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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 4 a 9/10/2021

Os Impactos do Consumo e Mídias Sociais na Saúde Mental dos Indivíduos: O


Narciso Pós-Moderno em Queda Livre1

Maria Letícia Guedes Albuquerque de FREITAS 2


Pedro Albuquerque Tomaz de AQUINO 3
Walison Bruno Moura CARVALHO4
Rogério Luiz COVALESKI5
Universidade Federal de Pernambuco

Resumo

Este artigo possui o intuito de analisar a forma pela qual o consumo e a mídia,
principalmente a social, são ferramentas de puro domínio do ser humano e grandes
causadores de impactos negativos em sua saúde mental. Para discutir essa problemática,
será abordada, aqui, de forma individual, a sociedade de consumo e o grande narciso
pós-moderno, que é visto como um reflexo comportamental que afeta a própria
pós-modernidade. Para tanto, será tomado como objeto de estudo o episódio “Queda
Livre”, da série Black Mirror (2011), e de como o consumo e a mídia social foram
capazes de proporcionar grandes desgastes mentais para a protagonista que, na verdade,
representa o indivíduo contemporâneo.
Palavras-chave: consumo; sociedade de consumo; narciso pós-moderno; mídia social;
black mirror.

Introdução

Quando se discute publicidade e propaganda, um dos primeiros pontos que a


sociedade aborda é o lucro. E, de fato, esse é o objetivo final de marcas que se utilizam
da publicidade para conseguir visibilidade ao seu produto ou serviço. No entanto, é
necessário analisar como se dá o processo de publicização de uma empresa e saber o

1
Trabalho apresentado no IJ02 – Publicidade e Propaganda, da Intercom Júnior – XVII Jornada de
Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do 44o Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação.
2
Estudante de graduação 4º semestre de Publicidade e Propaganda da UFPE. E-mail:
leticia.guedesf@ufpe.br
3
Estudante de graduação 4º semestre de Publicidade e Propaganda da UFPE. E-mail:
pedro.taquino@ufpe.br
4
Estudante de graduação 4º semestre de Publicidade e Propaganda da UFPE. E-mail:
walison.bruno@ufpe.br
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Orientador do trabalho. Professor do Curso de Publicidade e Propaganda da UFPE, E-mail:
rogerio@covaleski.com.br
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peso que ela causa dentro da esfera social. Ao abordar temáticas como a cultura e
sociedade de consumo, são levantadas questões que se referem à ascensão constante do
capitalismo, à formação de identidade dos indivíduos e a sua necessidade de inserção
social, assim como a aquisição de bens que enfatizam o processo de busca pelo
sentimento de satisfação e felicidade. Porém, com o aumento da popularização,
ascensão estrutural da mídia e, atrelado a isso, a idealização de um estilo de vida
“perfeito”, o consumo se torna um dos elementos principais para tentar tornar real tal
ideia.
A partir desse viés, o artigo busca compreender em como fenômeno do
consumo, estimulado pelas plataformas digitais, podem prejudicar a saúde mental da
sociedade, visto que, de acordo com os dados emitidos pela OMS, em 2017, o Brasil é
um dos primeiros países que mais sofrem com casos de ansiedade e depressão, e que
tais problemáticas relacionam-se com questões individualistas e consumistas (SILVA;
XAVIER, 2020).

Sociedade de Consumo

O ato de consumir, por mais que seja uma necessidade básica do ser humano,
passou por um processo de transformação imenso e, com isso, se tornou uma atividade
praticada por impulso e pela busca do prazer momentâneo. Para Bauman (2008), a
sociedade de consumo é representada por cidadãos que são transformados em
mercadorias, devido à exaltação do consumo como característica central do meio social,
o que ele irá chamar de consumismo. Na pós-modernidade, o consumismo circula
rotineiramente na vida humana e na sociedade. Com a mercantilização do indivíduo, a
manipulação de empresas acerca de seus produtos, tornam-se muito mais fortes, pois,
mais do que um produto e funcionalidade, nos é vendido: liberdade, felicidade,
identidade e reconhecimento social.
Para entender a sociedade de consumo com praticidade, é importante repassar
por alguns dos principais autores que têm como base de estudo a análise do consumo e
da sua influência dentro do meio social. Então, vale destacar, aqui, a visão dessa
sociedade através do olhar de Veblen (1889), Bauman (2008) e Campbell (2006).

