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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


COMUNICAÇÃO SOCIAL EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA

MARIA LETÍCIA GUEDES ALBUQUERQUE DE FREITAS


PEDRO ALBUQUERQUE TOMAZ DE AQUINO
WALISON BRUNO MOURA CARVALHO

ANÁLISE DE ESTEREOTIPAGEM DA PRIMEIRA TEMPORADA DE LOVECRAFT


COUNTRY.

RECIFE, 2020
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SUMÁRIO

1. Apresentação de objeto de mídia……………………… 03


2. Justificativa………………………………………………....04
3. Análise do objeto…………………………………………..05
3.1 Fetichização…………………………………………….05
3.2 Diferença………………………………………………..06
3.3 Imagens positivas e negativas……………………...08
4. Referências………………………………………………….11
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1. Apresentação do Objeto de Mídia

Baseado no romance homônimo, de Matt Ruff, Lovecraft Country acompanha


a saga de Atticus Freeman (Jonathan Majors), jovem negro recém-chegado da
Guerra da Coreia que viaja pela Chicago dos anos 1950 em busca de seu pai
desaparecido. O nome da série (e do livro) faz referência ao autor H. P. Lovecraft,
considerado o criador e mestre do gênero “horror cósmico” que ao mesmo tempo foi
um homem abertamente racista. Colocando os negros como protagonistas - além do
já citado Atticus, acompanhamos os personagens Lettia Lewis (Jurnee Smollett),
Montrose Freeman (Michael K. Williams), entre outros - a série consegue subverter
uma série de estereótipos, seja dentro da narrativa ou até fora dela, pois uma
grande parte da produção é composta por pessoas negras, inclusive a escritora-
chefe dos episódios, Misha Green.
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2. Justificativa

A escolha da série Lovecraft Country como nosso objeto de análise se


justifica pelo fato de que ela se propõe a reverter os estereótipos relacionados aos
afro-americanos que são propagados nas obras de ficção em geral, utilizando-se de
conceitos de terror criados e desenvolvidos por H. P. Lovecraft, autor abertamente
racista, considerado o criador do gênero “horror cósmico” na literatura. Dessa forma,
utilizando alguns episódios específicos da série e usando os texto presentes em “O
Espetáculo do Outro” (Stuart Hall) como referência, será possível analisar como
conceitos de fetichização, diferença, imagens positivas e negativas são
apresentados, observando o roteiro da série que subverte, ao longo da maior parte
de sua narrativa, uma série de estereótipos.
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3. Análise do objeto

3.1 Fetichização

Mulheres por muito tempo foram representadas de forma superficial e


fetichizada, sempre submetidas ao protagonismo masculino, além de possuírem
personalidades fúteis e sem profundidade, visando agradar o grande público
masculino. Esta realidade, é ainda mais latente quando falamos sobre a
representação midiática de mulheres negras, que na maioria das vezes tem o seu
corpo objetificado e postos em um lugar de submissão aos prazeres e ou
necessidades de terceiros. Já na série Lovecraft Country, especialmente no capítulo
5, acontece uma subversão desse padrão representacional.
Nesse episódio tivemos um foco especial na personagem Ruby (Wunmi
Mosaku), que é uma mulher negra vivenciando a década de 50. Porém, Ruby
acorda neste episódio, no corpo de uma mulher branca, e sem entender vaga pelas
ruas de South Side se deparando com a realidade de como é estar “do outro lado".
Ruby é persuadida com a promessa de acesso a tudo o que ela poderia desejar
com a ajuda da magia do sangue que permite a ela o poder de mudar de forma.
No corpo da mulher branca, Ruby alcança lugares onde nunca esteve e que
sempre sonhou. Consegue o emprego na loja que almejava, mas além disso,
consegue desfrutar de situações que nunca lhe foram possíveis, principalmente
poder circular livremente. Tal oportunidade, proporciona a Ruby um olhar ainda mais
crítico a esse “mundo” tão excludente aos negros, sobretudo quando se trata de
uma mulher negra de pele escura e fora dos padrões estéticos.
A partir disso, podemos analisar o quanto o corpo feminino é fetichizado e
estereotipado em representações midiáticas. Porém a série vai além e aborda essa
problemática pelo olhar de uma mulher negra que ocupa fisicamente a figura de
uma mulher branca. Essa abordagem, deixa claro que, ao mesmo tempo que os
homens brancos tratam as mulheres negras como seres inferiores e até como não
humanas, eles desejam possuir sexualmente aquele corpo, para a satisfação de
seus desejos pessoais. Ou seja, ao passo que a mulher negra é reprimida e
desqualificada perante um olhar branco masculino, seu corpo é também fetichizado,
como símbolo de desejo, posse e dominação.
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O fetichismo, então, é uma estratégia para ter tudo ao mesmo tempo: tanto
para representar, quanto para não representar o objeto de prazer e desejo que é
considerado tabu, perigoso e proibido. Permitindo aos observadores continuarem
olhando enquanto negam a natureza sexual de seu olhar. Permitem a manutenção
de um foco duplo – olhar e não olhar -, produzindo assim a satisfação de um desejo
duplo. Aquilo que é afirmado como diferente, horrível, primitivo e deformado está
sendo, ao mesmo tempo, obsessivamente desfrutado e apreciado de forma detida
porque é estranho, exótico e díspar.

