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(Intervenção do professor Alfonso Carrasco Rouco, da Faculdade de Teologia San

Dámaso, de Madri, sobre “A proteção da doutrina e da moral pelo Direito”,


pronunciada na 36ª Videoconferência Mundial sobre o Direito Canônico a Serviço dos
Sacerdotes”, realizada em 27 de maio de 2005 pela Congregação Vaticana para o
Clero)

1. A estrutura do Código de Direito Canônico de 1983 reflete uma clara vontade de


recepção do magistério do Concílio Vaticano II. Assim, de acordo com as lições da
“Lumen Gentium”, após a apresentação das “Normas gerais” o Código dá a precedência
ao livro dedicado ao “Povo de Deus” (livro II); e, seguindo sua descrição da missão
da Igreja com o esquema do “tria munera”, dedica o livro III à “função de ensinar”.
A este respeito, por outro lado, a Constituição “Dei Verbum” havia afirmado que a
Igreja transmite a revelação divina “com sua doutrina, vida e culto, perpetia e
transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê”. Situando-se nestes
horizontes teológicos, o Código de Direito Canônico vai apresentar, desde o início,
a Igreja inteira como sujeito da função de ensinar, renovando as normas do Código
anterior, que tomava como ponto de partida o “magistério eclesiástico”.

Esta função refere-se, em termos bíblicos e tradicionais, ao “depósito da fé”. A


relação com este depósito não é entendida, no entanto, como uma “posse” mais ou
menos estática, mas como uma relação viva que implica dois momentos: a acolhida e a
transmissão. Com efeito, a identidade eclesial está constituída pela acolhida do
“depósito da fé”, que busca sua íntima inteligência e o aumento em sua compreensão,
e pela missão de sua comunicação aos homens, que implica o anúncio e o esforço de
exposição, dá razões da própria esperança. Por isso, o Código fala de um direito e
um dever originários da pregação do Evangelho, que não são só expressão da vontade
concorde dos membros da Igreja, nem concessão ou sujeito ao arbítrio de uma
autoridade mundana, mas que provêm da constituição do ser eclesial, pelo próprio
Jesus Cristo, dos dons e da missão que Ele deu a seus discípulos.

Após ter defendido assim esta competência originária no ensino da fé cristã, o


Código precisa que a isso pertence também a moral. Não parece necessário ao
legislador defender mais longamente o direito e dever da Igreja em relação à
verdade revelada; explicita, em contrário, a competência em questões morais, porque
esta é coloca em dúvida hoje, às vezes a partir de posições teológicas, para as
quais a revelação não implicaria um conhecimento renovado da natureza moral humana;
às vezes a partir de posições filosóficas ou políticas, que pretendem silenciar a
voz da Igreja na vida pública da sociedade. No entanto, a Revelação esclarece o
mistério do homem e ilumina o caminho da realização de seu vida. Por isso, o Código
afirma como direito e dever da Igreja proclamar e defender os princípios morais,
particularmente quando estão em jogo a dignidade da pessoa humana, os direitos
fundamentais e, obviamente, o próprio destino da salvação do homem. Oferecer este
juízo em meio a sociedade é responsabilidade de todos os fiéis, e pode sê-lo, em
particular, dos pastores da Igreja.

Nesta tarefa de anunciar e expor a fé católica, salvaguardando a dignidade humana,


a Igreja sabe que se “conecta com os desejos mais profundos do coração humano”;
pois toda pessoa, por sua natureza, tem o direito e o dever de buscar a verdade,
sobretudo no que se refere a Deus, e de conformar sua vida segundo ela. Por isso, o
Código estabelece explicitamente que o anúncio da fé precisa respeitar e promover
sempre a consciência e a liberdade de todo homem. Com efeito, o inverso seria
contraditório com os conteúdos do depósito da fé e impediria todo diálogo e toda
acolhida pessoal da verdade anunciada, tornando vã a função eclesial de ensinar.

Defende assim o Código o ensino tradicional sobre a competência originária da


Igreja e de seu magistério em questões de “fide et moribus”, em termos renovados
pela doutrina conciliar sobre a participação de todo o Povo de Deus na missão de
Cristo, sobre a necessidade de seu Evangelho para que o homem se compreenda a si
mesmo e ilumine o caminho da sua existência, ou sobre a dignidade e a liberdade
religiosa de cada pessoa.

