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Virgem Sara de Todos os Ciganos

O Retorno da Deusa Pelas Mãos dos Ciganos

Sibyla Rudana Barenco


A história verdadeira da introdução do culto no
Brasil, Lendas, Orações originais, Comidas de festa,
Remédios Milagrosos da Medicina Cigana.
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À Virgem Sara

Mãe de todos os Ciganos do Mundo


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Sumário

A Verdade Revelada

Capítulo I

A História

A História Sagrada

O Oratório da Cripta

Os Evangelizadores

As Relíquias

A Construção da Igreja

O Estilo de Época

Após a Revolução Reconhecimento

Capela de São Miguel

As Santas Marias do Mar

A Imagem de Santa Sara

O Marquês de Baroncelli
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O Marquês e Santa Sara

Capítulo II

A Peregrinação dos Ciganos

A Programação Oficial

A Peregrinação do mês de maio

A Peregrinação do mês de outubro

O Museu Cigano

O Museu Baroncelli

O Travesseiro Milagroso

Capítulo IV

O Retorno da Deusa

A Relação Oculta com a Deusa

A Queda da Deusa

As Virgens Negras, O Sincretismo da Deusa

O Mistério de Sara, a Negra

Sara nos Anais da Igreja


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Sara, Ícone de Renovação

Capítulo VII

Outras Peregrinações e O Santo Cigano

Os Principais Santuários e Peregrinações

O Bem-Aventurado Ceferino

Orações

Datas Históricas

Receitas das Slavas dos Ciganos

O Ritual da Fertilidade de Virgem Sara

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Prefácio

A Verdade Revelada

A difusão do culto de Santa Sara Kali no Brasil,


estranhamente, não se deve à Igreja Católica, mas à
novelista brasileira Glória Peres, que em sua novela
Explode Coração, exibida e novembro de 1995 a abril
de 1996, pela Rede Globo de Televisão, introduziu a
Santa, praticamente como uma personagem.

Ocorreu que a imagem de Santa Sara foi


apresentada, inicialmente com a cor da pele branca.
Com a interferência de um grupo de mulheres
brasileiras que vão periodicamente às peregrinações
de Virgem Sara, na França, o equívoco foi reparado, e
a pele da Santa foi repintada no tom bem moreno,
quase negro. Mas havia ainda um erro maior, que
jamais foi corrigido. A imagem de Santa Sara é uma
adaptação da imagem de Nossa Senhora da
Conceição. As mãos postas, sem anjos aos pés não
caracterizava, na verdade, a imagem de Virgem Sara,

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conhecida na França e em toda a Europa pelos
ciganos. Existem ainda dois outros detalhes que não
foram revelados à Produção de Arte da Globo,
simplesmente porque eram - e ainda o são para
muitos -, ignorados.

Pois bem, eis a verdade: inicialmente a imagem


francesa de Virgem Sara, era um simples busto sobre
uma coluna. Hoje em dia, a mesma singeleza
esculpida no gesso, mostra a santa como os braços
pendentes ao longo do corpo e as palmas voltadas
para frente. O "corpo" da estátua é recoberto de
mantos pelos ciganos e outros devotos, em
cumprimento de diversas promessas. São os ex-
votos. As cores dos mantos variam entre azul,
branco, rosa e verde de diversos tons.

Por causa de tantos "equívocos" e informações


de pessoas interessadas somente em "pegar carona
no sucesso alheio", resolvi reescrever os Mistérios de
Santa Sara e dar-lhe um título novo. Quero esclarecer
pontos obscuros sobre as informações que me foram
dadas anteriormente a respeito da introdução do
culto à Virgem Sara no Brasil. Eu também errei.
Acreditei naquilo que me disseram, achando,
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ingenuamente que, por se tratar de uma santa
haveria respeito e credibilidade de ditos "artistas
sacros".

Bem, que me perdoem os leitores e,


principalmente Virgem Sara. Confesso e reconheço
que também fui vítima deste tipo de gente, que sem
você esperar, despenca de pára-quedas na sua vida e
conta e reconta uma porção de estórias, forjando
teatralmente um estado emotivo comovente.

Reconheço também que a fé pura do povo é


maior. Muitos e muitos brasileiros receberam graças
por intermédio de Virgem Sara, independente da
representação que lhe deram no Brasil. Talvez, para a
fé popular, este é um detalhe sem maior
importância, mas para quem pesquisa e registra em
livros o resultado de um trabalho, é inadmissível um
detalhe errado.

Eu mesma, por gratidão a Virgem Sara, busquei


sua verdade obstinadamente, para salvaguardar-lhe
o nome e a tradição. Eu mesma recebi de Sara
inúmeras graças, fiz grandes amigos através dela,

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pude ser ajudada e ajudei a algumas pessoas. Então,
não tenho do que me queixar, afinal, cada um dá
aquilo que tem. E foi somente isso que aconteceu.
Deram-me o que tinham para me dar. Eu agradeci,
aceitei, mas fui obrigada a descartar de minha
história, pois para nada me valia.

A Devoção

Durante o tempo que venho trabalhando com


a cultura cigana, pude constatar que a devoção à
Virgem Sara Kali é novidade entre o povo brasileiro.
A história de Sara é cheia de nuances legendárias,
devido aos parcos registros da época. O que nos
apaixona parece ter o mesmo amálgama que une
ciganos e não-ciganos, além do tom de
encantamento.

A devoção a Virgem Sara ganhou corpo através


da radialista Sonia Abrão, que em seu programa
diário da Rádio Capital de São Paulo, divulga a
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tradição dos ciganos, em reconhecimento à uma
graça alcançada. Sonia se tornou amiga dos ciganos e
de seu imenso público, procurando sempre atualizá-
los sobre pequenos rituais que podem ser realizados
para melhorar a vida de todos nós. O chá que Sonia
Abrão promove na Rádio Capital, nos dias 24 de
maio, é oferecido a milhares de ouvintes que fazem
enormes filas em volta do prédio da emissora. É com
Sonia Abrão que a tradição ao culto de Sara se
perpetuou no Brasil.

Como uma Santa tão desconhecida pode se


tornar tão popular num país tão jovem como o
Brasil? As histórias que contam de Santa Sara Kali são
lendas? Estas e muitas outras perguntas deve estar
fazendo o leitor à esta altura. Tudo o que está aqui
escrito foi pesquisado durante uma peregrinação às
Santas-Marias-do-Mar, em louvor à Virgem Sara.

A peregrinação é uma das festas mais


populares da Europa. Na pequena cidade francesa de
Saintes-Maries-de-la-Mer ergue-se uma majestosa
fortaleza guardando ecos de um passado distante, e
que teve como marco a chegada de um grupo de

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A História Sagrada

No Delta do Rhône, entre o mar e a lendária


Camargue existe uma pequena cidade cujo nome tem
origem na antiquíssima história das Santas Marias
Jacobé e Salomé, as Santas Marias do Mar, como são
conhecidas.

A história desta cidade é inspirada em fatos


remotos do começo de nossa Era, pelos anos 44 e
45. Uma frágil embarcação vinda da Terra Santa
chega ao Sul da atual França, exatamente no campo
romano "l'oppidum Râ". Mais tarde, esta antiga
cidade foi engolida pelo mar.

Devido às inúmeras perseguições cristãs


fomentadas por Herodes Agrippa, alguns discípulos
de Jesus foram colocados numa barca sem remos,
sem velas ou provisões, em represália à fidelidade a
Cristo. Entre eles estavam: Maria Salomé, mãe dos
discípulos Tiago, o Maior e João; Maria Jacobé, irmã
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ou prima da Virgem Maria, Lázaro e suas irmãs Marta
e Maria Madalena, Maximino e Sidônio, o cego de
Jericó.

Conta a tradição que a serva Sara se junta ao


grupo. Quando a barca avança, ela suplica que a
levem. Um milagre a fez chegar até o barco. Sobre o
manto que Maria Salomé atirou nas águas para
auxiliá-la, Sara caminha e alcança a barca.

Existem muitas lendas e outras tantas versões


dos fatos. Para alguns, a viagem foi feita numa galera
que fazia o caminho rotineiro entre a Palestina e a
Europa.

A vida de Sara também possui outras tantas


crenças e versões. Para uns ela já vivia nas margens
do Mediterrâneo e teria acolhido piedosamente as
Santas mulheres. Maria Salomé e Maria Jacobé
influenciaram decididamente na conversão de Sara
ao Cristianismo, mais tarde,Sara passaria a ser sua
serva e acompanhante.

Para outros, Sara era egípcia, foi uma abadessa


ou freira de um convento da Líbia, ou ainda
descendente dos Atlantes...
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Os ciganos a veneram com o nome de Virgem
Sara, a Kali. Kali palavra repleta de significados pode
ser traduzida como negra, na língua dos ciganos. É a
força cigana da pele morena e também o nome de
uma deusa negra indiana venerada no Sul da Índia.

Contam também que Sara seria uma rainha


egípcia que, numa visão, teria identificado os
evangelizadores que mais tarde foram acolhidos por
ela e seu clã, às margens do Mar Mediterrâneo.
Princesa, rainha, abadessa ou serva, a doce Virgem
Sara guarda até hoje o seu mistério.

Maria Jacobé e Maria Salomé já idosas


permanecem no lugar da chegada em companhia de
Sara. Os companheiros de viagem se dispersam e
partem para evangelizar a Gália.

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O Oratório da Cripta

Antes de partirem para evangelizar o


continente que seria o berço do Cristianismo, os
discípulos de Jesus ergueram um rústico oratório em
honra da Virgem Maria. Séculos mais tarde, no
mesmo local existiria a atual Igreja de Notre-Dame-
de-La-Mer (Nossa Senhora do Mar), abrigando as
relíquias e imagens de Maria Jacobé, Maria Salomé e
Virgem Sara.

Este mesmo oratório, além de representar o


templo de orações onde os fiéis iam buscar a Palavra
de Deus, também era o lugar onde se abrigava as
Mulheres Santas, após a dispersão dos demais
membros do grupo.

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Conta a história que alí elas morreram,
primeiro, Maria Jacobé, e meses depois, Maria
Salomé, já idosas. Pouco tempo depois morreria Sara.

São Trofino, vindo de Arles, lhes dá os últimos


sacramentos e assiste ao sepultamento. As Santas
Mulheres foram enterradas no pequeno oratório,
que elas mesmas ajudaram a construir e seus corpos
são encontrados anos mais tarde, dispostos em
forma de cruz.

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Os Evangelizadores

Todos aqueles que se salvaram da sentença de


morte que lhe foi imposta por Herodes Agrippa,
salvaram-se pela fé na Palavra. Naquele tempo, a
crença no poder do Verbo modificava com mais
rapidez a vida das pessoas. Por isso mesmo, os
apóstolos-amigos de Jesus prometeram levar Sua
Palavra, anunciando o Evangelho, para a construção
da fé e da Verdade Suprema.

Assim, partiram todos para cumprir a


promessa que fizeram a Jesus. Marta segue para
Tarrascon onde vence, com o sinal da cruz, a
fabulosa Tarrasque, monstro anfíbio saído das águas
do Rhône que vitimava as crianças e o gado. Marta
consagra a sua vida à evangelização da vila onde,
mais tarde, seu corpo foi enterrado.

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Madalena toma o caminho da floresta de Saint
Baume. Instala-se numa gruta úmida e inacessível. A
gruta é guardada por dois anjos gloriosos. Maria
Madalena usava seus longos cabelos como única
vestimenta. Assim escolheu reparar as suas culpas e
pecados durante trinta anos. Após sua morte, ela foi
enterrada em Saint Maximino onde mais tarde foi
construída uma Basílica.

Lázaro vai para Marselha e Maximino à Aix


para pregar o Evangelho. Assim começa a
evangelização da Gália, desde o primeiro século de
nossa Era, pela região de Provença.

Maria Jacobé e Maria Salomé tendo ficado no


local, pregam também a fé. Elas acompanharam a
vida de Jesus, levaram-no ao sepulcro e
testemunharam sua Ressurreição. Como
testemunhas do Amor dedicado a Humanidade por
Jesus Cristo, elas se dedicam a difundir a Palavra
Divina, onde quer que estivessem.

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As palavras do Evangelho são confortáveis e
muitos milagres são comprovados. Tal qual o
surgimento de uma fonte de água doce que até hoje
alimenta o poço da atual igreja.

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As Relíquias

Mais tarde, o Rei René, o Bom, Conde de


Provença, dá ordens de procurar neste lugar relíquias
e restos mortais das Santas Marias e de Santa Sara
Kali.

Em dezembro de 1448, várias cabeças


dispostas em cruz e os corpos de duas mulheres, são
descobertos durante as escavações. Entre as
relíquias, um altar de terra batida é encontrado,
como também uma pedra de mármore lisa, que
chamam mais tarde de "travesseiro das Santas
Marias". Atualmente este travesseiro está incrustado
numa das colunas da igreja, sendo objeto de
veneração.

Essas relíquias são colocadas sobre o altar


principal da primeira igreja erguida por ordem do

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Rei René, o que confirma a idéia de que estes ossos
são certamente das três mulheres. Era hábito nas
igrejas primitivas celebrar as missas sobre as
relíquias, encontradas nos locais sagrados.

A cripta do edifício atual foi descoberta


durante as mesmas escavações ordenadas pelo Rei
René, que era católico. Por isso mesmo, ele
restabeleceu e reconheceu oficialmente o culto `as
Santas Marias e a Santa Sara.

