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Desafios da comunicação, cap. 12, p.146-154. Vozes, 2003.
Por muito tempo, uma vertente da antropologia brasileira, voltada para o es tudo
das culturas populares, dispôs-se a explicar o fenômeno das permanências culturais (ou
das tradições), no bojo da expansão da vida urbana moderna, através da idéia da
“resistência”. Tratava-se de uma abordagem inspirada no quadro interpretativo herdado
do marxismo, no qual a noção de classes e consciência política estavam no centro da
explicação. Não cabe aqui retomarmos o conjunto de trabalhos que caminharam nessa
direção2. Gostaríamos apenas de ressaltar que esses estudos, preocupados com a
resistência das tradições populares, se desenvolveram em um momento de intenso
deslocamento das populações rurais para as grandes cidades. Assim, muito antes que se
falasse em globalização, o crescimento das cidades levantava o temor de que formas
tradicionais de expressão cultural desaparecessem submergidas no modo de vida urbano.
Vemos, portanto, que o problema das relações interétnicas não é novo; no caso da
antropologia brasileira, ele se impôs reiteradamente à reflexão dos antropólogos a cada
nova etapa de expansão da sociedade nacional, obrigando-os a re formular suas teorias
do contato interétnico e da mudança cultural3. Apesar das diferenças de interpretação que
separam Darcy Ribeiro de seus seguidores —, tais como Roberto Cardoso de Oliveira
(que desloca o foco de sua análise da cultura para uma sociologia dos conflitos presentes
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nessa interação), e João Pacheco de Oliveira Filho (que coloca o problema em termos da
interdependência entre os atores nativos e brancos) —, a questão teórica que orienta as
teorias do contato interétnico permanece praticamente a mesma: trata-se de compreender
os processos de mudança das culturas indígenas no sentido de sua incorporação à
sociedade nacional, que nos termos de Darcy significava a transição de uma consciência
étnica ligada à vida tribal para uma nova consciência adaptada à condição de “índio-
civilizado” (1977: 374).
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nativas (e / ou tradicionais): um deles diz respeito ao fato de que elas estão (e sempre
estiveram) em estado de permanente transformação; outro, enfatiza que a permanência
cultural se faz através da mudança, e, conseqüentemente, ela pouco tem a ver com a
manutenção da pureza e / ou autenticidade das tradições; outro, ainda, propõe que as
tendências de homogeneização cultural sempre se contrabalançam às forças de
reposição das diferenças. Se isto é verdade, vale a pena retomarmos rapidamente os
desdobramentos mais contemporâneos do conceito de cultura que autorizam esse tipo de
consenso.
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compreender por que os Piro não compartilham nossa nostalgia pelo tradicional: usando
roupas ocidentais, telhados de zinco e falando espanhol, “eles parecem ter jogado fora
sua cultura, sua preciosa herança da diferença, para ganhar a pobre identidade dos
camponeses” (Gow, 1991: 285). No entanto, os nativos não concebem sua cultura como
um patrimônio de traços a ser herdado. A cultura ancestral é apenas uma arma para
defender seu sistema de parentesco. Todo novo conhecimento que acrescente potência a
esse sistema será prezado pelos nativos.
Essa forma renovada de observação etnográfica, que leva em conta o modo como
os nativos concebem a mudança cultural, tem obrigado as análises antropológicas a
abandonar o conceito clássico de cultura enquanto um conjunto organizado e coerente de
representações e tradições coletivas transmitidas por um grupo social particular. Trata-se,
portanto, não mais de aferir a permanência de um repertório discreto de traços,
comportamentos e valores, mas de compreender o processo de transmissão cultural que
implica, sempre, na manipulação criativa das interações. Deslocando-se, pois, a
problemática da análise antropológica da permanência de um patrimônio para as formas
de invenção no bojo das interações transculturais, torna-se prioritário colocar sob o foco
de nossa observação os processos de comunicação, ou, dito à maneira barthiana, o modo
como o conhecimento e a memória são distribuídos ao longo do grupo e das gerações
(Barth, 1987).
