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MANIFESTAÇÕES DO MONST RUOSO A SUBVERSÃO DAS FRONT EIRAS DE GÊNEROS LIT ERÁRI…
Luciana M C D Camargo, Alexander Meireles da Silva
De perseguidas a fat ais: personagens femininas, sexo e horror na lit erat ura do medo brasileira
Julio França, Daniel August o Pereira Silva
toma-se duas obras de Bernardo Guimarães, “A dança dos ossos” e A Ilha Maldita e, a
século XIX.
1. Medo e Literatura
cultura ocidental. São diversos os gêneros narrativos que estão, direta ou indiretamente,
jamais visto contra as ameaças à vida, autores como o historiador Jean DELUMEAU
(1978) e o sociólogo Zygmunt BAUMAN (2006) estão entre aqueles que entendem que
o primitivo medo permanece como uma das emoções mais constantes e intensas
entramos no campo dos prazeres estéticos. Na ficção, o medo parece ser capaz de
No momento atual de minha pesquisa, procuro mostrar que alguns dos mais
que esse efeito de leitura exerce um papel fundamental. Isso implica em não apenas
As causas do medo, porém, são bem mais diversificadas, e tem-se revelado uma
hipótese profícua supor que o medo gerado por causas naturais tem um papel mais
significativo em nossa literatura. A partir das três possíveis fontes do sofrimento no ser
Brasil: (i) as ameaças vindas da própria natureza, sublime e terrível, fonte de maravilha
e mistério, com seus cataclismos, seus animais ferozes, seus ambientes inóspitos; (ii) as
emoções advindas de nossa angústia existencial, da terrível consciência de nossa
inexorável finitude, da decadência de nosso corpo e de nossa mente; e, por fim, (iii) os
do ser humano, fonte constante de um mal que é ainda mais terrível por sua
aleatoriedade.
de construção do medo que parece ser o mais recorrente na literatura brasileira: o medo
do medo: o monstro. Para tanto, proporei leituras de “A dança dos ossos” (1871) e A
ilha maldita (1879), ambas de Bernardo Guimarães, a partir dos conceitos de “monstro”
uma ferramenta preciosa para a investigação da presença do medo nos diversos temas,
monstros, isto é, de criaturas cujas existências não são sustentadas pela ciência
contemporânea (CARROLL, 1990). Mas o “horror artístico” não se limita a ser uma
inspirada pelo ser monstruoso é outro componente essencial, perceptível no modo como
as narrativas do gênero descrevem as criaturas monstruosas – imundas, degeneradas,
deterioradas etc.
esquemas de categorização cultural. Seres ou coisas intersticiais, que não podem ser
arroladas a uma única categoria conceitual, costumam, portanto, ser tomadas como
com pronomes como “isso”, ou, ainda, sejam apresentados como indescritíveis ou
disponíveis.
compreendidos, tantas vezes, como antinaturais: sua derradeira ameaça não é física, mas
na noção proposta de literatura do medo, não foi difícil perceber serem mais frequentes
Jeffrey Jerome COHEN (1996) postula ser possível ler culturas a partir dos
humana.
para além do socialmente aceitável. Cruzar os limites, pensa Cohen, pode significar
os comportamentos proibidos. Entretanto, por sua íntima ligação com práticas interditas,
o monstro também é capaz de seduzir, evocando fantasias escapistas. O medo por ele
inspirado combina-se, paradoxalmente, com uma espécie de desejo de ser como ele,
importância dos monstros nas mais diversas culturas. A sedução por eles exercida
publicado pela primeira vez em 1871, temos o confronto entre as crenças do narrador-
acompanhar o embate que se dá, em volta de uma fogueira, entre dois modos
caracterizado pela fala de Cirino. Em disputa está a explicação sobre uma estranha
aventura vivenciada pelo barqueiro: teria sido uma ilusão dos sentidos ou um
acontecimento sobrenatural?
