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Desafios da comunicação, cap. 12, p.146-154. Vozes, 2003.

12 Cultura e comunicação: a tradução cultural e a


re-invenção da etnicidade

Paula Montero (USP)*

Já não causa espanto, entre aqueles que procuram compreender as características


da cultura transnacional contemporânea, o fato da revitalização das identidades étnicas. A
idéia de que os meios modernos de comunicação, ao aproximar de forma única as
diferentes culturas, levaria ao desaparecimento daquelas mais frágeis ou à uniformidade
cultural, já não é hegemônica. Com efeito, os terríveis conflitos da Europa Central, que
põem a nu as facetas mais perversas da etnicidade, mas também o reflorescimento das
identidades étnicas no continente americano, ao dar nova visibilidade a culturas que
pareciam ter desaparecido e / ou se “aculturado”, nos colocam diante da dificuldade de
compreender, não tanto a lógica da expansão das formas culturais ocidentais, mas
sobretudo os mecanismos daquilo que Hobsbawm (1984) chamou, de maneira talvez um
tanto infeliz, de “invenção da tradição”.1

No entanto, a escala e a rapidez com que essas formas de afirmação étnica se


expandem nos dão a medida da complexidade desse fenômeno e revelam
freqüentemente a inadequação dos instrumentos teóricos de que dispomos para
compreendê-lo. Os novos meios de comunicação e transporte provocaram um
intercâmbio de pessoas e bens em escala talvez nunca experimentada em nossa história.
Esses fluxos, se por um lado deram visibilidade e presença mundial às mais diversas
culturas, por outro multiplicaram as relações entre diferenças que, de outro modo,
permaneceriam mais ou menos apartadas entre si.

Nosso propósito neste ensaio será o de, a partir de exemplos etnográficos


relatados pela bibliografia recente, esboçar os parâmetros de uma abordagem que
permita compreender os mecanismos que presidem à lógica das relações interculturais.
Trata-se de construir um modelo explicativo das relações transculturais que evite, por um
lado, a retificação das identidades, e, por outro, a redução de um dos pólos à passividade

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da aculturação ou desenraizamento. Como conseqüência dessa abordagem, será preciso


também nos indagar a respeito da própria noção de diferença cultural.

As teorias da resistência e da aculturação

Por muito tempo, uma vertente da antropologia brasileira, voltada para o es tudo
das culturas populares, dispôs-se a explicar o fenômeno das permanências culturais (ou
das tradições), no bojo da expansão da vida urbana moderna, através da idéia da
“resistência”. Tratava-se de uma abordagem inspirada no quadro interpretativo herdado
do marxismo, no qual a noção de classes e consciência política estavam no centro da
explicação. Não cabe aqui retomarmos o conjunto de trabalhos que caminharam nessa
direção2. Gostaríamos apenas de ressaltar que esses estudos, preocupados com a
resistência das tradições populares, se desenvolveram em um momento de intenso
deslocamento das populações rurais para as grandes cidades. Assim, muito antes que se
falasse em globalização, o crescimento das cidades levantava o temor de que formas
tradicionais de expressão cultural desaparecessem submergidas no modo de vida urbano.

Se retomarmos o problema pelas lentes dos que se ocuparam em compreender as


relações entre populações mais radicalmente diferenciadas do ponto de vista cultural,
como no caso das relações entre grupos indígenas e os brancos nacionais, não teremos
um quadro interpretativo muito distinto. A expansão continuada das fronteiras econômicas
para o interior colocou reiteradamente, sob o foco da reflexão etnológica, o problema do
impacto da civilização branca sobre as populações indígenas. O quadro teórico que
marcou a tradição dos estudos de contato foi o da “aculturação» que, na versão de Darcy
Ribeiro, significou uma” transfiguração étnica “que teria apagado as diferenças entre os
grupos indígenas, fazendo emergir um” índio genérico “(1977: 222)”.

Vemos, portanto, que o problema das relações interétnicas não é novo; no caso da
antropologia brasileira, ele se impôs reiteradamente à reflexão dos antropólogos a cada
nova etapa de expansão da sociedade nacional, obrigando-os a re formular suas teorias
do contato interétnico e da mudança cultural3. Apesar das diferenças de interpretação que
separam Darcy Ribeiro de seus seguidores —, tais como Roberto Cardoso de Oliveira
(que desloca o foco de sua análise da cultura para uma sociologia dos conflitos presentes

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nessa interação), e João Pacheco de Oliveira Filho (que coloca o problema em termos da
interdependência entre os atores nativos e brancos) —, a questão teórica que orienta as
teorias do contato interétnico permanece praticamente a mesma: trata-se de compreender
os processos de mudança das culturas indígenas no sentido de sua incorporação à
sociedade nacional, que nos termos de Darcy significava a transição de uma consciência
étnica ligada à vida tribal para uma nova consciência adaptada à condição de “índio-
civilizado” (1977: 374).

