dos elementos mais distintivos das publicações. One
enfatizou ainda mais o visual ao introduzir imagens sugestivas de homens, destinadas a se tornar um ingrediente
básico da imprensa gay” (Streitmatter, 1995: 49).

7
“One era superdramática em termos de design. Consoante o alto nível de bom gosto e estilo que
muitos homens gays possuem, os fundadores insistiam que sua revista tivesse composição tipográfica e fosse
impressa em vez de datilografada e mimeografada. Essa foi uma decisão ousada, uma vez que a revista não
possuía nenhuma fonte consistente de receita além dos bolsos de seus fundadores. Mas esses homens viam
como essencial a impressão profissional para a reprodução apropriada do projeto gráfico forte e moderno, e que
virou marca registrada da revista. Esse projeto gráfico refletiu o passo audacioso tomado pelos fundadores ao
criar a primeira publicação gay de ampla circulação dos Estados Unidos” (Streitmatter, 1998: 23).

8
“A contracultura deu sua contribuição mais significativa para o movimento da liberação gay ao desafiar
a definição convencional de comportamento sexual aceitável. Pois, no contexto da revolução sexual que irrompera
como parte do movimento da contracultura, a homossexualidade não mais estava sendo considerada – ao menos
por alguns segmentos da sociedade norte-americana – como um desvio drástico da sexualidade normal”
(Streitmatter, 1998: 92).

“Uma vez que os líderes gays reconheciam que uma comunicação interna efetiva é essencial para que
9

uma organização articule sua ideologia, desenvolva uma consciência política entre seus membros, aumente de
tamanho e se sustente, estabeleceram que produzir publicações seria um elemento central na sua estratégia de
mudança social” (Streitmatter, 1998: 53).

10
“Vector, a revista mensal da SIR, era vendida em bancas pela cidade inteira. Seu formato atraente, em
papel couché, incluía notícias sobre o progresso dos direitos gays, como também sobre entretenimento e fofoca
para garantir um apelo amplo” (D´Emilio, 1998: 191).

11
“A Vector foi, portanto, a primeira publicação a reconhecer que não haveria revolução até que os
ativistas encorajassem um maior número de gays a sair dos bares e tomar as ruas” (Streitmatter, 1995: 65).

12
“Uma das maiores dificuldades em editar uma revista é que o editor tem que determinar o que
interessa a você, o leitor, coletivamente. (...) A resposta que encontramos foi dar alguma coisa para cada um. A
revista agora está bem equilibrada, baseada na nossa premissa de quem seja o leitor da Vector. Neste número
você irá encontrar uma declaração por um ativista gay adolescente, nosso Guia Gay completo, descobrir o que
acontece num fórum sobre sexo e drogas, (...) e uma discussão franca sobre o ‘chato’ (o carrapato, não o tipo que
nos entedia...)” (Vector, nov, 70: 6).

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


13
“.. é uma revista feita para e por homossexuais lidando com a única coisa que nossos leitores têm em
comum – sua homossexualidade” (Vector, 1971: 6).

14
“Publicar o que a imprensa heterossexual não publicaria” (Streitmatter, 1998: 88). 62
15
“Parabéns para nós! Nascemos. E como toda criança, somos, e seremos por um tempo, desajeitados,
desengonçados, cheios de inocência, e talvez até um pouco feios, exceto, é claro, aos olhos de nossos pais. Os
homossexuais, mais do que nunca, estão em campo para conquistar seus direitos legais, pôr fim às injustiças
cometidas contra eles, experimentar seu quinhão de felicidade à sua maneira. Como jornal, o objetivo principal
do Advocate é publicar as notícias que são importantes para o homossexual – passos legais, notícias sociais,
acontecimentos das várias organizações – qualquer coisa que o homossexual precisará ou quererá saber. Existimos
para servir você, mas não podemos fazê-lo sem a sua ajuda” (The Los Angeles Advocate, n. 1, set, 1967: 6).

16
“Você está empregado e é um cidadão útil e responsável. Você tem um corpo atraente, boas roupas e
um lar convidativo. O “Homem do Advocate” vive a boa vida – malhando, freqüentando bares várias noites na
semana, enriquecendo sua sexualidade gay, lendo literatura e apreciando arte” (Advocate, n. 29, jan, 1975: 3).

17
“Todo artista gráfico sabe que as imagens atraem o leitor ao conteúdo editorial, e sabíamos exatamente
que tipo de imagens nossos leitores buscavam” (Streitmatter, 1998: 191).

18
“O sexo era o oxigênio das nossas vidas. Stonewall presenteara os homens gays com uma noção
visceral de liberdade, e definimos isso, literalmente, como dar-nos licença de nos deliciarmos com múltiplos
parceiros sexuais e realizarmos uma variedade infinita de fantasias sexuais” (Jim Kepner apud Streitmatter, 1995:
194).

19
A cobertura jornalística agora consiste em artigos sobre como os gays estão se aproximando do status
quo, sem falar nada sobre o que fazem os grupos ativistas. No passado poderíamos pensar em dois grupos
adversários – gay e antigay –, porém, não mais ‘o inimigo está entre nós’” (apud Streitmatter, 1998: 186).

20
“Os anos 70 são tanto o produto de uma visão de uma geração de si mesma, quanto sintoma de uma
série de momentos históricos [...] uma busca de si próprio” (Waldrep, 2000: 3).

Capítulo 1 - Primórdios da Imprensa gay nos EUA e no Brasil


Capítulo II
63

O PRIMEIRO LAMPIÃO É ACESO

Pai e mãe
Letra e música: Gilberto Gil

Eu passei muito tempo


Aprendendo a beijar Outros homens
Como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo
Pra saber que a mulher
Que eu amei, Que amo, Que amarei
Será sempre a mulher
Como é minha mãe

Como é, minha mãe?


Como vão seus temores?
Meu pai, como vai?
Diga a ele que não Se aborreça comigo
Quando me vir beijar Outro homem qualquer
Diga a ele que eu Quando beijo um amigo
Estou certo de ser Alguém como ele é
Alguém com sua força
Pra me proteger
Alguém com seu carinho
Pra me confortar
Alguém com olhos
E coração bem abertos
Pra me compreender
Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso
O legado mais importante da “Rebelião de Stonewall” foi ela ter se
transformado de um simples momento de emoção à flor da pele em um movimento 64
de racionalização, de sistematização da luta, de inauguração e prolongamento de

ações políticas que deixarão marcas profundas nos corpos e mentes de gays e lésbicas.

Depois que a tormenta passou, foi a vez dos jornais e revistas da imprensa gay

manterem acesa a lembrança daquela semana nas cabeças e corações da comunidade

gay e de toda a América.

Rodger Streitmatter (1995) conta-nos que somente nesse período (os meses

seguintes a Stonewall) apareceram em Nova York quatro jornais: Gay, Come Out!, Gay

Times e Gay Flames; na costa do Pacífico surgiram vozes radicais: Gay Sunshine e San

Franciso Gay Free Press; em Boston tivemos o Lavender Vision; em Detroit, o Gay

Liberation; e o Killer Dyke, em Chicago. Estes foram alguns dos mais importantes

periódicos que surgiram logo depois do incidente de Stonewall.

Os periódicos sempre foram bons comunicadores das histórias da vida e dos

sonhos. Além disso, eles criam verdadeiros espaços de manifestação de opiniões

acerca de um certo tema, com alguma coerência ideológica entre si, e colaboram

para congregar um determinado grupo de pessoas que lêem a mesma história e

compartilham dos valores ali expressos, e que de alguma maneira se identificam com

eles. Por isso, jornais e revistas são um campo da inevitável ação do design gráfico,

responsável por estabelecer um equilíbrio entre forma, conteúdo e função, num

mecanismo de amarra de comunicação para os leitores. De certo modo, podemos

dizer que o design gráfico tem um grande peso no sucesso de mercado ou não dos

novos periódicos.

De acordo com Richard Buchanan (1989), o designer, em vez de simplesmente

criar um objeto ou coisa, está criando, de fato, um argumento persuasivo que se

aviva sempre que um usuário contemplar ou usar um produto. Ou ainda, conforme

Rafael Cardoso Denis (1998: 35): “A função do designer é fazer colar – aderir mesmo

– significados de outros níveis bem mais complexos do que aqueles básicos que

dizem respeito apenas à sua identidade essencial”. O design é responsável por articular

numa linguagem complexa um processo de enunciação que envolve relações

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


ontológicas, históricas, atributos simbólicos, materiais, técnicos, etc. Trata-se de uma

tecnologia aplicada à criação, produção e veiculação da mídia visual, bem como dos 65
diferentes discursos assumidos nas suas diversas manifestações. Nessa perspectiva,

o designer também é um construtor de discurso. Ele ocupa o lugar de intermediar o

processo comunicacional. Segundo Kress e Leeuwen:


O design visual, como a língua, na verdade como todos os modos
semióticos, desempenha duas funções principais – uma função de
produzir idéias, representado o mundo ao redor e dentro de nós, e uma
função interpessoal, articulando as interações sociais com relações sociais.
(Kress & Leeuwen, 2000: 13).

O design é uma área intersticial, que se avizinha e se estende por diversas

áreas. Para Gustavo Bomfim (1998): “O design, do mesmo modo que qualquer outra

atividade do processo extremamente complexo e dinâmico do trabalho social, é

orientado por um conjunto de objetivos de natureza política, ideológica, social,

econômica, etc.”. O design gráfico, por sua vez, é uma das especialidade dentro do

próprio design. Ele articula questões que são maiores e muitas vezes distantes da sua

esfera de ação tradicional, como mera arte aplicada, pois trata de associar elementos

da comunicação social, das artes plásticas, da arquitetura, etc., com a indústria cultural

como um todo.

Streitmatter (1995) nos leva a uma detalhada viagem pela imprensa gay americana,

mostrando o papel importantíssimo que os periódicos tiveram e continuam tendo

para a construção e afirmação de um movimento com idéias e identidades próprias.

De acordo com o autor, circulam nos EUA cerca de 850 publicações endereçadas ao

publico gay/lésbico.

No Brasil, como veremos a seguir, ainda demoraria para que gays e lésbicas

pudessem ter canais formalmente concebidos e elaborados para veicularem seus

interesses e opiniões, e sobretudo servirem de instrumento agregador de diversos

grupos. Diferentemente dos Estados Unidos, só em 1978 surge no Brasil o primeiro

periódico nacionalmente distribuído e dirigido a este público, que ajudou a semear o

que viria a ser o movimento gay brasileiro: o Lampião da Esquina.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


2.1 Nasce Uma Cultura Gay Organizada (?)

O surgimento do Lampião da Esquina faz parte do inconformismo diante da 66


repressão e do conservadorismo que se abatia sobre uma parcela da sociedade

brasileira. O Lampião foi o primeiro, em nível nacional, a abordar a questão da

sexualidade, e principalmente da homossexualidade, além de lutar contra a repressão

e o preconceito fortemente recrudescidos durante a ditadura militar. Vale lembrar

como indicamos no capítulo anterior, que outras publicações gays circulavam de

maneira discreta e reservada entre pequenos grupos. Entre os anos 60 e 70 muitos

periódicos direcionados para o publico gay surgiram e desapareceram no Rio de

Janeiro. Fora do Rio, um dos lugares mais significativos em termos de imprensa

homossexual foi Salvador. Entre 1963 e 1978 várias publicações datilografadas,

mimeografadas ou xerocadas circularam entre a comunidade gay, conforme atesta

Marcus Assis Lima (2001) em seu ensaio sobre a imprensa homossexual no Brasil.

No Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, o movimento gay organizado

começou efetivamente na segunda metade da década de 70. Em 1976, o escritor e

jornalista João Silvério Trevisan tentou formar um grupo para discutir a

homossexualidade. Dos poucos que compareciam aos encontros, grande parte era

reticente em falar publicamente de seus medos e anseios, ou em assumir a sua

sexualidade. Essa iniciativa inspirou outras ações com o mesmo objetivo, as quais,

ainda que não tenham logrado êxito, marcaram o panorama inicial de um rico

movimento. Mas foi o começo!

No fim da década de 1970, um grupo de intelectuais assumidamente gays,

dentre eles o próprio Trevisan, valendo-se do arrefecimento da repressão política

brasileira, lança aquele que é considerado o primeiro veículo de ampla circulação

dirigido ao público homossexual – o jornal Lampião da Esquina. A idéia do jornal

surgiu a partir da visita ao Brasil do editor Winston Leyland, da Gay Sunshine Press, de

São Francisco, Califórnia. Ele veio à procura de autores brasileiros para fazer uma

antologia da literatura gay latino-americana. Pode-se dizer que o lançamento do jornal,

em abril de 1978, fortaleceu a ação de alguns rapazes de São Paulo que organizavam

um grupo que se tornaria responsável por consolidar o movimento homossexual no

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Brasil – o Grupo Somos (Cf. Green, 1999). Com seus textos longos e comprimidos em

letras pequenas, que só não atrapalhavam mais a leitura porque a vontade de lê-los 67
era maior do que a crítica que podíamos fazer na época, o Lampião da Esquina iniciava

um novo capítulo para a história da construção e da afirmação de uma identidade

gay no Brasil.

2.2 Um Lampião Na Esquina

No fim da década de 1970 começa a chamada “distensão política”, ou seja a

rigidez do controle social começa a arrefecer. O Lampião da Esquina faz resistência,

enfrenta a moral conservadora da esquerda e o pragmatismo da direita. Poucos jornais

da imprensa nanica refletiam as mudanças comportamentais pelas quais o mundo e

o Brasil estavam passando. A preocupação maior era discutir os caminhos que a

política brasileira viria a tomar, ou, como se dizia na época: “É necessário unir-se

pela luta maior!”.

Um ano antes de o Lampião da Esquina ser lançado, Júlio César Montenegro,

Genilson Cezar, Ronaldo Brito e Caio Túlio Costa publicaram O Beijo. Embora não

se tratasse de um jornal para homossexuais, O Beijo, de vida curta (durou apenas seis

edições), foi o primeiro a discutir o prazer como forma de luta e modo de vida.

Nessa época, as teorias de Wilhelm Reich eram recuperadas na

Europa, e de certa forma aportaram em alguns setores da sociedade

brasileira. Conforme afirma Kucinski (2003): “O Beijo foi um

refinado produto da imprensa alternativa. A radicalidade levada às

últimas conseqüências. Sua diagramação era ousada, concretista”.

Diferentemente do Lampião da Esquina, que nos seus três anos de

vida manteve o mesmo sisudo e conservador projeto gráfico.

Lançado em 1978, ano eleitoral e que marcou o início da

abertura política, o Lampião chegou aos primeiros leitores através


Beijo, abril de 1978.

de uma mala direta organizada pelos editores e por uma rede de

amigos. O número zero do jornal foi entregue na casa de alguns escolhidos protegido

por um envelope de papel pardo, como forma de não comprometer a quem o

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


recebesse. Na sua capa, duas grandes chamadas: no alto da página, logo abaixo do

logotipo, Homo eroticus – um ensaio de Darcy Penteado; no meio da página, 68


ladeada de retratos, a chamada principal: Celso Curi processado. Mas qual é o

crime deste rapaz?”. Segundo Edward Macrae (1990), a primeira tiragem foi de 10

mil exemplares, sendo logo aumentada para 15 mil.

A possibilidade de afirmar uma identidade gay no Brasil foi fruto de um

processo que começou gradativamente nos anos 1950 e 1960 e reflete uma intricada

rede de múltiplos fatores. É durante este período que o número de estabelecimentos,

tais como bares, saunas e boates voltadas para os homossexuais se expande

consideravelmente, principalmente no eixo Rio-São Paulo, proporcionando novas

oportunidades para os gays interagirem entre si. Além disso, por essa época referências

dos movimentos sociais americanos chegavam até ao Brasil, influenciando uma nova

posição com relação à sexualidade. Aparecem também colunas diárias em grandes

jornais, tais como “A Coluna do Meio”, do jornal Última Hora, escrita por Celso

Curi; e “Tudo Entendido”, do jornal Gazeta de Notícias, produzida por Antônio

Moreno. Podemos citar ainda peças de teatro com temática gay, que são montadas

com sucesso, como a produção de 1971 de “Os rapazes da banda”, sucesso off-

Broadway de 1968 e “Greta Garbo, quem diria acabou no Irajá” em 1974, que ficou

vários anos em cartaz. Em 1975 Aguinaldo Silva lança seu livro “Primeira carta aos

andróginos”. No ano seguinte Darcy Penteado publica “A meta”. No mesmo ano

Gasparino Damata edita “Histórias do amor maldito”. Todos esses acontecimentos

representaram uma inédita expansão do campo de discussão e “protagonização” da

homossexualidade. Isso acaba por se refletir na linha editorial do Lampião, que com

o tempo passa a ser o porta-voz de discursos inflamados sobre sexualidade no que

ela tem de positivo e criador, atingindo milhares de leitores ávidos de poderem ver-

se espelhados nas páginas do jornal.