2. A determinação dos diferentes modos de participação dos fiéis na função de


ensinar e, em particular, da autoridade magisterial própria do ministério
hierárquico, constitui também uma proteção canônica eficaz da doutrina e moral
cristãs, cujos conteúdos não poderão depender do arbítrio ou do consenso humano.
Pois também o Papa e o Colégio episcopal, os bispos e os sacerdotes, exercem seu
ministério ao serviço da Palavra de Deus, da verdade revelada sobre Deus e sobre o
homem, sobre o desígnio de salvação.

A existência de uma autoridade magisterial deriva da autoridade do Evangelho, para


cujo serviço o próprio Jesus Cristo escolheu e enviou os seus apóstolos. Nem estes
nem seus sucessores podem dispor do único Evangelho de Cristo ao seu arbítrio, mas
deverão recebê-lo obedientemente e anunciá-lo. Por isso, recebem um dom do Espírito
que, segundo seu oficio, chega a ser o de uma assistência que garante a
infalibilidade do seu magistério.

Cristo quis garantir na História a permanência dos seus enviados apostólicos na


verdade do Evangelho – o que ocorre sempre com a graça do Espírito – e constituí-
los assim testemunhas autênticas da sua verdade. A correspondente regulação
canônica da autoridade magisterial – completada recentemente pela Carta Apostólica
“Ad tuendam fidem” – protege a doutrina e a moral, precisando o modo simples com
que todos os fiéis são chamados a permanecer na verdade do único Evangelho. A isso
servem também, em paralelo, os cânones que precisam a obrigação dos fiéis de
acolher o ensino magisterial em seus diversos graus de vinculação, explicitando as
exigências próprias de uma verdadeira vida de fé em Jesus Cristo, que sempre
presume acolher de coração, de modo livre e inteligente, o anúncio da verdade que
vem de Cristo. Ao único Mestre, ao único Evangelho, deverão seguir obedientemente
todos os fiéis – também os ministros hierárquicos, em particular – para poder levar
a cabo sua função de conservar e anunciar a Palavra do Senhor e não a sua própria
[palavra]; o contrário significaria não reconhecê-Lo como Mestre, em nome da
própria inteligência humana.

Ainda que a função de anunciar o Evangelho como testemunhas autênticas foi confiada
por Jesus Cristo a Pedro e aos Apóstolos e seus sucessores, o testemunho da fé é
tarefa de todo fiel cristão, direito e dever que nasce do Batismo e da Confirmação,
de toda a vida a vida sacramental na Igreja. Pois o fiel vive do dom de Cristo, da
reconciliação e comunhão com Deus e com os homens em que Ele o introduz, e não pode
menos que manifestar com palavras e obras o que é. Isso é necessário para a defesa
da doutrina e moral cristãs no mundo, que é crível e compreensível graças também ao
testemunho de vida e santidade de todo o Povo de Deus. E é necessário também para a
vivacidade e a permanência na fé de cada fiel, pois a fé, e com ela a verdade da
doutrina e da moral, vive no movimento de sua realização em meio do mundo e de sua
comunicação ao próximo.

Neste sentido, a função magisterial encomendada ao sucessor de Pedro e ao Colégio


Episcopal tem de medir-se fundamentalmente como um serviço e uma defesa da fé dos
cristãos. Pois a permanência do fiel na obediência à Palavra de Deus, na unidade da
verdadeira fé em Cristo, se realiza concretamente nas formas próprias da comunhão
da Igreja, guardando a unidade da fé com o Papa e o Colégio Episcopal e, de modo
mais próximo, com os presbíteros que, como cooperadores dos bispos, anunciam o
Evangelho em meio da vida cotidiana ao povo que lhes foi confiado. Salvaguardando
assim as formas com que os fiéis vivem a comunhão concreta da única Igreja, o
Direito defende a verdade da doutrina e da moral, porque não é separável a fé no
Evangelho da vida na comunhão com Cristo, que os Apóstolos anunciaram e comunicaram
desde o início.
3. No exercício da função magisterial, o Código de Direito Canônico vai outorgar o
primeiro lugar à pregação da Palavra de Deus, que é apresentada como tarefa central
do ministério em sua missão de congregar o Povo de Deus na unidade. Desta maneira,
se explicita de novo o sentido fundamental da função de ensinar como serviço à vida
da fé dos fiéis cristãos. Com efeito, a manutenção da memória viva de Cristo nos
fiéis não pode nunca dar-se por dispensada; no entanto, disso depende o cumprimento
da vocação do cristão e da missão da Igreja nas diferentes circunstâncias da
História. Por isso, o Código defende o depósito da fé quando estabelece a
prioridade do anúncio e da pregação do Evangelho como serviço imprescindível para
que a fé dos fiéis permaneça viva e verdadeira, capaz de dar forma à existência
cristã do fiel e responder às necessidades e desafios dos homens e sociedades com
os quais caminha a Igreja a cada momento.