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Veblen (1899), em A Teoria da Classe Ociosa nos faz compreender o surgimento


do consumo como uma ferramenta que vai além da inerência do ser humano. Ele nos
apresenta o consumo como um instrumento de poder e distinção social para haver a
divisão de classes superiores e inferiores, principalmente, nos tempos medievais. De
início, ele analisa os estágios de evolução da sociedade primitiva, no qual o trabalho e
consumo eram vistos como algo necessário para a sobrevivência e percebe que, com o
tempo e a formação do que se entende como Estado e organização social, esse
primitivismo transformou-se em uma cultura Bárbara que é dominado por uma classe
ociosa e uma classe trabalhadora, no qual o primeiro indício de superioridade era o
poder dos homens sobre as mulheres.

A primitiva diferença, da qual se originou a divisão em uma classe


ociosa e uma classe trabalhadora, é a distinção entre trabalho feminino e
trabalho masculino existente nos primeiros estágios do barbarismo. Do
mesmo modo, a forma mais primitiva da propriedade é a propriedade que
têm os homens capazes sobre as mulheres (VEBLEN, 1899, p. 36).

No entanto, a forma de ostentação da época, não se dava somente à


demonstração do poder masculino, mas, sim, à forma com que a classe ociosa - também
nobre - mantinha o seu estilo de vida, completamente sustentado na propriedade e bens
materiais, o que, consequentemente, despertava a emulação pecuniária6 na classe
trabalhadora. Pois, nesse momento, o consumo conspícuo7 era o principal sinônimo de
poder e respeito dentro daquela sociedade (VEBLEN, 1899). A partir dessa breve
explanação sobre o ponto de vista progressista Vebleniano em relação à formação de
uma sociedade de consumo, é possível concluir que consumir, além de ser essencial, é
uma forma pela qual as pessoas encontram alcançar o reconhecimento social.
Já ao abordar esse tipo de sociedade de acordo com Bauman (2007), as
expectativas são um tanto quanto pessimistas, pois, segundo o autor, em Vida Para
Consumo, o protagonismo da cultura consumista fez com que as pessoas se tornassem
individualistas em busca de uma felicidade inexistente que elas acreditam conquistar
através da aquisição de um bem material. No entanto, não é previsto que essa falsa

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Inveja
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Forma de consumir apenas para demonstrar riqueza (VEBLEN, 1899).
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felicidade logo será substituída por outros bens que são agregados a poder, estilo e
prestígio, gerando, assim, a fomentação do capitalismo dentro da sociedade, a
persistência de desigualdades tanto sociais quanto econômicas e , principalmente, uma
mudança comportamental do indivíduo devido à sua necessidade de querer se sentir
pertencente ou aceito dentro de um grupo de prestígio, o que consequentemente afeta
seu processo de identidade (BAUMAN,2007). Pois, o indivíduo irá consumir por que
encontra parte de sua personalidade na marca ou por que, ao usar aquela marca, ele será
visto de forma diferente e positiva por outros?

[...] Estar à frente da tendência de estilo” transmite a promessa de um alto


valorde mercado e uma profusão de demanda (ambos traduzidos como
certeza de reconhecimento,aprovação e inclusão). E no caso de um pleito
amplamente reduzido à exibição de emblemas, que começa com a
aquisição de emblemas, passa pelo anúncio público de sua posse e só é
considerado completo quando a posse se torna de conhecimento público,
o que se traduz, por sua vez, no sentimento de “pertença (BAUMAN,
2007, p. 62).

Para finalizar essa primeira parte, que busca entender o funcionamento da


sociedade de consumo, é imprescindível, também, compreendê-la através da visão de
Campbell (2007), que é um tanto mais ontológica, no qual o consumo surge como uma
alternativa para o indivíduo reafirmar sua existência enquanto ser e também a se auto
descobrir de forma puramente individual. Para o autor, apesar da sociedade de consumo
enfraquecer relações sociais e estimular o consumismo, ela pode ser vista como uma era
no qual os processos de identidade podem se intensificar e o ato de comprar aparece
como resposta a isso.
A sugestão é que o próprio consumo pode propiciar a significância
e a identidade que os seres humanos modernos tanto desejam, e que é em
grande parte através desta atividade que os indivíduos podem descobrir
quem são e conseguir combater seu senso de insegurança ontológica
(CAMPBELL, 2007, p. 63).

