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CONVOCAM-SE BRUXOS E ARTISTAS: OS QUE PRODUZEM RITUAIS E SE

PERMITEM A EXPERIMENTAÇÃO

RESUMO
O presente texto parte da noção de Cosmopolítica e da ideia de uma reativação do
animismo presente na obra da filósofa da ciência Isabel Stengers, para fazer uma
leitura de alguns trabalhos de artistas contemporâneos que dialogam com o fazer
ritualístico próprio de matrizes religiosas animistas, como o artista alemão Joseph
Beuys, o artista Dalton de Paula e a artista Alina Duchrow. Procura-se destacar
pontos em comum entre esses trabalhos, salientando a potencialidade da arte como
criadora de mundos e de uma consciência que possa trabalhar com as forças da
vida pela vida.
Pensar a arte como a “magia”: um ofício formado por múltiplos agenciamentos que
carregam uma potência transformadora.

PALAVRAS-CHAVE
Arte contemporânea. Rituais. Experimentação. Feitiçaria. Cura.

A noção de Cosmopolítica é uma das ideias forças do pensamento da filósofa da


ciência Isabelle Stengers. (STENGERS, 2017) Tendo como ponto de partida a
questão: Como estabelecemos um cosmos? Um plano comum que sirva como pano
de fundo para pensar os problemas que nos concernem e os que estão
fragmentados e capturados pelos saberes especializados. Como pensar um projeto
político capaz de conectar humanos e não humanos, experts e profanos, cientistas,
artistas e bruxas.
Para fazer cosmopolítica a autora recupera a figura do idiota. Aquela pessoa que
relativiza as coisas, que opta por mudar a ordem das prioridades, interromper a
ordem do urgente para fazer aflorar problemas e posturas invisibilizadas. (ROWAN,
2014)

Se o que caracteriza o capitalismo é sua capacidade de capturar nossa imaginação,


condenando-nos a aceitar a “evidência” das alternativas infernais impostas pelo
capital, Isabelle Stengers e Philippe Pignarre (2005, p.59) propõem identificar o
capitalismo como um sistema feiticeiro. Na visão de Stengers, nomear esse sistema
de feitiçaria nos obriga a desenvolver técnicas de proteção ou desenfeitiçamento
que permitam a concepção de novas maneiras de viver neste mundo. Palavras
como feitiçaria, magia e animismo habitam os escritos de Stengers, e são
associadas a um sentido de resistência política, já que refletem práticas banidas ou
obliteradas no campo tanto das ciências como da política.

Transe na casa do xamã


Alguns artistas da contemporaneidade reativaram em seus trabalhos certas práticas
marginalizadas e desqualificadas pelo mundo moderno-capitalista, como a magia e a
feitiçaria, vendo aí modalidades de resistência política e possibilidades de
recuperação de um plano comum. O trabalho do artista Joseph Beuys, por exemplo,
foi profundamente marcado pela crença na potência da arte em produzir percepções
mais profundas da experiência, como uma força revolucionária capaz de transformar
a ordem social e moldar o mundo em que vivemos.
Desde 1950, Joseph Beuys realizou várias obras com uma forte conexão com o
xamanismo. Isso fica muito evidente na ação I Iike America and America likes me
[Eu gosto da América e a América gosta de mim] realizada em maio de 1974. Na
performance, que começou na viagem da Europa para a América. Beuys foi
envolvido da cabeça aos pés em feltro, carregado numa ambulância e conduzido
diretamente do aeroporto em New York para a galeria René Block, onde dividiu um
quarto com um coiote selvagem por uma semana procurando estabelecer uma
relação não hierárquica com o animal. A ação terminou uma semana mais tarde
quando, uma vez mais isolado em feltro, regressou à Europa.

Um dos motivos de Beuys ter escolhido o coiote para essa ação-interação, é que,
para os muitos povos originários da América do Norte, o coiote era uma das mais
poderosas de toda uma série de divindades. Ele estava ligado à imagem da
transformação e podia mudar à vontade o seu estado do físico para o espiritual e
vice-versa. Esse princípio da transformação teria sido, segundo afirma Caroline
Tisdall, fotógrafa da performance, a chave para Coyote: “a transformação da ideia de
liberdade, a transformação da linguagem para uma compreensão mais ampla da
mesma como meio evolutivo, a transformação do diálogo verbal em diálogo
energético”. (TISDALL, 2008: p. 12)