Ao colocar sob o foco da explicação antropológica o impacto das formas de


dominação política e econômica sobre as culturas indígenas, as teorias do conta to
acabaram por tornar-se, em maior ou menor grau, uma teoria da resistência ou da
integração social. No entanto, a re-emergência, nestas últimas décadas, de povos
indígenas, em regiões onde eles pareciam ter-se fundido inteiramente com a população
local, tem obrigado os antropólogos a superar o que João Pacheco chamou de “etnologia
das perdas”, e elaborar um quadro explicativo mais convincente dos processos de
“invenção cultural” (1998: 53).

As teorias da reinvenção cultural

Só muito recentemente, sob o impacto da revitalização de experiências culturais


tidas como desaparecidas, a antropologia começa a tomar consciência de que o binômio
resistência / aculturação (ou desenraizamento), não constitui um quadro de referência
satisfatório para compreender os fenômenos culturais no contexto da incorporação
progressiva das sociedades na economia do mercado mundial. Marshall Sahlins é um dos
mais críticos autores à idéia do fim das culturas (nativas), implícita no paradigma da
aculturação e, por via de conseqüência, do abandono do conceito de cultura como
instrumento da reflexão antropológica. No combate ao que ele chamou de “pessimismo
sentimental” dos antropólogos, Sahlins (1997) procura demonstrar que esses povos
elaboram cultural- mente sua maneira de entrar no sistema mundial. Citando inúmeras
experiências recentes, tais como os Mendina Nova Guiné e os Kayapó do Gorotiri, o autor
chama nossa atenção para o fenômeno de “intensificação cultural”, que tem
acompanhado a integração das sociedades indígenas à economia mundial. No primeiro
caso, verificou-se que o desejo dos Mendi pelos objetos europeus, ao invés de
comprometer sua cultura, promoveu uma intensificação inédita dos cerimoniais ciânicos e
de intercâmbio entre parentes, uma vez que abasteceu de dinheiro, conchas de

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madrepérolas, porcos e bens estrangeiros seu sistema de trocas. Deste modo, as


mercadorias e o sistema envolvido em sua aquisição foram adaptados ao sistema de
sociabilidade e às concepções locais de existência humana. Através de sua articulação
com o sistema mundial, os nativos intensificaram seu sistema de reciprocidade local e
ampliaram o alcance das trocas cerimoniais aumentando em larga escala sua rede de
parentesco (Sahlins, 59-65). No segundo caso, observou-se que através da incorporação
da tecnologia dos brancos - vídeo, caminhões, aviões, barcos e rádios —, os Kayapó
tornaram-se capazes de assumir o controle de sua dependência frente à sociedade
branca. Através desses equipa mentos os jovens guerreiros controlam as fronteiras do
território indígena, ad ministram o garimpo e a extração de madeira e conferem
materialidade e permanência a suas tradições. Segundo as observações de Terence
Turner, que acompanhou esse processo nos últimos cinco anos, os Kayapó incorporaram
“todo foco importante de dependência institucional e tecnológica para com a sociedade
brasileira” e, fazendo-o seus, converteram-no em fundamento de sua autonomia (1993:
51).

Os exemplos poderiam ser multiplicados. No caso analisado por Maria Aparecida


Vilaça, particularmente interessante por tratar-se de uma incorporação de uma
cosmovisão branca e não apenas de bens, a conversão dos índios Wari de Rondônia ao
cristianismo obedeceu a uma interpretação inteiramente nativa dos ensinamentos
cristãos. Na década de setenta os nativos se diziam todos crentes, tendo em
conseqüência perdido o interesse pelo canibalismo funerário, pelas festas de chicha e
pelos casamentos poligâmicos. A autora argumenta que a adoção desses novos
comportamentos não pode ser entendida como abandono dos códigos culturais nativos
diante da desorganização introduzida pelo conta to. Segundo sua percepção de boa-vida,
os Wari’ buscam construir sua solidariedade comunal fundada, unicamente, nos laços de
consangüinidade. Dessa maneira, contornam as tensões inerentes às relações de
afinidade, consangüinizando, via a alimentação e canibalismo, os parentes por
casamento. A adesão ao credo cristão significou para os nativos um modo de suprimir a
afinidade, “como se o cristianismo lhes tivesse dado a oportunidade de experimentar, em
vida, o que só conseguiam efetivamente depois da morte: viver em um mundo de
consangüíneos” (1999: 137).