Tanto quanto narrar a situação social e política de um grupo em determinada

época, um jornal ou revista de temática libertária seleciona os temas e assuntos que

orientam e de certa forma fundamentam a constituição e o fortalecimento de

identidades dos grupos a que se destinam. Como afirma Kathryn Woodward:

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


As identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas
simbólicos pelos quais elas são representadas. (...) Existe uma associação
entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa (2000: 8-10). 69

A criação de um novo veículo de comunicação, seja ele impresso ou não, deve

significar, portanto, bem mais que a criação de um instrumento de luta. Trata-se do

questionamento criativo das diversas possibilidades identitárias de uma parcela da

população historicamente invisibilizada por uma singular e lesiva generalidade

identificatória. Ainda de acordo com Woodward,


Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos pelos
discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos.
Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios,
assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios.
As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem
nossas identidades (2000: 55).

É assim que compreendemos a apresentação, no título do editorial número

zero, da proposta do jornal: Saindo do gueto. O Lampião surge com a proposta de

criar uma consciência homossexual, assumir-se e ser aceito. A leitura de um trecho

do editorial do número dois – que tem por título Homossexualismo: que coisa é

essa? – é bastante conclusiva a esse respeito: “Por essa razão a maioria dos

homossexuais tem desejado ser ‘normal’ e durante toda a vida recalca e esconde seus

sentimentos verdadeiros, numa tentativa de condicionamento nessa ‘normalidade’”.

Como se pode ver, o discurso é o de ser aceito, e, se possível, dentro da normalidade.

Por questões de encaminhamento, farei uma apresentação do número

experimental separadamente dos outros, que serão apresentados e analisados

individualmente e/ou em grupos.

2.2.1 O número zero do Lampião

O número zero chamava-se apenas Lampião. A partir do número 1, o cabeçalho


* Os editores
do jornal traria o nome Lampião da Esquina.* O Conselho Editorial do jornal foi
tiveram que
escolher outro
formado por onze pessoas: os jornalistas Adão Costa, Aguinaldo Silva, Antônio
nome por já existir
um jornal Lampião
Chrysóstomo, Clóvis Marques, Gasparino Damata e João Antônio Mascarenhas; o
no Rio Grande do
Sul.
artista plástico Darcy Penteado; o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet; o
Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso
antropólogo Peter Fry; o poeta e crítico de arte Francisco

Bittencourt; e o cineasta e escritor João Silvério Trevisan. 70


Aguinaldo Silva desempenhava a função de coordenador de edição.

Na sua apresentação o Conselho diz que, além de traçar a linha

editorial do jornal, também escolherá os livros que a editora

publicará.

E assim começou o Lampião, cheio de esperanças...

O jornal aparece com sete seções: OPINIÃO (o equivalente


Lampião nº 0, abril de 1978
ao editorial); ENSAIO (duas vezes); ESQUINA (seção com artigos

e notas variadas); REPORTAGEM; LITERATURA (duas vezes); TENDÊNCIA

(seção cultural que se divide em “Livro”, “Exposição” e “Peça”); e CARTAS NA

MESA. A partir do número cinco é publicada uma nova seção, BIXÓRDIA, de

fofocas em geral.

No primeiro parágrafo do editorial, Saindo do gueto, do jornal Lampião,

número zero, uma pergunta chama atenção, “Mas um jornal homossexual, para quê?”

Vê-se nesta pergunta a preocupação dos editores em lançar um jornal que não falava

da “luta maior”, e sim de assuntos até então considerados secundários, tais como

sexualidade, discriminação social, artes, ecologia, etc.. Mais adiante, no terceiro

parágrafo, eles respondem à pergunta:


Nossa resposta, no entanto, é esta: é preciso dizer não ao gueto e, em
conseqüência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem padrão
que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas
sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como
uma espécie de maldição, que é dado aos ademanes e que sempre esbarra,
em qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser
humano, neste fator capital: seu sexo não é aquele que ele desejaria ter
(Lampião, nº zero, p. 2).

E finalizam dizendo: “Nós nos empenharemos em desmoralizar esse conceito

que alguns querem impor – que a nossa preferência sexual possa interferir

negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que vivemos” (idem).

O jornal abre com o ensaio de Darcy Penteado, no qual ele fala sobre a arte

erótica que diz ter criado, e as dificuldades que os artistas tinham em tratar do tema,

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


fazendo somente abordagens tímidas ou evitando-o por causa da delimitação moral

imposta pela sociedade. Comenta a ausência de nu masculino nas obras brasileiras. 71


A seguir, o jornal apresenta um ensaio sobre a verdade (?) de Garcia Lorca –

poeta e dramaturgo homossexual espanhol, vítima da violência política franquista.

Uma pequena nota fala que mulheres foram convidadas a participar do jornal,

entretanto não houve retorno ao convite.

O jornal apresenta ainda um artigo de Frederico Jorge Dantas, dono do nanico

Entender (de São Paulo), em que ele questiona: Qual é a nossa imprensa?. Ele

desaprova o que ele chama de “colunismo social”, em referência as colunas que

falavam dos gays, mas perpetuavam os mesmos estereótipos criados pela sociedade

machista. Ele afirma pretender com seu jornal formar uma consciência homossexual:
Tentar esclarecer sobre a necessidade existente nos homossexuais desta
nova geração, de buscarem um modelo de identidade a ser aceito pela
sociedade, juntando a isto a demonstração de engodo existente na
atualidade, onde as “deslumbradas” (...) insistem em defender a teoria
ainda aplicável de que o homossexual deve se impor pelo campo
financeiro, convivendo no entanto dentro dos preconceitos machistas,
é uma das coisas que pretendo, embora isto acabe transformando a
coisa em estado de guerra (Dantas, 1978: 5).

Percebemos, portanto, que a busca por um modelo de identidade não pertence

só ao autor da matéria, mas ao Entender como um todo. O nome do jornal de Dantas

reflete sua preocupação em apresentar o “novo” homossexual – o “entendido”. O

entendido busca uma posição mais de igualdade com o parceiro. Os entendidos não

querem a imagem das “deslumbradas”; muito pelo contrário, procuram adotar uma

imagem considerada mais masculina. É nesse momento que a palavra “gay” começa

a ser usada por alguns homossexuais e em pouco tempo fará parte do vocabulário

de toda a sociedade.

Os editores do Lampião adotam todas as denominações, chulas ou não, para

designar o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo, e mudam a grafia

da palavra “gay” para “guei”, uma forma de abrasileirar um termo que começa a se

impor como sinônimo de homossexual masculino ou feminino. Na seção CARTAS

NA MESA do número zero, a carta de Paulo Bonorino critica a utilização da palavra

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


“gay” para designar homossexual. “Não aprecio a palavra ‘guei’ aplicada às pessoas

homossexuais simplesmente porque não podemos defini-las como alegres por 72


natureza e essência”. Com o tempo esta associação desaparece, e a palavra passa a

significar apenas o homossexual masculino.

Durante os seus três anos de vida, o Lampião da Esquina buscou delimitar essas

identidades. Da “bicha louca” ao “gay macho”, o jornal percorreu vários caminhos.

No ensaio Lontra, piranhas, ratos, veados e gorilas, atenção: vocês também

têm direitos (a ONU decidiu), no número zero, o jornal ironiza as várias lutas das

minorias. Através da publicação da Declaração dos Direitos dos Animais, o autor

instiga o leitor a (indiretamente) indignar-se, depois de uma leitura crítica – levando-

o à consciência de si mesmo, ou seja, de sua identidade. O ensaio é acompanhado de

uma charge, em que vários animais marcham com uma grande faixa na qual se lê:

“COLEGAS: UNI-VOS!!!”.

A matéria principal do mesmo número discutiu o caso Celso Curi – o jornalista

que criou a primeira coluna gay de um grande jornal, no caso o Última Hora, e por

isso foi processado judicialmente. Qual foi o seu crime? Falar publicamente de um

assunto até então visto como algo menor e de certa forma proibido? Ou por ter

assumido sua homossexualidade para todo o Brasil? O jornalista acabou sendo

demitido do jornal.

Ainda neste mesmo número, o Lampião falou do Cinema Íris, construído no

início do século XX, em pleno coração da cidade do Rio de Janeiro, e freqüentado

pela classe média. Aos poucos estabeleceu-se uma freqüência de homens que iam (e

ainda vão) para furtivos encontros sexuais. Naquela época, como hoje, era freqüentado

por soldados da PM e do Corpo de Bombeiros dos quartéis próximos, pessoas

saídas da Cinelândia, moradores das hospedarias próximas à praça Tiradentes, rapazes

de outros locais, etc. – todos à procura de prazer com parceiros do mesmo sexo.

Na seção LITERATURA é apresentada poesia da novíssima geração de poetas:

João Paulo Augusto, Leila Miccolis e Franklin Jorge – todos com temática ligada à

sexualidade.

Na seção TENDÊNCIAS, há críticas sobre os novos filmes sobre Nureyev e

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Cassius Clay, a montagem em São Paulo de Zoo Story de Edward Albee e a exposição

de Lauro Cavalcanti no MAM - RJ. 73


O número zero termina com um conto de Moacir Moura, intitulado

Aniversário. Uma história de um triângulo amoroso entre dois rapazes e uma mulher.

Este foi o número zero. Como se lê no editorial “O importante era sair do

gueto”. E para isto não importava se você freqüentava o Cinema Íris, e não reprimia

sua sexualidade, ou ia à galeria de arte de Darcy Penteado, ou assistia a peça “Zoo

Story”, ou ainda se divertia com a mostra de Lauro Cavalcanti*, legitimando produções

e ou personalidades que destacavam o papel do gay na sociedade. Foi um número

experimental, de circulação restrita, alcançando apenas alguns poucos que faziam

parte da rede de amigos dos onze editores. De alguma forma, os primeiros a ter

acesso ao jornal eram socialmente privilegiados, “entendidos” no assunto.

Quanto ao projeto gráfico, de formato tablóide, o jornal

não trouxe nenhuma novidade. Sua diagramação era tradicional, e

os textos seguem uma mancha gráfica previamente construída.

Observa-se que a ilustração era usada com o mesmo peso da

fotografia. Para a capa é utilizado o recurso da impressão com

duas cores, o preto e mais uma; no interior a impressão é uma cor

(P/B). Estas vão ser as características gráficas predominantes do

jornal. Vale assinalar que para o número zero a segunda cor

Lampião nº 0, pág 4. escolhida foi o vermelho, uma cor quente e de grande impacto.

Em termos gerais, o projeto gráfico do jornal seguia o mesmo

padrão da imprensa alternativa. Os editores, por falta de recursos, ou por não

valorizarem este aspecto, não trouxeram nada de novo em termos gráficos, a não ser

o fato de ser um jornal para homossexuais, ou, como eles queriam, um jornal para as
*
A exposição minorias.
chamava-se
MAMA! 24 anos
de utilidade
pública. Onde o 2.2.2 De cabo a rabo
artista traçava um
paralelo entre sua Do número um até o fim dos seus dias o Lampião vai tentar “iluminar” boa
vida e a vida do
MAM. parcela da comunidade gay, ou, como eles queriam, “guei”. O jornal trouxe grandes

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


reportagens, abordando temas que falavam da situação dos homossexuais em Cuba,

passando pela posição da Igreja em relação ao homossexualismo, e até reportagens 74


sobre os travestis cariocas. Personalidades do meio cultural, não necessariamente

homossexuais, também foram entrevistadas. Contos, poesia, críticas de teatro, de

cinema, literárias, etc., juntavam-se às cartas dos leitores, num fórum de grandes

debates. Durante seu três anos e meio de vida, o jornal não perdoou àqueles que, de

alguma forma, eram homofóbicos, e notas de desagravo eram constantes. Já no final

de sua existência o jornal começa a publicar nus masculinos, o que durante muitos

números tentou evitar. O Lampião da Esquina acabou por iluminar várias esquinas e

becos escuros deste país. Conforme afirmaram Peter Fry e Edward Macrae:
O jornal certamente foi de grande importância, na medida em que
abordava sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão
homossexual nos seus aspectos políticos, existenciais e culturais (1983:
21).

O jornal tentou atingir a um público muito diverso e com muitas

particularidades. A identidade do seu público pode ser percebida pela diversidade de

assuntos que o jornal abarcou. Tratava de bichas, gueis, entendidos, viados,

homossexuais, travestis, negros, mulheres, feministas, ecologistas, etc. A proposta

de criar uma consciência homossexual, assumir-se e ser aceito, foi desenvolvida no

Lampião da Esquina por meio de denúncias, opiniões e reportagens. Nesta perspectiva,

o jornal procura muito mais por uma identificação com aquele que o lê, do que

afirmar uma identidade monolítica.

Stuart Hall afirma que “a identificação é construída a partir do reconhecimento

de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros

grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal” (2000: 106). E assim como

existe gay (guei ?) para todos os gostos, o Lampião da Esquina não vai falar para os

leitores acerca de uma identidade homossexual pré-definida, mas para um

homossexual que quer compartilhar sentidos e não encontra semelhantes na grande

imprensa.

Assim, não vamos encontrar no jornal um discurso dirigido a uma classe social

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


definida. Ele vai falar para aqueles que vivem na terceira margem do rio, ou melhor,

para aqueles invisíveis, socialmente falando. Mas também vai trazer informações 75
para aqueles que já estão acostumados a obter informação. Vai falar de Foucault e de

Sartre, de Carmem Miranda e de Mário de Andrade, de abertura política e de repressão

violenta. O homossexual brasileiro, com suas múltiplas identidades, encontra no

Lampião da Esquina seus semelhantes. Diferentes, porém iguais.

De acordo com Hall:


É precisamente porque as identidades são construídas dentro, e não
fora do discurso, que nós precisamos compreendê-las como produzidas
em locais históricos e institucionais específicos, por estratégias e
iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de
modalidades especificas de poder e são, assim, mais o produto da
marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade
idêntica, naturalmente constituída, de uma “identidade” em seu
significado tradicional (2000: 109).

O Lampião da Esquina inicia um movimento que em pouco tempo, e juntamente

com outras mudanças sociais, vai beneficiar uma comunidade até então sem espaços

para se expressar. A consciência de que se é cidadão e de que a homossexualidade é

uma identidade a ser encarada como uma alternativa legitima à heterossexualidade é

apresentada nas diferentes narrativas do jornal, nas cartas dos leitores, nas charges,

e/ou nas vinhetas das seções.

A aparição do Lampião trouxe pela primeira vez a possibilidade de um espaço

estruturado de discussão nacional sobre a homossexualidade. Toda a imprensa dirigida

ao público gay anterior ao Lampião era por e para grupos de amigos, e, de certa

forma, ingênua e frágil. O Lampião é aceso para iluminar um espaço obscuro, para

clarear questões sobre a sexualidade e principalmente sobre a homossexualidade. O

Lampião da Esquina deu chance a uma parcela da sociedade de expressar seus

pensamentos e seu modo de ser, criou um espaço para a discussão que não existia na

grande imprensa. A coragem dos editores traz esperança para aqueles que lêem o

jornal. O discurso do Lampião da Esquina é de não-conformismo.

Segundo Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas

ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do qual nos

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


queremos apoderar” (2003: 10). Assim, o jornal vai oferecer seu espaço de debate

àqueles menos privilegiados, e por isso vai procurar estabelecer alianças com as 76
outras “minorias”, como os negros, as feministas, os índios, e com as “minorias

dentro das minorias” – michês, travestis, prostitutas, etc. Porém, infelizmente este

objetivo não é alcançado. O Lampião vai esclarecer, vai evidenciar certas questões,

mas também se mostrará contraditório e incoerente; esta possibilidade de se abrir

para várias direções vai acabar por confundir os leitores. Como indica Foucault (1984):
A identidade é útil enquanto for somente um jogo, um procedimento
para manter relações sociais e de sexo/prazer que criam novas amizades.
(...) Não devemos excluir a identidade, se ela dá prazer às pessoas, mas
não devemos concebê-las como uma regra universal.