Diante de uma importante cerimônia na


presença do Rei René, da Rainha Isabele, de um
grande número de bispos e de grandes senhores da
Provença, as relíquias são cuidadosamente colocadas
dentro das caixas gêmeas de cipreste. Nelas o artista
pintou a cena da chegada das Santas Marias a
Camargue. As caixas ficam guardadas na capela alta,
acima do altar principal.

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Depois deste dia, toda a população local se faz
guardiã das relíquias sagradas, o que naturalmente
traz inúmeros problemas.

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Construção da Igreja

A Igreja de Notre-Dame-de-La-Mer, onde


estão as Santas Marias do Mar e Santa Sara Kali é um
dos locais visitados pelos peregrinos do Caminho de
Santiago de Campostela, pois faz parte de uma de
suas rotas de peregrinação.

Desde a descoberta das relíquias, em 1449, a


Igreja foi reconhecida, tornando-se um local de
grandes peregrinações.

Após a descoberta das relíquias, os trabalhos


de engrandecimento, embelezamento e
reconstrução da igreja foram iniciados. Anos depois,
o Rei René retornou à cidade das Santas Mulheres na
condição de humilde peregrino entre seus súditos.

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Em 1576 a população das Santas Marias
reprime o ataque dos protestantes com o auxílio dos
Arlesianos, vindos em seu socorro. Vinte anos mais
tarde, com uma nova ameaça. Os representantes da
Vila de Arles vieram em proteção às Santas Marias,
prometendo sacrifícios e declaração de fé, se a paz se
restabelecesse na cidade. As promessas são
cumpridas.

Em 25 de setembro de 1596, os representantes


de Arles mantêm a promessa e assistem à primeira
cerimônia de verificação das relíquias.

Este inventário consiste na abertura das arcas


na presença do Arcebispo, de dignitários da Igreja e
da Corte dos Condes de Provença. Estas cerimônias
passaram a ocorrer anualmente, sendo que a última
delas aconteceu em 1926.

Com os séculos, registram-se vários milagre,


alguns relacionadas com as águas do poço da igreja,

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que segundo consta, "preservava do mal da raiva".
Acidentes são milagrosamente evitados.

Os ex-votos cobrem os muros da igreja, mas


muitos desaparecem com a Revolução Francesa que
destruiu grande parte do patrimônio histórico,
religioso e artístico de toda a França.

O terror revolucionário não poupou a igreja de


Nossa Senhora do Mar da pilhagem, do roubo e da
destruição.

A partir da Páscoa de 1797, quando a igreja


reinicia suas funções, os trabalhos de recuperação do
patrimônio foram iniciados. São necessários muitos
anos para restaurar o que havia sido destruído.

As caixas das relíquias que foram queimadas


em praça pública são reconstruídas por um artesão
local. No entanto não houve destruição de todas as
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relíquias. A grande maioria delas estava guardada
em local seguro, antes da chegada dos
revolucionários.

Em outubro de 1797, a cerimônia da descida e


subida das relíquias foi possível. Mas a procissão das
ruas da pequena cidade levando as Santas Mulheres
até o mar, só reiniciou em 1862.

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O Estilo de Época

A mesma sobriedade do estilo romano é


conservada no interior da igreja. Oito colunas de
mármore esculpidas nos capitéis com cenas bíblicas
suportam as arcadas. Um lance de degraus conduz à
cripta de 1448, situada abaixo do coro.

No altar, existem dois fragmentos muito


interessantes: uma pedra do altar do deus pagão
Mitra e um pedaço de um sarcófago, também pagão,
do século III.

Na cripta, reconstruída em 1448, pelo Rei


René, as velas enegreceram as pedras, e são tão
numerosas que o calor fica insuportável. Neste lugar,
muito especial, está Sara, a imagem tão venerada
pelos ciganos.
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Após a Revolução, o Reconhecimento

Em 1794, durante a Revolução Francesa, os


muros fortes foram demolidos e os sinos da igreja
fundidos para fazer canhões. A restauração só pode
ser feita de 1840 a 1946, quando os sinos foram
substituídos por outros e o muro da fortaleza, refeito.

Somente em 1838 a cidade foi reconhecida


oficialmente pelo nome de Saintes-Maries-de-la-Mer.
Nome que os peregrinos já lhe davam há séculos.

Em agosto de 1892, uma estrada de ferro


ligando Aix a Saintes-Maries-de-la-Mer foi inaugurada
facilitando o aceso à pequena cidade.

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Contam os camargueses que, não faz muito
tempo, a cidade tinha poucas casas de alvenaria
construídas. As habitações eram rústicas cobertas de
palha. No alto delas se via uma cruz protetora. Até
hoje, ainda existem algumas acomodações assim.

A população é essencialmente de camponeses,


criadores de cavalos e pescadores que vivem de
maneira simples neste local alagado e rude,
generoso. A caça, a pesca, a colheita e o trabalho
com o gado, são recursos que a natureza oferece
para a subsistência.

Os cavalos merinos de Camargue não


pertencem a uma raça comum. Os criadores contam
que eles são os últimos descendentes de uma espécie
raríssima, imortalizada pelos homens de período
magdaleniano (14 mil a 10 mil a.C), em suas inúmeras
pinturas nas grutas de Altamira, Font-de-Gaume,
Trois-Frères e Lascaux. Outros, dizem que os belos
cavalos tordilhos são parentes distantes dos puros-
sangues árabes, deixados pelos sarracenos ao serem
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expulsos da Gália por Charles Martel, em 732. A
razão, nesse caso, acaba sendo de todos.

Hoje a pequena cidade está voltada para o


turismo e para as peregrinações. Acolhe duas vezes
por ano uma multidão cada vez maior.

Rica de seu passado, Saintes-Maries-de-La-Mer


zela carinhosamente por suas tradições.

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A Capela de São Miguel

A capela de São Miguel, que é a capela alta, se


situa abaixo do coro. Ricamente decorada de madeira
esculpida e ouro, ela guarda as caixas pintadas que
possuem as relíquias das Santas Marias.

É esta mesma capela que o poeta provençal


Frederic Mistral escolheu para o último refúgio de
sua heroína Mirelle, que chora o seu amor impossível
por Vincent, na ópera de mesmo nome.

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As Santas Marias Jacobé e Salomé

Ao centro da nave, sobre o muro da esquerda,


em um nicho de pedra, estão as imagens de Maria
Jacobé e Maria Salomé, esculpidas em madeira. Elas
parecem esperar dentro de sua pequena barca pelos
dias de peregrinação, quando as levam até o mar em
lembrança à chegada na praia do Mediterrâneo.

Na visita a este lugar tão especial, é


interessante subir até o terraço de igreja que oferece
uma boa visão das fortificações. E imaginar os
homens controlando o horizonte e preparando a
defesa da cidade e da população, fechada em seus
muros, durante os períodos de invasões e guerras.

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A Imagem de Santa Sara Kali

O corpo da estátua de Santa Sara Kali é coberto


por inúmeros mantos e jóias em sinal de devoção,
respeito e veneração. Sobre eles, vê-se apenas o
rosto de uma emocionante beleza juvenil. A
expressão dos traços é de grande delicadeza. A
doçura e serenidade de Sara não podem deixar
insensível o visitante.

Um receptáculo de madeira, que recebe os


pedidos e as preces escritas dos fiéis, é a principal
testemunha do fervor e da devoção que os ciganos
têm por sua padroeira.

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A imagem desgasda pelo tempo, tem sempre a
face exibindo falhas na pintura. Isso acontece porque
os ciganos abraçam e beijam Sara.

Alguns moradores do lugar disseram que a


imagem de Sara já foi substituída pelo menos três
vezes, ou ainda que fora repintada este mesmo
número de vezes, ao longo destes anos.

Contam que o corpo da imagem é de uma


única cor - azul - , mas que no passado, a estátua
recebeu uma pintuimitando pedra ou madeira, tanto
nas roupas como nas mãos e nos pés.

O busto de Virgem Sara chegou a ser colo-cado


sobre uma coluna de aproximadamente um metro e
vinte centímetrose os mantos recobriam a coluna,
deixando a impressão de estarem "vestindo" a
imagem.

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Mas a última vez que observei a imagem
recoberta de inúmeros mantos, sob os quais os fiéis
colocavam suas preces, pedidos e lembranças em
forma de bilhetes, estava esculpido o corpo de uma
jovem mulher, cujas mãso voltadas para frentes,
pendiam dos branços, bem junto ao corpo.

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O Marquês de Baroncelli

Amigo dos Ciganos

"Quando o tempo chegar, e eu estiver morto,


levem meu corpo para o meu sítio Simbeu, minha
cabeça pousada onde foi a minha vida, meu corpo
em direção à igreja das Santas. É neste lugar e desta
forma que eu quero repousar."

O Marquês Folco de Baroncelli é descendente


de uma antiga e tradicional família florentina que
teve que se exilar em território francês, na cidade de
Avignon, motivado pela insurreição contra a família
Médicis, no século XVI. E que recebeu de Leão X, o
título de Marquês de Javon.

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O jovem marquês realizou seus estudos em
Nime, mas tomou-se de paixão por Camargue e pelo
trabalho rude de suas vastas criações de touros.

No entanto, o nobre italiano não esqueceu


suas raízes, e delas retirou o que lhe talhava a alma
gentil e amorosa.

Amante das letras, o poeta Baroncelli adere ao


movimento literário da época, liderado por
Roumanille, Mistral, Aubanel e tantos outros poetas
franceses. Sua presença se destaca na luta pela
valorização da língua.

Depois de ter vendido todos os seus bens,


Baroncelli compra um sítio para criar e treinar
cavalos e touros. Escolhe viver na apaixonante
Camargue com sua jovem esposa. A vida de um
guardião ou criador de cavalos e touros é bastante
dura. Apaixonado pela música e pela poesia, deu o

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nome das heroínas de Mistral às três filhas que tivera
.

A memória do Marquês de Baroncelli é ainda


muito reverenciada em toda a Camargue, e
principalmente nas Santas Marias, por ter defendido
Camargue e suas tradições, e por ter fundado a nação
dos guardiães, difundindo a vocação da cidade para a
criação de cavalos merinos e bois selvagens.

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O Marquês e Santa Sara Kali

Baroncelli ganhou o respeito do povo cigano,


tornando-se grande amigo de inúmeros deles. Foi em
atenção a esta amizade que ele conseguiu, em 1935,
gozando de grande prestígio junto ao Arcebispo de
Arles, retomar a procissão de Sara Kali, pelas ruas da
cidade.

A s primeiras procissões de Sara Kali, quando a


Santa escoltada pelos ciganos, pelos guardiães de
cavalos e bois e pelas arlesianas, era um costume
tradicional que não contava com o respaldo da Igreja.

Mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial,


quando milhares e milhares de ciganos foram vítimas
nos campos de concentração, uma comissão de apoio
da Igreja foi criada para dar mais atenção aos
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ciganos, bem como à sua cultura. Em 1953, os padres
assistem à procissão de Santa Sara.

Quando o Marquês de Baroncelli faleceu, os


ciganos de Camargue prestaram-lhe grandes
homenagens, num funeral grandioso.

É escrito por eles nas guirlandas de flores


"Falco de Baroncelli, Marquês de Javon, repousa nas
terras de seu último sítio". Seu túmulo é de grande
sobriedade, e merece uma visita.

O Museu de Baroncelli

O interessante edifício projetado pelo


arquiteto arlesiano Véran, guarda documentos e
coleções do Marquês de Baroncelli. Documentos da
fauna e flora da região.

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Os dois medalhões que ornam a fachada do
prédio datam do século XVII. Foram doados pela
prefeitura local, no ano de 1655. Retratam o brasão
do nobre de espírito cigano e as duas Santas Marias
em sua barca.

A vista que se tem da cidade é mais ampla e


bonita, subindo-se ao terraço do prédio. Aprecia-se
de lá a igreja de Nossa Senhora do Mar, bem no
centro do coração da cidade.

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O Museu Cigano

Depois de ter visitado as Santas Marias do Mar,


uma ida ao Museu Cigano completa a estadia na
pequena cidade.

Diversas carroças, documentos antigos,


artesanatos, fotografias, trajes e objetos de uso
pessoal de tribos européias contam a história de
antepassados.

Chama-nos a atenção uma soberba maquete


de circo bem detalhada. É uma ótima oportunidade
de nos aproximarmos das tradições ciganas e de
aproveitarmos para compartilhar com os demais
visitantes os saborosos chás, servidos nas carroças de
tempos anteriores ao nosso.

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Programação Oficial

24 de Maio

10 h - Missa de Abertura da Peregrinação

15 h - Cerimônia de descidas do Relicário das Duas


Marias

16 h - Procissão de Santa Sara com bênção no mar

21:30 - Vigília para preces e missa

Durante todo o período após a procissão, acontecem


as famosas rodas de ciganos, com muita música e
dança.

25 de Maio

7 h - Primeira Missa

10 h - Missa Solene das Santas Marias Jacobé e


Salomé

11 h - Procissão das Santas Marias com bênção no


mar
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15 h - Cerimônia de reposição do Relicário das Duas
Marias

26 de Maio

Jornada em Memória do Marquês de Baroncelli

11:30 h - Abrivado e bandido * nas ruas da cidade

12:00 h - Cerimônia no túmulo do Marquês de


Baroncelli

15: 30 h - Danças e jogos típicos da região.

(*) - Abrivado - demonstração de perícia dos


cavaleiros, na separação dos touros jovens dos
adultos.