A Sociedade e Cultura do consumo são processos extremamente complexos, que


despertam diversas discussões sobre o desejo pelo prazer e felicidade que ele pode
causar, bem como trazer mais autonomia para o consumidor e até mesmo ajudá-lo na
sua construção de identidade. No entanto, foi discutido também que o consumo almeja a

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aceitação social. Sendo assim, o indivíduo para atingir essa necessidade de inserção,
pode começar a performar comportamentos ou até mesmo consumir aquilo que não
deseja, apenas para ser incluído em determinado grupo social. E a partir dessa
espetacularização, é preciso investigar as consequências individuais que irão afetá-lo.
No entanto, antes de haver essa análise, é importante também entender o papel da mídia
na contemporaneidade para, enfim, elencar o porquê esses elementos - consumo e mídia
- influenciam negativamente na saúde mental do indivíduo.

Narciso Pós-Moderno

Um dos maiores desafios da atualidade diz respeito a compreender o lugar


ocupado pela comunicação, sobretudo em sua versão midiatizada no mundo
contemporâneo. Para pensar os desdobramentos e investigar as articulações entre a
situação presente do sistema econômico, os hábitos de consumo, o mal-estar social e o
ambiente comunicacional, evocamos os esforços de um plural núcleo de pensadores que
se mobilizam em prol de desvendar essa nova sociabilidade que, segundo Rubim
(2000), emerge no cerne de uma “sociedade ambientada e estruturada pela
comunicação, como uma verdadeira Idade Mídia”.
Em consonância com o exposto, Castells (1996) fala de uma era de capitalismo
de redes que constituem a “morfologia social de nossas sociedades”, e afeta
consequentemente as estruturas da economia, do poder e da cultura, além de acarretar
transformações qualitativas da experiência humana na atualidade. Dessa forma, o autor
afirma que a sociedade em rede alicerçada no suporte digital, se estabelece no nosso
cotidiano como intermédio das nossas interações com o mundo, possibilitando a
transcendência do tempo e espaço através do compartilhamento de informações que não
se encontram mais concentradas em um polo de poder (CASTELLS, 1999).
Relocalizando a comunicação midiática como fator estruturante da sociabilidade
contemporânea, nos movimentamos agora em prol de desvelar a produção e circulação
de sentidos e significados publicizados que circulam pela interconexão das redes.
Rubim (2000), aponta a intermediação entre a produção de sentidos e a ambientação
midiática quando afirma que “A onipresença tentacular desta infraestrutura de
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comunicação e sua imanente exposição por meio de permanente fabricação e mediação


de sentidos pelas mídias constitui a singular ambiência da contemporaneidade”
(RUBIM, 2000).
Em sentido semelhante, Lippman (1922) define que as representações
comunicacionais se intercalam entre o homem e seu ambiente real criando
pseudo-ambientes. Além disso, Lippman constatou que as repercussões da experiência
social promovida pelo pseudo-ambiente "operam, não no pseudo-ambiente onde o
comportamento é estimulado, mas no verdadeiro ambiente” (LIPPMAN, 1922). Ou
seja, afirma-se aqui, a comunicação enquanto ambiente efetivo que estabelece uma
espécie de “camada geo-tecno-social necessária e sobreexposta, que se agrega às
camadas – natural e sócio-cultural – do ambiente existente na sociabilidade precedente”
(RUBIM, 2000).
Posto a intermediação entre a experiência humana real e o pseudo-ambiente,
articulado e promovido pela comunicação midiatizada, através da interconexão mundial
de computadores, nos interessa também, compreender como essa nova sociabilidade
interfere e contribui para a formação subjetiva dos sujeitos contemporâneos. Para tanto,
é importante situar que cada passagem de tempo, apresenta circunstâncias particulares
no que tange a própria compreensão do ser subjetivo, que produz em cada instante,
novas ideias, jogos de linguagem e significação, repertório de sentido e conduta que
"dão consistência ao imaginário de uma época, imaginário por meio do qual o mundo, a
existência e a experiência pessoal ganham solidez e significação" (BEZERRA iR.,
2002, p. 232).
Nesse sentido, a compreensão acerca das subjetividades, em que a produção de
sentido acontece junto a produção de bens e serviços, onde a construção identitária é
fortemente influenciada pela própria prática do consumo e da representação, e é, além
disso, intermediada por um sistema comunicacional midiatizado e globalizado,
tramamos uma intricada relação em que o sujeito escreve uma nova história, estando
por consequência “o sujeito psicológico dentro de uma nova psyché” (FARIA; GUZZO,
2006). Se levarmos em consideração as sociedades pós-modernas, identificamos que
essa nova “psyché” do sujeito psicológico, abandona e renuncia a crença nos ideais