Edward MacRae, no seu livro A construção da igualdade: identidade sexual e política

no Brasil da abertura, conta-nos que


(...) apesar deste empenho em manter suas páginas abertas a outros
grupos sociais, o Lampião nunca conseguiu ser plenamente aceito como
um jornal das minorias, seus aspectos homossexuais emprestando-lhe
um estigma que parecia por demais “contagiante” afugentando os
segmentos heterossexuais de seu público potencial (1990: 76).

Em entrevista a mim concedida em 2005, Antônio Carlos Moreira, jornalista

que participou diariamente da produção do jornal desde o número 23 até o último,

37, esclarece que o jornal não tinha pesquisa sobre quem era seu leitor. E que isso

era uma questão muito conflitante na redação, pois:


O Aguinaldo achava que sabia quem era esse leitor, né? Então ele sempre
dizia, que ele queria que... O jornal, ele estava direcionado e quem lia o
jornal era... (vamos usar os termos...) Era aquela bichinha do subúrbio,
a bichinha da cidade, que não era intelectualizada e que estava procurando
alguma informação e queria, de uma certa forma, se inteirar da história
e queria um roteiro, não sei o quê... E... Ele fechava o jornal com esse
porte pra esse segmento, né? (...) O Trevisan queria um jornal mais
intelectual, aos moldes dos jornais estrangeiros (Moreira, 2005).

Ou ainda, conforme MacRae, os conflitos do jornal refletem


a grande diversidade de opiniões existentes não só na redação do jornal,
mas também entre o seu público leitor. Esse era sabidamente
heterogêneo em termos de classe, cultura, idade, ideologia política,
localização geográfica, etc. (1990: 76).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


De suas intenções iniciais, de se tornar um veículo para “destruir a imagem-

padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, 77
que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como uma espécie de maldição”

(Lampião, nº zero), o jornal, na tentativa de falar para todos, acabou colocando no

mesmo barco gays e “gueis”, bichas, entendidos, travestis e o que mais viesse, acabando

por se arriscar a ratificar a imagem padrão que eles queriam destruir.

Concomitantemente, os militantes do movimento homossexual que se iniciava

achavam que o jornal devia conceder mais espaço para eles. Essa questão era

polarizada dentro da redação. Antônio Carlos diz que


o “movimento” era uma outra coisa, e o Aguinaldo fazia questão de
deixar isso claro! O Francisco Bittencourt, aliás, era a pessoa que mais
era avessa ao “movimento”. (...) A preocupação era que o jornal não
virasse uma voz da unidade do movimento gay (Moreira, 2005).

MacRae também menciona esta tensão entre o jornal e o movimento:


Embora durante a maior parte de sua existência o Lampião tenha
defendido e promovido a militância, a partir de um determinado
momento a posição do jornal tornou-se francamente agressiva em relação
aos grupos, e as manchetes e artigos publicados serviram para divulgar
pelo país inteiro uma grande desconfiança a respeito de qualquer política
homossexual (MacRae, 1990: 88).

Nessa disputa de poder, o jornal perdeu-se na luta contra os paradigmas que o

incipiente movimento homossexual tentava pregar. Conforme João Silvério Trevisan,

um dos fundadores do jornal:


Lampião acabou radicalizando infantilmente seu repúdio ao ativismo
guei. Certos setores do jornal mergulharam num vago populismo,
brandindo descabidamente o travesti em contrapartida ao guei-macho,
o que acabou lhe dando um aspecto quase tão sensacionalista quanto
os jornais da imprensa marrom. O resultado foi uma descaracterização
das intenções iniciais do projeto, o que provocou uma sensível
diminuição nas vendas de exemplares (Trevisan, 2002: 361).

Com um corpo editorial formado por onze personalidades com posições

ideológicas tão díspares, não é de se estranhar que logo cedo as disputas por temas

acabariam por enfraquecer o jornal. Isto pode ser percebido logo de início pela falta

de um editorial dirigido. A seção OPINIÃO, que caracteriza o espaço para o jornal

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


desenvolver sua linha editorial, é ocupada na verdade por opiniões pessoais de

membros do Conselho Editorial. Segundo Dolores Rodrigues (2005), jornalista e 78


redatora, que trabalhou no jornal do número 27 até o último, 37, existiam dois núcleos

no jornal: o do Rio, capitaneado por Aguinaldo Silva; e o de São Paulo, representado

por Darcy Penteado e João Silvério Trevisan, sendo que a palavra final era dada pelo

núcleo do Rio. Já na visão de Moreira:


essa diversidade das cabeças tornava complicado você ter uma página
de opinião. No inicio, lá no número zero, você tem lá as intenções.
Quer dizer... aquilo, acho que foi uma tentativa de se ter uma estrutura
editorial, que fica até um determinado momento (Moreira, 2005).

É muito significativo que a seção desapareça a partir do número 7. Durante

treze números a seção ESQUINA, caracterizada nas outras edições por ser um espaço

para matérias mais informativas do que discursivas, vai ocupar o espaço da seção

OPINIÃO. A seção OPINIÃO volta a aparecer a partir do número 20, e se mantém

até a edição 29. Este é o começo do fim do jornal. O espaço agora passa a ser

ocupado por outras duas seções: as CARTAS NA MESA e a seção TROCA-TROCA.

Falando para poucos, e não tendo como se sustentar financeiramente, o jornal fecha

as portas na edição de junho de 1981.

Para analisar as mudanças pelas quais o jornal passou, e a sua relação com os

leitores, investiguei os diferentes discursos nele veiculados. Veremos primeiramente

a linguagem verbal, o texto apresentado nas suas capas e páginas. Em seguida,

abordaremos a linguagem gráfica, sua diagramação, suas imagens e vinhetas.

A partir de leituras e observação sistemática dos 37 números do jornal, pude

verificar que seu discurso verbal, diferentemente do discurso visual, mudou muito.

Já que o Lampião não tem uma linha editorial definida, ou uma seção assumidamente

intitulada Editorial, comum a vários periódicos, fiz primeiramente um levantamento

da seção OPINIÃO, sua equivalente, ao longo dos anos. De acordo com Moreira :
O Aguinaldo nunca quis [ter uma seção Editorial], até onde eu percebi,
no dia-a-dia da redação do jornal, quando entrei. Ele, por perceber a
diversidade, e também por saber que ele tinha hegemonia sobre o
produto, né? Já que ele finalizava o produto. (...) Ele tinha a preocupação
de não ter uma coluna de opinião, onde tivesse uma única posição
(Moreira, 2005).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Desta forma, pude observar as opiniões de alguns membros do Conselho Editorial, ou opiniões

alheias, mas que de certa forma eram respaldadas pelo jornal, e assim levantar as questões que o
79
jornal assumia como sendo “sua opinião”. Em alguns casos comentaremos também certas matérias

ou pequenas notas que chamaram a atenção pelo tema.

2.2.3 Pelas esquinas do jornal: a linguagem verbal

Com o título de Nossas gaiolas comuns, a seção OPINIÃO do número 1

apresenta um texto assinado apenas por Mariza (uma colaboradora do jornal). Ela

comenta que o jornal se queixa no seu número zero “de não haver encontrado

mulheres dispostas a colaborar com ele em sua luta comum de pessoas que não

aceitam ser definidas como desiguais em relação a outras pessoas”. Mariza coloca

que, em termos de definição sexual, as “categorias” deveriam ter bem claro como se

autodefinem, e como estes enunciados dos atributos essenciais e específicos se

relacionam com “outras categorias”. Não se tratava, segundo a autora, de um

isolamento de várias categorias em grupos fechados, mas de uma reflexão prévia

sobre qualquer discussão mais geral. O texto questiona, então, as dificuldades de

esta reflexão se concretizar.

Ela aponta duas questões: em primeiro lugar, a irrelevância desta tentativa, já

que a “luta maior” (a da transformação da sociedade) seria mais importante; em

segundo, o papel da história, pois, segundo Mariza, “sempre foi assim em todas as

sociedades, a mulher sempre ocupou um lugar de subordinação, os homossexuais

sempre aparecem na história em crise da humanidade, ou o macho é o ser agressivo

e de dominação”. Para terminar, o texto aponta que as categorias “sexuais são

específicas e essa especificidade dever ser concretamente analisada por todos os

interessados em seu esclarecimento”. Mas, que se fique alerta, pois “ao definirmos o

específico enfrentamos o risco de criarmos outras divisões”. Para a autora:


Ou tentamos, todos juntos, abrir a porta da gaiola, ou permaneceremos
lá dentro, cada um com a ilusão de que está numa gaiola particular. Isto
não significa esquecer a singularidade da situação da mulher, ou de outras
situações, mas implica ter plena consciência da “gaiola-blusa”, vestidas
por todos nós, cada um à sua maneira (Lampião, n. 1, Opinião).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Esta foi a primeira participação de uma voz feminina dentro do jornal. Esta

posição vai mudar com o tempo. O jornal não discute nem comenta o posicionamento 80
de Mariza, embora o lesbianismo e o feminismo merecessem um grande espaço nas

páginas do jornal. As mulheres irão ocupar várias páginas do jornal, seja apresentando

reportagens, fazendo denúncias, ou dando entrevistas.

Assinado por membros do Conselho Editorial, a seção OPINIÃO do Lampião

número 2 traz dois artigos cujos títulos são perguntas. Homossexualismo: que

coisa é essa? e Assumir-se ? Por quê?. O primeiro artigo, assinado por Darcy

Penteado, discute as “causas” da homossexualidade, e como a sociedade tenta

“enquadrar” o homossexualismo. Como diz o artigo, mais do que um fato, o

homossexualismo é uma condição humana. O segundo, assinado por João Antônio

Mascarenhas, responde aos leitores dando doze motivos para o assumir-se, entre

eles estão: o fazer-se respeitar; o defender-se contra a opressão e angústias; por ser

um ato político e de auto-respeito; pela ausência de sentimento de culpa; pelo aumento

da segurança, por nos vermos livres de tensões; e pela liberdade. O artigo também

fala de alguns problemas que isto possa vir a trazer para a pessoa, mas defende

explicitamente o ato de se assumir.

Mas como assumir? Quem vai assumir? O jovem que mora com os pais, ou o

executivo enrustido? A “bicha louca” moradora da periferia da cidade, ou o jovem

intelectual universitário? São questões que ficam sem respostas. Neste mesmo número,

um artigo da seção Esquina mostra que a questão não é tão fácil, e o leitor fica sem

entender o que o jornal pretende, pois ao mesmo tempo que ratifica a importância

do assumir, se contradiz no seu discurso jornalístico.

No artigo Algumas histórias de amor, assinado por Antônio Chrysóstomo

ainda no número 2, ficamos conhecendo os donos da boate Sótão.* Durante a

reportagem os proprietários do estabelecimento comentam com o autor sobre alguns

homossexuais que freqüentam o local. Eles afirmam que se trata de “homossexuais

de vida social e privada normal, sem os desvios e neuroses que a maioria tenta

impingir”. Chrysóstomo descreve alguns rapazes, todos ricos e de bem com a vida,

e apesar de a matéria falar que eles “não são tão difíceis assim de serem encontrados

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


(...) [embora] quase nunca [sejam] mostrados em reportagens”, o autor também se

furta de colocar fotos ou citar os nomes, empregando apenas as iniciais, ainda que 81
na página anterior o jornal tenha falado a importância do assumir-se.

MacRae também chama atenção para este fato:


Embora o jornal reforçasse a necessidade de “se assumir” (sendo que o
próprio ato de ir a uma banca de revista e comprar o Lampião acabava
sendo uma maneira de fazê-lo), ele sempre deixou em aberto qualquer
tentativa de explicação da etiologia dessa condição (1990: 79).

Assumir ou não é uma discussão que nunca terminou. Hoje, pelo menos aqui

no Brasil, isto ainda é tema presente não só nos periódicos, como também nos

grupos organizados.

Na edição de número 3, uma pequena nota se destaca na seção Opinião. Com

o título Desafio aos cartunistas, a nota esclarece que quando o jornal foi lançado

o Conselho Editorial assumiu o compromisso de “renascer a cada número; entenda-

se, neste caso, renascimento também por renovação”. A nota fala que o jornal passou

de uma linguagem séria do número zero para um linguagem mais descontraída. Mas

a finalidade da nota é protestar contra a falta de humor no jornal. Eles perguntam

onde estão os cartunistas e chargistas deste país e colocam esta questão como um

desafio para os próximos números. Ainda na mesma nota, o Conselho Editorial

avisa que a partir da próxima edição o artista gráfico e ator Patrício Bisso estará

criando rubricas para as seções.

No entanto, infelizmente, é possível constatar que o jornal não alcançou o

humor pretendido. Talvez pelo caráter burlesco e caricatural, as charges e cartuns de

vários números não alcançam o tom procurado. Uma das razões desse insucesso

provavelmente foi o risco de abordagens politicamente incorretas da imagem do

gay. É interessante observar, entretanto, que quando o jornal assume uma atitude
*
A maior boate dirigida
para o público gay dos mais “populista” as charges e cartuns passam a aparecer com mais freqüência.
anos 70 no Rio de
Janeiro. Localizada na Para não dizer que as mulheres não contribuíram nessa edição, o jornal publica,
Galeria Alaska em
Copacabana, a boate junto com a pequena nota citada acima, dois pequenos artigos. O primeiro é escrito
fechou as portas no
inicio dos anos 80. por Zsu Zsu Vieira, e se intitula A doença infantil do machismo. O artigo critica

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


uma sociedade conservadora e o machismo. O outro artigo, também assinado por

uma mulher, é intitulado Do Regina Coeli às coisas da vida. Lucia Rito, a autora, 82
fala de como foi importante para sua experiência de vida fazer e publicar no Lampião

a reportagem sobre a prostituição na zona do mangue do Rio de Janeiro.

Duas notas na seção ESQUINA chamam a atenção. A primeira é sobre a

publicação gay norte-americana In Touch. Com o titulo Uma questão de cultura, e

uma foto da capa revista, a nota apenas apresenta a revista sem nenhum

aprofundamento crítico. Ela é comparada com a revista brasileira Status – “em versão

guei” –, mas, segundo os editores “lampiônicos”, se trataria apenas de uma revista

de lazer e informação para o publico gay, repleta de matérias que eles consideram

“descartáveis”.

Não é a primeira vez que o jornal aborda as publicações gays americanas. Na

edição de número dois, e com o título No paraíso do consumo guei, o jornal

apresenta, com certo deboche, a revista Blueboy, que também é comparada com as

brasileiras Status e Homem* como sendo a “Shangrilá” do consumo gay: “É só pagar

e você terá todos os sonhos realizados”. A nota ressalta o design da revista que,

“com uma diagramação sofisticadíssima, (...) seduz principalmente pela aparência”.

As duas revistas contêm seções de nus masculinos.

É importante observar, para melhor compreender seu percurso e construção,

a insistência inicial do jornal em falar de

publicações que diferem totalmente dele em

forma e conteúdo. O Lampião não deseja atingir

uma “diagramação sofisticadíssima”; em

contrapartida, também não vai conseguir os


*
Revistas eróticas anunciantes que pululavam nos periódicos
dirigidas ao publico
m a s c u l i n o americanos. Mas o nu logo vai estar presente
heterossexual. A revista
Status existiu de 1974 nas esquinas do Lampião. Vale notar que aqui
até 1987 e a revista
Homem surge em 1975. há uma direção editorial implícita: recusar o que
Em 1978, muda o nome
para Playboy e existe até se fazia no mercado gay americano é deixar claro
os dias de hoje.
que o projeto do Lampião era seguir contra a Sumário da revista Blue Boy, junho 1978.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


corrente made in USA. Se eles recusavam o que se fazia nos EUA é porque acreditavam

que se deveria, aqui no Brasil, fazer de maneira diferente. Além do fato de que existia 83
uma resistência aos produtos estadunidenses pelo que eles representavam: o

capitalismo e o imperialismo cultural.

Mas o que eles recusavam na revista? Os nus? O aspecto mercadológico do

sexo? A diagramação sofisticada? Eles ironizavam estas revistas sem saber que este

seria o caminho para atingir a um grande público, como seria o caso, anos depois, da

Sui Generis e da G Magazine. Revistas como Status e Playboy são muito bem produzidas

e foram, de certa forma, revolucionárias, pois, diferentemente do que aparecia nas

revistas americanas, as personalidades que posavam (e ainda posam) nuas são, na sua

maioria, estrelas do show business brasileiro. Essa fórmula seria copiada duas décadas

depois pela G Magazine.