Bandido - o touro jovem é laçado para a aplicação da


marca do proprietário.

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Peregrinação do Mês de Maio

Na manhã do mês de maio é celebrada uma


missa de abertura das peregrinações. Dias antes
chegam os ciganos. As caravanas tradicionais são, aos
poucos substituídas por modernos carros de
acampamento e circulam por todas as estradas da
Europa.

Mas a mescla de beleza das carroças antigas,


decoradas com belas pinturas e amuletos e os
fabulosos traillers, onde não falta conforto e
modernidade, constitui uma atração à parte.

Saintes-Maries-de-La-Mer se torna
verdadeiramente a terra dos ciganos em sua
peregrinação anual mais importante. Para eles, a
peregrinação será uma grande festa de três dias.
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Marcada pela fé, pelos encontros familiares e o
comércio. Ritmada por rezas, cantos, danças e,
evidentemente o som dos instrumentos ciganos mais
populares: címbalos, guitarras, acordeons e violinos.

Após o meio-dia, vem a cerimônia da descida


dos relicários, da capela de São Miguel, que fica no
alto do coro da igreja. As caixas que guardam as
relíquias das Santas são descidas acompanhadas de
cantos e aclamações.Esta é a primeira descida anual
das relíquias.

Na igreja a emoção é grande. Não raro os olhos


brilham de lágrimas. Depois vem o momento tão
esperado. Sara é carregada por quatro ciganos e é
levada até o mar. A delicada estátua coberta de
numerosos mantos de tecidos brilhantes, dourados e
bordados, de onde emerge um doce rosto, sai da
igreja escoltada pelos ciganos, guardiães e pelas
arlesianas em seus trajes típicos.

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As mãos tentam alcançar os mantos. Jogam
beijos, levantam-se as crianças, pedindo para elas a
proteção de Santa Sara, a Kali, para elas.

Os ciganos cantam rezam, e aclamam a sua


padroeira, gritando "Viva Santa Sara". A multidão se
mistura aos ciganos e aos nativos da região, seguidos
de perto pelo som emocionante das gritaras e das
palmas. Sara é assim escoltada até o Mar
Mediterrâneo, onde, segundo a História,
desembarcou com os Santos amigos de Jesus para
Evangelizar Camargue. Aqueles que a carregam
entram no mar e a água lhes alcança a metade do
corpo. Realizam preces de agradecimento e fazem
mil pedidos com bastante fervor e alegria.

Depois, lentamente, sempre debaixo de


aclamações e cantos, Sara é devolvida à cripta. Na
igreja cheia, a emoção tensa das orações contagia os
turistas que se abandonam, por uns instantes em seu

47
colo, pedindo proteção e, sem trégua, fazem pedidos
de graças e orações de agradecimento em voz alta.

À noite, depois das refeições, as preces e


a missa continuam novamente reunindo os
peregrinos na igreja. As crianças dormem nos braços
de seus pais. O movimento contínuo de entra-e-sai
na igreja não perturba o fervor das preces daqueles
que vão às Santas-Marias-do-Mar.

No dia seguinte, dia 25, a Missa Solene das


Santas Marias Jacobé e Salomé é seguida de
procissão. Em sua barca as Santas são levadas ao mar
também para relembrar sua chegada no campo
romano da cidade.

Escoltadas pelos guardiões e os arlesianos, as


santas deixam a igreja no frágil esquife carregado por
quatro homens. Os ciganos, menos numerosos que
na procissão de Sara, participam também, com
menos euforia.

48
As aclamações, os cantos, as preces, agitam as
ruas, não mais misturados aos sons dos palmeos do
baile espanhol, que mais lembrava um palco
ambulante de bulerías e alegrias flamencas. Vivam as
Santas Marias!

As imagens das Santas Marias Jacobé e Salomé


retornam à igreja. A multidão é densa e a intensidade
das preces é contagiante. Chega a noite. Pela
segunda vez a igreja está repleta. Do lado de fora, nas
calçadas das ruas, os cânticos típicos dos ciganos da
Espanha, misturam-se aos cânticos do romenos e dos
russos. A dança acontece em torno das fogueiras que
embelezam as Santas Marias, durante a
peregrinação.

O terceiro dia da festa, é consagrado à


memória do Marquês de Baroncelli. Então, um touro
conduzido pelo guardiães à cavalo e desviado do
caminho pela multidão. São cenas do abrivado,
folclore da região, que diverte o povo. Uma
cerimônia se realiza no túmulo de Baroncelli. Neste
49
dia, jogos, folclores e tradições admirados pelo
Marquês se misturam e vão até tarde.

Nas arenas da cidade, os guardiães realizam


jogos e aproveitam a ocasião para marcar seus
animais. As dançarinas arlesianas exibem as danças
típicas que são muito aplaudidas na região.

Toda a festa é inesquecível.

50
14

A Peregrinação do Mês de Outubro

No sábado e domingo mais próximo ao dia 22,


outra peregrinação acontece. Desta vez em
comemoração ao dia de Santa Maria Salomé. A igreja
organiza uma procissão, e mais uma vez as Santas
Marias são levadas ao mar em seu esquife, para
relembrar a chegada dos Santos Evangelizadores, às
Saintes-Maries-de-La-Mer. A cerimônia de descida
dos relicários, também se dá mais uma vez. E esta
cerimônia de outubro também recebe inúmeros
visitantes, pela fama de curar que tem as relíquias,
em toda a Europa. Isso atrai mais uma vez, milhares e
milhares de peregrinos.

A imagem de Sara é muito visitada nesta


ocasião, mas não é conduzida em procissão.

51
15

As Caravanas

Anualmente, no mês de maio, ciganos


europeus e de outros continentes, em menor
número, invadem a pequena cidade de Saintes-
Maries-de-La-Mer e a transformam em um grande
acampamento.

Vêm para estar com Sara, como dizem alguns,


acentuando o tom de intimidade com a Santa. As
ruas da cidade ganham um colorido sem igual.
Carroções antigos são exibidos como troféus, e se
mesclam aos transportes mais modernos, antenados
com a modernidade, cheios de parabólicas. O que
ambos os grupos têm em comum, continua sendo o
gosto pelas viagens longas para encontrar suas
próprias raízes e tradições.

52
Chegam até quatro ou cinco dias antes da festa
e vão aos poucos, ocupando a periferia da cidade das
Santas Marias. As mulheres em trajes comuns,
inicialmente, guardam vistosas e amplas saias, jóias e
adornos para os três dias de peregrinação.

À noite, as fogueiras são acesas em cada um


dos grandes grupos acampados. Enquanto estiverem
alí, elas serão o centro

das rodas de dança e música, presenciando os


acordes dos mais famosos instrumentos musicais
mais apreciados pelos ciganos.

Roteiro turístico é percorrer fogueira por


fogueira, e encontrar o que há de melhor na vida
cigana: arte, beleza, liberdade e alegria.

Não é difícil identificar os vários grupos musi-


cais, representantes de grandes clãs. Nota-se a
presença deles pela diversidade de sons: são gitanos

53
de Espanha, Portugal e França; zíngaros, da Ítalia;
gypsies, da Inglaterra; boêmios da Alemanha,
zigeuners da Rússia, Hungria e outros países do Leste
Europeu.

Músicos famosos como Manitas de Plata, o


mais notável guitarrista cigano, gravou um disco,
fruto das peregrinações. "Pelegrinage Gitan aux
Saintes-Maries-de-La-Mer com Manitas de Plata" é
um dos mais famosos regristros da música
espontânea que acompanha os bailados ciganos. Os
romenos Paul Giuglea, Gheorghe Angel, o "Caliu"
também compareceram na peregrinação de 1997
para brindar os "primos"com cantigas típicas,
acompanhadas de violino e banjo. Os russos também
são recebidos de braços abertos. Antes, eles eram
proibidos de viajar, pelas autoridades soviéticas.
Agora juntam seus melodiosos e românticos acordes
às noites de peregrinação. Um toque de respeito, já
que as mais belas músicas clássicas românticas, de
origem ou inspiração cigana, são as russas.

54
A cantoria se estende pela noite e Santa Sara
parece iluminar de alegria e cor as brincadeiras,
abençoando o encontro harmônico e feliz entre
ciganos de todo o mundo.

55
16

A Procissão

Visitantes e devotos são chamados pelos sinos


da Igreja a participarem da procissão que vai levar ao
mar as imagens das Santas Marias. Às 15 horas, o
cortejo se forma pelas ruas de Saintes-Maries-de-la-
Mer. A imagem de Santa Sara é então retirada da
cripta da Igreja, que está localizada exatamente sob o
altar-mór. Virgem Sara recebe as homenagens dos
peregrinos. Muitos ornam a imagem com capas de
belos tecidos coloridos, geralmente inúmeros da cor
azul. As capas e mantos não permitem que vejamos a
imagem por inteiro.

Uma grande multidão de ciganos se une numa


caminhada até o mar com a sua kralissa Sara. O
andor de Sara é sustentado por quatro ciganos. São

56
criadores de bois selvagens, geralmente utilizados
nos espetáculos das touradas. Ao redor do andor,
homens montados a cavalo, integrantes da Ordem de
São Jorge, uma confraria católica fundada nos fins de
1512, garantem o respeito e a ordem pública. Saem
ao lado das imagens em procissão, portando
enormes lanças de madeira, cujas pontas são
metálicas. As arlesianas formam outra escolta de
grande beleza.

Os padres que acompanham a procissão de


Sara vestem trajes sacerdotais de cores claras, com
poucos adornos. São eles que tentam imprimir à
procissão um ar mais sério e circunspecto, entoando
cânticos católicos em francês. A este som se mistura
um ruído ainda maior: a música dos ciganos. A
impressão que temos é que estamos num grande
teatro ao ar livre e, provavelmente se as ruas fosses
revestidas de madeiras, melhor se ouviria o som dos
taconeos (sapateado) do flamenco gitano.

57
Quando a procissão alcança à praia, os ciganos
carregam o andor atravessando a pequena faixa de
areia que separa o calçamento das águas do mar.
Continuam em passos que tentam ser mais firmes na
areia macia e entram com a imagem no mar. Este é
um momento de muita importância para a
peregrinação. Sara, de origem desconhecida,
consegue ser rainha de um povo nômade, de quem
só se fazem perguntas, até hoje sem resposta.
Lentamente o andor de Sara avança pelo mar. Os
peregrinos permitem que as águas frias quase
cheguem às suas cinturas. São realizadas preces de
agradecimento, brados, louvores. Sara imponente em
seu andor, até o outro lado do horizonte, de onde
supostamente teria vindo.

Dia 25, pela manhã, é a vez da procissão das


Santas Maria Jacobé e Maria Salomé. Quando
chegarão ao Mar Mediterrâneo também
acompanhadas pelos ciganos, embora em menor
número. O ar sisudo de uma procissão tradicional
está impresso nesta oportunidade. Os padres, enfim
conseguem ser ouvidos pelo povo, e os cânticos
58
respondidos pelos fiéis. Não existe também aquele
imenso palco ambulante de taconeo flamenco. As
palmas, também não fazem mais a marcação dos
ritmos andaluzes. Desta vez as mãos se juntam em
preces, ou são usadas em calorosos aplausos quando
as imagens chegam ao mar ou retornam à igreja.

As Santas Marias Jacobé e Salomé são


veneradas com muito respeito pelos ciganos, embora
suas histórias não tenham o enigma do mito, o
mistério, a gama de sincretismo e suposições que
existem em torno de Santa Sara Kali. Nesta volta dos
ciganos às ruas de Saintes-Maries-de-la-Mer, na
manhã de 25 de maio. A procissão é bem mais bonita
que a do dia anterior, mas de longe pode ser
comparada à energia que se imprime na procissão de
Santa Sara Kali. Esta é uma homenagem devocional
cristã, e a anterior, um misto de crença e alegria.

À tarde, os ciganos chegam representados


pelos seus líderes internacionais ao interior da Igreja
de Nossa Senhora do Mar. Fazem discursos calorosos,
59
agradecidos pela oportunidade de estarem mais uma
vez alí. Cantam ao som de suas guitarras flamencas
músicas litúrgicas e até mesmo Ave-Marias são
entoadas em romani - o idioma cigano de vários
dialetos. Outros atestam a fé através de depoimentos
a respeito das graças recebidas. Diante de
autoridades católicas, são naquele momento
verdadeiros católicos, embora nunca dispensem sua
tradição particular, e muitos dos mitos ciganos têm
relação com Santa Sara.

Que Santa Sara é uma Santa católica, ninguém


duvida, embora sua origem seja envolta numa névoa
de mistério. Ouve-se pelas ruas de Saintes-Maries-de-
la-Mer muito mais que especulações, mas lendas
sobre este ela.

Mas segundo os poetas que cantaram a


história de Sara, ela teria sido uma das primeiras
convertidas à nova fé cristã, quando foi acolhida pelo
grupo de apóstolos.

60
A história conta que o povo cigano teria
migrado há mais de mil anos, das margens do Rio
Indo, na Índia, expulsos pelos poderosos da região.
Sua língua, o romani, tem extrema semelhança com o
sâncrito arcaico, antiga língua indiana. Mesmo assim,
não se tem certeza de qual teria sido a primeira
pátria dos ciganos, nem mesmo o motivo que os
fariam abandonar a própria terra para migrar pelo
mundo. Chegam então a Europa por volta de 1325,
quando se registra sua presença na Grécia; e na
Valáquia, em 1375.