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coletivos propostos por Marcuse (1982), devido a expressivas mudanças sociais,


econômicas e culturais articuladas pela evolução teológica e comunicacional. Dando
lugar a uma nova forma de personalidade que configura o homem pós-moderno, o qual
segundo Severiano (2001), tem como característica principal, a busca constante pela sua
autorrealização. Pois, “Fascinado pela nova tecnologia informatizada, busca tal
realização, sente-se onipotente e parece apenas necessitar do outro como instrumento de
confirmação e admiração do próprio eu” (SEVERIANO, 2001).
Diante da complexibilidade apresentada, destacamos duas teses que diz respeito
ao surgimento da pós-modernidade que são apontadas por Lampert (2005): a primeira
conceitua a pós-modernidade como um movimento que se dá a partir do avanço
tecnológico já na década de 60, que reformula a visão global sobre o consumo e o
capital internacional; a segunda, localiza o termo como um período posterior à
modernidade.
A era pós-moderna apresenta assim características marcantes no comportamento
social, tendo como destaque a fragmentação. Privilegia-se o particular, o individual e o
diferente e não o universal e o idêntico. Ou seja, o homem pós-moderno estaria
submerso em uma cultura do narcisismo. Para Lipovetsky (2004):

“Nasce toda uma cultura hedonista e psicológica que incita à


satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos
prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o
paraíso do bem-estar, do conforto e do prazer. Consumir sem
esperar; viajar; divertir-se; não renunciar a nada: as políticas do
futuro radiante foram sucedidas pelo consumo como promessa de
um futuro eufórico” (LIPOVETSKY, 2004, p.61)

Freud (1914 - 1996) buscou investigar as origens da construção do Eu, a partir


do desenvolvimento do ser psíquico recém-nascido em dois momentos: um narcisismo
primário e um secundário. Laplanche e Pontalis (2001, p. 290), esclarecem que “o
narcisismo primário designa de um modo geral o primeiro narcisismo, o da criança que
toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher objetos exteriores”. Já o
narcisismo secundário, aponta para um retorno da libido para si próprio. Zimerman
(2001, p.278) desnuda que, após ter sido investida uma energia libidinal em objetos

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externos, “sofre um desinvestimento libidinal, quase sempre devido a fortes decepções