A outra nota é assinada por Aguinaldo Silva, e tem o título de As palavras:

para que temê-las?. Nesta nota ele defende o Lampião por usar palavras que alguns

leitores consideram pejorativas, tais como “bicha”, “boneca”, etc. Seria uma linguagem

mais descontraída? O autor se justifica dizendo: “O que nós pretendemos é resgatá-

las do vocabulário machista para em seguida desmistificá-las”.

Esta foi uma discussão que também apareceu no movimento gay americano.

Streitmatter fala que no fim dos anos 70 os editoriais da imprensa gay americana já

não discutiam só o movimento por si, mas tópicos que variavam entre a “História

Social” até “pessoas com necessidades especiais”. E a questão de qual vocabulário

usar era um deles. Isto inclusive foi tema do editorial do jornal The Body Politic, de

fevereiro de 1979: “Mariana Valverde argued that gay people should embrace bold

words as ‘faggot’, ‘dyke’, and ‘queer’, even though the terms offended conservatives”

(Streitmatter, 1995: 230).1

Os nomes que são usados para definir homens que fazem sexo com homens

refletem as inúmeras vozes que pensaram sobre a homossexualidade masculina. São

termos usados desde a medicina, até aqueles que os próprios homossexuais utilizam

para se autodenominarem, assim como temos palavras com conotação depreciativa.

A utilização de determinadas palavras para identificar/catalogar/representar grupos

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


específicos traz sempre uma relação de força e poder. São palavras importantes, mas

nunca neutras. Conforme afirma Woodward: “Todas as práticas de significação que 84


produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir

quem é incluído e quem é excluído” (2000: 18).

Aguinaldo estava discutindo um assunto que não era pertinente só ao

movimento brasileiro. Era um assunto que afetava diretamente a construção de uma

identidade. Assumindo as palavras pejorativas, e não tendo medo de usá-las, o jornal

tomava para si o poder de se identificar como bem quisesse. A diferença é que aqui

a discussão acabou passando despercebida numa pequena nota de meio de jornal.

Na edição número 4 (ago-set/1978), a seção OPINIÃO ostenta um grande

artigo assinado por Clóvis Marques, e intitulado Uma questão de objetividade, e

uma nota de pé de página assinada por Darcy Penteado. Marques discute as opiniões

de Robert Claiborne, publicadas no The New York Times em 14 de junho de 1978.

Neste artigo, Claiborne diz suspeitar que a homossexualidade “pode ter alguma coisa

com distúrbio hormonal durante a vida pré-natal, mas que não é contagioso”, pois

ele mesmo tivera experiências quando criança, mas na vida adulta tornou-se

heterossexual. Clóvis Marques destaca o quão perigosos são estes textos, pois, por

trás de uma mascara de liberalismo, afirma o autor, se encontram opiniões que

consolidam o preconceito.

Na pequena nota de pé de página, Penteado refuta a afirmação de uma escritora

que dizia:
Acho errado publicar um jornal como o Lampião. Afinal vocês todos
são jornalistas, (...) escritores, intelectuais ou artistas, trabalhando em
vários meios de comunicação, ou dispondo deles ou com acesso a eles,
não precisando portanto de veículo especializado para expor idéias que,
englobadas assim num jornal, só aumentam a discriminação.

O artista chama a escritora de ingênua, e esclarece que eles só são aceitos

porque, enquanto profissionais, são úteis ao sistema. Entretanto, de forma alguma

eles teriam direito de publicar suas idéias enquanto cidadãos homossexuais na grande

imprensa. Por isso é que era extremamente importante a existência de um veículo

como o Lampião da Esquina.

Só não se sabe ainda como o jornal vai desenvolver sua linha editorial e para
Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso
quem. Se é criticando artigos estrangeiros, ou dando espaços para briguinhas

particulares. O artigo sobre a passeata em San Francisco, com 240 mil gays, ou como 85
eles preferem “gueis”, fica perdido numa edição que prefere chamar atenção para o

ensaio fotográfico de travestis. Isto reflete a diversidade de opinião por que o jornal

viveu durante toda sua existência.

Uma parte dos editores do jornal, principalmente Trevisan, que tinha vivido

nos Estados Unidos, na área metropolitana de San Francisco, e pôde vivenciar os

rumos do movimento gay, vai direcionar o jornal para o trabalho de conscientização

que os grupos organizados em diversas cidades do mundo estavam fazendo. Por

outro lado, uma parte do Conselho Editorial refletia a xenofobia dos tempos da

ditadura. Desconfiava-se de tudo que vinha dos Estados Unidos. Além disso, havia

a relação pessoal que os editores tinham com certos aspectos da homossexualidade.

Perguntado sobre a presença constante dos travestis no jornal, Moreira esclarece

que o Aguinaldo tinha sido morador da Lapa por um bom tempo, e que vivera muito

próximo deste mundo:


Se você pega a obra dele, em toda a literatura os travestis aparecem, são
os marginais da Lapa, todo aquele contexto da Lapa de final dos anos
50... e 60. Quer dizer, isso está ali. Então ele traz isso junto com ele para
o jornal, de uma certa forma. E isso também passou um pouco talvez
pela crônica policial, onde ele trabalhou anos, né? E tinha o Francisco
Bittencourt, que achava esse mundo fascinante, essa coisa, esse
submundo da Lapa. Essa coisa... Enquanto que a outra parte do jornal,
de colaboradores, não tinha essa visão, né? (Moreira, 2005)

O Lampião de número 5 (out/1978) traz na seção OPINIÃO um longo texto

do cineasta Pier Paolo Pasolini traduzido por Clóvis Marques. No artigo

Desbloqueando o tabu, Pasolini critica e analisa um livro pedagógico sobre os

homossexuais. Esta mesma edição traz um conto de Cassandra Rios, escritora

marginalizada pela crítica.


* DANIEL, M.;
BAUDRY, A. O Os autores do livro resenhado por Pasolini, Marc Daniel e André Baudry*,
Lado Homos-
sexual e suas tentam inserir o problema da homossexualidade no contexto da tolerância nascente,
Interpretações. In:
Os Homossexuais. isto é, uma tolerância que diz respeito ao aborto, anticoncepcionais, adultério,
Rio de Janeiro.
Artenova, 1979. relacionamento entre adolescentes. Pasolini não acredita verdadeiramente nesta

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


tolerância, e considera os autores totalmente enganados a esse respeito. Como ponto

positivo do livro, Pasolini chama atenção para o fato de os autores “observarem que 86
não só os ricos e burgueses são homossexuais, mas igualmente os operários e os

pobres”. Pasolini termina dizendo que os autores esqueceram da mais alta ideologia

dos homossexuais, segundo a qual “é intolerável ser tolerado”.

Pela segunda e última vez o Conselho Editorial assina um artigo. Sinal de

alerta tem um discurso de denúncia. Na ocasião, nove jornalistas da revista Isto É

haviam sido processados por “analogia malsã do homossexualismo”, e um cirurgião,

o Dr. Roberto Farina, também fora processado por “lesões corporais” por ter

realizado uma operação de transexualismo; além disso, o jornalista Celso Curi é

acusado de “promover encontros entre anormais”. O Conselho está preocupado

com estes fatos, pois ao mesmo tempo em que a liberdade de imprensa chega ao

país, parece que para determinado grupo esta liberdade é apenas impressão. O

Conselho ratifica o papel ímpar do Lampião da Esquina, sublinhando a visibilidade

das minorias no processo nacional através de uma discussão ampla sobre a questão

sexual. E pede aos leitores que se mantenham atentos aos fatos relatados.

Mais uma vez a questão da multiplicidade de discursos aparece. Com que leitores

eles estão falando? Os leitores de Pasolini, os leitores de Cassandra Rios ou os leitores

da seção de fofocas sociais BIXÓRDIA? O Lampião continua atirando para todos

os lados, uma característica, aliás, que será mantida até o fim de seus dias. Porém, aos

poucos, ele próprio parece atingido ao longo dessa investida.

O Lampião veicula sempre opiniões estrangeiras. Na edição de número 6, mais

uma tradução ocupa a seção OPINIÃO. Desta vez Francisco Bittencourt traduz um

texto de James Lindsay, da Osler House de Oxford. No artigo intitulado

Heterossexualidade: perversão ou doença?, o autor faz uma análise (pseudo)

científica da heterossexualidade com muita ironia e deboche. Mas ficamos sem saber

qual era a intenção dos editores do Lampião ao publicar este artigo no mesmo número

que continha a matéria de capa Crimes sexuais? Será que todos os crimes são

contra homossexuais?

Nesse mesmo número, o jornal traz ainda uma reportagem com Yukio Mishima,

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


e trata de um novo periódico nas bancas, o jornal Gente Gay. A nota diz que apesar de

não ter preocupações intelectuais, o novo jornal é muito importante do ponto de 87


vista de uma ação realmente libertária.

E quais seriam as preocupações intelectuais do Lampião da Esquina? O jornal

seria redutível a um veículo de discussões intelectuais inócuas? Seria possível um

debate de idéias não provocar qualquer efeito? Ou suas melhores conseqüências

seriam redutíveis às contínuas narrativas de histórias de vivências como práticas que

poderiam tirar os homossexuais da sombra? De alguma forma havia um dilema

posto, mesmo que não fosse desenhado pelas questões acima apontadas.

A partir do número 7 (dez/1978), o jornal retira temporariamente a seção

OPINIÃO do prelo. O espaço passa a ser ocupado pela seção ESQUINA, uma

seção de variedades. Observa-se que as mudanças também são internas. João Antônio

Mascarenhas, sem aviso prévio, sai do jornal, e a seção OPINIÃO só reaparece no

número 20.

Como disse anteriormente, não me ative apenas à seção OPINIÃO para analisar

o jornal. Certos artigos também foram objeto de reflexão. No Lampião da Esquina

número 19 (dez/1979), por exemplo, o jornal abre com uma carta de Oswaldo Isidoro,

do grupo Libertus, de Guarulhos, em São Paulo, pedindo, ou melhor, reivindicando

que grupos políticos não ditem normas para os grupos homossexuais que começam

a se organizar. E entre reportagens sobre a condição do negro na sociedade brasileira,

uma entrevista com a atriz Zézé Motta e o movimento gay no México, uma pergunta

chama a atenção: Cultura homossexual: já existe? Neste ensaio, Darcy Penteado

fala do impacto que a conscientização das minorias a partir da segunda metade do

século XX provocou na sociedade. O artigo se desenvolve a partir de considerações

sobre a repressão a esses grupos, particularmente no Brasil.

A repressão foi uma das maneiras de contê-las enquanto possível: a outra foi

a manutenção da ignorância. Não vamos duvidar ou menosprezar a sua eficácia: o

resultado dos 20 anos ainda está aí, bem evidente. Mas até quando o sistema agüentaria

incólume? Não foi, ou melhor, não está sendo portanto, uma concessão bondosa e

benevolente, a permissão também a nós, minoritários, de algumas aberturas – é a

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


própria subsistência do sistema que está (ou estava) sendo ameaçada, porque, queiram

ou não, dele participam todos, claro que de maneiras diferentes, uns com vantagens 88
e prioridades, outros perseguidos ou discriminados, porém todos: opressores e

oprimidos, majoritários ou minoritários, ricos ou pobres, benquistos ou malquistos,

moralistas ou amorais (Lampião, nº 19).

Falando especificamente da homossexualidade, o autor em questão afirma

que a cultura minoritária poderia ser classificada em três etapas:

A primeira, aquela que se faz sobre ela, olhando-a de fora; a segunda, produzida

por elemento ainda não conscientizado da minoria; a terceira, que é construída por

elementos conscientizados, portanto com bases próprias e conhecimento de causa,

relegando os moldes convencionais (idem, ibidem).

Penteado defende que a cultura homossexual está se formando:


É preciso que se entendam como elementos de um agrupamento social,
e naturalmente, do próprio convívio coletivo saem os elementos culturais.
É preciso que se entendam como elementos culturais todas as
manifestações vivenciais dentro do grupo, não apenas as “obras culturais’
científicas, literárias, artísticas, etc., que usam esses elementos vivenciais
ou fazem a análise deles. Assim, também é elemento cultural a maneira
de usar uma roupa, de cozinhar um legume, de adotar um neologismo,
de reagir a uma acusação (Penteado, Lampião nº19).

Esta construção se dá através dos próprios personagens desta história e da

produção material que estes personagens criaram. E ainda levaria alguns anos para

ser vista e compreendida por pesquisadores e pelos próprios homossexuais.

Na edição de número 20 (jan/1980), que chamava atenção para o encontro

nacional do povo gay, (a palavra já é escrita com sua grafia inglesa) a seção OPINIÃO

aparece outra vez. Em O que é isso, Heloneida?, numa clara alusão ao livro O que

é isto companheiro?, de Fernando Gabeira, Francisco Bittencourt denuncia a posição

de alguns políticos que mudam de posição como mudam de roupa. O artigo é

direcionado para a deputada estadual Heloneida Studart. O autor critica a omissão

da deputada perante os problemas específicos de grupos marginalizados.

Na mesma página a cantora Lecy Brandão narra seu descontentamento com a

direção da Escola Estação Primeira de Mangueira e, publicamente, se afasta da Escola.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Num box de pé de página, Marta Baptista relata o primeiro encontro de

mulheres jornalistas no Rio de Janeiro. O encontro foi para lutar contra as diferenças 89
salariais, reivindicar mais campo de trabalho, pelo cumprimento das cinco horas de

trabalho para jornalistas, e pela criação de creches para todos os filhos das funcionárias.

Como se percebe, a seção OPINIÃO volta cheia de denúncias políticas. A

reportagem do encontro ocupou quatro páginas. Francisco Bittencourt, Aguinaldo

Silva e Leila Miccolis relatam, de forma clara e emocionada, as seis horas do

acontecimento, considerado por eles como um marco na história do que viria a ser

o movimento homossexual organizado no Brasil. Segundo MacRae (1990: 192), o

encontro foi uma iniciativa do jornal. Este encontro foi a preparação para o grande

congresso nacional que se realizaria em abril de 1980, o qual ocuparia várias páginas

do jornal nos meses seguintes.

Na edição 22 (mar/1980), revivendo a seção OPINIÃO, aparece Tá legal,

‘Geni’; mas e a mãe, tá boa? A matéria começa com a denúncia de um leitor sobre

os travestis que foram achincalhados durante o carnaval do Rio aos gritos de “Geni”.

Aguinaldo Silva responde ao leitor e explica como a canção de Chico Buarque de

Holanda, “Geni e o Zepelin”, feita para denunciar e “mostrar a atitude dos cidadãos

bem-pensantes, que sempre utilizam os estigmatizados como alvo preferido de sua

hipocrisia”, acabou sendo utilizada de forma contrária pela força do seu refrão:

“Joga pedra na Geni/Joga bosta na Geni/ Ela é boa de apanhar/ Ela é boa de

cuspir/ Ela dá prá qualquer um/ Maldita, Geni”. O autor afirma que nem só as

bichas estavam sofrendo com o refrão, mas também as mulheres. E por fim Aguinaldo

cobra de Chico Buarque uma posição, pois, segundo o autor, as boas intenções do

Chico não anulam o seu “machismo” em relação ao tema minorias.

As transformações ocorridas na sociedade brasileira a partir do fim da década

de 1960 fizeram com que vários grupos ditos “menores”, entre eles as mulheres, os

negros e os homossexuais, lutassem, exigindo direitos plenos como cidadãos. O

tema no qual Aguinaldo Silva se diz especialista é muito abrangente: prostitutas,

mulheres, negros. E a questão homossexual, onde fica?

Fica difícil discutir a questão homossexual, quando na verdade o jornal está

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


tentando dar voz a outras minorias e atirando em todas as direções. A discussão

sobre a questão homossexual fica perdida no meio de tantas discussões. Trata-se de 90


um momento de afirmação para os grupos que de alguma forma foram invisibilisados

pela cultura hegemônica, e que naquele momento pediam a palavra. As mulheres, os

negros, os ecologistas, por diferentes razões, desde questões históricas até questões

econômicas, ganham muito mais espaço em outros veículos do que os homossexuais.

Eram questões específicas às quais outros jornais da imprensa alternativa também

estavam dando espaço, enquanto que a questão homossexual só era discutida pelo

Lampião.