Quase cem anos depois, estariam em território


francês, mais precisamente na pequena Arles, uma
cidadela do sul da França que se situa a cerca de dez
léguas de Saintes-Maries-de-la-Mer, apenas há dez
anos das descobertas das relíquias das Santas Marias
e de Santa Sara. Então, os ciganos não teriam
conhecido Sara, como conta sua história? O fato é
que os despojos das Santas Marias - ou o que sobrou
deles, após a pulhagem da Revolução Francesa -,
estão até hoje guardados na arca de madeira, que
fica no alto do coro da igreja e os que supostamente
61
seriam de Santa Sara, na cripta, localizada sob o altar-
mór.

Os ciganos costumam aceitar, sem problemas,


a fé predominante do local onde páram, embora não
dispensem sua tradição religiosa original, que fazem
questão de preservar gerações após gerações,
constituindo uma maneira diferente de ver e sentir
os deuses que veneram. Isto porque eliminam
prontamente um grande motivo para preconceitos.
Então, nas terras européias, onde o catolicismo era
predominante, conseguiam apoio de reis e
governantes locais declarando-se fiéis católicos.
Assim, a relação entre Santa Sara e os ciganos ficaria
mais fácil. Ela era negra, de origem tão obscura
quanto a deles e já teria sido relacionada a diversos
mitos, como o deus Mitra, de origem oriental.

62
17

A Vigília

Ainda durante o dia 24 de maio, antes e depois


da procissão, a cripta subterrânea, onde está a
imagem de Virgem Sara, se enche de fiéis.

O calor é intenso devido ao enorme número


de velas que queimam alí, desde a véspera. Velas
brancas de 60 centímetros, mais ou menos,
adquiridas do lado externo da i-greja, são
depositadas pelos fiéis, que enfrentam o calor do
ambiente abafado para permanecer durante toda a
madrugada no local.

O que acontece na cripta é emocionante.


Alguns depositam cartas e oferendas num
receptáculo de madeira, outros deixam objetos como
muletas; outros, abraçados à imagem como se
63
tivessem reencontrado alguém muito querido,
choram copiosamente entre murmúrios quase
incompreensíveis. Há aqueles que motivados pela fé,
conversam com Santa Sara, fazem pedidos, enchem
de beijos o rosto da imagem.

A vigília noturna banhada pela luz das velas, é


um privilégio dos ciganos, que parecem estar em
transe. Antigamente, esses transes se davam por
completo. De imediato, as pessoas presentes na
cripta corriam para dar atenção à pessoa
"manifestada", e para ouvir os conselhos de seus
próprios antepassados.

Mas, como tudo acontecia em nome de Santa


Sara, os padres da igreja não tomavam qualquer
atitude que pudesse afastar os ciganos da fé cristã e,
assim, pareciam ignorar o que acontecia a cripta, pela
madrugada.

64
A magia que envolve o local parece
transcender a representação do calvário, com suas
três cruzes, dispostas no fundo da cripta, onde a
imagem de Virgem Sara se coloca à direita.

65
18

Os Beijos Para Santa Sara Kali

Longe dalí, os mais emocionados ciganos dão


tratamento pessoal à Virgem Sara. Alguns, num rito
secreto que acontece à sombra da cripta banhada
pela luz espectral das velas, segredam-lhe nos lábios
venturas e desventuras em beijos e carícias. Isso
mesmo. Alguns beijam a boca de Sara, como se beija
a uma amante querida. Parecem querer sugar dos
lábios da imagem uma energia fundamental para
renovação do próprio ânimo, sua força, coragem e
magia, e não fazem segredo disso. Isto explica o
porquê de estar desgastada a pintura do rosto da
imagem.

Curiosamente, a imagem emana uma energia


quase mágica. Parece que de tanto ser depositária da
fé e dos carinhos dos ciganos, a imagem de Sara
ganha vida e força como se tivesse eletrizada.
Funciona como um símbolo mágico e poderoso para

66
os ciganos, e por isso mesmo Santa Sara é o fio
condutor da energia do céu e da terra para o povo
romani.

Tocar a imagem já é uma grande bênção para


aqueles que vão às Saintes-Maries-de-la-Mer,
atravessam a igreja-fortaleza , descem os degraus sob
o altar apenas para estar na câmara ardente de
tantas velas, onde está Sara.

O que vem acontecendo e deixando muitos


ciganos indignados, é a profanação e o desrespeito
de alguns turistas que não acompanham o sentido da
peregrinação de Santa Sara.

Numa dessas vezes, um dos ciganos que estava


na cripta ofendeu-se com a presença de duas moças
usando mini-saia e short. Pareciam, segundo ele,
estar numa feira de artesanato no centro das praças
da cidade. O homem enfureceu-se, bradou e
reclamou com todos, sentiu-se ultrajado em sua fé.
67
Tirou o xale que desmaiava sobre os ombros de sua
mulher-cigana e cobriu a imagem de Sara.

Sara parecia desabrochar um sorriso úmido,


em meio a quentura das velas. O homem aliviado,
colocou-se diante dela, assim meio que cabisbaixo e
reflexivo, porém com uma dignidade que cintilava. A
turba aos pouco, foi percebendo a gravidade do erro,
a indiferença diante do sentimento de fé dos ciganos.
Um a um foram se colocando ao redor do homem
para vê-lo beijar a fronte de Sara, reverenciando a
mãe-mulher, aquela que dá à luz, e consegue entre
dias e noites conduzir-lhe o sono, apenas com um
leve toque de mão nos cabelos.

Por causa do gesto de beijar os lábios de Sara e


da maneira muito íntima com que os ciganos se
referem à ela, alguns historiadores e não-ciganos
resolveram radicalizar em suas interpretações. Sara,
para estas pessoas é apenas um ícone, um símbolo
utilizado para a magia e outros rituais dos ciganos,
inclusive os de acasalamento e fertilização das
68
mulheres. Porém calam os ciganos sobre o assunto e
gozam do benefício da dúvida.

Sara é uma santa católica, embora a igreja


francesa a tenha como uma santa de culto regional.
Se viveu ou não com os ciganos, isto é o que pouco
importa para os que hoje caminham sobre a Terra.
Sara é a imagem da mãe que desejam amar e cultuar.
Tão poderosa e tão humana que parece dialogar com
eles em suas dificuldades, operando inúmeros
milagres, frutos unicamente de uma fé muito bem
solidificada.

A imagem de Sara ganhava vida, porque os


ciganos e devotos lhe emprestavam vida. É assim que
acontece quando queremos animar um objeto.
Somos nós humanos que damos vida e energia aos
seres inanimados, transformando-os em verdadeiros
objetos de poder e talismãs. Por isso, muitas imagens
choram. A transformação da energia humana se dá
intensamente energizando-a. A este efeito se
referem os populares e devotos, como já tive a
69
oportunidade de ouvir: a imagem de Sara é um
talismã carregado de poder e energia, por isso os
milagres se operam de tal forma que parecem
inacreditáveis.

As vibrações benéficas da imagem de Santa


Sara emanam pelo ambiente e podem ser sentidas
pelos presentes. Ela é a síntese da energia sutilíssima
de gerações e gerações de ciganos, vindas das mais
diversas partes do mundo para compartilhar com ela
os seus segredos, alegrias e tristezas; buscar
conforto, e força para viver a vida.

Esta relação dos ciganos com Sara, nada têm


a ver com os habituais cultos católicos de devoção
aos demais santos. Como já disse, trata-se de uma
relação muito particular com o mito de Santa Sara
Kali. Se os demais fiéis oram em silêncio, os ciganos
não fazem segredo de suas preces mais calorosas.
Jamais nos verão calados diante das pessoas, porque
queremos mais intimidade com o nosso protetor

70
espiritual, seja ele representado pelo símbolo que
for.

Esta é a verdadeira relação que os ciganos têm


com Santa Sara Kali. Fazer-lhe companhia na
interminável vigília da madrugada do dia 24 de maio,
numa cripta iluminada fundamentalmente pela luz
das velas, que aquecem o ambiente de forma quase
insuportável. É o nosso sacrifício, a nossa
homenagem, a nossa oportunidade de "estar mais à
vontade com a Mãe".

E é mesmo verdade que os padres deixam de


lado as manifestações "exageradas" dos ciganos.
Penso mesmo que eles nunca observaram a
expressão da imagem de Santa Sara, por que seriam
capazes de impedir o culto e principalmente a vigília
dos ciganos. Ou ainda melhor: entender o que se
passava ali e tornarem-se encantados com a magia
sutil e poderosa dos ciganos, o que justificaria o
rompimento dos laços com a formalidade da
instituição que representam.
71
É melhor não se envolver. Qualquer
intransigência afastaria o povo das estradas do
Catolicismo, eles não hesitariam em "levar" a imagem
de Santa Sara dali, só para reverenciá-la em outro
lugar de paz e aconchego.

72
19

O Travesseiro Milagroso

Numa das paredes da Igreja, existe uma pedra


extremamente polida, conhecida pelos fiéis como o
Travesseiro das Santas Maria Jacobé e Maria Salomé.

A pedra, segundo a história, era utilizada para


apoiar a cabeça das Santas durante o sono e a vigília
das orações. Deste travesseiro das duas Marias,
magos e feiticeiros ciganos retiravam um pó que
servia como principal ingrediente nas poções que
faziam. Essas poções tinham como objetivo principal
restituir à mulheres o poder de serem fecundas.
Hoje em dia, a prática de raspar a pedra dos
travesseiros das Marias, foi esquecida, em nome da
preservação do Patrimônio Histórico, mas a crença
no poder mágico das pedras se manteve.

73
Mas os antigos também contam, nas longas
conversas noturnas, com o propósito declarado de
"não deixar que as tradições, histórias ou lendas
sejam esquecidas", que as duas Marias,
acompanhadas de Sara, passeavam constantemente
na praia cheia de pedras que a maré cheia trazia do
mar. Essas pedras também foram, séculos depois,
travesseiros dos ciganos que vinham para a
peregrinação de Saintes-Maries-de-la-Mer.
Curiosamente, o golfo de Beauduc e o mar
desta região, têm a mesma forma de um ventre
grávido. Por isso as pedras colhidas na praia, com o
mesmo formato do golfo, passaram a ser utilizadas
pelos magos ciganos nas poções de fertilização, a
exemplo do que faziam os antigos com a pedra
incrustada num dos muros da nave da igreja.

74
20

A Relação Oculta com a Deusa Negra

Sara era escrava. De pele trigueira, deveria ser


egípcia ou indiana. Mais certamente indiana, pois
Kali, o nome que lhe atribuem faz referência à antiga
cidade indiana de Kali, onde se cultuava uma
divindade do mesmo nome. Sara seria então, Sara de
Kali, Sara da deusa Kali.

Não se estranhariam os estudiosos se Sara


também fosse uma das devotas da deusa. A deusa
Kali era a personificação da deusa energizadora. Ela
realizava o elo de ligação entre a Terra, os seres
viventes e a energia cósmica que a tudo anima. Daí
para a conclusão de que Sara era devota da deusa
Kali, antes de conhecer o Cristianismo, foi um passo.

75
Cerca de 20 anos tinha Sara quando conheceu
as Santas Marias e os demais apóstolos seguidores de
Jesus. Mas antes da vida pública de Jesus, ou seja, de
seus 30 a 33 anos, o que a humanidade conhecia era
a Antiga Religião, pois o homem sabia da existência
de um ser superior a ele, e se sentia imperfeito,
indefeso, incompleto. E este conhecimento de sua
própria natureza despertou no ser humano a
necessidade de recorrer a uma energia maior, que
lhe socorresse em todas as suas necessidades.

A religião que a humanidade conhecia era


essencialmente matriarcal em todo o planeta. Até
mesmo o homem da Era Pré-Cristã não conhecia a
um Deus, mas a uma Deusa. A re-ligação que se
propunha com o divino era através do próprio
equilíbrio ecológico, ou seja o equilíbrio da natureza,
da qual faz parte o ser humano.

Por isso, as deusas implacáveis, em nome da


Grande-Mãe, ou Gaia, ou ainda a própria Terra,
premiavam ou puniam severamente, todas as ações
76
dos seres humanos em relação à natureza. Divididas
em grupos distintos, as deusas eram reconhecidas
pelo seu próprio aspecto divino. Temos então, deusas
terrenas com o poder de criar - dando vida a tudo; de
energizar - a que dá poderes; as medidoras - aquelas
que limitam este mesmo poder; e as protetoras - as
que cuidam de proteger toda a criação.

Kali seria o aspecto da deusa em todos os seus


níveis: de criadora a protetora. E na realidade, todos
os aspectos divinos da deusa têm as nuances da
Grande-Mãe que alimenta de poder e força; que
mede ou limita; que protege; que inicia; que desafia;
que liberta; que constrói; que preserva e que dá
poderes de realização. E Kali, a deusa hindu, é
lembrada pelo seu aspecto representativo
energizador da Grande-Mãe, a Terra. No entanto, a
grande força de Kali está em transformar situações
perigosas para o próprio ecossistema,
neutralizando a força do agressor, nem que para isso
ela tenha que beber-lhe o sangue.

77
Contam os hindus que quando os deuses
entraram em conflito com os demônios, reuniram-se
para buscar o poder de luta e vitória da deusa
Durgha, uma das divindades indianas mais bravas
protetoras.