3.2 Diferença

Lovecraft Country, mesmo com sua capacidade de quebrar estereótipos,


trazendo a representatividade negra de forma na qual esse grupo social ocupa um
lugar de visibilidade, não anula o fato de que, dentre vários monstros que aparecem
nos episódios, o racismo é o pior e mais aterrorizante de todos. Diante disso, e
levando em consideração um dos conceitos de Stuart Hall, sobre o espetáculo do
outro e a importância da diferença, é necessário discutir como esse estudo é capaz
de moldar a estrutura ficcional da série, que é capaz de trazer ao telespectador uma
breve noção de como a sociedade funcionava na década de 50, além das relações
de poder existentes e de que, mesmo com o rompimento de estereótipos atribuídos
a mulheres negras e homens negros, a sociedade branca está longe de aceitar um
lugar de isonomia racial.
Partindo do conceito de que o termo diferença não possui, em fato, uma certa
definição, é necessário entender que ela causa discrepâncias sociais, no que diz
respeito às posições que certos grupos ocupam na sociedade. Esse termo surgiu
com base nos estudos culturais e possui algumas abordagens teóricas e
ambivalentes, podendo agir de forma positiva ou negativa, partindo do pressuposto
de que toda diferença, segundo Saussare, depende de significados - opostos -, no
qual um dos polos possuem um local de poder e dominância. Entender a diferença
é, também, entender sobre alteridade. É enxergar o outro, ou seja, é abandonar a
visão de si mesmo e passar a reconhecer categorias contrárias àquelas em que um
grupo pertence. Sendo assim, é preciso abordar sobre como o diferente, ou como
o Outro é tratado em Lovecraft Country.
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A série, com todo seu horror cósmico, é capaz de levar o telespectador para
um universo repleto de fantasia, de fato. Mas, em meio a tantos elementos irreais,
há inúmeras referências ligadas ao racismo sofrido pelos personagens, bem como
cenas escancaradamente preconceituosas. “Whitey's on the moon”, nome do
episódio número dois e homônimo a um poema que disserta acerca da luta contra o
racismo, por exemplo, nos mostra os personagens Atticus, Letitia e tio George ainda
em busca do pai do próprio Atticus, que se encontra desaparecido. Em meio a essa
procura incessante, eles vão parar em uma mansão e começam a ser servidos por
pessoas brancas. Nesse ponto, não é de se estranhar a situação, até que percebe-
se que tanto Leti como tio George encontram-se sob efeito de um encantamento
que os fazem querer ficar naquele lugar, custe o que custar. A diferença é que
Atticus é completamente imune a esse feitiço e consegue enxergar a realidade em
sua volta tal qual como é, pois ele obtém um tipo de poder que adveio de um ser
superior ao restante da população. E, ao decorrer do episódio, é possível notar que
as mesmas pessoas brancas que estavam os servindo, são aquelas que querem, a
todo custo, tirar a essência de Atticus e tomar para si. Essa é uma forte e marcante
evidência em relação à diferença proposta por Hall, pois, a partir do momento que
essas categorias opostas - negro e branco -, nas quais, uma possui mais poder que
a outra estruturalmente - categoria branca -, quando vê o seu oposto e então,
logicamente, inferior categoria obtendo destaque, é provável que se entre em um
estado de negação constante, pois a diferença é, também, um fator antropológico.
Por mais que oposições binárias sejam necessárias para haver a diferença, a
cultura de um determinado povo vai atribuir significado às coisas. No caso de
Lovecraft Country, na qual uma das pautas é a quebra do estereótipo de que
pessoas negras devem ser submissas ao seu oposto, essa classificação de
significado causa perturbação na ordem social da comunidade estruturalmente
racista, ainda mais em uma sociedade regida pelas leis Jim Crow.
Lovecraft Country é uma série que impõe a diferença de uma forma oposta
ao que grupos privilegiados sempre viveram, mas explorando o viés de como a
população negra é explorada e manipulada por uma sociedade que é culturalmente
preconceituosa. Sendo isso, algo cultural, e não natural, é possível haver
modificações nesses costumes, fazendo com que haja a naturalização de uma outra
diferença. Essa na qual a alteridade se fará realmente presente.
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3.3 Imagens positivas e negativas