Na segunda metade da década de 1970, aparecem os periódicos Brasil Mulher,

de 1975, Nós Mulher, de 1976, O Beijo, de 1977, Ecojornal, de 1979, e Resistência, de

1978 (Cf. Kucinski, 2003). Não seria o caso de direcionar o espaço do Lampião para

apenas um grupo dentre os “estigmatizados”? Observando os primeiros números

da imprensa gay americana percebe-se que, diferentemente daqui, os periódicos

concentravam toda sua energia na “causa gay”, ou em assuntos direcionados à cultura

gay. Apesar da proposta do Lampião desde o número zero ter sido dar voz a todas as

minorias, isto acabou por fragmentar a discussão exclusivamente sobre a cidadania

plena para o homossexual.

Na edição de número 23 encontramos novamente a seção OPINIÃO tratando

da participação dos gays na luta maior. João Carneiro, do grupo Somos/RJ, denuncia

e critica aqueles que dizem que os homossexuais são alienados. No texto intitulado

Esquerda, direita um dois, o autor ressalta a importância da participação dos

“viados e sapatões” na vida política do país. Carneiro assinala que vários grupos

organizados estavam pipocando por todo o Brasil, e que era dever dos gays ir à luta.

Segundo o número 24 do Lampião, existiam à época oito grupos gays

organizados no Brasil. Com certeza o jornal contribuiu muito para seu aparecimento.

Entretanto, no artigo Deus nos livre do boom gay, deste mesmo número, Francisco

Bittencourt afirma que o jornal não tem nada a ver com a proliferação de assuntos

“gueis” na grande imprensa. Segundo ele:


Para o Lampião, o que interessa são as manifestações marginais desse

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


chamado boom gay e não o bottom less fabricado em Ipanema por
bichinhas que nunca tiveram coragem de arriar as calças no Buraco da
Maysa. Sim, nos interessa essa proliferação de espetáculos de travestis 91
que está ocorrendo no Rio. E nos interessa porque achamos esse
fenômeno de grande importância para a consciência da comunidade
travesti... (Bittencourt, Lampião nº24)

A polarização de temas começa a desaparecer para dar lugar a um só tema. De

acordo com Moreira (2005): “Ele [Aguinaldo] acabava dando o tom no jornal. No

início tinha Foucault, tinha Guy Hocquenghem, tinha um monte de gente, mas até

um determinado momento do jornal. Depois isto desaparece, some...” (Moreira, 2005).

Moreira tem razão, mas esqueceu que Hocquenghem concedeu uma entrevista

para aquele que seria o último número. E apesar de Bittencourt criticar o bottom

less, o assunto seria capa do Lampião número 31.

Darcy Penteado, na edição número 24, denuncia o preconceito do jornal O

Estado de São Paulo, que publicou duas reportagens falando da invasão dos travestis

nas ruas da capital. E uma terceira notícia na qual o Estado esclarece que as polícias

civil e militar estavam unindo as forças para combater o que eles chamavam de

“crime por vadiagem”. O autor chama atenção para o fato de que o jornal utilizou as

palavras homossexual e travesti sem especificação adequada.

Penteado trata do papel do travesti na sociedade brasileira, afirmando que a

prostituição dos travestis é um “fenômeno relativamente novo no enorme painel da

sexualidade”. E diz que o “travestismo a nível de prostituição é conseqüência da

nossa fome” (sic). O artigo termina constatando que a “máquina da repressão”, não

podendo mais ser usada para fins políticos, voltava-se contra os estigmatizados: os

homossexuais e os travestis.

Essas eram duas categorias que o jornal, apesar de reconhecer como grupos

bem distintos, já que cada qual a seu modo tinha necessidades específicas, acabou

por colocar no mesmo espaço, criando dissabores para ambos os lados. Além disso,

conforme afirma MacRae:


A maioria dos homossexuais parece nutrir profundo desprezo e antipatia
pelos travestis, achando que estes simplesmente alimentam os
preconceitos dos heterossexuais que acreditam que todo homem
homossexual deseja, na verdade, virar mulher (1990: 54).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Como se vê, era difícil estabelecer alianças num momento em que os dois 92
grupos são (e continuarão sendo por algum tempo) frágeis, política e socialmente

falando, e tinham interesses bem divergentes.

Na edição número 25, o jornal publica uma vez mais as opiniões do escritor e

cineasta Pier Paolo Pasolini, morto em 1975. João Carlos Rodrigues traduz e resume

o artigo publicado no Corriere della Sera em janeiro de 1975. No artigo intitulado O

aborto segundo Pasolini, o cineasta faz suas considerações sobre o aborto.

Primeiramente, o autor se diz favorável. Contudo, deixa claro que é contra a

forma casuísta de que os senhores do poder se apropriam deste tema. Ele se manifesta

contrário a uma sociedade marcada pelo consumo e mercado que vê o aborto como

uma conveniência. Pasolini diz que a liberdade sexual nos dias de hoje, “é uma

obrigação, uma convenção, um dever social. E que, por outro lado, tudo que é

sexualmente diferente é repelido”. Ele esclarece que o problema do aborto é bem

mais amplo e ultrapassa a ideologia dos partidos. E que a reflexão sobre este assunto

deve começar antes, quer dizer no coito, pois, segundo Pasolini, é o coito que

condiciona a necessidade do aborto, e este sim deve ser discutido. Aquele era um

momento em que a sociedade brasileira estava discutindo o aborto, e o Lampião dava

espaço ao tema. Além do artigo de Pasolini, o jornal deu voz a vários grupos feministas

para que emitissem suas opiniões.

Com o título de Quem liga para o meio ambiente (Lampião nº 27, ago/1980),

Penteado, lembrando o dia do meio ambiente, critica a posição do presidente do

Brasil de ocupar uma grande área verde de São Paulo para instalação de uma usina

nuclear. Na outra parte da seção, João S. Trevisan critica militantes dos grupos gays.

Segundo ele, “o movimento gay tornou-se igual a todos os outros movimento

socialmente aceitos”. Em Recadinho para Alice (numa alusão a Alice no País das

Maravilhas), o autor mostra claramente que alguns membros do movimento estão

completamente contra a idéia de criar uma “bicha verdadeira”, ou um “viado mais

autêntico”. O autor diz achar “que alguma coisa está precisando ser checada nessa

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


famigerada ‘militância’ – dentro do Lampião e dos grupos organizados”. Trevisan já

vinha mostrando seu descontentamento com os rumos do movimento homossexual 93


desde a edição do número 25, no qual ele se mostra contrário ao partidarismo político

presente em certos grupos organizados. O autor ressalta a importância do

distanciamento dos centros decisórios do poder, porém afirma sua aproximação

com as minorias:
Direitas e esquerdas do sistema estão querendo tornar-nos consumidores
de homossexualismo, e com isso recuperar-nos. Trata-se de uma forma
de nos iludir com o poder e neutralizar o potencial subversor. A única
maneira de garantir nossa subversão e impossibilitar essa recuperação é
ser cada vez mais viado e sapatona, portanto mais malditos e menos
cobiçáveis por todas as formas de poder (ordem), tipo partidos,
publicidade, família, mídia. (Lampião nº 25, p. 10).

Apesar das diferenças ideológicas estarem cada vez mais visíveis dentro do

jornal, o Lampião da Esquina cumpre seu papel de comunicador e dá espaço para as

diferentes vozes que compõem as facções gays da política partidária dentro do

movimento homossexual. Apesar de a seção OPINIÃO do Lampião número 28 ter

o título de Nós ainda estamos aqui, os leitores poderiam perguntar: “Quem ainda

está?”

Começa-se a perceber que o jornal passa por graves problemas. Aguinaldo

Silva inicia o texto pedindo perdão aos leitores, pois o jornal chegou atrasado nas

bancas. O jornal, financeira e ideologicamente, atravessa uma enorme crise. O autor

se questiona se eles não envelheceram nestes dois anos de existência: “Estaríamos

acomodados, a repetir infindavelmente os mesmos chavões, sem acompanhar o trem

da história?”. Bem, este foi o recado que Trevisan havia mandado para a “Alice” na

seção OPINIÃO do número anterior. É claro que o jornal está fragmentado e não

sabe que caminho tomar quanto à estratégia do movimento homossexual brasileiro

e, principalmente, em relação aos leitores do Lampião, que a essa altura eram muitos.

Apesar dos pesares, Aguinaldo diz que o jornal continuará, e faz um apelo aos leitores

para que assinem o jornal e comprem os livros da editora, pois só a venda em banca

não estava pagando as despesas. Nas suas palavras: “O jornal está triste”. Os indícios

de que a situação era grave podem ser vistos no Corpo Editorial, que começa a

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


mudar: Peter Fry, por exemplo, se ausenta.

A seção OPINIÃO do número 29 (out/1980) traz duas mensagens. A que 94


chama mais atenção é uma charge: parados em frente a uma banca de jornal coberta

de revistas de culinária, duas figuras, visivelmente famintas, devoram-nas com o olhar.

Uma das figuras diz: “Pô! Estas revistas de sacanagem são mais quentes que as

revistinhas dinamarquesas”. A charge ironiza a declaração de um curador de menores,

que disse serem as revistas pornográficas as grandes responsáveis pelo destino obscuro

das crianças.

A outra mensagem é o texto de João C. Rodrigues, intitulado Dando nome

aos bois. O artigo relata um fato ocorrido em Belém do Pará. Um agente do Dops,

“conhecida boneca paraense”, havia pedido asilo político ao consulado da Bélgica,

mas não fora acolhido. Esta “Mata-Hari amazônica” dizia ter criado um movimento

gay paraense para comprometer políticos. Ao final, o autor se pergunta: “O que tem

o leitor do Lampião com isso?” Para justificar o questionamento, ele argumenta que

esse tipo de ocorrência representa sintomas de tentativa de manipulação, tanto da

esquerda quanto da direita, do movimento gay. Por esta razão, os gays, quer queiram

ou não, não poderiam deixar de lado a política, mesmo que ela os assustasse.

Naquela época já sabíamos das redes de poder. O filósofo Michel Foucault já

tinha exposto nossa condição de enredamento inegável com o poder, da relação

intrínseca entre discurso e poder. Este era o grande dilema entre os grupos

organizados da época. Afinal, política e poder caminham juntos. E o jornal não

estava fora desta discussão.

A seção OPINIÃO desaparece a partir do número 30. O expediente, que

sempre fora posicionado na segunda página, a partir da edição 32 é deslocado para

a última página. Nesta mesma edição desaparece o Conselho Editorial, ficando apenas

o coordenador de Edição, Aguinaldo Silva. O Conselho reaparece na edição número

33. Agora lê-se: “Editores: Aguinaldo Silva e Francisco Bittencourt (Rio) e Darcy

Penteado e João S. Trevisan (SP)”. Adão Costa, um dos fundadores, volta a aparecer

junto aos editores do Rio. E assim o expediente permanecerá até o último número.

Mas, na verdade, vários membros do Conselho Editorial apareciam apenas como

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


nomes, pois, a esta altura, do Conselho Editorial original apenas Aguinaldo Silva,

Francisco Bittencourt e Adão Costa haviam permanecido. 95

2.2.4 A primeira impressão é a que fica

Diante da diversidade de opiniões, e, como vimos, face à inexistência de um

Editorial estável, resolvi, numa segunda tentativa de abordagem do jornal, estabelecer

parâmetros de análise, criar categorias temáticas levantadas a partir das principais

chamadas de capa de cada um de suas edições.

A capa é a primeira coisa que se vê num periódico. É a parte do periódico que

é exposta nas bancas da cidade. É ela que traz as informações que o identificam: o

logotipo, o número da edição, a data de publicação e as chamadas para as matérias

no interior do periódico. Normalmente, em um periódico tradicional, há uma grande

chamada. Grande não só em importância jornalística, mas também em termos

gráficos. O corpo da fonte da chamada principal é muito maior do que das chamadas

secundárias. É a matéria principal daquele número. Há também outras chamadas,

menores também em tamanho e interesse. São todas elas juntas que vão ajudar a

vender o periódico, neste caso o jornal, e de certa forma sintetizam o seu universo.

No caso do Lampião da Esquina, as capas do jornal sempre trouxeram um

número muito grande de chamadas, e uma diagramação que não definia a matéria

principal. De qualquer forma, esse padrão foi mantido até o fim do periódico. As

capas poderiam ser consideradas, na perspectiva dos cânones tradicionais do design,

caóticas. Porém, observamos que a composição visual não foi uma preocupação

maior, nem sequer secundária. Este aspecto será comentado mais adiante. Desta

forma, fiz certas escolhas, em alguns casos, levando em consideração também os

elementos imagéticos (fotografia ou ilustração).

Na etapa final da investigação listei os seguintes temas: VIOLÊNCIA, ATIVISMO,

ALIADOS POLÍTICOS, COMPORTAMENTO SEXUAL, BICHAS E TRAVESTIS e ENTREVISTAS. Os

temas foram discriminados a partir de palavras/imagens-chave retiradas das capas,

por denotarem os assuntos abordados. A categorização foi feita a partir das chamadas

das capas.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Assim, em oito edições a “violência” foi o foco das reportagens; em sete, o

“ativismo” falou mais alto; em cinco, o foco foram as “minorias sociais”; em seis, o 96
“comportamento sexual” foi privilegiado; em outras sete, a “questão de gênero”

teve o papel principal; e em quatro, os “entrevistados” foram o destaque do jornal.

Desta forma pude observar os temas mais recorrentes na pauta do jornal, e a partir

deles estabelecer comparações com os outros periódicos da minha pesquisa. Pude

verificar ainda quais foram os temas mais constantes e os menos freqüentes no

desenvolvimento da imprensa gay.

O grupo cujo tema é a “Violência” é composto pelos seguintes edições e suas

respectivas chamadas principais:

N. 1: “As relações perigosas. Este é Gaúcho, um rapaz de vida fácil. Ele

matou um homem a socos e pontapés” (fig. 2)*.

N. 6: “Crimes sexuais. Décio Escobar, Fred Feldman, o cupido de ouro:

uma nova versão para estas mortes” (fig. 7).

N. 7: “Lantinamérica: Na terra dos hombres, pauladas na boneca” (fig. 8).

N. 13: “De Sodoma a Auschwitz: a matança dos homossexuais” (fig. 14).

N. 17: “Corre, que lá vem os home! Estão matando as mulheres” (fig. 18).

N. 25: “A volta do esquadrão mata bichas: três crimes abalam a comunidade

guei” (fig. 26).

N. 26: “A igreja e o homossexualismo (20 anos de repressão)” (sic) (fig. ?).

· N. 28: “Em agosto foi assim: Crioulo não é gente, bicha e mulher tem mais

é que morrer” (fig. 29).

Nestas oito chamadas de capa, a violência destacada ganha contornos

sensacionalistas. Conforme atesta MacRae (1990: 76):


A questão da violência e das arbitrariedades policiais foi exaustivamente
explorada, e longos perfis foram traçados de dois delegados considerados
especialmente agressivos: José Wilson Richetti, em São Paulo, e Geraldo
Padilha, no Rio [no Lampião, nº. 26].

* Ver figuras no A violência contra os homossexuais é um assunto que até os dias de hoje
anexo I.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


assusta as pessoas mais esclarecidas. E continuará tema dos periódicos que surgiram

nas décadas seguintes. As matérias publicadas expunham a violência psicológica e 97


física, que em alguns casos chegou até o assassinato.

As edições números 1 e 6 trazem reportagens sobre crimes cometidos contra

homossexuais por michês, e como estes crimes quase sempre acabam sendo

arquivados sem solução. Nas edições 7, 13 e 26, a violência é política. Nessas

reportagens denuncia-se a violência em outros países da América Latina, a violência

praticada contra os homossexuais através do tempo, e como a intolerância da igreja

e da filosofia cristã em relação à homossexualidade (com as campanhas anti-

homossexuais) mostraram-se ao longo da história desinteressadas em amparar fiéis

homossexuais.

Nas outras reportagens, o jornal faz denúncias de crimes cometidos não só

contra os homossexuais, mas também contra as mulheres e os negros. Os editores

deixam claro que estes crimes são fruto do preconceito, pois afirmam que não é

crime ser homossexual, e que não há proibição legal da prática perante a lei.

O grupo ATIVISMO é formado pelos seguintes números e suas respectivas

chamadas principais:

N. 10: “Minorias exigem em São Paulo: ‘Felicidade deve ser ampla e

irrestrita’” (fig. 11);

N. 11: “Lesbianismo, machismo, aborto, discriminação: são as mulheres

fazendo política” (fig. 12);

N. 16: “Homossexuais se organizam” (fig. 17);

N. 18: “Povo gay já pode falar” (fig. 19);

N. 20: “Encontro nacional do povo gay” (fig. 21);

N. 23: “Tudo sobre o encontro do povo gay” (fig.24);

N. 24: “Homossexuais, a nova força” (fig.25).

A história do movimento homossexual brasileiro se confunde com a história

do Lampião da Esquina. Sob certo ângulo, este enredamento foi prejudicial aos dois.