A deusa metamorfoseou-se em búfalo, e de


cada um de seus suspiros, surgia um exército de
outras deusas para combater os demônios. Diante
dos clamores dos deuses, pedindo-lhe proteção e
vitória, Durgha assume diversas formas ao longo da
batalha, incluindo as formas de outras deusas que
nada mais são que aspectos de sua fúria e gana de
proteger aqueles que a ela recorreram.

Uma desses aspectos é chamado de Ambika,


que de tão furiosa contra seus adversários, faz com
que a energia de Kali se desprenda de sua
sobrancelha. Ambika é outro aspecto de Kali, o
aspecto da destruição e punição dos inimigos pelo
qual a deusa é mais freqüentemente lembrada.

78
Kali, implacável, dá então, continuidade a uma
batalha ainda mais sangrenta e terrível. O sangue do
demônio Rajtabija se derrama pelo chão, criando
ainda mais combatentes para lutar contra os deuses,
mas Kali o bebe todo, sugando sua energia para
dentro de si mesma, neutralizando-a.

Sara era provavelmente devota de Kali, a deusa


hindu. Assim como provavelmente Sara também
fosse indiana, e portanto conhecia a relação que as
culturas mais antigas faziam entre a figura da mãe e
da terra.

Ora, a reverência que as sociedades primitivas


prestavam à figura da Deusa, a Grande-Mãe, a Mãe-
Terra estava associada, primordialmente, às
sociedades agrárias. A mulher dá à luz, assim como a
terra nos oferece o alimento, parindo de seu interior
outras formas de vida. A mãe alimenta, como o
fazem as plantas. Aqui, a magia da mãe e da terra

79
são a mesma coisa, portanto, relacionam-se. A
personificação da energia que dá origem às formas e
as alimenta é essencialmente feminina. A Grande-
Mãe é também a figura mítica dominante no mundo
agrário da antiga Mesopotâmia, do Egito, da Índia e
dos mais antigos sistemas de cultura de plantio.

80
21

A Queda da Deusa

Os povos semíticos invadiam pouco a pouco os


territórios da Grande-Mãe, de modo que as
mitologias de orientação masculina se tornaram
dominantes e a Deusa-Mãe se tornou antiquada.

Na época do surgimento da cidade da


Babilônia, quando cada uma das cidades antigas
tinha uma deusa protetora ou um deus protetor, as
sociedades assistiam a tendência de ver essas
divindades sendo consideradas as únicas divindades
do universo, e por isso dotadas de um poder
inabalável. Para evitar que o senhor ou deus de um
único país de transformasse num deus único e
onipotente, só havia um jeito: acabar com a figura
desse deus.

81
A Babilônia reverenciava a Deusa de Todas as
Mães. Insatisfeitos com a situação, um grande
concílio de deuses se realizou no céu - cada deus era
uma estrela - e eles tinham ouvido dizer que a Velha
estava chegando. A velha era Tiamat, o Abismo, a
Fonte Inexaurível. Ela, a deusa, surge em forma de
uma grande serpente marinha, ameaçadora e pronta
para devorar aqueles que desafiavam o seu trono, na
consciência dos antigos babilônicos.

Mas o jovem Marduk não se detém diante do


perigo e sopra na garganta da serpente todos os
ventos. Tiamat é desfeita em muitos pedaços. Com
eles, Marduk enfeita a terra e os céus.

Observamos que esse desmembramento do


mito para transformar seu corpo no próprio universo,
está presente em muitas mitologias, sob as mais
variadas formas. E na Índia não foi diferente, a

82
exemplo do que contam sobre Purusha, cujo corpo
refletido é o próprio universo.

Nas antigas mitologias da Grande-Mãe, ela é o


universo. Então, por que Marduk destrói a deusa
Tiamat para transformá-la em seguida no próprio
universo? Para impor o mito de orienta-ção
masculina no qual ele mesmo se torna, se
transformando em criador aparente daquilo que já
existia.

Embora em muitas culturas e sociedades o


culto matriarcal já tivesse extinguido desde 1760 a.C.,
ele se manteve às escondidas nos mais diversos
pontos do mundo. Como, aliás, acontece até hoje em
muitos lugares.

A forma mais comum de mantê-lo ainda mais


discreto, viria através do sincretismo. Seria este o
caso dos ciganos, que se enquadram com a maior
facilidade aos cultos dos locais onde pretendem se
83
instalar demoradamente, quando camuflam seus
cultos tradicionais, adotando verdadeiramente a fé
local. Os ciganos europeus fazem a adoção do culto
do local onde estão porque não distinguem os
caminhos - tão diversificados, que levam o ser
humano à realização do Espírito, diante da Energia
Suprema Criadora de Todas as Coisas e Seres.

84
22

As Virgens Negras, o Sincretismo da Deusa

O culto da Grande-Mãe era muito popular na


cultura helenística do Mediterrâneo, e mais tarde
retornou com a figura da Virgem, na tradição católica
romana.

Na Europa, o mito da Virgem Negra, é


representado convenientemente pelas Notres-
Dames. E é nos séculos XII e XIII que se cultua a
Deusa, a Grande-Mãe, da forma mais maravilhosa e
esplêndida que o mundo já viu. Estão lá até hoje. Um
grande número delas, representadas por imagens
negras de mulheres, geralmente acompanhadas de
seu filho*, a quem trazem no colo. São todas virgens
e grande parte, negras como a terra. A cultura
primitiva se mescla, aqui, com a necessidade atual,
para nos aproximar da importância vital da própria
terra, cujos elementos químicos que a compõem são
85
os mesmos do corpo do homem. A imagem da
Virgem ou Notre-Dame é o sincretismo ou a
representação da própria Gaia, Mãe-Terra.

Santa Sara Kali - a negra - está ligada a uma


antiga tradição católica, da Idade Média, que teve
lugar de destaque na Europa: o culto às virgens
negras. Centenas dessas virgens, tão conhecidas na
Idade Média, são objeto de veneração até os nossos
dias, como é o caso de diversas Notres-Dames e de
Nossa Senhora de Montserrat e Nossa Senhora de
Liesse. Santa Teresa de Lisieux e Nossa Senhora de
Lourdes* também são muito veneradas. A intenção
da Igreja é representar as virgens negras, em
substituição às divindades femininas ligadas aos
cultos das religiões pré-cristãs. Tais imagens eram
mais comuns à compreensão dos ciganos, já que eles
mesmos veneram divindades femininas telúricas,
quase sempre representadas por imagens negras. Daí
para o sincretismo foi um passo.

86
Relacionar Santa Sara a esses mitos ciganos
antigos, e a tudo o que ela pode significar para a
terra, é perfeitamente compreensível. Sara, seria
neste contexto, mais uma dessas representações que
os ciganos veneram e respeitam tanto.

E por que os ciganos iriam a uma igreja venerar


uma santa católica, quando poderiam muito bem ter
um santuário ou outro lugar , desvinculado de
qualquer credo religioso, para realizar seus
encontros com Sara? Porque os ciganos respeitam
todos os credos. Porque os ciganos jamais deixariam
para trás um pedaço de si, mesmo que esse pedaço
fosse representado por uma imagem católica.

A relação que os ciganos têm com seus santos


protetores, difere das relações dos católicos com os
mesmos. Os ciganos não ligam muito para o que pré-
determinam os credos espalhados pelo mundo,
muito embora participem deles. Em qualquer
hipótese, a maneira, o jeito de cultuar esta ou aquela
divindade é diferente da maneira dos demais. Os
87
ciganos em seu jeito espontâneo de expressar fervor
e fé se colocam extremamente à vontade com a
divindade, pois a tem como companheira, amiga e
confidente. Além do mais, o mito dos antepassados e
dos seus deuses - todos da própria natureza- é
diferente, e quando perguntados sobre o que há por
trás de seu próprio credo tribal, saem em
desconversa. São discretos nos comentários sobre o
assunto, embora o tratem de maneira apaixonada.

Sara Kali, de origem tão misteriosa quanto a


dos ciganos, é um mito que atende a todos os
requisitos das tribos espalhadas pelo mundo. É
negra, ou melhor, de pele escura como os egípcios e
indianos. Kali, em sâncrito antigo, quer dizer negro, e
é do sânscrito que vem a língua romani que os
ciganos falam em vários dialetos distintos. Daí
também a dedução de que Sara teria origem indiana
e não egípcia, embora o culto da Grande-Mãe tivesse
se espalhado pela região, onde supostamente, ela
teria vivido - a Palestina.

88
É bom lembrar que a confusão sobre a origem
dos ciganos também inclui a suposição sobre os
lugares de origem, que são os mesmos de Santa Sara.
Afinal alguns historiadores insistem em dizer que os
ciganos se originaram do Egito. Se fosse assim, a
língua cigana, o romani, - que é o traço mais forte de
identificação de um povo-, teria origem nos
hieróglifos egípcios e não no sânscrito antigo, o que
encerraria decididamente a discussão sobre o
assunto.

_________________________________

(*) A imagem da Madona carregando o filho no colo é


inspirada na imagem de Ísis amamentando Hórus. É a
imagem da mãe divina, com o seu filho, concebida de
forma incomum. Diante da Catedral de Chartres
(onde está a relíquia do véu da Virgem Maria), na
França, existe acima de um dos portais uma imagem
da Madona sentada em seu trono, carregando seu
filho abençoando o mundo. Esta imagem foi
adotava intencionalmente pela Igreja. Num dos
textos católicos, está explicado quem as meras
formas mitológicas do passado, agora são
verdadeiras e encarnam em nosso Salvador". As
89
mitologias aqui dizem respeito aos deuses mortos e
ressuscitados: Adonis, Osíris, Adônis e tantos outros.

(*) Os ciganos costumam fazer com as imagens


destas duas santas, uma imantação curiosa,
perfurando as bases das estatuetas e traspassando
fios de cobre, extraídos de aparelhos elétricos
usados, até à metade de seus corpos.

90
23

O Mistério de Sara, a Negra

Conhecida em toda a Europa como a Padroeira


dos Ciganos, Sara é para a história, um enigma que
não está resolvido.

Diz a tradição da terra de Camargue que Sara


teria acompanhado espontaneamente as Marias
Jacobé e Salomé. Não existe nada registrado sobre
isso no Vaticano. Nem mesmo o que o Vaticano
revela sobre Maria Salomé, comprova que ela tivesse
vivido em Camargue.

Outra tradição reconhece Sara como cigana -


kali, ou kalin significa ao mesmo tempo mulher
cigana, na língua dos calé (ciganos de Portugal e
Espanha); e negra, num outro dialeto cigano. Para os
calóns, Sara teria vivido na atual Camargue, e livre,
91
teria abrigado os amigos de Jesus. No entanto, não
se sabe por que a teriam adotado como protetora.

Alguns acreditam que Sara, a egípcia, foi


abadessa de um convento na Líbia, sendo festejada
pela Igreja no dia 13 de julho. Ou também de outra
Sara, que figura num grupo de mártires persas com
duas Marias e uma Marta, e cujas relíquias foram
consagradas na Gália.

Ninguém sabe quem é Sara, nem como seu


culto se instalou na atual Saintes-Maries-de-la-Mer.
A primeira menção ao nome de Sara está num texto
de Vicent Philippon, de 1521, chamado "A Lendas
das Santas Marias" e se encontra na Biblioteca de
Arles - a dez léguas de Saintes-Maries. Nele, o autor
conta que Sara cruzou Camargue a pé, pedindo ajuda
para socorrer uma pequena comunidade de cristãos.
Esta prática, a que o autor chamou de "china" era
vergonhosa, e se assemelhava ao que faziam e fazem
os ciganos até hoje, por isso essa Sara era chamada
de kalin (cigana).
92
Os ciganos nunca disseram nada sobre a
questão de Santa Sara. Eles mesmos seguem à risca
uma tradição que para a maioria não tem explicação
racional. Não importa se Sara Kali seja ou não uma
lenda ou uma invenção. Sara é para os ciganos, muito
mais que um nome ou uma história. Ela, que é
cercada de mitos e lendas, é padroeira de um povo
com estas mesmas características.

Ídolo pagão, dizem alguns. Mas não podemos


nos esquecer do que é o culto a Santa Sara. Da
energia de sua cripta, do vigor de sua procissão. Não
podemos nos esquecer de uma multidão atrás dela,
marchando em direção ao mar, rezando
fervorosamente, sem os estigmas deste ou daquele
credo. Não podemos nos esquecer que esta gente
caminha também em direção à Deus. Se Sara é um
ícone, um mito, um ídolo ou uma lenda, pouco
importa. O mais importante é que ela assegura
àqueles que vão a Camargue que eles não estão

93
sozinhos e que ela mesma, Sara, é um pedacinho de
Deus.

Como mãe, irmã ou mulher, Sara encarna a


imagem da cúmplice perfeita. As pessoas lhe confiam
seus cônjuges, seus filhos, as doenças que desejam
vencer, suas dívidas e muito mais. É tudo do que elas
precisam. Sara é a cúmplice. Aquela que não critica,
que não censura e que só se manifesta se puder
realmente ajudar. Caso contrário, Sara continua
sendo só ouvidos. E desabafar tem para o povo das
estradas, um grande valor. Significa esvaziar de
mágoas o coração, pois quem vive errando pelas
estradas da vida não pode se ocupar de mágoas... e
magoar-se é sobrecarregar demais o coração. Um
peso que a gente da viagem não quer levar na
bagagem.

94
24

Sara nos Anais da Igreja

Nos livros da Igreja existem duas referências a


Sara. A primeira reconhece os méritos de Sara,
mulher de Abraão e a segunda diz respeito a Sara,
mártir de Antioquia.