Com esta mesma finalidade, após a afirmação da prioridade da pregação, o livro III
apresenta a catequese como dimensão também essencial do “munus docendi”. Trata-se,
com efeito, de um instrumento primordial para a educação da fé dos fiéis, para que
alcancem o estado de adultos na fé, de modo que sua formação doutrinal e sua
experiência cristã se tornem vivas, explícitas e operacionais, para o bem do fiel e
de sua missão no mundo. Afirma-se, portanto, que o cuidado da catequese é um dever
grave dos pastores da Igreja, ainda que todos os fiéis devem sentir-se responsáveis
por esta tarefa educativa, particularmente os pais.

Neste horizonte, se compreende o conjunto de normas com as quais o Código de


Direito Canônico quer defender a transmissão verdadeira da doutrina e moral cristãs
através da pregação e da catequese, buscando assegurar que estas se levem a cabo
sempre na comunhão da única fé, tal como se transmite “na Sagrada Escritura, na
Tradição, na liturgia, no magistério e na vida da Igreja”.

4. A exigência primeira que se segue deste significado fundamental da pregação e da


educação na fé é a de poder levar a cabo estas tarefas em liberdade, também através
de formas associativas organizadas. A afirmação pelo Direito Canônico da liberdade
da Igreja no anúncio do Evangelho, em sua tarefa catequética e educativa, na
organização de escolas e centros de ensino católicos de todo nível, constitui sem
dúvida uma defesa da presença da doutrina e moral cristãs no mundo e, com isso, uma
defesa do próprio homem.

De modo correspondente, se assegura que nenhuma escola ou universidade possa


chamar-se “católica” sem o consentimento da autoridade eclesiástica ou que não
possa transmitir-se ensino da religião católica sem nomeação ou aprovação por parte
do Ordinário do lugar, para garantir os direitos dos fiéis a uma educação
verdadeiramente na fé católica. Defende-se assim, novamente, a doutrina e moral
cristãs ante possíveis deformações ou manipulações interesseiras.

Esta defesa jurídica da verdade católica alcança formas precisas nos âmbitos
educativos universitários, determinando concretamente o modo como deverão
salvaguardar a plena comunhão com a Igreja, no que se refere à integridade da
doutrina e da vida, aqueles que têm uma missão de ensino em disciplinas teológicas
ou canônicas.

A enorme relevância que têm adquirido os meios de comunicação na conformação do


pensamento e da vida dos homens de nossa época, justifica amplamente a presença,
por fim, de um título próprio dedicado a eles. O Código se centra especialmente nos
livros, pelo significado objetivo que têm para a transmissão da verdade revelada na
Igreja, as edições das Sagradas Escrituras, dos livros litúrgicos, dos catecismos,
dos textos magisteriais ou canônicos, assim como as de textos teológicos ou que se
referem diretamente ao depósito da fé. Porém, leva-se em conta também a necessidade
de anunciar e proteger a fé e os costumes dos fiéis cristãos em todos os meios de
comunicação, aspecto que será amplamente desenvolvido no posterior magistério da
Igreja.
Concluindo: o livro III do Código tem como finalidade primeira a defesa do depósito
da fé, de sua salvaguardia e transmissão fiel, seja em questões de fé ou de
costumes. Estabelece para isso uma série de normas canônicas que são consequência
da natureza própria da verdade revelada e de sua exigência intrínseca de ser vivida
na plena comunhão da Igreja. Em continuidade com o Concílio Vaticano II, o Código
de Direito Canônico valoriza a responsabilidade de todos os fiéis nesta tarefa,
segundo a diversidade de suas vocações e, ao seu serviço, a função própria do
magistério eclesial. Em seu conjunto, o livro “De Ecclesiae munere docendi”
testemunha, antes de mais nada, o reconhecimento pela Igreja da autoridade do único
Evangelho de Cristo, sua consciência de existir pela acolhida obediente, a
conservação e a transmissão fiel da Palavra de Deus.

Autor: Alfonso Carrasco Rouco


Fonte: http://iuscanonicum.org / Faculdade de Teologia San Dámaso (Madri)
Tradução Livre: Carlos Martins Nabeto

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