O Somos, o primeiro grupo homossexual organizado, é criado meses depois

de o jornal chegar às bancas de todo o Brasil. O grupo surge inicialmente em São

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Paulo e logo depois criam uma representação no Rio. Movida ideologicamente, uma

parte do grupo era de opinião que deviam trabalhar com outros setores da esquerda 98
nacional, enquanto outra parte do grupo era radicalmente contra. O grupo acabou

se dividindo (ver Trevisan, 2002; e MacRae, 1990).

No Lampião número 25, uma pequena chamada – Racha no Somos paulista

–, localizada no canto esquerdo inferior do jornal (área considerada com menos

força visual), nos remete para uma questão com a qual o jornal parecia ter muita

dificuldade em lidar. A reportagem é composta por reproduções de documentos

enviados ao jornal pelas facções em conflito do grupo Somos-SP, além de um texto

de um participante do Somos-RJ. A divisão do grupo se dá porque parte do Somos-

SP achava que o grupo deveria ser apolítico, outra parte exigia do grupo uma

participação mais política, e a outra, das lésbicas, não se sentia mais confortável em

permanecer naquele coletivo.

O jornal vai acompanhar bem de perto todas as discussões e resoluções do

grupo Somos. E vai se posicionar contra a facção que, na visão do Lampião, pretendia

guiar o movimento homossexual no Brasil. Isto vai levar a uma situação na qual os

grupos organizados e o Lampião começam um debate que só enfraquece ambos os

lados.

Segundo Trevisan:
(...) divergências frente aos rumos do movimento homossexual foram
se acentuado, sobretudo com os grupos do Rio de Janeiro, que criaram
frágeis e apressadas alianças com outros grupos do país, na tentativa de
isolar o jornal” (2000: 361).

Ou, na visão de MacRae:


(...) apesar de se propor a unir o “povo gay” do Brasil, o Lampião acabou
servindo para tomar ainda mais evidente a sua heterogeneidade não só
devido às diferenças culturais, regionais, classistas e etárias, mas também
entre os próprios “homossexuais organizados” (1990: 192).

Era uma via de mão dupla. O movimento precisava do jornal, assim como o

jornal precisava do movimento. Estas questões não foram bem articuladas e, de

certa forma, adiaram o fortalecimento do movimento homossexual no Brasil, que

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


só vai se consolidar na sociedade brasileira a partir dos anos 1990.

O grupo “Aliados políticos” é formado pelos seguintes números e suas 99


respectivas chamadas principais:

N. 9: “Moral e bons costumes?” (fig.10).

N. 14: “Alô, alô classe operária: e o paraíso, nada?” (fig. 15).

N. 15: “Negros: qual é o lugar deles?” (fig. 16).

N. 26: “A igreja e o homossexualismo” (fig. 27).

N. 33: “Cuba: os órfãos de Sierra Maestra” (fig. 34).

O lançamento do Lampião coincide com o início da abertura política no país.

Desta forma, vários setores da sociedade brasileira, entre eles presos políticos e

metalúrgicos, reivindicavam seu espaço social, e alguns números do Lampião da Esquina

foram quase que exclusivamente para dar espaço as outras minorias.

A edição de número 15 foi uma delas: vários artigos falam da posição do

negro na sociedade. Abdias do Nascimento, um dos líderes do movimento negro no

Brasil, concede uma entrevista. Lula, líder do movimento sindical e hoje presidente

da Republica, é capa do número 14. Foram tratados temas que envolviam religiosidade

e homossexualidade, como também a situação dos gays em países socialistas, matérias

sobre os índios brasileiros, vários artigos do ecólogo José Lutzemberger, e muita

matéria sobre feminismo. Nestas seis capas as representações gráficas reforçam o

sentido do texto.

O grupo “Comportamento sexual” é formado pelos seguintes números e suas

respectivas chamadas principais:

N. 8: “Gay-macho (uma tragédia americana?)” (fig. 9).

N. 12: “Amor entre mulheres” (fig. 13).

N. 30: “Prostitutos” (fig. 31).

N. 31: “Masturbação” (fig. 32).

N. 34: “Hotéis de pegação homem com homem” (fig. 35).

N. 37: “Viado gosta de apanhar” (fig. 38).

Artigos relacionados a práticas sexuais serão temas constantes nos últimos

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


números do jornal, sempre valorizando os aspectos criativos e prazerosos destas

práticas. Este grupo sinaliza os interesses do jornal, que irão caracterizá-lo no final 100
de seus dias. A partir do fim do Conselho Editorial, o jornal assume características

dos jornais sensacionalistas. Suas matérias exploram o corpo e o sexo. Segundo

MacRae:
Muitas matérias foram dedicadas às possibilidades de prazer escondidas
nas ruas e praias do Rio e outros locais brasileiros, sendo muito discutido
os assuntos de “caçação”, prostituição, etc...” (1990: 77).

As manchetes apelativas vêm acompanhadas de fotos de homens nus ou

travestis com seios à mostra. Desde a edição 27, o jornal vinha publicando o nu

frontal masculino. Na edição de número 31, o nu vem para a capa numa matéria

sobre o bottom less na praia de Ipanema.

A matéria da edição número 8, Gay-macho (uma tragédia americana?) é

uma tradução de um artigo norte-americano sobre a nova onda de masculinidade

entre os homossexuais. O artigo trata dos homossexuais que adotam imagens de

masculinidade na indumentária e no comportamento, e que veiculariam seu desejo

de poder e sua crença de beleza nestas imagens. Segundo o autor, esses homens

estariam na verdade erotizando os mesmos valores da sociedade careta que tiraniza

suas vidas.

Viado gosta de apanhar é republicação da matéria Gay-macho, só que desta

vez com uma introdução de Aguinaldo Silva, e fotos colhidas do filme Cruising, de

1980, dirigido por William Friedkin, e traduzido no Brasil como “Parceiros da Noite”.

O jornal dedicou vários números ao tema dos michês.

O grupo “Bichas e travestis” é formado pelos seguintes números e suas

respectivas chamadas principais:

N. 4: “Travestis! Quem atira a primeira pedra?” (fig. 5).

N. 21: “Tudo sobre o carnaval das bichas” (fig. 22).

N. 22: “Carnaval das bichas é o maior do mundo” (fig. 23).

N. 27: “A incrível metamorfose de Andrea Gasparelli” (fig. 28).

N. 32: “Brasil, campeão mundial de travestis” (fig. 33).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


N. 35: “A bicha que virou mulher” (fig. 36).

N. 36: “A praça é das bichas” (fig. 37). 101


Neste grupo resolvi reunir todas as principais chamadas nas quais o tema em

questão é o “transformismo”, isto é, homens que modificam parcialmente o corpo,

adquirindo formas mais femininas, seja por meio da injeção de silicone nas bochechas,

e no peito, como forma de “implante de seios” (ou através do uso de hormônios),

seja quando mudam a forma dos quadris, etc. Também agreguei a este grupo a

denominação “bicha”, quando ela aparece como sinônimo de travesti querendo

caracterizar a postura efeminada e “flamboyant” de alguns homossexuais.*

Percebi que o jornal utiliza muito pouco a palavra “entendido”, dando

preferência aos termos “bicha”, “viado”, “gay”, “guei” e “homossexual”. Fica claro,

pelo número de chamadas de capa, que a “questão travesti” é fato importante para o

jornal, fato já visto no número 22. Na realidade, em 11 edições a palavra travesti e/

ou a imagem de travestis é estampada na capa. Mas as colocações são sempre do

ponto de vista da aceitação, com certo paternalismo, sustentando que o travesti é

aquele que soube confundir o sistema.

Na capa da edição número 4, a chamada é somente sensacionalista, pois a

matéria é um ensaio fotográfico. Nas edições de números 21 e 22, a matéria é o

carnaval do Rio de Janeiro, e, conseqüentemente, a participação já histórica do travesti.

A edição 27 enaltece o show que o travesti Andrea Gasparelli apresentava no Rio de

Janeiro. As edições 32, 35 e 36, apesar das chamadas sensacionalistas, tentam trazer

o mundo dos travestis para os leitores: mostrar a difícil vida que eles levam. O número

35 fala sobre o transexualismo: a convicção que o homem ou a mulher tem de

pertencer ao sexo oposto, cuja característica fisiológica aspira ter, ou já adquiriu por

meio de cirurgia . Este assunto, anos mais tarde, será capa de quase todos os periódicos
*
Homossexuais
que adotam uma do Brasil, com o “fenômeno Roberta Close”.
postura de Dândi.
Palavra que Finalmente, o grupo “Entrevista” é formado pelos seguintes números e suas
caracteriza de
forma precon- respectivas chamadas principais:
ceituosa a postura
efeminada de N. 2: “Sou Tarado! Lennie Dale” (fig. 3).
alguns homos-
sexuais. N. 3: “Norma Benguell solta o verbo: eu não quero morrer muda” (fig. 4).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


N. 5: “Cassandra Rios ainda resiste” (fig. 6).

N. 29: “3 entrevistas para derrubar: Cassandra Rios, Roger Peyrefitte e 102


Ruddy” (fig. 30).

Nestes quatro números a capa deu destaque a personalidades que concederam

entrevistas ao jornal. Nunca existiu uma seção específica para esta atividade jornalística,

porém em quase todas a edições existia uma entrevista. Esta forma de fazer

reportagem foi uma característica que começou com o jornal Pasquim e estendeu-se

por toda a imprensa alternativa da época. Segundo José Luiz Braga:

O Pasquim se habituara a não copidescar as entrevistas. Desde o número


1, por intenção ou por preguiça, (...). E tinham conseguido assim o
estilo de entrevista que marcou época e renovou (...) o trabalho
jornalístico no país (1991: 31).

O Lampião entrevistou artistas, políticos, escritores que de alguma forma faziam


trabalhos que refletiam as preocupações lampiônicas, isto é dar visibilidade a
homossexualidade para o maior número de pessoas possível.

2.2.5 O contorno do Lampião: a linguagem gráfica

Streitmatter observa que no fim da década de 60 algumas questões se tornaram

predominantes no jornalismo gay norte-americano. Enfatizar o design gráfico foi

uma delas:
Among the themes is an emphasis on design. (...). The founders of
One reinforced this theme during the 1950s, insisting that their magazine
be professionally printed and using bold graphics to make design one
of its trademarks. The publications of the late 1960s reinforced the
central role of design. (…) Closely related to design is a strong emphasis
on visual images (1995: 113).2

Um projeto de design gráfico de um periódico consiste num todo que é

formado pelo texto do corpo do jornal, os diferentes títulos e subtítulos. Para isso é

usada uma fonte que vai ser a principal do jornal, e seus respectivos corpos, fotos e

ou ilustrações e elementos gráficos: cor, elementos acessórios, como vinhetas, fios,

figuras geométricas, etc. O ato de dispor texto e figuras em um determinado campo

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


(página de livro, jornal, revistas, cartazes, etc.) é o que chamamos de diagramação.

Diagramar significa construir, estruturar os elementos que irão compor uma 103
mensagem, auxiliando, e até mesmo, guiando o leitor para uma melhor leitura.

Podemos ainda agregar um valor informacional para um certo elemento, ou

evidenciar uma outra parte, ou ainda atrair a atenção do leitor para um texto ou uma

foto através de molduras (fios ou vazios). Clareza, modernidade, responsabilidade,

flexibilidade e subversão são questões que o público, inconscientemente, lê ao se

deparar com um projeto bem organizado, pois as palavras e as imagens podem

descrever a qualidade de um bom jornalismo, mas elas não terão a mesma força se a

apresentação gráfica da linguagem apresentar algo diferente, ou em outras palavras,

se projeto gráfico não for bem planejado.

Para Michael Twyman, o processo de diagramar é o que ele chama de

“apresentação gráfica da linguagem”: a composição da página, a relação entre o

conteúdo do texto e a forma de como ele é apresentado para o leitor. Para Twyman

(1982), a representação pictórica é uma linguagem formada por uma cadeia de

elementos que juntos geram os sintagmas visuais; esta linguagem pode estabelecer

uma série de relações com a linguagem verbal. De acordo com Kress e Van Leeuwen:
Composition is the way in which the representational and interactive
elements are made to relate to each other, the way they are integrated
into a meaningful whole. [...] Composition, then, relates the
representational and interactive meanings of the picture to each other
through three interrelated systems:
1. Information value: the placement of elements (participants and
sytagms that relate them to each other and to the viewer) endows them
with specific informational values attached to the various ‘zones’ of the
image: left and right, top and bottom, center and margin.
2. Salience: the elements (participants and representational and interactive
syntagms) are made to attract the viewer’s attention to different degrees,
as realized by such factors as placement in the foreground or background,
relative size, contrast in tonal value (or colour), differences in sharpness,
etc.
3. Framing: the presence or absence of framing devices (realized by
elements which create dividing lines, or by actual frame lines) disconnects
or connects elements of the image, signifying that they belong or do
not belong in some sense (2000: 183).3

Sob a perspectiva técnica da diagramação, pode-se verificar que os três sistemas

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


propostos por Kress e Van Leeuwen e as teorias de Twyman não são bem articuladas

na maioria dos números Lampião. Eles aparecem apenas numa ou noutra página do 104
jornal, conforme veremos a seguir.

Information Value - A posição e o tamanho das fotos fazem com que o


Salience e Framing - A posição
leitor fixe-se nas imagens do escritor/cabeleireiro. De Belô à Ipanema.
inclinada da foto sobre as linhas
paralelas quebram o rigor da
página.

Lampião número 35, o titulo da


matéria é posicionado de uma forma
que leva o leitor diretamente para a
foto. A logomarca do evento colocada
em 45 graus reforça o ritmo fazendo Lampião número 35 - exemplo de
com que a página, mesmo com muito uma diagramação canônica.
texto, possa ser lida com mais
facilidade.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Por muito tempo, grande parte da sociedade tinha no seu imaginário a idéia de

que os homossexuais eram pessoas mais refinadas, mais sensíveis, e estavam sempre 105
ligados ao bom gosto e ao estilo. Crenças que eram fruto do preconceito e da

intolerância. Tais características sempre foram, ao longo da história, atribuídas as

mulheres, ao feminino. Desta forma todo homem que fosse mais gentil ou

demonstrasse sua sensibilidade era imediatamente visto como homossexual.

Esta idéia de refinamento e delicadeza dos gays foi totalmente subvertida na

apresentação visual do Lampião. Com manchas gráficas pesadas, poucos claros, uma

diagramação dura e de pouca inventividade, o jornal tinha como preocupação maior

o seu discurso verbal. Diferentemente das primeiras publicações americanas, que

valorizaram o papel do design gráfico nos periódicos, no jornal Lampião a transgressão

não estava no campo gráfico, apesar de contar com um artista plástico entre seus

editores. O miolo do jornal não surpreende os leitores. É como se a severidade da

forma respaldasse a seriedade do conteúdo.

No Brasil, alguns tablóides da imprensa alternativa, principalmente os que

adotaram o discurso da contracultura, foram concebidos com bastante ousadia nos

seus designs. Eles tinham uma estética psicodélica, ou então surrealista, muito em

moda na época, talvez uma conseqüência das experiências

com as drogas. Era um tempo marcado pela busca do novo

e as drogas foram um caminho entre tantos, às vezes

complementar, às vezes central.

Mas não só os que adotaram a contracultura trouxeram

um novo discurso visual. O pioneiro deles, o Pasquim, é um

exemplo. De acordo com José Luiz Braga:


O projeto gráfico, a paginação, a titulação, a tipografia, a ilustração
se organizam para dar a cada página uma unidade gráfica de objeto
visual. (...) É interessante assinalar que na Biblioteca Pública
Municipal de São Paulo o Pasquim não está classificado na seção
Imprensa, mas em Arte (1991: 158).
Verbo Encantado, jornal baiano com uma
estética psicodélica, dezembro 1971.