Um dos fenômenos mais interessantes no que diz respeito aos avatares da noção
de cultura está no fato de que, na medida mesmo em que o conceito vai sendo combatido
pelo discurso antropológico na sua versão culturalista, ele vai sendo apropriado pelos
atores sociais que encontram na idéia de tradição um modo ideologicamente eficiente de
definir sua posição nas relações interculturais. Entre os inúmeros exemplos desse
ressurgimento cultural — ao qual alguns autores como Barth vêm dando o nome de
etnicidade — podemos mencionar o caso Kaiapó, ao qual já nos referimos anteriormente.
Segundo o relato de Sahlins, quando Terence Turner esteve entre esses índios nos anos
70, ele observou que era praticamente impossível transmitir-lhes a idéia de uma cultura
Kaiapó e, por tanto, não fazia sentido estimulá-los a preservá-la. Vinte anos depois, “os
Kaiapó estavam envolvidos ativa e criativamente no campo interétnico, com os olhos
postos na apropriação de seus poderes e produtos, tendo em vista a reprodução de sua
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própria ‘cultura” (Sahlins, 1997: 125). Também os estudos de João Pacheco sobre os
índios do nordeste nos trazem inúmeras experiências de ressurgi mento e criação de
etnias indígenas julgadas desaparecidas. Como explicar o surgimento dessa nova
consciência que permite aos nativos objetivar sua própria cultura e torná-la instrumento de
ganhos políticos
Evidentemente, esse fenômeno é suficientemente complexo para que seja possível
dar uma resposta unívoca e imediata. De qualquer modo, para que se possa avançar
nessa direção parece-me necessário, primeiramente, enfatizar algumas distinções
básicas: de um lado, não é demais relembrar a distinção entre “cultura” como conceito
antropológico e “cultura” como o conjunto das manifestações de um grupo; de outro, a
distinção entre a noção de cultura e a de etnicidade.
No que tange à primeira diferenciação, essa lembrança é necessária para que não
se confunda o problema teórico da “dissolução” do conceito de cultura com o
desaparecimento da cultura de um grupo. Assim, se Sahlins critica a antropologia pós-
moderna quando ela propõe o abandono do estudo da cultura, podemos concordar com
ele que “a organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos” não
pode deixar de ser aquilo que distingue o objeto antropológico por excelência (ibid.: 43).
No entanto, se alguns autores empreendem a revisão crítica de um modelo que supõe
uma concepção essencializada, homogênea e coesa das formas culturais — como no
caso da proposição de Arjun Appadurai (1991), que busca a descrição das formas
culturais como desprovidas de limites, estruturas ou regularidades euclidianas —, isso
não que dizer, necessariamente, que se está afirmando o desaparecimento das culturas.
E claro que Sahlins tem razão quando critica o reducionismo implícito das teorias pós-
modernas que derivam mecanicamente as formas e finalidades culturais de um grupo à
dominação cultural do Ocidente (ou de suas classes dominantes). Esse aparato ético-
moral constitutivo dos juízos críticos desses autores lhes esvazia, com efeito, sua
potência teórica. Ainda assim, parece-me necessário não abrir mão da crítica teórica aos
conceitos fundadores da disciplina, uma vez que as transformações a que são submetidos
esses conjuntos históricos quando em interações continuadas e em grande escala com a
sociedade envolvente exigem o reajustamento dos modelos explicativos clássicos das
culturas nativas.
No que diz respeito à segunda diferenciação, ela já foi bastante trabalhada por
alguns autores (Barth, 1969; Cunha, 1985; Montero, 1997). Basta apenas relembrar para
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Referências bibliográficas
APPADURAI, Arjun (s.d.).
BARTH, Fredrik.
______.
CARNEIRO DA CUNHA, M.
GOW, P.
HOBSBAWM, E. & RANGER, T.
MONTERO, P.
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco.
RIBEIRO, Darcy.
SAHLINS, Marshall.
TURNER, Terence.
VILAÇA, Aparecida.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
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