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Quadrinhos: múltiplas

linguagens em uma só

 Nobu Chinen
Doutor em Ciências da Comunicação
Observatório de Histórias em Quadrinhos ECA-USP

A bibliografia de obras teóricas sobre Oreste del Buono e Gaetano Strazzulla se


quadrinhos no Brasil sempre foi escassa, e dedicaram aos quadrinhos, mas o nome
em alguns anos, o troféu HQMIX deixou que desponta nessa geração é o de Umberto
de ser entregue nessa categoria por falta de Eco, semiólogo e ficcionista de renome
candidatos. internacional. Eco, falecido em 2016, era
Para felicidade dos pesquisadores, um intelectual que muitos conhecem
apreciadores e leitores de modo geral, como autor de vários romances e livros
esse quadro se alterou bastante de uns 10 de ensaios sobre estética e comunicação.
ou 12 para cá. Ainda estamos longe do Ele foi um dos primeiros estudiosos a
ritmo de lançamentos em países como se dedicar aos quadrinhos e sua análise
Estados Unidos ou a França, mas as semiológica da primeira página de Steve
editoras nacionais vêm publicando ótimos Canyon, publicada no livro Apocalípticos e
BARBIERI, Daniele. As
títulos, tanto de autores brasileiros quanto Integrados, ainda hoje é uma referência na linguagens dos quadrinhos.
traduções. área. Não coincidentemente, Barbieri fez São Paulo: Peirópolis, 2017.
Compensando um atraso de mais doutorado em Semiótica, na Universidade 264 p.
de duas décadas e meia, finalmente foi de Bolonha, sob a orientação de Eco, e foi
lançado, no Brasil, o livro As Linguagens justamente sua tese que deu origem ao livro
dos Quadrinhos, I Linguaggi dei Fumetti As Linguagens dos Quadrinhos.
no original, do italiano Daniele Barbieri. O livro continua muito atual e o
Há tempos a obra se tornara um clássico texto de Barbieri ainda é uma grande
nos estudos dos quadrinhos, mas quem contribuição para o entendimento da
se interessasse em lê-lo por aqui precisava nona arte, mesmo considerando que desde
recorrer ao original em italiano ou à seu lançamento original, os quadrinhos
tradução em espanhol, a versão que se passaram por grandes modificações,
tornou mais comum entre os brasileiros. sendo a mais notável o crescimento das
Barbieri que é pesquisador, escritor, graphic novels. Mas isso não compromete
poeta e professor universitário, esteve a validade das análises e das conclusões de
em 2017 no Brasil, a convite das 4ªs Barbieri, pois, ele trata dos fundamentos
Jornadas Internacionais de Histórias em que fazem dos quadrinhos uma linguagem,
Quadrinhos, evento em que se deu o ou melhor, um conjunto de linguagens que
lançamento do livro numa concorrida sessão formam um todo.
de autógrafos. Ele é herdeiro da tradição O livro representa, inclusive, uma
italiana que, junto com a França, é pioneira ruptura, no modo como os quadrinhos
na pesquisa de quadrinhos, nos anos 1960. precisam e devem ser analisados. Durante
Vários intelectuais como Claudio Bertieri, anos, ou melhor, décadas, a maioria dos

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estudos sobre quadrinhos, principalmente formas oriundas das artes visuais, de modo
aqueles que o faziam sob o aspecto geral.
semiológico, se amparavam em outras Como linguagem híbrida, que traz
linguagens como as artes visuais, a literatura elementos do texto escrito e das artes visuais,
e, principalmente, o cinema. Recorria-se a os quadrinhos tendem a ser analisados
um repertório de conhecimentos alheios segundo as regras que definem essas
já consolidado, não apenas pela ausência formas de comunicação. O balão da fala já
de parâmetros próprios, mas também para era de uso corrente em ilustrações desde
se aproveitar do prestígio e da formalidade a Idade Média sob a forma de filactérios,
que essas linguagens irmãs (ou primas) espécies de flâmulas que saiam da boca dos
haviam acumulado no decorrer dos anos. personagens e continham o texto referente
Embora também se utilize de metodologia à sua fala. As onomatopeias também
semelhante, Barbieri o faz por uma via são uma figura de linguagem comum na
diferente ao apresentar aparatos conceituais literatura e, certamente, estão na origem
de outras linguagens e demonstrar como de vocábulos como sussurrar e assobiar.
estes são insuficientes para se estudar os No entanto, ambos são recursos tão
quadrinhos em toda sua magnitude. utilizados nas histórias em quadrinhos que
O livro é dividido em três partes. elas os incorporaram como componentes
Na primeira, o autor aborda o que ele quase indissociáveis. Portanto, era mais
denomina de Linguagens de Imagem do que o momento, e isso já em 1991, de
como ilustração, pintura e fotografia; na deixarmos de mensurar as histórias em
segunda, as Linguagens de Temporalidade quadrinhos por meio de pesos e medidas
que são a poesia e a narrativa e; na terceira, que funcionam para o cinema ou as artes
Linguagens de Imagem e Temporalidade, plásticas ou qualquer outra linguagem
basicamente, teatro e cinema. Em cada que seja. As Histórias em Quadrinhos são
uma das abordagens, Barbieri explora um campo de conhecimento autônomo
conceitos que caracterizam tais linguagens e, como tal, merecem ser analisadas com
e de que maneira eles entram como ferramental, metodologia e exemplos
elementos constituintes dos quadrinhos. próprios e exclusivos.
Essa forma comparativa permite detectar
e construir o que os quadrinhos têm de
diferencial o que acaba sendo o principal
trunfo do livro. Ao comentar sobre
fotografia, por exemplo, Barbieri reconhece
que dela os quadrinhos se apropriaram
de expressões e procedimentos como
enquadramento e angulações, mas ressalta
que um quadrinista competente consegue
condensar uma sequência de momentos
em uma única imagem, algo impossível de
se obter numa fotografia que só é capaz de
registrar o instantâneo.
Ao final, o que Barbieri defende é que
não se trata de desmerecer a contribuição
de outras áreas porque é inegável, por
exemplo, que um roteiro bem escrito é a
base para se obter uma boa HQ. Também
é óbvio que as representações pictóricas dos
quadrinhos tomam emprestadas técnicas e

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