Além do jornal O Beijo, já citado anteriormente por

sua diagramação ousada, outros jornais ressaltavam a apresentação visual, como

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


aponta Kucinski (2003). O jornal Repórter, lançado em 1977, foi

um tablóide que ganhou muita popularidade pelo seu alto teor 106
“naturalista e, no limite, escatológico”. Usando chamadas típicas

dos jornais populares, “o jornal retratava a fome, a promiscuidade,

os assaltos, os estupros, o analfabetismo (...) Um cotidiano abjeto

de miséria agravada pela recessão econômica de 1981”. Ainda de

acordo com Kucinski:


À ruptura editorial com o padrão alternativo corresponde uma ruptura
gráfica. A diagramação criada pela artista gráfica Pitsi Munk vale-se de
Reporter, março de 1980.
aplicativos fortes, em vermelhos, fotos inclinadas, resultando num visual
ágil e agressivo, diferenciado em relação à maioria dos jornais em
circulação, alternativos ou não (2003: 290).

Os jornais em que os temas políticos eram predominantes – ou como chama

Kucinski, “os revolucionários” – adotaram dois caminhos. O primeiro, um rigor

gráfico, como vemos no Opinião, “o mais influente jornal de toda imprensa alternativa

dos anos 70”. Elifas Andreato, jovem designer do sul do país, desenvolveu um projeto

que causou espanto pela qualidade do seu visual. “A diagramação elegante, as

caricaturas a traço fino de Cássio Loredano e Luís Trimano, e detalhes, como uma

seção de xadrez, conferiam ao jornal o desejado classicismo” (Kucinski, 2003: 315).

O segundo caminho foi o da impureza visual. O jornal Movimento, outro grande

alternativo da época, sofrendo os danos causados pela censura prévia, não se

preocupou com sua forma. Ainda segundo Kucinski:


Tinha a diagramação mais pesada do que a d’Opinião, com textos longos
e tijolados, em corpo oito e até em corpo sete. Suas charges e desenhos
eram rudes devido ao pouco tempo disponível entre a aprovação do
rascunho pela censura e a confecção da arte final (2003: 355).

Como podemos ver, a preocupação com a linguagem gráfica era um ponto

em comum entre os jornais alternativos.

A relação entre forma e conteúdo encontrada no Lampião da Esquina vai mudar

ao longo da história dos periódicos da imprensa gay. A partir dos anos 90, a linguagem

visual vai ganhar tanta importância quanto à linguagem verbal, mas, durante a sua

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


existência, o Lampião, com raríssimas exceções, mudou pouca coisa em termos

gráficos. 107
O Lampião era publicado com rígidas colunas. Fios grossos acima e abaixo

delas sustentavam o texto, e uma moldura retangular de cantos arredondados era

empregada para diferenciar as seções; mas se tratava de elementos gráficos que apenas

sublinham o texto, não apresentando inovações gráficas. De um modo geral, a página

do jornal como um todo tem pouca força visual. O “valor informacional, a evidência

e o enquadramento”, os sistemas propostos por Kress e Leeuwen, não são enfatizados

nas páginas do jornal.

O Lampião utiliza a composição visual padrão, ou seja, aquela baseada em

blocos horizontais e/ou verticais, e não traz nada de novo ou criativo. As matérias

são dispostas ocupando o número de colunas

estabelecidas na mancha gráfica do periódico. Essa

forma de diagramar tende à monotonia e ao

cansaço visual. Com exceção das páginas que

traziam poesias, todo o resto do jornal mantém-se

preso ao diagrama das quatro colunas. O texto era

ainda impresso com corpo de letra muito pequeno

(nove, e em alguns casos, oito), prejudicando

consideravelmente a legibilidade da página.

Em sua maioria, a composição das páginas Lampião número 13.

do Lampião obedece a um design simétrico, que é relativamente simples de criar, uma

vez que em um design assimétrico, com múltiplas opções e tensões provocadas pela

inexistência de um centro definido, é muito mais complexo para se alcançar um

equilíbrio. Um bom exemplo de uma página assimétrica é a página dupla do jornal/

revista Bondinho. Num dos números a multiplicidade da persona do cantor Caetano

Veloso se espalha pelas páginas da matéria sem nenhuma direção rígida.

Exemplos de páginas simétricas do Lampião podem ser encontradas no número

3 (jul-ago/1978). Neste caso a simetria sufoca a expansividade da entrevistada; a

página é pesada e incomoda o leitor. Não se vêem aqui os sistemas propostos por

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Kress e Leeuwen. Já no número 10

(mar/1979), a simetria se enquadra 108


perfeitamente com a reportagem.

Antônio Moreira, arte

finalista do número 24 até o último,

explica que quando ele chegou, a

redação o jornal obedecia a uma

rotina. O Aguinaldo Silva levava


Bondinho, março/abril de 1972. todo o material para o Jornal do

Comércio e lá ele fechava o

Lampião, contando com o

diagramador do dia e da hora. Não

existia, até o número 24, um arte-

finalista permanente. Isto pode

explicar a falta de um projeto mais

próprio e estável, que trouxesse

uma identidade visual para o jornal,

Lampião nº 3
que corroborasse seu papel político
Lampião nº 10.
na sociedade da época.

No expediente do número zero a “arte” é atribuída a Ivan Joaquim e Mem de

Sá. Ivan permanece somente até o número dois. Moreira (2005) acredita que tenha

existido um projeto gráfico para o número zero:


Normalmente o número zero você leva um, dois, três meses pra fechar.
Faz o teste, volta... Então ele tem até um acabamento gráfico um pouco
melhor, menos “empastelado”, menos erros, né?

Porém, e ao que tudo indica, a preocupação com as questões estéticas também

fazia parte das preocupações do Corpo Editorial. Como mencionamos na seção

anterior, na edição de número 3 encontra-se um pequeno “recado” intitulado Desafio

aos cartunistas. Nele os editores convocavam chargistas e caricaturistas para ilustrar

e colocar um pouco de humor no jornal, pois não há jornal sem o desenho de

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


humor. A nota anunciava ainda para o número seguinte a colaboração do artista

multimídia Patrício Bisso, que passaria a desenhar alguns selos ou rubricas para as 109
seções.

É a partir do número 4 que também encontraremos o artista plástico

Hildebrando de Castro ilustrando algumas reportagens. As já referidas rubricas de

Bisso vão aparecer junto às seções REPORTAGEM, TENDÊNCIAS e

LITERATURA. São desenhos a bico de pena que remetem ao art noveau; ilustrações

com detalhes, um certo requinte e um pouco de humor.

A rubrica para a seção REPORTAGEM é de uma figura andrógina em frente

a um microfone; na seção TENDÊNCIA a mesma figura aparece rodeada de livros,

discos, paleta de cores; na seção de LITERATURA a imagem é de uma mulher (uma

pin-up) deitada lendo um livro. As três ilustrações de Bisso dão um certo frescor ao

Lampião. Contrastando com a rigidez da diagramação, seu traço foi forte o bastante

para enriquecer o jornal. Contudo, o requinte e o humor sofisticado de Patricio

Bisso não foram absorvidos pelo jornal. As vinhetas desaparecem a partir do número

26. As ilustrações de Castro, diferentemente das de Bisso, têm um humor mais

cáustico, e aparecem em número tão reduzido que

quase passam despercebidas.

Dolores Rodrigues, redatora do jornal a partir

do segundo ano, relata que a participação desses

artistas era muito mais por amizade e adesão ideológica

do que por dinheiro. Talvez, por essas razões, não

houve a manutenção de uma equipe constante e,

conseqüentemente, a metodologia necessária para


As vinhetas de Patricio Bisso.
manter uma identidade visual foi deixada de lado. Por

outro lado, a participação amadora da arte denota que o jornal não tinha ainda estrutura

robusta e mais acabada, como outros jornais.

Os chargistas e ou cartunistas vão demorar a aparecer, mas depois que são

incorporados ficam até o final. Entretanto, sua participação, medida em centimetragem

ocupada no jornal, é muito pequena. O primeiro cartum publicado é assinada por

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Jônio, no mesmo número em que o Conselho Editorial convoca

os chargistas. O cartum ocupa um espaço muito pequeno. Com 110


um traço frágil, o cartum brinca com o trocadilho de “viado” e

“veado”. No número dez é apresentado Hartur, que publica suas

Harthur, Lampião numero10.


charges até o número 24, contabilizando 12 charges no total. Seus

temas preferidos são a relação entre pais e filhos, ecologia e

corrupção, mas ele também produziu charges sobre a dupla identidade

de alguns homossexuais. Pode-se perceber que estas últimas

funcionaram mais como uma área de descanso visual, e não tinham

a intenção de ilustrar o texto.

Na edição 21 aparece outro cartunista, Levi, que permanece


Levi, Lampião número 22

até o final, podendo ser considerado o chargista do jornal. Suas

charges ou cartuns são bem desenvolvidas, com um traço mais

vigoroso. Expressavam uma estética popular, bem ao estilo do rumo

que o jornal tomou no fim da sua existência. Com Levi a charge

passa a fazer parte da matéria, ilustrando na maioria das vezes uma

reportagem. O autor tem um estilo próprio, qualidade imprescindível

para o sucesso de um desenho de humor. Durante seu tempo no

jornal, Levi publicou 24 cartuns, a maioria nos últimos números.


Levi, Lampião número 22
Como podemos notar, as charges, cartuns* e as ilustrações tiveram

* Charge – repre- uma importância menor dentro do jornal. Conforme afirma Braga:
sentação pictórica,
Não conhecemos um jornal que publicasse a cada número um chargista
de caráter burlesco
diferente: encontrar quotidianamente o seu humorista parece hábito
e caricatural, em
que se satiriza um entre os leitores. Esse desenho não é encomendado pelos editores: o
fato específico, em desenhista (encarado em uma perspectiva que o vê mais como artista
geral de caráter que jornalista) tem a liberdade de escolher não só o assunto que prefere
político e que é do abordar, mas também o ângulo, a posição crítica, que não raramente é
conhecimento
independente da linha editorial definida para a folha (1991: 159).
público.
Cartum –
d e s e n h o
caricatural que As charges e cartuns desempenham a função de complemento visual do texto.
apresenta uma
s i t u a ç ã o É fácil perceber que conforme o Lampião se direcionava para o popularesco, o número
humorística
utilizando, ou não, de charges aumentava. O jornal acaba por materializar nos seus desenhos a figura
legendas. (Aurélio,
2000) estereotipada do “guei”. O caráter burlesco e caricatural das charges e cartuns reforçam

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


a figura do homossexual “louca e deslumbrada”.

Num momento em que o sujeito homoerótico 111


começa a reivindicar mais respeito e mais dignidade,

as charges e cartuns apresentadas no Lampião

caminham na direção oposta. Veremos nos capítulos

seguintes que o desenho de humor, nas suas diversas Levi, Lampião número 22

formas, não terá papel relevante nos outros

periódicos da imprensa gay carioca.

Outro elemento importante para o jornalismo impresso são as fotografias.

Elas explicitam de forma direta o que as palavras às vezes ocultam. Mas no Lampião

da Esquina as fotografias são pobres, sem força estética, além de encontrar limitações

técnicas de reprodução no suporte do papel-jornal. As fotografias não desempenham

aí um papel definido. Não vamos encontrar, nem nas grandes reportagens, nem nas

entrevistas, fotos que mereçam destaque. Alguns casos isolados merecem um pouco

de atenção, como as fotos de Ruddy, ou do futuro presidente Lula deitado de short

(Lampião nº 14). As fotos só ganham algum destaque quando elas começam a exibir

homens semi-nus ou nus.

Apesar de o jornal propor um “assumir-se”, naquele momento ainda era muito

difícil (e ainda hoje o é, aliás) as pessoas se deixarem fotografar, pois a exposição

individual podia trazer problemas de ordem pessoal ao fotografado. Desta forma,

em todas as reportagens sobre os encontros gays, as fotos são

pequenas, as pessoas estão de costas, ou reproduzidas em alto

contraste. Os meios tons são apagados, criando uma imagem de

contrates em que não se reconhecem os rostos. É claro que existiam

aqueles que não tinham problemas em aparecer, mas a maioria

ainda estava “no armário”. O uso da máquina fotográfica nos

eventos era sempre um ponto importante de discussão nos debates

das organizações. Conforme MacRae, no Encontro de Grupos

Homossexuais Organizados (1º EGHO), “um esquema de


Lampião nº 27, fotos tiradas do
livro “Homens” de Vania Toledo. segurança contando com a participação tanto de homens como

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


de mulheres (...) certificava-se também que ninguém levava máquinas fotográficas

(1990: 197). 112


Quanto ao universo do pictórico, houve uma tentativa de publicar quadrinhos

no jornal, mas isso não foi adiante. Um leitor mandou uma história pronta para a

edição e os editores resolveram publicar numa edição extra do Lampião. Aguinaldo

Silva pediu publicamente que o autor entrasse em contato com a redação do jornal,

e no número 21 (fev/1980), o jornal apresenta “Ave Noturna”, um super-herói que

protege os gays que andam pela noite. Nesta ocasião o super-herói ocupa a página

inteira do jornal, mas na segunda e na última aparição (Lampião, nº 23), apenas meia

página. “Ave Noturna” foi uma tentativa de trazer para o jornal a linguagem dinâmica

das HQs. Mas, infelizmente, ou não convenceu os leitores, ou Agnaldo Silva

simplesmente parou de publicar. Não se encontra nas outras edições nenhuma carta

elogiando nem protestando pelo seu desaparecimento.

Apesar de várias tentativas, o Lampião da Esquina não

conseguiu estabelecer um projeto gráfico que acompanhasse o

discurso verbal. Se em termos textuais o Lampião da Esquina iniciava

uma nova era para uma minoria social, na linguagem gráfica o

discurso foi antigo e tradicional. Trevisan fala-nos que o discurso

do Lampião “gozava de uma saudável independência, era um jornal

que desobedecia em várias direções” (1986: 204). Mas não

desobedecia em relação ao design gráfico. No jornal Lampião a

transgressão certamente não estava no campo gráfico.


Ave Noturna - o super-herói não
encontrou seu espaço no jornal.

2.2.6 As capas

Como em todos os jornais, a capa desempenha um papel importantíssimo. É

o elemento de convencimento ou sedução do leitor. É ela que atrai o leitor para a

compra. Segundo Kucinski (2003), as capas dos jornais da imprensa alternativa de

um modo geral se caracterizavam muito mais pelo uso da imagem do que do texto,

e as capas do Lampião da Esquina não fugiram à regra. Elas chamam bastante atenção,

seja pelo uso de uma segunda cor, além do preto, seja pelo uso de uma linguagem

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


verbal e visual apelativas. O leitor é capturado pelas imagens e pelas chamadas de

conotações dúbias e sensacionalistas. 113


De acordo com Gilberto Strunck (2001), quando um nome ou idéia é sempre

representado da mesma forma, podemos dizer que ele tem uma “identidade visual”.

Esta identidade visual é composta pelos elementos gráficos que irão formalizar a

personalidade visual de um nome, idéia, produto.

Um dos aspectos mais interessantes da capa do Lampião é a representação

gráfica de seu nome, traduzida no logotipo e no símbolo no cabeçalho da capa. O

símbolo era posicionado à esquerda do logotipo. A palavra

“lampião” era grafada em fonte mecanizada*, e as palavras “da

esquina”, em corpo menor, com fonte bastão alinhada à direita e

abaixo da palavra “lampião”. Esta representação, assim como todo

o cabeçalho, vai sofrer pequenas mudanças no final de vida do

jornal.

No título do jornal, a palavra “lampião” é empregada com

duplo sentido: num primeiro momento, ela simboliza a luz que


Lampião número 19
ilumina; noutro, ela faz referência ao cangaceiro Lampião. O

símbolo é o rosto do cangaceiro Lampião estilizado.

Como se sabe, Lampião é um personagem muito importante

do universo mítico do nordeste brasileiro, figura histórica que viveu

no início do século XX, sempre associado à virilidade. O símbolo

é composto de um chapéu (o chapéu de cangaceiro) decorado por

círculos brancos e pretos, e tendo no centro um triângulo. O rosto

do cangaceiro é estilizado, apresentando apenas os olhos em forma

de círculos, e o nariz em forma cilíndrica, que na representação

Lampião número 19 pictórica toma forma de um pênis.

As capas do Lampião desenvolveram uma estética própria.


