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10 O Temor da Escolha Errada em Filhos de Pais Separados Rosane Schotgues Levenfus Maria Lucia Tiellet Nunes INTRODUCAO. na adolescéncia, fase em que as relagdes com a familia podem estar mais conturbadas, que se dé a decisio por uma carreira profissional. Esse evento, embora iio determinantemente isolado do sucesso ou insucesso profissional é, sem diivida, um importante fator nesse sentido e também na estruturagdio do proprio individuo (Andrade, 1997). Soares-Lucchiari (1997b) observa que a dificuldade em escolher uma profissio std, seguidamente, relacionada a situagdes conflituosas latentes ou manifestas nas relages familiares. Andrade (1997) supde que uma existéncia rica com a incorpora- ( de valores familiares associados & realizagdo e A autoconfianga parece indicar .guranca e otimismo no projeto de carreira Diversas pesquisa tém-se ocupado em estudar a repercussio da separagio dos pais sobre psiquismo dos filhos. Esse tema tem suscitado muita polémica, inclusive na Grea cientifica, como veremos a se Mas ser que a separaciio dos pais repercute de alguma forma sobre 0 adolescen- te no momento da escolha profissional? Buscamos, com essa pergunta, simplesmente pesquisar se essa questio familiar confere a esses jovens alguma forma caracteristica ou alguma demanda especifica — sem querer avalid-la como positiva ou negativa — frente A questo da escolha profissional. Para tanto, foram reunidos em um grupo de Orientagio Vocacional apenas jo- vens filltos de pais separados.' E importante ressaltar que todos eles se inscreveram para participar da Orientagao Vocacional por demandas préprias ¢ nio sabiam, no inicio das tarefas, que estavam em um grupo homogéneo (filhos de pais separados). A primeira reuniio grupal foi gravada e posteriormente transcrita e estudada na forma de Anélise de Contetido (Bardin, 1991). Desta forma, salientamos que nao estamos falando de qualquer jovem filho de pais separados frente ao momento da escolha Parte da pesquisa de mestrado de Levenfus (2001), 150 _Levenfus, Soares & Cols. profissional e sim, especificamente, daqueles que buscaram ajuda por nao estarem conseguindo solucionar suas demandas vocacionais. O contetido da conversaco exposta por esse grupo se assemelha e também difere em varios aspectos do contetido das quest6es discutidas em outros grupos pesquisados.? Primeiramente, abordaremos alguns t6picos relativos a questo geral da reper- cussiio da separagio dos pais sobre o psiquismo dos filhos, para, mais adiante, focali- zarmos essa questo em torno do momento da escolha profissional A SEPARAGAO DOS PAIS A separagiio para os filhos € uma passagem de vida da maior importncia. Muita coisa muda, a rearrumagio € extensa: hi a perda do convivio com o pai ea mae na mesma casa, a possibilidade de perda do convivio cotidiano com os irmaos, a modificagio de habitos e rotinas, a modificagio do padrio de vida. (Maldonado, 1991, p. 134) As criangas percebem com clareza o clima pesado de tenso das etapas finais de um casamento, mesmo que os pais nao briguem na frente dos filhos. ‘Mesmo quando as crises conjugais sérias ndo sio abertamente faladas, as crian- {gas mais sensfveis apresentam sintomas ¢ alteragdes de conduta, funcionando como ava de ressonancia dos conflitos do casal Algumas criangas se isolam, passam horas no quarto, quase no falam; outras solicitam mais os pais ou adoecem. E importante que a crianga tenha uma nogio de continuidade de vinculos afetivos e possa dispor de pessoas que a apsiem com sensa- ¢40 de estabilidade e seguranga em um momento da vida tio cheio de perdas e impac- tos (Maldonado, 1991; Riera, 1998; Wallerstein e Kelly, 1998), Hi criangas e adolescentes que precisam de mais tempo que outros para assimi- lar a separagio, o que implica, muitas vezes, modificagdes de conduta, especialmente na baixa do rendimento escolar. “Nao 6 raro o aumento de sintomas tais como dor de cabega, febre, diarréia, vémitos, perda ou