Todos os episódios de Lovecraft Country colocam em suas narrativas


imagens positivas dos personagens afro-norte americanos, quebrando estereótipos
e representações racistas bastante propagadas nas obras de ficção. No entanto,
dois episódios (7 e 8) servem para ilustrar dois pontos específicos: Primeiro, como
subverter uma estereótipo racista e colocar quem fica mais embaixo na
hierarquização social (a mulher negra) como protagonista da sua história. E,
segundo, como as representações estereotipadas perseguem e moldam uma
pessoa preta desde sua infância.
Começando pelo episódio sete, que é quase totalmente focado na
personagem Hippolyta Freeman (Aunjanue Ellis), a narrativa já quebra um padrão
de representação ficcional quando mostra Hippolyta, uma mulher negra, utilizando
dos seus conhecimentos científicos para resolver seus problemas sozinha. Nesse
sentido, a obra não só coloca a Hippolyta como total protagonista da sua história,
como também mostra que quando uma série é verdadeiramente diversificada, com
um elenco majoritariamente negro, torna-se natural que cada personagem tenha
sua complexidade, e não aglutine todas as características possíveis em uma só
pessoa por causa da sua raça. Dessa forma, impedindo o processo de
estereotipagem, que de acordo com Stuart Hall, “reduz, essencializa, naturaliza e
fixa a ‘diferença’”.
Mais adiante no episódio, Hippolyta, através de um mecanismo tecnológico,
com claras referências estéticas afro-futuristas, recebe a habilidade de ser quem ela
quiser, em qualquer época possível. Essa habilidade por si só já é uma metáfora
excelente, pois dá a opção de escolha a alguém que, devido sua condição
socioeconômica, nunca pôde escolher nada na vida, representando muito bem a
supressão do direito de liberdade que a população negra, especialmente as
mulheres, sofrem na sociedade. Para além disso, esse artifício narrativo faz com
que possam ser apresentadas diversas figuras históricas durante o episódio, tais
como: Josephine Baker, Bessie Stringfield, a tribo das Ahosi/Mino, entre outras.
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Nessa sequência de diversas épocas diferentes, inclusive, o episódio é