* Fontes com
serifas marcantes, Às vezes, o Editorial, que não encontrávamos no interior do jornal, era estampado
sólidas, formando
ângulo reto com a nas capas. Suas composições, algumas vezes caóticas, estiveram presente do início
linha de base. (cf.
Niemeyer, 2000). ao fim do jornal, mas podemos dizer que elas foram coerentes do início ao fim.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


A composição gráfica apresentada na capa, diferentemente do corpo do jornal,

era totalmente livre, e em alguns casos bastante desordenada. Mem de Sá é o designer 114
que vai criar todas as capas do jornal. Segundo Moreira:
Até onde eu sei, o Mem de Sá não era homossexual. Era um profissional
que vinha da imprensa, que o Aguinaldo conhecia há muito tempo. Ele
fez todas as capas, mas o Aguinaldo devia dar as coordenadas. Dava os
títulos, batia tudo lá. Tinha uma ou outra imagem, ou então indicava
para ele arrumar essas imagens, e certamente muitas coisas vieram da
pesquisa d’O Globo. E a capa aparecia (Moreira, 2005).

Conforme indicamos acima, é na capa do jornal que se encontram as

“chamadas” para os assuntos mais importantes daquela edição. A hierarquização das

chamadas nas capas do jornal é geralmente feita por meio do corpo da fonte utilizada,

pelo uso de imagens (fotos ou ilustrações) ou ainda pelo uso de elementos gráficos

que ajudam a garantir o destaque. Segundo Braga:


A primeira página de um periódico aponta em duas direções: a realidade
exterior à publicação, à qual ela se refere, perante a qual se situa; e o
corpo do jornal, com suas matérias, onde os fatos se tornam notícia,
comentário, opinião (1991:168).

No Lampião da Esquina, esta relação nem sempre acontece. A seleção das notícias

que se transformarão em chamadas não necessariamente hierarquiza as matérias do

corpo do jornal. No Lampião todas as possibilidades são utilizadas, mas não

necessariamente para a matéria mais importante.

No número 1, a capa traz um desenho de um bigode estilizado, que chama

muita atenção pelo peso que ocupa na capa. Na legenda vê-se que

o assunto é o jogador Rivelino, que usava bigodes. Mas na verdade

não existe matéria com Rivelino, e sim a carta de leitor pedindo

uma entrevista com o jogador. O número 4 traz a palavra

“TRAVESTI”, em caixa alta e corpo enorme, colocada logo abaixo

do nome do jornal. Num primeiro olhar, parece que a palavra está

vinculada às fotos do estilista Clodovil, que aparecem mais em

baixo. São duas matérias diferentes, mas com o mesmo peso. Outro

Lampião nº 1.
exemplo é o número 17, na qual splashes e balões de quadrinhos

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


(elementos gráficos) são usados ao mesmo tempo.

As capas dos números 7 e 25 mostram um bom exemplo do 115


padrão caótico que o jornal esboçava nas capas. Na edição número

7, a linguagem verbal fala em bonecas, enquanto a linguagem visual

mostra uma série de fotos de rapazes másculos nas praias do Rio.

Na edição número 27 os fios que envolvem o símbolo e o logotipo

tornam-se mais grossos.

No número 25, logo abaixo da chamada “A volta do


Lampião nº4.
esquadrão mata bichas”, aparecem três fotos de artistas da MPB:

Emilinha Borba, Fagner e Zezé Motta. A confusão gráfica acaba

por criar um certo humor, ao mesmo tempo que minimiza a

violência das chamadas principais. Por outro lado, a edição número

26 traz uma das capas que melhor obedeceu aos cânones do design

funcionalista: equilibrada e funcional, entretanto, ela acaba por fugir

do “padrão lampiônico” de fazer suas capas.

No número 28, o cabeçalho sofre outra alteração, no número

29 idem, assim sucessivamente até o número derradeiro. O símbolo

também se modifica. A partir do número 28 o rosto estilizado do


Lampião nº 7.

cangaceiro sofre pequenas

mudanças. As mudanças ideológicas, a pluralidade

de opiniões são visivelmente traduzidas nas

transformações gráficas do cabeçalho do jornal,

quer dizer na sua identidade.

À medida que o Lampião se encaminha para

o seu fim, as capas tornam-se mais irregulares. Com

exceção do número 31, as outras capas parecem

não ter sido projetadas para este ou aquele fim. O Lampião número 25.

trabalho de paste-up não obedeceu a nenhuma mancha gráfica. Os projetos são

confusos. O único destaque são as fotos sensacionalistas que o jornal passou a

publicar.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


No número 36, fotos, ilustrações, vinhetas e uma

salada tipográfica ocupam o mesmo espaço, deixando 116


o leitor sem saber por onde começar. Elas traduzem mais

uma vontade de apresentar o jornal de forma popularesca, já

que o jornal tentava alcançar os leitores do poeta português

Antônio Botto, e os admiradores do transformista Andrea

Gasparelli.

A questão aberta aqui é que a cultura gay reúne todos

estes elementos para resignificá-los, forjando assim a tessitura

da sua rede identitária. Rede, é importante sublinhar, de

Logotipo e símbolo do consistência cada vez mais firme, contudo aberta a


jornal ao longo de
sua existência. possibilidades cada vez mais plurais. De qualquer

forma, a proposta

era bastante ousada para a época, e refletia o que o

próprio jornal apontava no número 19, no artigo

já mencionado, Cultura Homossexual: já existe?:


Assim sendo, tanto contribuirão
para uma cultura homossexual o
ensaísta conscientizado, o artista
que retrate aspectos desse
cotidiano, o entendido que não
pretenda criar nada, mas que viva a
sua sexualidade cotidianamente, a
Lampião número 36.
bicha louca que dá show na rua, a
sapatona que distribui sopapos, o travesti prostituo que leva porrada da
polícia, etc...(Penteado, Lampião, número 19).

Nos anos 70, quando se desprezava o kitsh, quando se criticavam

profundamente os meios de comunicação de massa e tudo era dividido entre a alta e

baixa cultura, a proposta era muito ousada e talvez nem os editores sabiam com o

que estavam lidando. Hoje, sabe-se que tanto Antônio Botto como Carmem Miranda,

Madona ou Pasolini, entre outros, são referências fundamentais para o universo gay,

e não importa se são alta ou baixa cultura na medida em que se converteram em

elementos culturais de resistência e de consistência. Neste aspecto, o jornal foi bem

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


avançado para a época.

117
2.3 Acabou O Gás. O Lampião Se Apagou.

Na opinião de Dolores Rodrigues (2005):


O Lampião da Esquina foi o mais revolucionário jornal da imprensa
nanica. Todos os jornais discutiam a abertura política, a ditadura, a anistia,
etc. O Lampião passou por tudo isto e foi além. Ele foi o primeiro a
discutir a identidade do homossexual brasileiro.

Dolores tem razão. O jornal ajudou a materializar um sonho de várias pessoas

– a afirmação individual e a possibilidade real de um movimento gay organizado. De

abril de 1978 até julho de 1981, o Lampião esteve nas bancas de todo o país, ou em

quase todas. Como nos conta Dolores Rodrigues:


Algumas bancas tinham vergonha ou medo de vender o jornal, além de
que a maioria das bancas de jornais eram controlados por italianos, que
tinham preconceito contra o Lampião da Esquina (Rodrigues, 2005).

Apesar das dificuldades, não há dúvidas de que eles cumpriram, conforme

tinham prometido no seu número zero, “falar da atualidade e procurar esclarecer

sobre a experiência homossexual em todos os campos da sociedade e da criatividade

humana”. Quando a Universidade de São Paulo, em fevereiro de 1979, organizou

um debate público sobre as chamadas minorias, o jornal estava presente. Foi a partir

da iniciativa do jornal junto ao grupo Somos que em 1980 realizou-se em São Paulo

o 1º Encontro Nacional de Gays e Lésbicas do Brasil, e não há dúvida de que o

jornal foi um forte catalisador para a sua concretização.

É interessante observar que o interesse pelo ativismo político que deu o pontapé

inicial para a concretização do jornal vai ser uma das causas do seu fechamento. As

lutas internas, editoriais, em torno de qual identidade seguir, e o risco de uma

burocratização do movimento “guei” acabariam por descaracterizar o jornal, levando

a uma sensível diminuição nas vendas dos exemplares, e conseqüentemente ao seu

fim. Mas, ao que tudo indica, foi uma relação de amor e ódio: por um lado, o jornal

precisava do movimento (durante algum tempo foi o movimento que manteve o

jornal vivo); por outro, o movimento sem o jornal não teria aglutinado tantas pessoas

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


em todo o Brasil.

O jornal divulgou, por meio do seu ROTEIRO TURÍSTICO, locais de 118


encontros de homossexuais por todo o Brasil. Além disso, concedeu espaço aos

leitores na seção CARTAS NA MESA para opinar, discutir e debater as matérias. Na

seção TROCA-TROCA o espaço foi para a paquera, para a realização das fantasias.

O jornal falou de Fernando Pessoa, trouxe Abdias do Nascimento para o debate,

comentou o lançamento de História da sexualidade de Michel Foucault, e disse que o

metalúrgico Lula era o novo símbolo sexual.

Segundo Kucinski (2003), o Lampião começou “elegante e terminou

pornográfico”. Pode-se observar que as mudanças visuais do jornal foram percebidas

por outros autores. Mas o que é um jornal elegante? Elegância nos textos ou nas

formas? Pornográfico porque passou a estampar fotos de nu masculino?

Bem, o Lampião era elegante no sentido textual, pois tentava dar espaço para

todas a minorias, sendo que no sentido visual era inicialmente discreto. A preocupação

era muito mais com o conteúdo do que com a imagem gráfica. Como disse Dolores

Rodrigues (2005): “Para ter um bom visual tinha que pagar um bom profissional e o

jornal não tinha dinheiro. A bichinha não ia fazer de graça”. Esta parece ter sido a

tônica do jornal. Mesmo contado com Darcy Penteado no Corpo Editorial, ou tendo

a colaboração de Patrício Bisso: a preocupação visual foi levantada, mas acabou

ficando em segundo plano.

Isto vai mudar a partir dos anos 90. Graças a um movimento homossexual

mais organizado, e com a epidemia da Aids aterrorizando milhares de homens que

fazem sexo com outros homens, as publicações dirigidas ao público gay vão se

estabilizar, cada uma a seu modo, dirigindo-se para os diferentes estilos de vida, de

classe e de grupos sociais dentro da própria comunidade homossexual. E o design

gráfico vai ter um papel muito importante nisto tudo, pois é ele que configura o

planejamento e desenvolvimento da maioria dos artefatos da sociedade moderna.

Não podemos negar uma discussão do papel do design diante das questões da

diversidade cultural. É essa discussão que nos faz compreender sobre sua influência

e poder de controle na conformação de objetos e espaços.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


O Lampião, como qualquer outra publicação, estava trabalhando com o

imaginário de seus leitores, procurando estabelecer um diálogo direto com seu usuário. 119
O leitor do Lampião muda conforme vai mudando a linha editorial e acontecendo as

brigas internas. Uma visão clara disto é a presença de fotos de homens nus. Com a

distensão política, a pornografia passa a ter um espaço na mídia. O nu masculino,

que antes era negado, acabou sendo uma forma de chamar atenção do leitor, e vender

jornal. Mas o jornal não se preocupou em ver que o leitor do início do jornal não era

mais o mesmo do fim. As imagens de travestis nas capas do jornal afastavam o leitor

enrustido, ou mesmo o “entendido”. O jornal ficou visualmente descaracterizado.

Não agradava mais gregos, nem troianos. O jornal acabou de uma hora para outra.

Segundo Moreira e Rodrigues (2005), na reunião de pauta para o número 38, Aguinaldo

Silva falou: “Não vamos mais ter o jornal. Acabou o jornal”. Ou, na visão de MacRae

(1990: 92):
Os últimos números do jornal começaram a refletir cada vez mais a
convicção de Aguinaldo Silva de que não se estava oferecendo o produto
que o mercado queria e que o ativismo só apelava à minoria da minoria.
(...) o jornal não conseguiu aumentar suas vendas.

Na sua última edição, número 37, junho de 1981, o jornal traz um anúncio de

meia página anunciando a nova revista da Esquina Editora – a revista Playguei: “Um

jornal em forma de revista, que abre caminho para a segunda geração de publicações

gueis no Brasil”. Apesar de não anunciar seu fim, o anúncio sinalizava os novos

horizontes das publicações gays. É muito curioso imaginar como seria esta revista

que inauguraria a nova imprensa gay do país.

Durante toda sua vida o jornal teve pouquíssimos

anunciantes, que não chegaram a ocupar nem um terço de suas

páginas. Apesar de comporem a estrutura do jornal, os poucos

anúncios não chegaram a criar um diálogo com os outros elementos

das páginas. Os grandes anúncios são de filmes, tanto brasileiros

como estrangeiros. Alguns chegaram a ocupar uma página inteira,

como foi o caso de Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues. As assinaturas


Fig. 25. Lampião 37.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


também não eram muitas. Apesar de o jornal receber milhares de cartas mensais,

isto não se traduzia em assinaturas. Em alguns números, Aguinaldo Silva tinha que 120
colocar dinheiro do próprio bolso para pagar a edição (Moreira & Rodrigues, 2005).

No seu curto tempo de vida, o Lampião iluminou o caminho de várias pessoas

que viviam à sombra de sua própria identidade. Foi importante para toda essa geração

que pôde ver que não estava sozinha, que não era louca nem doente, e que existia um

outro lado. Apesar de se confundir nos seus próprios passos, é inegável a contribuição

do Lampião no longo e tortuoso caminho da construção das identidades gays –

caminho que consolidaria numa publicação como a G Magazine, nos dias de hoje.

Sob certo aspecto, foi como se os editores tivessem esquecido de que antes de assumir

uma identidade “marginalizada” para a sociedade, é necessário assumi-la para si.

Esta ação passa por um delicado processo de identificação com aquilo que desejamos

ser, ou que teremos de fingir que somos. Conforme afirma Hall: “A identificação é

um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma

subsunção” (2000: 106). O jornal criou moldes e os ofereceu aos leitores, quando

ainda era um tempo, aqui no Brasil, de ensinar a fazer moldes, e não de entregá-los

prontos.

Segundo Woodward (2000: 80), “a construção de uma identidade é tanto

simbólica quanto social”. Os movimentos sociais da década de 60 começaram a luta

pela afirmação das diferentes identidades, trazendo à tona neste processo os conflitos

latentes entre os grupos opressores e os oprimidos. Os jornais e revistas dirigidos

para este público são muito mais que apenas palavras e imagens. São representações

simbólicas de desejos e sonhos que um dia tornem-se realidade. A linguagem verbal,

assim como o design, são os protagonistas destas expressões, que têm como alvo o

leitor. Parafraseando Lugarinho (2001), o leitor deixa de ser um mero elo na cadeia da

comunicação, para ser descrito numa perspectiva social, psicológica e política.

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso


Traduções
121
1
“Mariana Valverde defendia que os gays abraçassem palavras ousadas como ‘boiola’, ‘sapatão’ e ‘viado’,
embora tais termos ofendessem aos conservadores” (Streitmatter, 1995: 230).

2
“Dentre os tópicos está uma ênfase no design (...) Os fundadores de One reforçaram este tema durante
a década de 1950, insistindo que sua revista fosse impressa profissionalmente e usando um grafismo arrojado
para tornar o design uma de suas marcas registradas. As publicações do final dos anos 1960 reforçaram o papel
central do design (...) Uma relação muito próxima com o design é uma forte ênfase nas imagens visuais”
(Streitmatter, 1995: 113).

3
“A composição é a maneira pela qual os elementos representacionais e interativos se relacionam uns
aos outros, a maneira pela qual são integrados num todo significativo (...) A composição, portanto, articula os
significados representacionais e interativos da imagem através de três sistemas inter-relacionados:
1. O valor informativo: a colocação de elementos (participantes e sintagmas que se relacionam uns aos
outros e ao leitor) os dota de valores informativos específicos ligados às várias ‘zonas’ da imagem: esquerda e
direita, superior e inferior, centro e marge
2. Saliência: os elementos (participantes e sintagmas representacionais e interativos) são feitos para atrair
a atenção do leitor em graus diferenciados, realizado através de tais fatores como a colocação em primeiro ou
segundo plano, tamanho relativo, contraste de valor tonal (ou de cor), diferenças de nitidez, etc.
3. Enquadramento – a presença ou ausência de dispositivos de enquadramento (realizado através de
elementos que criam linhas divisórias, ou por linhas de quadro, propriamente) desconecta ou conecta elementos
da imagem, significando que eles pertencem ali ou não pertencem, de alguma maneira” (Kress & Van Leeuwen
2000: 83).

Capítulo 2 - O Primeiro Lampião é acesso

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