Parece manso como em recôncavo de angra, Tudo o que há de infantil dentro em minh'alma sangra Na dor de ter visto, ó Mãe, agonizar!
Entregue à sugestão evocadora do ermo,
Em pranto rememoroso o teu lento martírio Até quando exalaste, à ardente luz de um círio, A alma que se transia atada ao corpo enfermo.
Relembro o rosto magro, onde a morte deixou
Uma expressão como que atônita de espanto (Que imagem de tão grave e prestigioso encanto Em teus olhos já meio inânimes passou?)
Revejo os teus pequenos pés... A mão franzina...
Tão musical... A fronte baixa... A boca exangue... A duas gerações passara já teu sangue, - Eras avó -, e morta eras uma menina.
No silêncio daquela noite funeral
Ouço a voz de meu pai chamando por teu nome. Mas não posso pensar em ti sem que me tome Todo a recordação medonha do teu mal!
Tu, cujo coração era cheio de medos
- Temias os trovões, o telegrama, o escuro - Ah, pobrezinha! um fim terrível o mais duro, É que te sufocou com implacáveis dedos. Agora que me despedaça o coração A cada pormenor, e o revivo cem vezes, E choro neste instante o pranto de três meses (Durante os quais sorri para tua ilusão!),
Enquanto que a buscar as solitárias ânsias,
As mágoas sem consolo, as vontades quebradas, Voa, diluindo-se no longe das distâncias, A prece vesperal em fundas badaladas!
Manuel Bandeira
BALADA
Balada das damas dos tempos idos
Dizei-me em que terra ou país
Está Flora, a bela romana; Onde Arquipíada ou Taís, que foi sua prima germana; Eco, a imitar na água que mana de rio ou lago, a voz que a aflora, E de beleza sobre-humana? Mas onde estais, neves de outrora?
E Heloísa, a mui sábia e infeliz
Pela qual foi enclausurado Pedro Abelardo em São Denis, por seu amor sacrificado? Onde, igualmente, a soberana Que a Buridan mandou pôr fora Num saco ao Sena arremessado? Mas onde estais, neves de outrora?
Branca, a rainha, mãe de Luís
Que com voz divina cantava; Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz E a que no Maine dominava; E a boa lorena Joana, Queimada em Ruão? Nossa Senhora! Onde estão, Virgem soberana? Mas onde estais, neves de outrora?
Príncipe, vede, o caso é urgente:
Onde estão elas, vede-o agora; Que este refrão guardeis em mente: Onde estão as neves de outrora?
François Villon
SONETO
Não comerei da alface a verde pétala
Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas Deixarei as pastagens às manadas E a quem mais aprouver fazer dieta.
Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta Que acredita no cromo das saladas.
Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci Omnívoro; dêem-me feijão com arroz
E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração De ter vivido sem comer em vão.