O motivo para Beuys ter-se isolado completamente do resto da América nesse


encontro foi a vontade de concentrar-se apenas no coiote que, segundo ele,
representava uma outra América, não aquela afundada em uma sociedade de
consumo, mas a que era capaz de sustentar uma relação ética com os animais e a
natureza. “Eu queria isolar-me, não ver mais nada da América a não ser o coiote".
(TISDALL, 2008: p.9) Nas palavras de Beuys: “Eu não uso o xamanismo para me
referir à morte, mas para me referir ao carácter fatal dos tempos em que vivemos.
Ao mesmo tempo, saliento também que o carácter fatal do presente pode ser
superado no futuro” (ALLONSO, 2011: p.206).
Fig 1. I like America and America likes Me | Joseph Beuys | 1974

A magia, desde muito tempo, fez parte de uma concepção animista da natureza que
não admitia a separação entre a matéria e o espírito, e via o cosmos como um
organismo vivo, povoado de forças ocultas, marcados por afinidades invisíveis que
tinham que ser decifradas e onde cada elemento está em relação favorável com o
resto. (FEDERICI, 2017: p.257) Essa concepção mágica do cosmos, que atribuía
poderes especiais ao indivíduo, aparecia como uma forma ilícita de poder e como
um instrumento para obter o desejado sem trabalhar, sendo a erradicação destas
práticas uma condição necessária para a racionalização capitalista do trabalho. A
colonização, que está na origem da acumulação capitalista, permanece se
atualizando. Desenfeitiçar, nas palavras de Stengers, é proteger-se e empoderar-se.
É recobrar aquilo que o capitalismo tomou e sobrecodificou, a feitiçaria não como
malefício, mas como pharmakon, a um só tempo veneno e remédio. (STENGERS,
2017)

O artista Dalton Paula insere em algumas de suas obras plantas medicinais,


evocando tanto um processo de cura encarado como tratamento das chagas
históricas causadas no corpo social pela escravidão, quanto o processo de rebelião
por envenenamento, que visa destruir o ponto de vista branco ortodoxo e alterar a
origem da fala sobre a posição no negro na sociedade e na cultura brasileira. O
vídeo-performance Unguento (2015), é o registro de uma performance realizada na
cidade de Lençóis, interior da Bahia, durante a Mostra OSSO Latino-americana de
Performances Urbanas. O título da ação tem origem nas pastas utilizadas desde a
antiguidade pela medicina popular para tratamentos de diferentes enfermidades.

Durante sua performance, Dalton Paula cria uma garrafada. Alternativa adotada para
driblar a carência de acesso aos meios da medicina tradicional bastante utilizadas
pelas populações interioranas e pela camada urbana de baixa renda. Seus
receituários se baseiam em conhecimentos fitoterápicos herdados dos negros e dos
índios, e geralmente são feitas da mistura de ervas conservadas em cachaça.
Porém, em vez de produzir um remédio capaz de aliviar e curar, o artista cria uma
garrafada para produzir sofrimento, hemorragia interna e morte, e desta maneira
atualiza a figura ancestral do sacerdote de candomblé que manipulava as plantas
para criar medicamentos/venenos, conforme a necessidade de amansar o senhor,
ou dele se vingar. (SOBRAL, 2015)
Fig 2. Dalton Paula | Unguento | Vídeo | 16’ | 2015 |
Foto/Vídeo: João Pedro Matos
Medicina

Os povos indígenas, habitantes da mata, tem um modelo de medicina muito


diferente do ocidental. A medicina indígena considera a relação com o meio
ambiente como parte da causa das doenças e também da cura. Na visão desses
povos, muitas doenças são causadas pela má relação que temos com o ambiente,
com o rio, com a floresta, já que todos os ambientes, seja no meio aquático, da
floresta, da terra, do ar, são habitados por seres, que são os donos dos lugares e
cuidam das coisas ao seu redor. Quando os homens invadem esse espaço, eles
atacam as pessoas e isso aparece como as doenças do corpo.