Conta que Sara era esposa de um oficial do


império. Vivendo na região de Antioquia, governada
pelo imperador Diocleciano, viu seu marido
renegando a fé cristã, por pressão do imperador, que
anunciou implacável perseguição aos cristãos.

Reconhecendo a necessidade do Batismo, Sara


embarca com os dois filhos, rumo a Alexandria. A
tempestade em alto mar fez com que Sara praticasse
o ritual de cortar corajosa-mente o próprio seio e
com seu sangue fazer uma cruz no peito e na testa
95
dos meninos, para em seguida, mergulhá-los três
vezes no mar revolto, que imediatamente tornou-se
sereno. A viagem prossegue tranqüila e Sara
consegue chegar à presença do bispo Pedro, para a
celebração do batismo, como se "o ritual que
realizara não fosse suficiente", como reconhecem os
textos sagrados.

Quando Sara se aproximou com os filhos, da


pia batismal, a água congelou por três vezes,
intercaladas de intervalos dados pelo próprio
oficiante, desejoso de entender o que estava
acontecendo. Tomando conhecimento do que havia
ocorrido durante a viagem, o bispo declarou que as
crianças já haviam sido batizadas. Sara retornou à
Antioquia.

Lá chegando contou o fato a seu marido


Sócrates, que tratou de dizê-lo ao imperador
Diocleciano. Em silêncio, Sara foi vítima da ira de
Diocleciano que mandou queimá-la em praça pública,
juntamente os dois filhos, acusada de traição às leis
do império, pelo próprio esposo e pai de seus filhos.

96
A Igreja festeja esta Santa Sara, mártir da
Antioquia, no dia 20 de abril.

97
25

Sara, Ícone de Renovação

Quem vai a Saintes-Maries-de-la-Mer percebe


logo que Sara Kali não é uma lenda. Santa Sara Kali
pode ter sido uma cigana, uma rainha, uma escrava.
Indiana, egípcia ou francesa, nem mesmo isso a Igreja
Católica confirma. O único fato real em torno de Sara
Kali é a peregrinação monumental que os ciganos e
devotos de toda a Europa fazem anualmente a
Saintes-Maries-de-la-Mer. E isto a distancia
fortemente do conceito equivocado de lenda.

Creio que se a peregrinação não existisse,


certamente a figura mítica-religiosa de Sara Kali teria
se apagado da memória dos ciganos e de todos os
cristãos que lhe fazem visitas, em maio e em
outubro.

98
Paira no ar a pergunta sobre a origem de Sara
Kali, é verdade. Mas, os ciganos pouco estão ligando
para isso. Afinal, a Igreja de Nossa Senhora do Mar
abriga em sua cripta a imagem de Sara, que é
venerada como uma das intercessoras mais
poderosas que os ciganos têm junto a Deus. E isso
basta. Não que os ciganos sejam fanáticos, mas sim
porque sabem reconhecer as distintas
representações do poder oculto do ser divino com
mais facilidade que os não-ciganos. Para eles, Kali é
calin ou kalin, uma cigana que representa parte do
conhecimento e da força misteriosa que envolve os
ciganos. Por isso calam sobre qualquer assunto que
diga respeito a ela. Kali é a mãe que simboliza o
poder gerador de vida que tem a terra.

Sara é o segredo que possuem, e isto está


representado pelos mantos e capas que guardam a
imagem real de Sara. Essas capas representam o
sentimento dos ciganos em relação à figura
misteriosa de Sara Kali. E este é o maior objeto da
peregrinação: o sentimento que ostentam, não
importando exatamente por quem, já que a origem é
o que menos conta.

99
Quem consegue participar cinco minutos que
seja das vigílias do mês de maio, na cripta de Santa
Sara, pode sentir o que é estar diante de alguém
muito querido. Por isto manifestam-se as entidades
dos antepassados dos ciganos, mesmo dentro de
uma igreja católica. Elas vêm através da energia de
Sara, que na verdade é um emblema, um
receptáculo, mais semelhante a uma pedra-pomes,
com o poder de absorver e concentrar o que há de
melhor da energia de todas as pessoas que adentram
a cripta. A energia encontrada é então, revertida em
favor daqueles que vêm buscar alí a renovação de
suas forças. Sugá-la através dos lábios de Sara, é
prática comum entre os ciganos.

No mais, aparentemente são ciganos que


abraçaram o catolicismo de uma forma enfática,
como é tudo o que fazem. Nas procissões, mais que
sua cultura, levam o seu sangue, sua espontaneidade,
sua vibração entre palmas e acordes de guitarra. Os
estandartes ostentam um sentimento que é
expressado de forma muito particular.

100
Das Saras que se têm registro oficial, nenhuma
delas se relaciona contam os camargueses. Nem
mesmo aqueles que tratam da cultura local,
conhecem a Sara da Antioquia ou a Sara da Líbia. O
surgimento do culto a Santa Sara, também faz parte
de um grande mistério. Camargue foi palco de
diversas invasões e, pode ser que desde a época das
invasões antigas, alguém tenha levado o culto de
Sara Kali para o local. Tudo hipóteses.

O poder que Sara faz emergir das pessoas é


algo fantástico de ser presenciado e sentido. Sara a
egípcia ou a indiana é um ícone, que alavanca do
fundo da alma de cada um dos peregrinos, a força
criativa e geradora de ações.

101
26

Os Evangelizadores

Lázaro, O Amigo de Jesus

Contam as Escrituras Sagradas que Lázaro, da


Betânia, era amigo de Jesus e seu fiel seguidor. Tinha
duas irmãs Marta e Maria Madalena, ou Miriam de
Magdala, como querem os hebreus. Lázaro não era
um ancião quando caiu enfermo, vítima de uma
moléstia sem cura.

Todos sabiam o quanto seria maravilhoso ter-


se com Jesus antes que o pior acontecesse. Mas Jesus
estava pregando longe dalí, por isso as irmãs de
Lázaro enviaram um mensageiro até Jesus para
dizer-lhe que Lázaro estava muito mal.

102
Quando Jesus ouviu o mensageiro dizendo:
"Senhor, está enfermo aquele que tu amas, que é
Lázaro, irmão de Marta e Maria Madalena". Jesus
disse: "Esta enfermidade não é de morte, mas é para
a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja
glorificado por ela." Por isso, mesmo sabendo da
situação de Lázaro, Jesus permaneceu no lugar por
mais dois dias seguidos. Passados os dois dias,
chamou os discípulos que lhe seguiam e lhes disse:
"Voltemos para a Judéia". Disseram-lhe os discípulos:
"Mestre, ainda agora te queriam apedrejar os judeus
e tu vais novamente para lá?" Jesus respondeu: "Não
são doze as horas do dia? Pois aquele que caminhar
na luz do dia nunca tropeçará, porque vê a luz deste
mundo; mas aquele que andar nas trevas da noite
tropeça porque lhe falta a luz. Nosso amigo Lázaro
dorme e sigo para despertá-lo." Então os discípulos,
sem entender os significado das palavras de Jesus,
disseram: "Mestre, se ele dorme, então será curado."
Disse-lhe Jesus claramente: "Lázaro está morto, e eu,
por amor de vós, folgo não ter estado lá para que
creiais; mas vamos ao encontro dele". Disse então
Tomé, chamado Dídimo, aos outros discípulos:
"Vamos todos para que morramos com ele."
103
Quando Jesus chegou à Betânia com os seus
discípulos, já havia se passado quatro dias do
sepultamento de Lázaro. Jesus foi ao encontro das
irmãs de Lázaro. Marta e Maria Madalena estavam
recebendo a visita de alguns judeus que vieram lhes
dar os pêsames pela morte de Jesus. Ao ouvirem que
Jesus havia chegado, Maria continuou a dar atenção
aos judeus e Marta correu ao encontro de Jesus
chorando copiosamente. Jesus afagou-lhe as lágrimas
e ela lhe disse: "Jesus, se estivesses aqui, meu irmão
não teria morrido. Mas também sei agora que tudo o
que pedires a Deus, Deus concederá a ti, que é o seu
Filho".

Teu irmão há de ressuscitar, disse Jesus a


Marta. Marta respondeu: "Eu sei que há de
ressuscitar na ressurreição no último dia". Disse
então Jesus: "Eu sou a ressurreição e a vida; aquele
que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e
todo o que vive e crê em mim, não morrerá
eternamente. Crê isto, Marta? E ela respondeu a
Jesus: " Sim, Mestre, eu creio que tu és o Filho de
Deus, que veio a este mundo".
104
Marta, consolada por Jesus, retirou-se e em
segredo foi dizer a Maria Madalena que o Mestre
queria falar com ela. Vendo Maria sair rapidamente,
os judeus que lhe faziam companhia seguiram com
ela, julgando que ela ira chorar no sepulcro de
Lázaro.

Maria porém, chegando no local onde Jesus a


esperava, lançou-se aos seus pés e lhe disse: "Senhor,
se estivesses aqui não teria morrido Lázaro, meu
irmão". Jesus comoveu-se ao ver Maria Madalena
chorar a morte de Lázaro junto com os judeus que
lhe faziam companhia. E lhes perguntou: "Onde o
pusestes?" Eles responderam: "Senhor, vem ver".
Jesus chorou e os todos reconheceram o quanto
Jesus amava Lázaro. Porém algumas pessoas
comentaram: "Este que tanto amava a Lázaro não
poderia impedir que tivesse morrido?"

105
Jesus seguiu para a gruta onde repousava o
corpo de pé,o corpo de Lázaro. Uma pesada pedra
cobria a fenda da rocha . Jesus pediu que retirassem
a pedra. Marta retrucou: "Senhor, ele já cheira mal
porque está ai há quatro dias". Respondeu-lhe Jesus:
"Não te disse que se tu creres, verás a glória de
Deus? Tirem pois, a pedra". Jesus levantando os
olhos aos céus disse: "Pai dou-te graças, porque me
tens ouvido. Eu bem sabia que me ouves sempre,
mas falei assim por causa do povo que está à roda de
mim, para que creiam que tu me enviaste. Tendo dito
estas palavras, bradou em alta voz: "Lázaro, sai para
fora." E Lázaro teve seu corpo reanimado pelo sopro
vital e saiu para fora da gruta ainda envolto nas gazes
das ataduras.

Mais tarde tramaram contra Jesus e contra


Lázaro, mas este não foi sacrificado, tendo
continuado na missão de evangelizar em outros
povos, após ser julgado e condenado com suas irmãs,
seus amigos Maria Jacobé, Maria Salomé, Sara,
Sidônio e Maximino. A Igreja comemora no dia 17 de

106
dezembro, o dia de São Lázaro, e Santa Marta é
lembrada no dia 29 de julho.

Maria Madalena,

A Convertida

Contam que Jesus encontrou Maria Madalena


num jantar para o qual foi convidado. Acreditava-se
que seria ela a mesma mulher a quem Jesus acolheu,
sabendo-a envolvida com prostituição.

Estava ele sentado à mesa de um fariseu que


lhe convidou para cear. Maria Madalena quando
soube da presença de Jesus, na casa do fariseu,
levou um frasco de alabastro, que se assemelha a
um mármore branco transparente, contendo
bálsamo da melhor qualidade. Ajoelhou-se diante
Dele e chorou. Suas lágrimas banhavam os pés de
Jesus.

107
Porém, o fariseu que tinha convidado Jesus
criticou-o porque a mulher que lhe tocava era uma
prostituta. Ao que ele respondeu perguntando a
Pedro, que lhe acompanhava: "Pedro, sendo tu
credor de dois homens que te devem cinqüenta
moedas e trinta moedas respectivamente. Sabendo
que eles não poderão pagar-te, perdoa-lhes as
dívidas. Quem lhe amará mais pelo seu ato?" Simão
Pedro respondeu: "Mestre, aquele a quem perdoaste
a maior dívida. "E Jesus disse: "Julgaste bem, Simão."
Prosseguiu, então, Jesus, dirigindo-se ao fariseu:
"Assim, entrei em tua casa e não me destes água
para os pés; esta mulher veio lavá-lo com suas
lágrimas e enxugá-los com seus cabelos. Não me
ungiste a fronte, ela porém, trouxe-me o mais fino
bálsamo para ungir os meus pés. Não me oferecestes
o beijo da paz, ela no entanto não cessou de beijar-
me os pés. Pelo que te digo: são-lhe perdoados
muitos pecados, porque ela muito amou. Mas, ao
que pouco se perdoa, pouco ama." E os convidados
começaram a dizer entre si: "Quem é este que
perdoa os pecados?" Jesus disse à mulher: "A tua fé
te salvou. Vá em paz."

108
Alguns escritores dizem ser esta mulher seria
outra e não Maria Madalena, no entanto é muito
comum observar as estampas pintadas pelos pintores
das antigas épocas históricas, que Maria Madalena
portava um frasco de alabastro ou metal entre as
mãos. E como as pinturas eram orientadas pelos
sacerdotes da Igreja, é comum reconhecer Maria
Madalena nesta passagem bíblica.

Outra passagem bíblica diz que Maria


Madalena era possuída por sete demônios, todos
eles expulsos por Jesus. Por isso também justificava-
se o procedimento pecaminoso da Santa, antes de
conhecer Jesus.

Mais tarde, seria a mesma Maria Madalena a


ungir o corpo santo de Jesus, no sepulcro, junto com
Marta, Maria Jacobé e Joana. As mulheres se
desesperaram, pois pensaram que o corpo de Jesus

109
havia sido roubado. Saíram todas, apenas Maria
Madalena permaneceu fora do sepulcro, chorando.