Apesar de sua variedade e os diversos planos em que ocorrem, esses exemplos


apontam para alguns consensos recentes entre os estudiosos a respeito das culturas

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nativas (e / ou tradicionais): um deles diz respeito ao fato de que elas estão (e sempre
estiveram) em estado de permanente transformação; outro, enfatiza que a permanência
cultural se faz através da mudança, e, conseqüentemente, ela pouco tem a ver com a
manutenção da pureza e / ou autenticidade das tradições; outro, ainda, propõe que as
tendências de homogeneização cultural sempre se contrabalançam às forças de
reposição das diferenças. Se isto é verdade, vale a pena retomarmos rapidamente os
desdobramentos mais contemporâneos do conceito de cultura que autorizam esse tipo de
consenso.

Cultura como bagagem: o combate ao culturalismo

Os estudos etnológicos contemporâneos têm cada vez mais chamado atenção


para o fato de que as culturas não são entidades de grande constância temporal e
raramente existem de forma isolada. Desse modo, o encontro com o mundo branco,
embora tenha mudado, em determinados momentos históricos, a escala e a intensidade
das relações interculturais, representou uma forma, entre outras, do conjunto de relações
que sempre constituiu qualquer cultura. Essa nova maneira de pensar as culturas mudou
o modo de observá-las: não se trata mais de procurá-la em suas camadas arqueológicas,
através de um processo de decapagem que suprimiria os depósitos superficiais dos
processos aculturativos para re velar seus vestígios mais autênticos. Quando situadas em
seu contexto histórico e temporal, as sociedades nativas se revelam em processo
contínuo de transformação. Desse ponto de vista, recoloca-se o clássico problema da
mudança, mas a partir de uma perspectiva renovada: não se trata mais de saber — ou
constatar — que as culturas se desenraizam e se integram à sociedade nacional, mas de
compreender seu modo próprio (nativo) de conceber sua especificidade nas relações que
mantêm com o todo.

Um brilhante exemplo dessa maneira de abordar a mudança cultural é o estudo de


Peter Gow sobre os povos Piro no Baixo Urubamba. Vistos através da perspectiva
etnográfica tradicional, eles só poderiam ser considerados camponeses integrados ao
sistema estatal. No entanto, tomando o ponto de vista dos nativos, torna-se possível
perceber que eles, ao incorporar as formas institucionais propostas pelo Estado — a
escola, o território e a organização comunal —, asseguram seu sistema de parentesco,
fundado na co-residência, no compartilhar dos alimentos e na memória da descendência.
Somente quando nos colocamos nesse ponto de vista, observa Gow, é possível

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compreender por que os Piro não compartilham nossa nostalgia pelo tradicional: usando
roupas ocidentais, telhados de zinco e falando espanhol, “eles parecem ter jogado fora
sua cultura, sua preciosa herança da diferença, para ganhar a pobre identidade dos
camponeses” (Gow, 1991: 285). No entanto, os nativos não concebem sua cultura como
um patrimônio de traços a ser herdado. A cultura ancestral é apenas uma arma para
defender seu sistema de parentesco. Todo novo conhecimento que acrescente potência a
esse sistema será prezado pelos nativos.

Essa forma renovada de observação etnográfica, que leva em conta o modo como
os nativos concebem a mudança cultural, tem obrigado as análises antropológicas a
abandonar o conceito clássico de cultura enquanto um conjunto organizado e coerente de
representações e tradições coletivas transmitidas por um grupo social particular. Trata-se,
portanto, não mais de aferir a permanência de um repertório discreto de traços,
comportamentos e valores, mas de compreender o processo de transmissão cultural que
implica, sempre, na manipulação criativa das interações. Deslocando-se, pois, a
problemática da análise antropológica da permanência de um patrimônio para as formas
de invenção no bojo das interações transculturais, torna-se prioritário colocar sob o foco
de nossa observação os processos de comunicação, ou, dito à maneira barthiana, o modo
como o conhecimento e a memória são distribuídos ao longo do grupo e das gerações
(Barth, 1987).