separado em blocos. Cada um deles serve para o desenvolvimento de um aspecto
da personagem, mostrando diversas fases do seu ser: A descoberta da liberdade
quase ilimitada (enquanto está em Paris), a externalização do ódio que é gerado
pela discrimanação racial (enquanto treina e luta junto das guerreiras Ahosi contra
os colonizadores) e a autodescoberta final (quando se torna uma exploradora
espacial). Dessa maneira, a narrativa, através da construção de uma imagem
positiva, como escreveu Stuart Hall, “Expande muito a gama de representações
raciais e a complexidade do que significa ‘ser negro’, desafiando assim o
reducionismo dos esteriótipos”. Ademais, as seguinte falas de Hippolyta são
interessantes, pois elas servem para exemplificar a dimensão de poder que existe
na estereotipagem: “ (...) Eu sempre fui exatamente o tipo de mulher negra que os
brancos queriam que eu fosse. Eu sinto que elas descobriram um jeito esperto de
me linchar sem eu sentir a corda”. Ou seja, através de práticas representacionais
estereotipadas, Hippolyta sofreu uma constante “violência simbólica”, quando não
física, que moldou seu jeito de viver.
Partindo para o episódio oito, quase totalmente focado na personagem Diana
Freeman (Jada Harris), a narrativa se concentra inicialmente no enterro de um
amigo de Diana: Emmett Till. Pessoa que existiu na vida real, Emmett Louis Till foi
um afro-norte americano, assassinado aos 14 anos de idade na pequena cidade de
Money, Mississipi, depois de ter sido acusado de supostamente ofender uma mulher
branca, Carolyn Bryanta, ao ter assobiado para ela (acusação que, 60 anos depois,
Carolyn confessou ser totalmente falsa). Emmett foi espancado, teve um olho
arrancado e, em seguida, atiraram nele. Um descaroçador de algodão de 32 quilos
foi amarrado ao pescoço de Till com arame farpado para fazer peso no corpo, que
foi lançado no rio Tallahatchie. O brutal assassinato de Emmett, assim como o fato
dos assassinos, Roy Bryant e J.W. Milam, terem sido absolvidos, gerou enorme
repercussão no país e contribuiu para o crescimento do movimento pelos direitos
civis.
O exemplo desse assassinato serve para mostrar como a criação de
estereótipos e de imagens negativas, nesse caso, de como homens negros são
incontroláveis e insáceaveis sexualmente, tem o poder de influenciar diretamente na
vida das vítimas dessas tipificações. E é diante desse contexto que Diana corre
pelas ruas sozinha, em desespero, até que é encurralada em um beco e
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amaldiçoada magicamente por dois policiais. A maldição faz com que só ela
enxergue duas meninas negras deformadas que a perseguem por todo lugar. Essas
crianças fazem referência a uma personagem do livro racista “A Cabana do Pai
Tomás”, que tem como característica principal ser mal educada e agressiva. Ora, a
metáfora não poderia ser mais clara: Diana, uma criança negra, é perseguida
(literalmente) durante quase todo o episódio pelos estereótipos vivos de como uma
menina negra é vista pela sociedade branca. É a materialização literal de como a
estereotipagem possui, nas palavras de Hall, “(...) poder na representação; poder de
marcar, atribuir e classificar; poder simbólico; poder da expulsão ritualizada.”
No entanto, Diana não fica sendo apenas uma vítima da situação. Mais uma
vez subvertendo o esperado, o roteiro coloca a personagem indo sozinha resolver
seu problema, enquanto enfrenta seus medos. Um símbolo de como pessoas
negras, desde crianças, têm que lutar para sobreviver numa sociedade racista que
as marginaliza e as encaixa em diversos estereótipos. Inclusive, em um momento
anterior, o tio de Diana, Montrose, tenta ter “a conversa” com ela, termo americano
para quando os pais negros têm que explicar aos seus filhos como lidar e se
comportar diante do mundo racista que irão encontrar pelo resto de suas vidas. No
fim do episódio, Diana é pega pelas meninas que a perseguem, pois é segurada
pelo próprio tio, que não consegue enxergar os espíritos.
Diantes dos exemplos e metáforas apresentados nos episódios supracitados,
fica clara a afirmação de Hall quando diz que “A estereotipagem enquanto prática de
produção de significados é importante para a representação da diferença racial”.
Nesse sentido, todos os personagens da série, e o próprio fato de serem os
protagonistas, servem para contrapor uma série de estereótipos e representações
racistas que são impostos à população negra. Da mulher negra que tem a chance
de escolher o que quer ser livremente ao homem negro que não é “só músculos”,
mas que também possui inteligência, curiosidade e conhecimento cientifico,
Lovecraft Country consegue criar imagens positivas e subverter a forma como os
pretos são retratados na maioria das obras de ficção, conseguindo quebrar visões
pré-concebidas por parte da população sobre esse grupo social. A ironia final reside,
claro, na obra ter sido construída baseando-se justamente em conceitos literários de
terror criados por um autor racista.
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4. Referências

LOVECRAFT country. Direção: Misha Green. Produção: Jordan Peele. Roteiro:


Misha Green. HBO, 2020. Disponível em: https://www.hbobrasil.com/. Acesso em:
20 out. 2020

HALL, Stuart. CULTURA e representação. 1º. ed. [S. l.]: Apicuri, 2016. 260 p.

SEPINWALL, Allan. Lovecraft Country’ Recap: The Past Is Never Dead. Rolling
Stone. Disponível em: https://www.rollingstone.com/tv/tv-recaps/lovecraft-country-
recap-episode-8-jig-a-bobo-1069922/. Acesso em: 5 nov. 2020.

Mikannn, LOVECRAFT COUNTRY | Mikannn. 2020. Disponível em:


https://www.youtube.com/playlist?list=PLkQ1HWydujXYxHxB9sjwaeafCRe4zfl4-.
Acesso em: 5 nov. 2020.

DELGADO, Canal Andressa, Série Lovecraft Country. 2020. Disponível em:


https://www.youtube.com/playlist?list=PLM493kcGsHnMSHt_yGh1guIXwOSCAGJP
A. Acesso em: 5 nov. 2020.

FERNANDES, Andrei. [RESENHA] – LOVECRAFT, Mundo Freak. 2015. Disponível


em: https://www.mundofreak.com.br/2015/06/30/resenha-lovecraft/. Acesso em: 8
nov. 2020.
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GRILO, Joana. LOVECRAFT COUNTRY" - EPISÓDIO 5 ("STRANGE CASE") EM


ANÁLISE, Companhia Cinéfila. 2020. Disponível em:
https://www.companhiacinefila.pt/2020/09/lovecraft-country-episodio-5-
strange.html.Acesso em: 8 nov. 2020.

Oestrangeiro.org, Teoria da Comunicação III - Unidade 7 (Introdução ao


espetáculo do “outro”). 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=xviLocyA0rY&t=272s. Acesso em: 8 nov. 2020

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