Foi também Madalena a primeira pessoa a


estar Jesus ressuscitado. Nesta passagem, Madalena
permanece do lado de fora do sepulcro quando um
dos dois anjos que apareceram lhe pergunta: "Maria
Madalena, por que choras?" E ela responde: "Porque
levaram o meu Senhor e eu não sei onde o puseram."
Ditas estas palavras, voltou-se para trás e viu Jesus:
de pé; mas não o reconheceu. Disse Jesus: "Mulher,
por que choras? A quem procuras?" Ela, julgando se
tratar de um zelador de hortas, disse: "Se tu o
levaste; dize-me onde o puseste; eu irei buscá-lo."

Neste momento, Jesus pronunciou o seu


nome, para lhe chamar a atenção e para que fosse
reconhecido. Maria Madalena aproximou-se para
tocá-lo, mas ele a deteve: " Não me toques, porque
ainda não subi para a glória de Meu Pai; mas vai a
meus irmãos e dize-lhes; subo para o meu Pai e vosso

110
Pai, meu Deus e vosso Deus". Foi Maria Madalena dar
a notícia aos discípulos.

A Igreja Católica lhe presta honras dia 22 de


julho, sendo Santa Maria Madalena invocada por
aqueles que cometeram faltas graves.

Sidônio, o Cego que Jesus Curou

Durante sua vida de pregação, quando estava


funda-mentando os alicerces de seus ensinamentos,
Jesus encontrou um cego de nascença que era
mendigo e sofria o desprezo dos judeus. Isto por que
os judeus acreditavam que todo mal físico viria para
corrigir e purgar um mal moral. Por isso,
perguntaram os discípulos a Jesus:

- Senhor, nascendo este cego, quem estaria


sendo punido pelos pecados, seus pais ou ele
mesmo?
111
Jesus respondeu *:

- Nem ele, nem os seus pais pecaram; mas a


cegueira foi para que se manifestarem nele as obras
de Deus. O importante é que eu faça as obras
daquele que me enviou, enquanto é dia; depois, virá
a noite, quando ninguém pode mais trabalhar.
Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.
Sidônio reconheceu a Verdade nos lábios de Jesus,
por isso, uniu-se aos demais apóstolos e foi revelar a
Boa Nova em outras terras, após ter saído com vida
da condenação de Herodes Agrippa.

Jesus cuspiu no chão, fez lodo com saliva, e


ungiu os olhos de Sidônio. E disse-lhe:

-Vai, lava-te nas águas da piscina de Siloé.

Sidônio saiu para lavar os seus olhos e quando


retirou deles a lama, conseguiu ver a Luz do Mundo.

________________________________

112
(*) Jesus responde com a explicação que invalida a
idéia de que um mal de nascença seja considerado
castigo de Deus. Aliás este tipo de pensamento é
alimentado, até os nossos dias, por religiosos de
diversos segmentos. Mas aqui, nesta passagem do
Evangelho Jesus deixa bem claro este pensamento é
mais que equivocado.

113
27

Ceferino Giménez Malla

O Santo Protetor dos Ciganos

Ceferino Giménez Malla, o Pelé, como era


conhecido, filho de ciganos espanhóis, foi aqui na
terra, um cigano legítimo, criado segundo as
tradições de seu povo. Nasceu em Benavent de
Lérida, no dia 26 de agosto de 1861. Recebeu o
Batismo em Fraga e viveu como nômade durante
quarenta anos, instalando-se depois em Barbastro
(Huesca).

Professou a lei cigana em sua formação moral e


desenvolvimento da própria vida. Era artesão.
Fabricava cestos de palha, para garantir a
subsistência digna e honrada. Jovem ainda casou-se,
segundo os costumes ciganos, com Teresa Giménez
Castro. Depois do casamento, o jovem casal

114
continuou em Barbastro. Como o casamento
tradicional cigano não dependia da cerimônia
religiosa para ser concretizado, Ceferino fez questão
de casar-se numa igreja e receber o sacramento do
matrimônio, em 1912. Pouco tempo depois sua
presença se tornaria constante nas missas
dominicais, sempre participando da Comunhão. O
casal não teve filhos, fato que é mal-visto pelos
ciganos, mas Ceferino adotou a sobrinha de sua
esposa, de nome Maria José, ou melhor, Pepita.

Quando criança, Ceferino nunca freqüentou a


escola, permanecendo sempre analfabeto; mesmo
assim soube manter uma amizade verdadeira com
um professor universitário. Reunia as crianças
ciganas, ou não, para ensinar-lhes alguma narração
da Bíblia e as principais orações.

Era um mediador da paz entre os ciganos calé


(nômades espanhóis) e se propunha a resolver
problemas deles com os outros. Ao ficar viúvo, em

115
1922, deu a sobrinha, já crescida, em casamento, e
dedicou-se mais à vida religiosa.

No seu trabalho, destacou-se como


comerciante de animais, respeitado por todos.

Em 1926, tornou-se membro da Ordem


Terceira Franciscana e, a partir de 1931 freqüentava
a adoração noturna. Pertencia à Sociedade de São
Vicente.

Em julho de 1936, com a Guerra Civil


Espanhola deflagrada defendeu um padre e foi preso
por isso. Após alguns dias, um anarquista tentou
libertá-lo, mas pedindo-lhe que lhe entregasse o
terço e que já não se fizesse ver em oração, como
antes. Pelé agradeceu, mas não aceitou a proposta
do homem.

116
Pelé dispensava grande veneração à Virgem
Maria, recitando o rosário com freqüência. Era um
homem piedoso.

Pelé dedicou-se também a vários movimentos


católicos: Jovens Eucarísticos, Vicentinos e Ordem
Terceira Franciscana. Mesmo analfabeto, participou
ativamente da catequese de crianças e era grande
conhecedor das Sagradas Escrituras, transmitindo-as
como um contador de histórias, para enriquecer as
aulas de catecismo.

Acusado injustamente de roubo, sofreu a


humilhação do cárcere, sendo em seguida, declarado
inocente. O seu advogado chegou a dizer: "Pelé não é
um ladrão, é um santo patrono dos ciganos".

O advogado de "Pelé " predisse o


reconhecimento da Igreja e de todos os ciganos do
mundo. No início da Guerra Civil Espanhola, no final
de julho de 1936, foi detido por ter ido em defesa de
117
um sacerdote, que era arrastado pelas ruas de
Barbastro, até às prisões.

Na madrugada de 8 de agosto daquele mesmo


ano, morreu Ceferino Giménez Malla, "El Pelé", com
seu rosário nas mãos, proclamando a sua fé ,
dizendo: "Viva Cristo Rei!". A Igreja reconhece nele
uma testemunha de Cristo, um evangelizador de seu
próprio povo.

No dia 27 de novembro de 1993 foi iniciado


seu processo de beatificação, que foi encerrado no
dia 14 de maio de 1994.

Em Roma, a Sagrada Congregação para as


Causas dos Santos examinou todos os documentos.
Ceferino Giménez Malla, o Pelé, foi proclamado
Bem-Aventurado pelo Papa João Paulo II, no dia 4 de
maio de 1997. Lembramos a presença valiosa do
Beato Ceferino Malla, no dia 8 de agosto, dia de sua
morte.
118
Súplica ao Bem-Aventurado Ceferino - El Pelé

O Patrono dos Ciganos

Bem-Aventurado Ceferino, que pela sua


coragem confirmou a sua fé em Cristo Rei até seu
último suspiro, dê-me coragem e força para vencer
os desafios desta vida. Vós que aprendestes o valor
da alegria e da liberdade com o povo cigano, que
aprendeu e ensinou a Palavra de Deus; pelas palavras
que vos dirijo nesta humilde súplica, rogo vossa
intercessão junto ao Pai e a Seu Filho Jesus Cristo,
para que eu possa conseguir a graça (faz-se, neste
momento o pedido da graça, com uma vela acesa, na
mão). Para que eu seja livre e possa repartir com os
meus irmãos os benefícios desta bem-aventurança,
seguindo vosso exemplo. Seja meu guardião pelas
estradas do mundo, para que eu possa professar a fé
em Deus e a virtude de ser amparo dos menos
favorecidos, que como eu agora, precisa tanto de seu
socorro. Em nome de Jesus Cristo, tome minha

119
defesa neste momento. Rezar uma Ave-Maria, um
Pai Nosso e um Glória ao Pai.

Oração do Bem-Aventurado Ceferino*

Deus Pai, grande e bom,

com a luz e a força de vosso Espírito

unistes à paixão de Jesus

o cigano Ceferino, primeiro mártir do povo cigano.

Nós vos agradecemos por terdes honrado,

assim, todos os nômades do mundo

que vós amais.

Suscitai entre a sua gente e na Igreja

missionários santos e ajudai-nos a imitar

o exemplo desde genuíno homem de fé:

repleto de amor por vós

e bom samaritano com o próximo.

Corroborados, com ele, pela Eucaristia


120
e pela oração a Maria

tornar-nos-emos cristãos

prontos a palmilhar o caminho da Cruz

na esperança de compartilhar

para sempre a vossa glória.

Amém.

* Esta oração é oferecida pela Igreja Católica e tem


aprovação eclesiástica.

121
28

Orações de Virgem Sara*

Milagroso Canto à Virgem Sara

Farol do meu caminho!

Facho de luz!

Paz!

Manto protetor! Suave conforto.

Amor!

Hino de alegria! Abertura dos meus caminhos!

Harmonia!

Livra-me dos cortes. Afasta-me das perdas.

Dai-me a sorte!

Faz da minha vida um hino de alegria,

e aos seus pés me coloco,

minha Sara, minha Virgem Cigana.


122
Toma-me como oferenda

e me faz de flor profana

o mais puro lírio que orna e traz

bons presságios à Tenda.

Salve! Salve! Salve!

Nota: Esta oração que apresento a você, leitor,


atualmente é distribuída na cripta de Virgem Sara. Eu
mesma tratei de reimprimir em francês, alguns
milhares de cópias para que outras pessoas
pudessem difundi-la. Foi ensinado por Antor, sábio
cigano e amigo.

Como não existem orações oficiais a Virgem


Sara, os ciganos costumam rezar várias orações,
muitas de origem desconhecida, que são encontradas
aos pés de Sara ou que são distribuídas nos dias da
peregrinação.

123
Raio de Luz Multicor*

Raio de luz multicor, penetra fundo em meu interior

e vai meu desejo buscar

atraia-o vivo e forte

inebria-o de sorte e fluidos de realização,

faz da minha mente um ímã capaz

dotado de vontade tenaz.

Força! Realidade! Comunicação!

E a magia fluirá

e como um fruto maduro cairá aos meus a realização.

Salve! Salve! Salve!

124
(*) Faça esta oração com uma vela prateada nas
mãos e imaginando um raio de luz prateada que sai
da região umbilical de seu corpo, elevando -se aos
céus, e atraindo para você a realização de seu desejo.
Repita esta oração por mais nove dias,
preferencialmente, na mesma hora. Disse-me uma
cigana amiga que nós só temos aquilo que
conseguimos atrair, mesmo muitas coisas
desagradáveis são atraídas por nós mesmos.

125
29

A Tradição dos Mantos

Segundo a tradição, era costume dos fiéis


preparar mantos e adornos para os santos de sua
devoção. Em Sevilla, os fiéis enfeitaram as imagens
da Virgem Macarena e de Nossa Senhora do Rosário
com mantos, capuzes e jóias de rubi e esmeralda. Os
brincos gigantescos com pedras preciosas lembram
uma cigana em seus trajes de festa. Com Virgem Sara
o tratamento dos ciganos é o mesmo, embora a
reverência à Mãe de Jesus seja distinta, e muito
maior.

Sabe-se que não existe, na França, imagem de


Santa Sara sem mantos, pois assim que se obtém
uma delas, geralmente esculpidas sob encomenda,
trata-se de lhe fazer o mais belo manto, em sinal de
respeito e amizade à santa. As graças que são
alcançadas com a intervenção de Virgem Sara devem
126
ser agradecidas com mais mantos. Assim, a cada
uma das graças obtidas, os fiéis adornam a imagem
com um manto especial. Muitos procuram os mais
nobres tecidos e criam bordados diversos utilizando
vidrilhos, cristais e miçangas, mas nunca utilizam
pérolas. As pérolas, embora venham do mar, são
evitadas pelos ciganos, pois são consideradas
resultado de uma agonia protagonizada pela ostra.
Cada uma das cores significa uma graça. As mulheres
que pedem para se tornarem fecundas retribuem a
graça, presenteando Sara com manto azul ou rosa,
conforme o sexo da criança. Aqueles que desejam ter
a recuperação de sua saúde prometem mantos em
tons de verde ou branco. As mulheres que desejam
se casar agradecem a Santa com mantos vermelhos
ou rosa de diversos tons. Aquisição de bens,
resolução de problemas financeiros e realização de
bons negócios e concursos são graças as quais se
agradece com mantos dourados ou coloridos com
bordados dourados.

Além da tradição dos mantos, Virgem Sara é


reverenciada com a colocação de diklôs (lenços
127
ciganos) ou ainda xales. As velas são geralmente
brancas, embora em setembro de 1999, existisse na
cripta uma série de velas vermelhas oferecidas à
Santa Sara. Penso que assim como as cores dos
mantos, as cores das velas também estão
relacionadas à energia que se quer desencadear.