Cultura e comunicação: a tradução cultural

Um dos fenômenos mais interessantes no que diz respeito aos avatares da noção
de cultura está no fato de que, na medida mesmo em que o conceito vai sendo combatido
pelo discurso antropológico na sua versão culturalista, ele vai sendo apropriado pelos
atores sociais que encontram na idéia de tradição um modo ideologicamente eficiente de
definir sua posição nas relações interculturais. Entre os inúmeros exemplos desse
ressurgimento cultural — ao qual alguns autores como Barth vêm dando o nome de
etnicidade — podemos mencionar o caso Kaiapó, ao qual já nos referimos anteriormente.
Segundo o relato de Sahlins, quando Terence Turner esteve entre esses índios nos anos
70, ele observou que era praticamente impossível transmitir-lhes a idéia de uma cultura
Kaiapó e, por tanto, não fazia sentido estimulá-los a preservá-la. Vinte anos depois, “os
Kaiapó estavam envolvidos ativa e criativamente no campo interétnico, com os olhos
postos na apropriação de seus poderes e produtos, tendo em vista a reprodução de sua

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própria ‘cultura” (Sahlins, 1997: 125). Também os estudos de João Pacheco sobre os
índios do nordeste nos trazem inúmeras experiências de ressurgi mento e criação de
etnias indígenas julgadas desaparecidas. Como explicar o surgimento dessa nova
consciência que permite aos nativos objetivar sua própria cultura e torná-la instrumento de
ganhos políticos
Evidentemente, esse fenômeno é suficientemente complexo para que seja possível
dar uma resposta unívoca e imediata. De qualquer modo, para que se possa avançar
nessa direção parece-me necessário, primeiramente, enfatizar algumas distinções
básicas: de um lado, não é demais relembrar a distinção entre “cultura” como conceito
antropológico e “cultura” como o conjunto das manifestações de um grupo; de outro, a
distinção entre a noção de cultura e a de etnicidade.

No que tange à primeira diferenciação, essa lembrança é necessária para que não
se confunda o problema teórico da “dissolução” do conceito de cultura com o
desaparecimento da cultura de um grupo. Assim, se Sahlins critica a antropologia pós-
moderna quando ela propõe o abandono do estudo da cultura, podemos concordar com
ele que “a organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos” não
pode deixar de ser aquilo que distingue o objeto antropológico por excelência (ibid.: 43).
No entanto, se alguns autores empreendem a revisão crítica de um modelo que supõe
uma concepção essencializada, homogênea e coesa das formas culturais — como no
caso da proposição de Arjun Appadurai (1991), que busca a descrição das formas
culturais como desprovidas de limites, estruturas ou regularidades euclidianas —, isso
não que dizer, necessariamente, que se está afirmando o desaparecimento das culturas.
E claro que Sahlins tem razão quando critica o reducionismo implícito das teorias pós-
modernas que derivam mecanicamente as formas e finalidades culturais de um grupo à
dominação cultural do Ocidente (ou de suas classes dominantes). Esse aparato ético-
moral constitutivo dos juízos críticos desses autores lhes esvazia, com efeito, sua
potência teórica. Ainda assim, parece-me necessário não abrir mão da crítica teórica aos
conceitos fundadores da disciplina, uma vez que as transformações a que são submetidos
esses conjuntos históricos quando em interações continuadas e em grande escala com a
sociedade envolvente exigem o reajustamento dos modelos explicativos clássicos das
culturas nativas.

No que diz respeito à segunda diferenciação, ela já foi bastante trabalhada por
alguns autores (Barth, 1969; Cunha, 1985; Montero, 1997). Basta apenas relembrar para

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as finalidades de nossa argumentação que este conceito - a “etnicidade” - é bastante