excesso de apetite” (Maldonado, 1991, p. 135). Para a autora, esses sintomas, por vezes, podem ser reveladores das reages de angiistia no perfodo inicial da adaptacao apés a separago. As modificagdes de con- duta comuns nesse perfodo sio: grudar-se na mae com medo de que vé embora, dor- do que o habitual a fim de negar os problemas, apresentar dificulda- des de adaptagio na escola. Os sintomas tendem a atenuar-se ou a desaparecer, quan- do um novo equilibrio é aleangado na nova situagiio de vida. Dolto (1988) observa que esses mesmos sintomas podem ser apresentados pela crianga que acaba de tomar conhecimento de que o pai ou a mie est com cancer, ou de que 0 avé ou a avé acaba de falecer. A mesma reacio pode sobrevir caso ela ouga dizer que a situagdo do pai piorou e que talvez ele fique desempregado. Conclui-se que nio se trata de um comportamento caracteristico da situagio de separagio dos pais. E um comportamento que testemunha sempre um abalo profundo, Dessa forma, entende-se ser traumética a situagio da separagio. Foram pesquisados, além do grupo com filhos de pais separados, outros t8s grupos: jovens que perderam (por ‘morte) um dos pais; jovens com dificil desencadeamento do segundo processo de separaco-individuacio (Malle, 1982; 1993); e jovens que ndo apresentam nenhuma das nuancas levantadas nos grupos anteriores. Orientacio Vocacional Ocupacional 151 A ADAPTACAO, Oestudo realizado com adolescentes, filhos de pais separados, demonstrou que, transcorridos cinco anos da separagao, esses adolescentes pareciam estar bem-adap- tados em termos escolares, no relacionamento e no humor (Buchanam, Maccoby € Dombusch, 1996). Jd Carter e McGoldrick (1995) apéiam a idéia de que um minimo de dois anos e um grande esforgo apés a separagdo so necessérios para que uma familia se reajuste a sua nova estrutura Embora os autores relacionados anteriormente apontem para uma diminuigdo dos sintoras desencadeados pela separagio com o passar do tempo, Wallerstein (2000) € enfaitica em afirmar, com base em sua mais recente pesquisa com 131 filhos de casais divorciados, ao longo de 25 anos, que relatos de muito sofrimento so comuns a todos os casos. Muitos se consideravam sobreviventes de um cataclismo de propor- se sente abandonada e margina- ‘dos pais 6 uma marca, um estig : ges césmicas. A crianga, em sua vida pos-divorei lizada. Essa pesquisadora considera que a separa , ma, que as criangas carregardo para toda a vida. A maioria dos filhos do divércio atribui a separago dos pais parte de seus insucessos nos relacionamentos. A imagem ; negativa do casamento leva muitos a fazer més escolhas de parceiros ou a fugir de compromissos. Ela também coloca que é um mito imaginar que a separagdo é uma crise temporaria, cujos efeitos sio mais danosos na hora da separagio. |Trata-se de uma crise de longo prazo e, em alguns casos, intermindvel Diferentemente do que pensa Wallerstein (2000), Maldonado (1991, p. 142) acre~ dita que: ; Ter pais separados no significa ficar emocionalmente pertrbado pelo resto da vida. A maioria dos problemas dos filhos nao tem infcio com a separagio, mas sto fruto das ; dificuldades do vinculo pais-filhos, em parte devidas & prépria hist6ria da pessoa com I insatisfat6ria, seus pais e também aos reflexos da vida con) Esta autora observa que a adaptago & separagdo é mais prolongada quando os filhos tém uma relago boa e agradavel com ambos os pais. Nesses casos, a perda da convivéncia didria com os mesmos é mais dificil de aceitar Quando o relacionamento é cheio de atritos, conflitos e tensdes, e 0 filho é ex: cessivamente cobrado, exigido, perseguido ou relegado a segundo plano, a perda da convivéncia didria pode vir a ser um grande alfvio. “Isto, evidentemente, nao quer dizer que nao haja dor nem perda: ninguém se separa sem dor ¢ & impossfvel que os filhos passem por esse perfodo a salvo, inteiramente resguardados dos acontecimen- tos” (Maldonado, 1991, p. 138). Como em outras fases do ciclo de vida, em que