O termo “Medicinas da floresta”, é a forma como passaram a ser designadas a


ayahuasca e outros agentes relacionados à floresta: à Amazônia, seus povos, seus
seres, seus cosmos e interações. As medicinas da floresta são muitas vezes
entendidas pelos índios nawá como aquelas que vêm curar os “males da
civilização”. A cura de uma pessoa permite curar a coletividade, já que o
desequilíbrio de uma pessoa não seria somente dela, mas de uma coletividade e,
em última instância, de todos. Os Huni Kuĩ falam: “Não é eu, nem você, nem o pajé,
nem ninguém que está fazendo a cura, é a medicina” e a gente é um instrumento.
(FERREIRA, 2016: p. 4)

A Instalação “Medicina” foi desenvolvida por esta artista-pesquisadora em um


laboratório-residência artística em Coimbra, em abril de 2022. O trabalho faz parte
da obra-trajeto-pesquisa “Teologia Natural” iniciado em 2018, que investiga um
acontecimento histórico invizibilizado pelos discursos oficiais: A exploração do látex
na Floresta Amazônica durante o final do século XIX e durante a Segunda Guerra
Mundial e as estratégias orquestradas pelo poder do Estado e pela indústria
internacional para conseguir a mão de obra necessária para obtenção do látex em
grande quantidade. A cultura da Hévea fez a fortuna de grandes sociedades e
marcou um dos períodos mais dramáticos do colonialismo europeu. Os capitalistas
da borracha, com fins lucrativos, utilizaram estratégias desumanas que incluíam o
trabalho escravo, o trabalho infantil, bem como a tortura e o abuso de mulheres.
Uma realidade que continua a existir hoje com a exploração do látex nos países
asiáticos.
A obra “Teologia Natural” é composta por vídeos, desenhos e instalações. Uma
parte do trabalho é uma “denúncia”, que enuncia, relembra e, ao relembrar, re-
membra um acontecimento coletivamente traumático. Essa denúncia é feita através
de narrativas visuais que costuram fatos históricos dispersos, atravessamentos
biográficos da artista e cacos de histórias de vida. Fala-se aqui de uma “Maldição”
que, devido à ganância de alguns, criou desconexão, isolamento, aprisionamento e
morte de muitos.
Uma maldição para ser quebrada precisa de um trabalho de “exconjuração”. Um
trabalho junto com as “forças”. A outra parte da obra “Teologia Natural” concentra-se
na “digestão e transmutação” do acontecimento. Um processamento do trauma no
campo do sensível. Um reposicionamento a partir da própria matéria tão cobiçada
pelo mercado: o látex. A instalação “Medicina” é construída com essa intenção: Com
o próprio veneno criar o antídoto.

Evoca-se o poder medicinal e espiritual da planta para curar e quebrar a maldição


decorrente do seu mau uso, acreditando em uma ligação cosmológica que sempre
existiu entre o homem e a natureza. A instalação é toda realizada com o látex
natural que vem da floresta Amazônica. A “operação mágica” é realizada com a
aplicação do látex nos objetos utilitários feitos também do látex: Pneus, solas de
sapato, objetos utilitários feitos de plástico, etc. O gesto é simples: Grudar para
extrair uma fina membrana. A floresta sendo reivindicada pela sua própria seiva.
Imaginam-se outras formas possíveis para a matéria que foi capturada para um fim
utilitário e que moveu a engrenagem de uma máquina monstruosa, consumidora de
sonhos e destruidora da vida. Aqui há um reposicionamento. Faz-se o antídoto. A
artista age como uma xamã. Uma feiticeira. Essa é a sua ficção.
Fig 3. Alina Duchrow. Instalação | ‘Medicina”.2022 | Fotografia da artista

Referências

ALONSO, Carmen. Shamanism in the Oeuvre of Joseph Beuys. Em Catálogo da


exposição Parallel Processes. Curated by Marion Ackermann and Isabelle Malz.
Kunstsammlung Nordrhein- Westfallen, Düsseldorf. 2011

ELIADE, Mircea. Shamanism: Archaic Techniques of Ecstasy. Princeton. 1972

PIGNARRE, Philippe; STENGERS, Isabelle. La sorcellerie capitaliste. Pratiques de


désenvoutement. Paris: La Découverte, 2005.

ROWAN, Jaron. Isabelle Stengers: La propuesta Cosmopolítica. In


http://www.demasiadosuperavit.net/podcast/isabelle-stengers-la-propuesta-cosmopolitica/
2014.

STENGERS, Isabelle. Reativar o animismo. In: Caderno de Leituras n:65. Belo Horizonte:
Chão de feira. 2017

TISDALL, Caroline. Joseph Beuys-Coyote. London: Thames e Hudson, 2008


SOBRAL, Divino. Dalton Paula e Arte de Amansar Senhores- Catálogo exposição Amansa Senhor.
Galeria Sé. 2015

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