recente e designa formas particulares assumidas pelas especificidades culturais quando
elas se tornam instrumento de reivindicações de direitos na esfera da sociedade mais
ampla (nacional ou mundial). Nesses casos, os processos de intensificação cultural que
se dão no bojo das relações globais de interação cultural não representam apenas um
“tornar-se nativo novamente”, como se o índio simplesmente recuperasse o seu modo de
ser anterior ao acamponesamento. Se Eduardo Viveiros tem razão ao afirmar que a
etnicidade não pode ser compreendida apenas como uma metáfora da cultura que
significa “à vontade de obter terras, assistência e identidade jurídica” (1999: 204), o que
os índios significam com ela e como o fazem está ainda por ser investigado. Ao
sublinharmos a distinção entre cultura e etnicidade estamos chamando atenção para o
fato de que muitas dimensões da vida diária não passam a integrar as representações de
etnicidade. Torna-se, portanto, necessário indagar como esse repertório, que pretende
apresentar o si para o outro, é constituído. De qualquer modo, essa maneira de o índio
objetivar sua própria cultura é um fenômeno, como dissemos, bastante recente: o
exemplo Kaiapó indica que somente a partir de um determinado contexto de relações
começa a fazer sentido essa espécie de consciência de si, que é a etnicidade. Nesse
contexto, a preocupação com a mu dança cultural ganha um sentido inteiramente novo;
trata-se de saber não apenas como as culturas nativas são modificadas pela sociedade
mundial, mas por que e como mudam nessa direção.

Para urna antropologia da mediação cultural

Se é verdade que para compreender as novas formas de intensificação cultural não


se pode deixar de ter em conta o modelo cultural que lhes dá sustentação (tarefa
sobremaneiramente difícil no caso de sociedades integradas há séculos nas relações com
as sociedades envolventes), as formas locais de organização da experiência no interior do
sistema mundial são sempre um processo seletivo (e não da cultura como um todo) que
envolve mudança e invenção cultural. Embora muitos trabalhos já tenham contribuído
para a compreensão dos fenômenos de mudança / permanência cultural4, o que se
desconhece são os mecanismos sociais e simbólicos específicos que presidem a esses
processos. Trabalhos como os de Sahlins e Turner tendem a apresentar essas mudanças
como globais (a “cultura” nativa se intensifica) fazendo da cultura o sujeito dela mesma e
da afirmação cultural o resultado desse processo. Ora, inúmeros trabalhos recentes têm

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demonstrado que, no processo mesmo da afirmação cultural, muitas relações — de


autoridade, geracionais, de casamento, etc. — são profundamente modificadas,
instalando-se novos conflitos no interior das sociedades locais. Parece-me, pois, é
necessário identificar os diversos planos em que essa renovação de significação se
realiza, por um lado, e quais os atores sociais envolvidos nessa tarefa, por outro.

Podemos perceber, através dos exemplos etnográficos de intensificação cultural


mencionados acima, que as análises podem ter como foco de observação diferentes
planos da vida social. No caso dos Mendi, tratava-se de garantir suas for mas de troca e
casamento; no caso dos Kaiapó, de criar formas de autoridade política que permitissem
assegurar a integridade de seu território; no caso dos Wari’ tratava-se de garantir a
solução de um dilema de ordem cosmológica. Vemos, pois, que não é a cultura que se
intensifica, mas algumas de suas dimensões; desse modo, é preciso que a análise
antropológica se coloque o problema dos mecanismos que presidem à mudança: por que
em alguns casos se dá no plano das vestimentas, em outros no plano dos casamentos,
em outros ainda nas formas de subsistência, guerra, ritos, crenças, etc. Para responder a
essa questão é preciso voltar às lentes de nossa observação para o contexto em que se
dão as relações interculturais e para os agentes (nativos ou não) dessa interação.

O reflorescimento das identidades, bem como a acomodação das culturas ao


sistema mundial, não se realiza através do “contato” e da troca simbólica entre os
conjuntos culturais. Para que se possa compreender a lógica da aceitação ou
permanência de alguns planos das culturas (em detrimento de outros), torna-se
necessária uma análise dos processos de mediação cultural: é preciso que o antropólogo
se pergunte quais são os atores que, em determinado contexto, podem produzir sentido,
estabelecendo pontes entre os códigos culturais em relação.

Ao nos darmos como tarefa a compreensão dos mecanismos que presidem às


relações interculturais, nos propomos caminhar em direção a uma antropologia dos
mediadores, única maneira de conjugar o que nos parece essencial ter em conta na
análise das significações: o contexto específico das relações que autoriza (ou não)
determinadas construções culturais, os mecanismos de construção de sentido - que deve
afinar-se com a situação e levar em conta as estratégias específicas e a posição relativa
dos atores —e os símbolos disponíveis para a tradução.

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Referências bibliográficas
APPADURAI, Arjun (s.d.).
BARTH, Fredrik.
______.
CARNEIRO DA CUNHA, M.
GOW, P.
HOBSBAWM, E. & RANGER, T.
MONTERO, P.
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco.
RIBEIRO, Darcy.
SAHLINS, Marshall.
TURNER, Terence.
VILAÇA, Aparecida.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.

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