128
30

As Correntes Milagrosas

As Correntes Milagrosas de Virgem Sara são


realizadas de acordo com as intenções dos devotos e
obedecendo a regência da Lua. São encontros
singelos que costumo organizar, onde os devotos de
Virgem Sara podem somar suas forças e energias
espirituais para comemorar a presença da Grande
Mãe em suas vidas.

Inicialmente conversamos sobre as intenções


de cada um de nossos encontros, afinal, uma
corrente ritualística deve despertar a mesma energia
em todos os seus participantes. Em seguida ouvimos
alguns depoimentos e esclarecemos algumas dúvidas
com a colaboração de todos os presentes.

129
Fazemos, por último as mentalizações e as
projeções mentais que nos são permitidas. As preces
são realizadas em voz alta, sempre reconhecendo
Virgem Sara como uma mensageira poderosa, uma
rainha que segue os passos de Jesus e o de sua
amada mãe Maria. É através de nossa Virgem Sara
que elevamos a Deus as nossas preces mais sinceras,
cheias de emoção e de verdade.

Havendo a necessidade de preparação de


algum talismã, breve ou amuleto, aproveitamos a
ocasião para fazê-lo.

Nossas correntes terminam com um chá que


acompanha a Rigo Jancsi, uma tradicional receita dos
ciganos húngaros, além do pão de Virgem Sara e de
algumas compotas, doces e frutas. São encontros
maravilhosos, aos quais a cada dia, cresce o número
de participantes. Todos os benefícios materiais
advindos deste evento são divididos som uma
instituição de caridade.

130
31

O Manjar de Virgem Sara

Recebi esta receita de uma Phuri-dai francesa.


A velha cigana se chamava Sara e foi consagrada à
Virgem assim que nasceu. É ela que faz o manjar
branco que é divido entre todos os presentes,
durante a slava de Sara, no dia 24. Mas você pode
fazer esta receita sempre que desejar, atrair a
presença de Virgem Sara para sua vida. É uma receita
comum de manjar, apenas a maneira de servir e a
oferenda pessoal, recebem tratamentos diferentes.

Receita do Manjar

Leite de coco, açúcar, 1 fava de baunilha,


amido de milho e coco ralado. Ameixas secas, claras
de ovos e limão.

131
Faz-se a receita, misturando os ingredientes e
levando ao fogo brando para cozinhar, até que se
faça um mingau consistente.

Depois disso, colocar numa forma de pudim,


deixar esfriar e levar à geladeira até endurecer
totalmente.

Quando desenformar, bater algumas claras em


neve, acrescentando açúcar, caldo e raspa de limão
branco. Cobrir todo o manjar e levar rapidamente ao
forno pré-aquecido para dourar. Serve-se em
seguida.

Para oferenda pessoal você deve ascrecentar


as claras em neve, cobrir com pétalas de flores
brancas e levar ao mar, acendendo as velas de
Virgem Sara, Santa Maria Salomé e Santa Maria
Jacobé. O manjar da oferenda deve ser recheado dos
pedidos de graça de cada um dos presentes.

132
32

O Pão e o Vinho

Todos sabem que os ciganos costumam


comsumir em suas festas comemorativas, o pão e o
vinho. Querem em todos os sentidos estar em plena
comunhão com a terra e com Jesus Cristo, a quem
consideramos o maior peregrino de todos os tempos.

Sobre a mesa onde nos alimentamos,


colocamos a imagem do santo a quem desejamos
reverenciar. O pão é servido e rasgado com as mãos,
cada um come um pedaço, fazendo suas orações
silenciosamente, acompanhadas do vinho.

O pão que é servido nesta ocasião, quase não


tem fermento. A massa é escura, produto do trigo
integral, sem mistura.

133
Para treze pãezinhos vamos precisar de 150 ml
de leite, 250 g de trigo integral, 100 g de manteiga,
50 g de açúcar mascavo, 1 colher de sobremesa de
sal, 2 colheres de fermento em pó, duas gemas para
pincelar e 1 xícara de café de açúcar para polvilhar
sobre a gema.

Modo de fazer:

Coloque todos os ingredientes numa vasilha e


trabalhe a massa com as mãos, sem sovar. Reparta a
massa em treze partes e coloque-as em uma
assadeira untada e polvilhada de farinha de trigo.
Leve para assar em forno pré-aquecido, por 35
minutos, pelo menos.

O pão de Virgem Sara é consumido durante as


slavas e um maior é colocado sobre a mesa para ser
dividido por todos. O pão é consumido em silêncio,
enquanto cada um faz seus próprios pedidos de
graças. Acompanhamos o pão com o vinho.

134
33

Receitas de Tradicionais

Nas grandes festas ciganas são servidos pratos


especiais como os que se seguem. Retirei algumas
das receitas que mais aprecio para compartilhar com
vocês, outras virão em um livro específico da
culinária cigana que está sendo preparado.

Tahronya

Tahronya é uma das poucas comidas antigas


que forram preservadas intactas. Foi um dos
principais alimentos dos ciganos. Prático, era
preparado no outono e conservado em sacos de
algodão, durante todo o inverno, o maior inimigo
natural dos nômades. Sua receita é muito simples.
Bata 4 ovos em uma vasilha e misture a eles sal e
farinha de trigo, até formar uma massa bem dura.
135
Aperte a massa e faça um bastão grosso. Depois, rale
o bastão da massa em um ralador de queijo grosso.
Espalhe os grãos da massa em uma peneira e deixe
secar ao

sol. Hoje em dia, é possível conservá-lo no freezer


por longos meses. Podemos preparar a Tahronya
com um o seguinte molho:

Frite uma cebola em duas colheres de sopa de


manteiga até que fique transparente. Junte a
Tahronya, mexendo sempre, até a massa perca seu
aspecto opaco. Adicione duas xícaras de caldo de
galinha, carne ou legumes e deixe ferver. Deixe
cozinhar em fogo baixo. Cozinhe por 25 minutos,
vigiando a mistura para acrescentar mais caldo ou
sal, se for necessário. Desligue o fogo quando a
massa estiver quase macia.

Rigo Jancsi

Esta famosa tortilha leva o nome do cigano


húngaro Rigo Jancsi que raptara uma princesa por
136
amor. No casamento dos dois, serviu-se a torta em
homenagem ao noivo, pois era um de seus doces
prediletos, com o qual presenteava sua amada.

Para oito pessoas, misture 8 colheres de


manteiga e três colheres de sopa da açúcar, até
formar um creme. Bata as quatro claras em neve,
com 5 colheres de sopa de açúcar, e junte ao creme.
Depois, acrescente 1 xícara de farinha de trigo e 3
colheres de sopa de cacau em pó. Estenda a massa
numa espessura de cerca de 2 cm e coloque numa
assadeira média, com o fundo coberto por papel-
manteiga. Leve ao forno pré-aquecido a 220º C.
Quando a massa estiver assada, polvilhe sua
superfície com farinha de trigo e vire-a, retirando o
papel e deixando-a esfriar. Agora, derreta o
chocolate em banho-maria. Ferva o creme de leite e
espere esfriar. Depois bata-o com 5 colheres de
açúcar até o ponto de chantili. Acrescente ao
chocolate quente, aos poucos, batendo sempre para
não encaroçar. A seguir, corte a massa em duas
partes iguais e uma delas com geléia de damasco ou
jabuticaba e depois com o chocolate derretido. Cubra
137
a outra metade da massa com o chantili misturado ao
chocolate. Com uma faca previamente molhada em
água fervente, e cuidadosamente seca, corte os
quadrados. Em seguida coloque sobre estes
quadrados os quadrados cobertos com chocolate e
guarde na geladeira.

Sarmá

Uma das melhores receitas, é conhecida e


apreciada por ciganos de vários clãs. Seus
ingredientes são: 3 xícaras de chá de arroz lavado,
molho de tomate refogado com salsa e cebolinha
desidratada, 1 colher de chá de pimenta-do-reino, 5
colheres de sopa de óleo de milho ou girassol, 3
dentes de alho esmagados, 2 folhas de louro, 50
gramas de azeitonas pretas picadas, 1 pimentão
picado, 700 g de carne de porco cortada em cubos
bem pequenos, 200 g de lingüiça de porco cozida e
desmanchada, 100 gramas de bacon picado em cubos
pequenos, folhas de repolho lavadas e sem parte
grossa do talo.
138
Numa panela grande coloque água, vinagre e o
sal. Espere ferver. Disponha as folhas de repolho, já
sem o talo para que cozinhe levemente. Escorra as
folhas e reserve a água.

Em outra panela, frite o bacon, acrescente as


folhas de louro, o alho e a carne de porco bem
picadinha. Mexa sempre para que a carne fique
dourada uniformemente. Escorra o óleo que foi
produzido na fritura e reserve-o. Acrescente os
demais ingredientes. Neste ponto, acrescente o arroz
e refogue bem. Retire do fogo e reserve.

Arrume em cada das folhas, uma ou duas


colheres da mistura do arroz com a carne. Enrole em
forma de embrulhinhos. Com outras folhas cozidas,
forre uma panela e coloque os charutinhos de
repolho já prontos. Cubra com a água que foi
reservada da fervura das folhas de repolho. Deixe
cozinhar por aproximadamente 40 minutos em fogo
médio. Cuide para mexer de vez em quando a panela,

139
sem usar qualquer talher. Apenas balance a panela,
acomodando melhor os charutinhos.

Sirva com carne bovina assada ou leitão


assado. Não se esqueça da salada picante e do vinho
tinto seco.

Machô Romanô

O peixe à moda cigana é preparado com um


robalo limpo, porém com as escamas, que possa
caber em seu forno, 2 limões galegos, sal grosso a
gosto, pimenta-do-reino, 4 colheres de sopa de
coentro fresco, 1 copo de vinho branco seco, 4
dentes de alho esmagados, 50 gramas de manteiga,
100 ml de azeite de oliva, 2 colheres de sopa de mel,
2 colheres de sopa de alecrim.

Prepare a marinada com os dois limões galegos


espremidos e coados, acrescentando o vinho, a
pimenta-do-reino, o coentro, o alho. Deixe que o

140
peixe descanse nesta marinada por um período de 4
horas, antes de levá-lo ao forno pré-aquecido.
Coloque a manteiga na parte interna do peixe, regue
com azeite misturado ao mel. Asse sobre uma chapa
de fogão à lenha ou a carvão por 20 minutos,
aproximadamente ou mantenha no forno por cerca
de 30 minutos. Salpique com alecrim e guarneça com
anéis de cebola, dispostos nas laterais.

Quando servir, retire a pele com as escamas,


com o auxílio de uma faca larga ou de uma espátula.
Acompanhe com arroz branco e salada de chicória,
agrião e alface cortados em tiras, com cebola ralada.
Sirva com vinho branco ou tinto, se preferir.

Casni Parsis

Esta é uma receita da tradição dos ciganos de


Punjab, na Índia. É um prato servido nas festas mais
tradicionais. Leve, à base de carne de frango, recebe

141
o toque sofisticado dos temperos indianos,
comprove.

Para 8 pessoas, utilize 16 sobre coxas ou coxas


de frango, 1 limão, pimenta-do-reino, sal a gosto, 3
dentes de alho esmagados, 1 colher de sopa de
garam massala, 1 xícara de café de vinho branco
seco, 3 colheres de azeite de oliva, 1 cebola ralada, 4
colheres de sopa de molho de tomates tradicional,
100 gramas de amêndoas sem peles, 100 gramas de
damascos secos previamente amolecidos em água
quente.

Deixe o frango descansar nos temperos por


pelo menos 3 horas. Em seguida faça um refogado
com o azeite, a cebola ralada e o molho de tomate.
Após cinco minutos, acrescente um copo de água
morna e deixe cozinhar, em forno brando, virando de
vez em quando a fim de cozer a carne por igual.
Quando estiver cozido, acrescente os damascos e as
amêndoas sem peles. Sirva acompanhado de arroz
indiano.

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Hino dos Ciganos

Gelem, gelem lungone dromensar galem


maladilem baxtale Rromençar
A Rromalen kotar tumen aven
E chaxrençar bokhale chavençar

A Rromalen, A chavalen

Caminhei, caminhei por longos caminhos


Encontrei afortunados roma
Ai, roma, de onde vêm
com as tendas e as crianças famintas?

Ai, roma, ai, rapazes!

Sàsa vi man bari familja


Mudardás la i Kali Lègia
Saren chindás vi Rromen vi Rromen
Maskar lenoe vi tikne chavorren

A Rromalen, A chavalen

Também tinha uma grande família


foi assassinada pela Legião Negra
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homens e mulheres foram esquartejados
entre eles também crianças pequenas.

Ai, roma, ai, rapazes!

Putar Dvla te kale udara


Te saj dikhav kaj si me manusa
Palem ka gav lungone dromençar
Ta ka phirav baxtale Rromençar

A Rromalen, A chavalen

Abre, Deus, as negras portas


para que eu possa ver onde está minha gente.
Voltarei a percorrer os caminhos
e caminharei com os afortunados roma.

Ai, roma, ai, rapazes!

Opre Rroma isi vaxt akana


Ajde mançar sa lumáqe Rroma
O kalo muj ta e kale jakha
Kamàva len sar e kale drakha

A Rromalen, A chavalen.

Avante, roma, agora é o momento,

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Venham comigo os roma do mundo
Da cara morena e dos olhos escuros
Gosto tanto como das uvas negras.

Ai, roma, ai, rapazes!

WWW.unionromani.org.com

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