encontrada por Cirino – está longe de constituir a principal fonte do medo inspirado
pelo conto:
Os ossos dos quadris, as costelas, os braços, todos esses ossos que ainda
agora saltavam espalhados no caminho, a dançar, a dançar, foram pouco
a pouco se ajuntando e embutindo uns nos outros, até que o esqueleto se
apresentou inteiro, faltando só a cabeça. Pensei que nada mais teria que
ver; mas ainda me faltava o mais feio. O esqueleto pega na caveira e
começa a fazê-la rolar pela estrada, e a fazer mil artes e piruetas; depois
entra a jogar peteca com ela, e a atirá-la pelos ares mais alto, mais alto,
até o ponto de fazê-la sumir-se lá pelas nuvens; a caveira gemia zunindo
pelos ares, e vinha estalar nos ossos da mão do esqueleto, como uma
espoleta que rebenta. Afinal o esqueleto escachou as pernas e os braços,
tomando toda a largura do caminho, e esperou a cabeça, que veio cair
direito no meio dos ombros, como uma cabaça oca que se rebenta em
uma pedra, e olhando para mim com os olhos de fogo!... (GUIMARÃES,
2006, pp. 211-2)
Os ossos que se reúnem até formar um esqueleto que dança na floresta não
representam uma ameaça letal. Dão forma a um acontecimento que, menos do que
aterrorizante, poderia ser descrito, com muito mais exatidão, como grotesco – algo que
deformidade.
No conto, os atos mais monstruosos são, de fato, cometidos por seres bem mais
monstros da narrativa.
por amigos de Joaquim Paulista, para lhe preparar uma armadilha fatal – abalam a
Regina, uma jovem que, quando criança, foi encontrada desacordada numa praia da
região do estado de São Paulo. Ela é criada por uma viúva, em uma aldeia de
a beleza e a graça que a todos seduziam, fizeram com que ela passasse a ser vista,
naquela pequena comunidade, como um ser não natural – mais exatamente, como a filha
de uma sereia:
de qualidades antitéticas:
(...) essa mulher inconcebível tinha uma dupla natureza, e parecia reunir
em si tudo quanto há de belo, puro e adorável nos seres angélicos, e o que
há de mais monstruoso e execrando nos espíritos infernais, sem estar
sujeita a nenhuma das fraquezas da humanidade. (IBID., p. 44)
ressaltar tanto sua beleza física quanto seus atributos de espírito: “a gentil donzela não
tinha mau coração; ao contrário era afável, benfazeja e carinhosa (IBID., p. 45).
Maurício MENON (2012, p. 1) observou, com precisão, que Regina, ao encarnar o mote
fatale, ela possui uma característica típica das monstruosidades: ser, simultaneamente,
atrativa e repulsiva.
Era sobretudo seu espírito libertário que impedia de pertencer a qualquer das
categorias de mulher disponíveis para aquela cultura. Menon chama atenção para como
emblemática a passagem em que, após a morte da viúva que lhe acolheu, Regina recusa
da boa mulher que a morte me roubou (...), não devo, nem quero prestar obediência a
pretendentes locais, torna-lhe uma estranha naquele espaço físico e social. Não demora
para que seja associada à misteriosa ilha de difícil acesso e de má fama que dá nome à
transparece em uma das canções que canta à beira-mar: “Viver aqui não desejo/ (...) / Eu
não sou filha da terra” (IBID., p. 16), em que “terra”, no nacionalista Brasil romântico,
Há, contudo, na novela, atos monstruosos que não estão associados a Regina. Os
três irmãos – também estrangeiros, convém recordar – que matam seu marido e
sobrenatural:
sido dada pela própria Regina, quando a madrinha sugere que deveria pedir que Nossa
Senhora do Amparo a livrasse dos perigos do mar: “E dos perigos da terra, mamãe, que
4. Referências Bibliográficas
CARROLL, Noël. The philosophy of horror or the paradoxes of heart. Nova York,
NY: Routledge, 1990.
DOUGLAS, Mary. Purity and danger: an analysis of the concepts of pollution and
taboo. Nova York: Routledge & Kegan Paul, 1966.
_____. A dança dos ossos. In:___. Lendas e romances. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2006. (pp. 199-236)
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MINIBIOGRAFIA: Júlio França é Doutor em Literatura Comparada (UFF) e Mestre
desenvolve a pesquisa “O medo com prazer estético; uma investigação sobre o horror e
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Abstract: The present essay describes the aspects of Fear Literature in Brazil focusing
– A Ilha Maldita, and “A dança dos ossos” – are used in order to demonstrate specific
features of the aesthetics of fear in the 19th century Brazilian fictional narrative.