com os objetos externos provedores das necessidades, e retornam ao seu lugar original,
o próprio ego”, demarcando assim uma atitude em que o narcisismo funciona como
instinto de autopreservação.
Esse mecanismo defensivo do ego que caminha rumo a uma autopreservação e
realização por si mesmo, encontra caminhos abertos e explorados pela comunicação
midiática e pela publicidade. Severiano (2001) acrescenta que a publicidade se constrói
sob um caráter hedonista e lúdico, numa tentativa de convencer e seduzir o consumidor,
de que sua satisfação e realização pode ser mediada por bens de consumo. Entretanto,
devido a constantes frustrações experienciadas, o indivíduo busca um retorno ao ego
ideal a fim de anular o desprazer proporcionado pelo externo. Ou seja, o indivíduo retira
sua libido dos objetos externos e investe em seu ego no intuito de autopreservar-se,
caracterizando o narcisismo secundário, que configura a cultura do narcisismo
contemporâneo. Chegamos então, a um complexo paradoxo experimentado pelo
homem pós-moderno. Retornando sua libido ao seu próprio ego, este sujeito psíquico se
individualiza, tendo como norte o desempenho como fator fundamental para sua
autorrealização, a ponto de quase dilacerar-se no isolamento, nervosismo e inquietação.
“Ao competirmos conosco mesmos e obedecermos às ambições e a
pressão do desempenho, nos tornamos depressivos sob o imperativo de
obedecer a nós mesmos, recaindo na expressão patológica do próprio
fracasso e carência de vínculos, característica da crescente fragmentação e
atomização do social. Contrariando as ideias de um esgotamento de uma
autoridade exterior, agora o imperativo consiste em obedecer a nós
mesmos. O sujeito de desempenho encontra-se em autoacusação
destrutiva e autoagressão que o leva ao adoecimento social, refletindo
uma espécie de (des)humanidade consigo mesmo. Trata-se, portanto, de
uma sociedade enraizada, naquilo que foi considerado o mais elevado
padrão de sucesso que é a questão da competência, na forma de liberdade
coercitiva com o mundo virtual” (HABOWSK; CONTE; 2019, p.315).

A competição consigo mesmo e coação de desempenho, força o sujeito a um


estado de produção contínua que acarreta um estado constante de carência e culpa sem
jamais alcançar a gratificação, sucumbindo consequentemente a um esgotamento
psíquico (tais como Burnout, depressão, hiperatividade, etc.). Ou seja, “O sujeito do
desempenho se realiza na morte''. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem”.

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(HAN, 2017, p. 86). Habowsk e Conte (2019), relacionam essa nova configuração do
sujeito pós-moderno, a corrosão da relação com o outro promovida pelos novos meios e
técnicas de comunicação e publicização, que estabelecem o homem como senhor de si
mesmo e detentor do seu próprio êxito. Disso resulta que, “o depressivo é uma pessoa
esgotada por sua soberania, que, portanto, já não tem mais força em ser senhor de si
mesmo. Está cansado de tanta exigência de ter iniciativa" (HAN, 2017, p. 94).
É importante destacar que o imperativo da expansão, transformação e
reinvenção individual no mundo contemporâneo, pressupõe a oferta e o consumo de
produtos e serviços ligados à identidade. Desse modo,“quanto mais se troca de
identidade, mais se impulsiona a produção. A sociedade disciplinar industrial dependia
de uma identidade firme e imutável, enquanto que a sociedade do desempenho não
industrial necessitava de uma pessoa flexível, para poder aumentar a produção” (HAN,
2017, p. 97).
A revolução clássica, desvenda a transformação corrente que apresentamos aqui,
quando pensamos que esta revolução tinha como meta a superação das relações de
alienação do trabalho, cujo sintoma era o trabalhador não reconhecer os frutos do
próprio trabalho, gerando segundo Marx um sentimento contínuo de auto desrealização
do trabalhador. Hoje, vivenciamos um momento histórico em que vige o neoliberalismo,
cujo regime explora a liberdade e auto realização como dimensões da auto alienação
servil” (HABOWSK; CONTE; 2019). Nesse sentido, a pessoa humana é reduzida ao
seu valor puramente mercantil, obsoleto e massificado, reincidindo num vazio
existencial. Ou seja, os detentores dos meios de produção já não são os únicos
exploradores do trabalhador e vilões por si só. “Ao contrário, eu próprio exploro a mim
mesmo de boa vontade na fé de que possa me realizar. E eu me realizo na direção para a
morte. Otimizo a mim mesmo para a morte” (HAN, 2017, p. 116).