as questdes emocionais nio-resol- vidas permanecerdo obstaculizando relacionamentos futuros, as tarefas emocionais de~ vem ser completadas pelos membros da familia que se separa. Isso inclui elaborar luto pelo que foi perdido e manejar sentimentos como magoa, raiva, culpa, vergonha. As familias que nio conseguirem resolver adequadamente essas questdes podem permank cer emocionalmente paralisadas por anos, ou por geragdes (Carter e McGoldrick, 19 AUTOCONCEITO Nem todas as pesquisas sio undnimes em afirmar que os adolescentes de familias, intactas possuem um autoconceito mais elevado do que as familias cujos pais estio 152 Levenfus, Soares & Cols, separados. Porém, a pesquisa de Magagnin, Barros, Busetti e Bertoletti (1997) verifi- cou que os adolescentes com autoconceito elevado so filhos de pais que vivem ju tos. Nessas mesmas varidveis, os filhos de pais separados apresentam um autoconceito baixo ou médio-baixo, Magagnin e colegas (1997), pesquisando a possibilidade de alteragdes no auto- conceito do adolescente de ambos os sexos frente ao sistema familiar intacto e ndo- intacto, & adaptagdo escolar, a0 relacionamento com iguais e a0 comportamento destru- tivo em dreas urbanas de alto risco de desastres, perceberam que existe uma satisfa- ‘clo familiar que corrobora uma boa relacZo com os pais, sendo que a seguranga pes- soal tende a ser reforgada quando os pais vivem juntos. Em familias cujos pais vivem juntos, segundo esses autores, o adolescente apre~ senta: alto indice de autocontrole; alto indice de seguranga pessoal; uma tendéncia de alto indice de self-moral; indice de self-somitico baixo e médio-baixo; autoconceito elevado. Em familias cujos pais vivem separados, 0 adolescente apresenta: prejuizo da seguranga pessoal; baixo autocontrole; baixo rendimento escolar; mais freqiiéncia no uso de drogas; médio indice de self-moral, {indice de autoconceito baixo ou médio-baixo. Sendo a adolescéncia um periodo critico, com caracteristicas proprias, sujeito a crises de identidade relacionadas com as influéncias socioculturais, quanto melhor sucedidas forem as experiéncias e vivéncias do adolescente, mais positivo parece ser ‘© conjunto de percepcdes a respeito de si mesmo. “O autoconceito do adolescente se torna significativo para o desenvolvimento adequado ao longo das etapas que ele percorre no ciclo vital familiar” (Magagnin ¢ cols., 1997, p. 15). Na adoleseéncia, as dreas do desenvolvimento, como aspiragées profissionais, valores do papel sexual, autoconceito, sentimentos de competéncia e realizago, podem ser influenciadas pela ruptura familiar (Barber e Eccles, 1992, citados por Magagnin e cols., 1997), Esses mesmos autores destacam que familias sem o pai sdo consideradas incompletas e contribuem para uma auto-estima baixa, delingliéncia, abandono. Em sua pesquisa, Andrade (1997) observou que uma famflia bem-estruturada, na qual 0 individuo recebeu uma carga adequada de energia grupal e pode desenvol- ver-se harmoniosamente dentro de uma dindmica grupal saudvel, na qual o indivi- duo péde amadurecer sendo respeitado como tal e respeitando os demais, na qual os limites de cada um foram observados e os potenciais individuais adequadamente otimizados e promovidos, gerard, certamente, individuos mais seguros ¢ altivos, ca- pazes de estabelecer com a vida de trabalho uma relagdo construtiva e prazerosa. Por outro lado, uma familia na qual o individuo se desenvolveu de forma deficitéria ou destrutiva, gerard sujeitos inseguros e limitados nos seus potenciais ocupacionais. Orietagio Vosonal Ocupacional_153 3 estudos chegaram a conclusio de que a separagd ito dos filhos, uma vez que a percepsio dos confli as dificuldades ao ajustamento social e pessoal do gnin e cols., 1997, p. 15) dos pais denota um impacto tivo no autoco os familiares ide do casal aume Andolfi e Angelo (1989) e Magagnin e colegas (1997) enfatizam que a familia ta cria um autoconceito mais positivo, principalmente nos aspectos que dizem respeito