Análise da Influência do Consumo, Mídia e Saúde Mental pelo olhar de Queda


Livre
“Queda Livre”, primeiro episódio da terceira temporada da antologia Black
Mirror (2011), apresenta ao espectador uma realidade não tão distante, em questões de
interações humanas, da vida real contemporânea. O episódio constrói um mundo em

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que o valor das pessoas é medido através de avaliações - que variam de uma a cinco
estrelas - realizadas e compartilhadas pelos usuários entre si. É nesse contexto que o
episódio introduz a personagem de Lacie Pound, (Bryce Dallas Howard) uma mulher
que planeja sistematicamente cada ação de sua vida para que esteja sempre com ótimas
avaliações no seu perfil (Anexo 1). Tendo que dividir o apartamento com seu irmão,
Ryan (James Norton), com quem mantém uma relação conturbada, ela enxerga na
oportunidade de ser madrinha de honra de sua amiga da infância, Naomi (Alice Eve), a
chance que precisa para chegar no ranking que a permitiria alugar uma casa e ir morar
sozinha.
ANEXO 1

Inicialmente, é interessante observar como o episódio é eficaz em construir um


mundo onde quase toda interação social é, via de regra, falsa e manipulada. Seja a foto
de um lanche vespertino, uma conversa de elevador ou um elogio virtual, tudo acontece
de uma maneira artificial. Nesse sentido, a personagem consegue transpor facilmente,
desde as risadas prolongadas mais que o normal, às súbitas explosões de raiva, a
imagem de como ela é uma mulher insegura, em todos os sentidos: fisicamente,
emocionalmente e psicologicamente (Anexo 2). Além disso, em sua realidade - em que
conflitos são evitados ao máximo - a diversidade, criatividade e individualidade são
perdidas em função de uma padronização, tanto de estilo quanto de pensamento.

ANEXO 2

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Além disso, fica claro como as pessoas, inseridas nesse contexto de avaliações e
julgamentos constantes, passam a ignorar o seu próprio gosto a fim de receberem
avaliações positivas dos outros usuários. Esse comportamento pode ser exemplificado
no momento em que Lacie compra um tipo de biscoito e o morde de forma
extremamente controlada para que o formato do alimento combine com a estética da
foto que ela pretende postar. Ou seja, nessa realidade, o consumo perde sua dimensão
individual - “compro porque gosto do que estou comprando” - e fica apenas com sua
dimensão coletiva - “compro porque preciso ganhar avaliações positivas das outras
pessoas”. De acordo com Covaleski e Vasconcelos (2020),“O totalitarismo da sociedade
posta em cena em Nosedive8 se dá por meio das exigências impostas aos cidadãos”.
Essas demandas, assim como na vida real, acabam afetando diretamente a saúde mental
dos usuários, os levando à manifestação de transtornos psicológicos, como ansiedade,
depressão, síndrome de burnout, dentre outros. Por meio de uma entrevista realizada
por Macieira (2017), com o psiquiatra Ernesto Venturini:

“A sociedade do consumo modifica nossa capacidade psicológica de


enfrentar os problemas, e isso aumenta o risco de doenças mentais. Uma
sociedade que prega apenas o sucesso e não reconhece o fracasso deixa os
indivíduos menos preparados para enfrentar dificuldades” (VENTURINI,
2017).

Dessa forma, a tendência é que os indivíduos que possuem notas baixas


interajam mais, ou apenas, em alguns casos, com pessoas que possuam avaliações
semelhantes às deles. Essa estratégia de estratificação social através do uso das redes
sociais não só revela uma face elitista e intolerante dessa realidade fictícia, como reflete
a forma em que os algoritmos dos aplicativos, na vida real, criam bolhas virtuais de
interação, ou seja, limitam o que aparece ou deixa de aparecer no perfil do usuário de
acordo com seu círculo social, seus hábitos de consumo e o tipo de conteúdo que ele
acompanha. Citando Lemos (2018): “[...] Na obrigatoriedade de estar sempre bem,
busca-se relação com quem tem mais pontos, entrando em uma espécie de
‘gamificação’”. Nesse sentido, é notável o contraste entre as visões de vida expostas por
Lacie e seu irmão, mas também, de forma ainda mais expressiva, entre ela e Susan

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Título original do episódio “Queda Livre”.
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(Cherry Jones), uma mulher mais velha que, antes uma viciada no mundo virtual tal
qual Lacie, nos dias atuais dirige seu caminhão sem se preocupar com as suas
avaliações virtuais. Ora, em uma realidade em que motoristas de aplicativo, com risco
de perder o emprego, têm que lutar para conseguir boas avaliações dos seus clientes,
Nosedive não precisa se esforçar muito para demonstrar as situações paralelas entre a
sociedade em que Lacie vive e a nossa. Somado a isso, em congruência com a definição
do narcisismo secundário citada anteriormente, fica claro que as pessoas dentro da
realidade de Nosedive perderam a capacidade de apreciar tudo que há de externo ao seu
redor, se contentando apenas em registrar uma ou outra situação do dia a dia, não por
um desejo genuíno, mas por uma satisfação narcísica que será gerada a partir dos
elogios feitos nas postagens. Por fim, depois de aprender algumas lições com Susan e
realizar seu discurso catártico no casamento da amiga (Anexo 3), Lacie é presa e, em
mais um momento de catarse, já com sua pontuação completamente zerada, troca
xingamentos com o prisioneiro que está na cela em frente à sua. Inclusive, a cena é
montada e encenada quase como se ambos estivessem em um crescente estado de prazer
que atinge seu “momento orgásmico” quando os personagens gritam o palavrão final.

ANEXO 3

Ademais, é importante ressaltar como Nosedive possui um comentário racial sutil na


sua narrativa. Ora, além do prisioneiro já citado, a maioria das funções de serviço como
baristas, agentes de reservas aéreas, segurança de aeroporto (aparentemente associadas a
classificações mais baixas) são desempenhadas por pessoas negras (Anexo 4). O único
indivíduo que é apresentado sendo rejeitado e caindo no esquecimento é um
personagem negro, que tenta desesperadamente se tornar mais simpático bajulando seus

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colegas de trabalho, como se não tivesse escolha a não ser se envolver em uma profecia
autorrealizável de classificação pobre e servidão.

ANEXO 4

Sendo o tema que une todos os episódios de Black Mirror, a relação entre os
seres humanos e a tecnologia é representada em Nosedive de uma forma tão crítica e
ácida que chega a ser irônico o fato da sua plataforma de distribuição ser justamente o
maior serviço de streaming do mundo com um dos algoritmos mais sofisticados do
mercado. No passado, essa obra seria considerada uma ficção-científica. Hoje, no
entanto, o melhor gênero para encaixá-la seria uma espécie de “realismo-profético”. O
maior plot twist, no final das contas, é como a vida real ainda não se tornou idêntica à
de Nosedive.

Considerações Finais
Através da análise do episódio Queda Livre, da série Black Mirror, e das
discussões apresentadas relacionando conceitos como a sociedade de consumo e o
narciso pós-moderno, fica claro como a realidade fictícia do seriado se assemelha cada
vez mais à contemporaneidade. Atualmente, é flagrante o uso contínuo das redes sociais
pela maioria da população, o que não só aumenta a tendência consumista dos usuários,
como também pode gerar diversos problemas psicológicos quando o uso se torna
exagerado. Assim como na série, as pessoas estão se tornando reféns de dois principais
sentimentos: a pulsão consumista e a carência por atenção.
Nesse sentido, a busca por um status superior dentro da sociedade se torna o
principal objetivo dos indivíduos, que vão perdendo seus desejos genuínos e passam a
viver apenas de acordo com o padrão imposto pelos mais ricos e poderosos. Além disso,

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as redes sociais - e a internet como um todo - que, no começo, surgiram como uma
ferramenta nova da socialização, prometendo um maior dinamismo nas interações
sociais, tendem a criar bolhas virtuais regidas por algoritmos que restringem o que os
usuários têm ou não têm acesso.
Diante desse contexto, percebe-se que a busca do indivíduo contemporâneo por
uma auto realização se mantém ancorada, na maioria das vezes, em como sua
performance virtual está sendo avaliada. Ou seja, a felicidade passa a ser inerente ao
status social que a pessoa ocupa tanto na sociedade quanto dentro do seu círculo social.
Somado a isso, o consumismo se torna um elemento central da vida cotidiana, pois
apenas através dele é possível atingir os maiores status e, por consequência, ter uma
vida supostamente melhor.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

Black Mirror’s 'Nosedive’ isn’t just about social media, it’s about race. Splinter, 24 out.
2016. Disponível em:
<https://splinternews.com/black-mirror-s-nosedive-isn-t-just-about-social-media-179386311
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