ao relacionamento afetivo, as aquisigdes escolares, as amizades e a autono- mia. O grupo familiar, portanto, assegura uma coesio interna e uma protegiio externa, propiciando um sistema de atividades que possui um valor normativo para a organi- zagiio dos instintos ¢ das emogGes dos individuos, ajudando o adolescente a discrimi nar o real do imaginétio. ASPECTOS REFERIDOS POR FILHOS DE PAIS SEPARADOS QUE BUSCARAM ORIENTACAO PARA ESCOLHA DA PROFISSAO) Durante o primeiro encontro de Orientagdo Vocacional (que foi gravado e trans: crito para fins de aniilise de contetido), esses orientandos fizeram diversas referéncias concretas dirigidas a informar sobre o recasamento dos pais, irmios oriundos de ou- tro casamento, com quem moram, € a observagdo de outros casos de separagio na familia. Enfocam sua relagdio com os pais, oscilando entre referir bom relacionamen- to com os mesmos, até em afirmar que desconhecem o pai por sua total auséncia, Eles apontam as magoas vividas em fungo da separagio e o sentimento de que antes era melhor. Essa tnica confere ao tema da escolha profissional algumas singu- laridades descritas a seguir. Negagio e idealizagio O grupo formado somente por filhos de pais separados, se comparado aos de- mais grupos pesquisados, & 0 que mais nomeia as profissdes de que gosta ¢ 0 que menos aponta desejos ocupacionais da infiincia, apresentando um engajamento alto na tarefa da escolha futura sem muito resgate de lembrangas das escolhas infantis. Isso remete a questo da elaboraco dos lutos pelas escothas infantis. Escolher implica a perda dos outros objetos que serdo deixados. A medida que a decisio pro- fissional vai-se integrando 3 hist6ria do adolescent, a elaboracao do luto fica Facili- tada, E comum que 0 adolescente expresse sentimentos de tristeza, solidio, ambiva- lencia ¢ culpa no processo de elaboragao, Observa-se, também comumente, que nesse processo 0 adolescente recorde e recupere acontecimentos antigos, projetos abando- nados, Jembrangas passadas, integrando-os e vinculando-os a decisdes atuais (Bohoslavsky, 1982; Neiva, 1995; Levenfus, 1997a). O fato de quase nada disso ocorrer esse grupo faz pensar que esses jovens, oriundos de casamentos desfeitos, podem apresentar dificuldades na elaboracdo de lutos, preferindo negar o passado. A dificuldade em lidar com a perda encontra respaldo também no fato de que, além de esse grupo nio ter feito formulagdes negativas acerca das profissOes, esses, jovens tendem a se manifestar apenas de forma extremamente positiva ~ negando idealizando as profissdes, percebendo apenas suas boas qualidades e desprezando a percepciio das partes que desvalorizam, Tal fato, acrescido da forma como os filhos 154 _Levenfus, Soares & Cols. revelam que os pais lidam com o trauma da separagio, dando regalias, parece refor- ar a tendéncia a negar a perda e a lidar de forma manfaca com a mesma: “Depois da separagio, os pais ficam dando algumas regalias para que aqueles proble- ‘mas fiquem escondidos; para que voc® esqueca que aquilo foi traumitico.” De fato, em recente entrevista dada a revista Veja, Wallerstein (2000) afirma estar provado que filhos de casais separados sofrem mais de depressio e apresentam maior dificuldade de aprendizado do que os provenientes de familias intactas. Embo- ra alguns pesquisadores (Wagner, Falcke e Meza, 1997) apontem que as conseqiiénci- as do divércio nos filhos diminuem, a medida que esse se torna mais comum ¢ aceité- vel. Wallerstein (2000) coloca que é uma bobagem imaginar que, 86 porque hé varios colegas do filho de pais separados passando pelo mesmo sofrimento, isso reduza 0 dele. Segundo ela, esse fato nio o faz sentir-se melhor; a experiéncia do divércio & dolorosa e irrepardvel para qualquer um. A forma com que os jovens pesquisados perceberam apenas positivamente 0 mundo ocupacional aponta para uma tendéncia a relacionar-se de forma dissociada com 0 objeto. Nao estando preparados para defrontar-se com ansiedades depressivas, alguns jovens tendem a manté-lo idealizado a fim de conservé-lo, jé que deparar-se com todos os seus aspectos pode lev-lo a desvalorizagao completa, ao abandono ¢ ao sentimento de que nada resta, como ocorreu na categoria em que referiram o pai E. fessem se defendendo do trabalho de luto que ocorre no processo de desidealizagao frente ds carreiras (Leventfus, 1997a; 1997b), COMPORTAMENTO EVITATIVO FRENTE A TOMADA DE DECISAO ‘Uma das maiores ansiedades que acomete os filhos de pais separados pesquisados no momento da escolha profissional diz respeito & tomada de decisio. Eles apresen- tam um comportamento evitativo referindo ndo estarem preparados ainda, sendo cedo para fazé-lo. Isso se contradiz. com seus constantes apontamentos a respeito das pro- fissdes que lhes interessam. Foi 0 grupo que mais nomeou as profissdes de seu inte- resse atual com alto engajamento na tarefa da escolha futura € o que mais referiu 30 tema pa fo eategorizado apenas pelo grupo formado por filhos de pai separados. Como segue: E oheio de problemas: 0 pai é cheio de problemas, stb, cle soir de depressio; i vees ele comega a grit; entrar Bebe: ele bebe muito; agora ele tem exagerado na bebida std sempre desempregad: meu pa est sempre desempregado. ‘Nao ganha muito ele nfo ganha muito, quando srruma um emprego ele mal se sustenta, Nunca den nada: meu pai manca pagow nada, Joga: 0 dinheio na mao do meu pai nfo para: 0 dia em que ela (mée) sala do servigo com dinbero cle 8 0 omprometia antes de ela chegar em casa £ acomodado: 0 meu pai €um pouco acomodado; le disse que se a minha mae no ivsse emprego fix af ele ia se reocupar mesmo. £E mentiroso: ele disse que nunca ia deixar nada nos falta. Nao assumiv a gravides ndo dé notcas; tem poucaescolaridade Contribui com alguma coisa: contribu com alguma cise, muito pouco, mas conta adorao que fr; rabalhador; pens nos Filho. Orintago Voceconal Ocupaconal 15 ansiedade relacionada ao temor de escolher errado. Tal fato leva a lembrar Bohoslavsky (1982), a respeito de um comportamento tipicamente fdbico que, nessa situagao, leva osujeito a recorrera velhos e conhecidos padres mesmo quando manifestam conscien- temente o desejo de resolugio. E claro que devemos manter em pauta as questdes reais e jd estudadas a respeito do quanto é cedo para resolver a problemdtica vocacional no momento do término do ensino médio, mas esse tipo de contetido foi referido apenas no grupo de jovens com pais separados. E poss{vel que este grupo possa estar fazendo manobras de adiamento, mantendo a crise adolescente em aberto, como refe- re Blos (1996), em vista da crise malresolvida da separaco dos pais. Filhos de pais separados queixam-se que € dificil escolher, novamente fazendo referéncias a sentirem-se pressionados a tomar decisdes prematuras, fato exemplificado com situagdes em que a escolha pelo curso deu-se to somente na hora da inscri¢do para o vestibular. O medo de escolher errado Verbalizagdes apontando um grande medo de escolher errado aparecem com énfase bem maior nesse grupo pesquisado (filhos de pais separados) do que nos de- ‘mais. Como formularam varias verbalizagdes com contetidos especificos a esse tema, foi possivel dividi-las em trés itens: + Ter que mudar: tenho medo de abragar uma profissdo e depois ver que esco- Ihi errado; se deixar para mudar tarde, podem haver sérias consequéncias; para mudar é preciso ter condigdes de mudar. Relacionar com casamento falido: para que que a gente vai atropelar os passos se a gente jé viu?; em casa foi uma escolha que no deu certo; a escolha de uma profissio nao deixa de ser como em um casamento. Pensar muito: 6 bom organizar as idéias e pensar muito bem antes; eu posso olhar de todos os ngulos, de repente, ndo precisa errar Sabemos que a consolidagio da identidade profissional é uma das tltimas tare fas da adolescéncia, e a clientela que busca Orientago Vocacional nem sempre est em fase adiantada de conclustio do processo adolescente (Osério, 1986; Outeiral, 1994, e Levenfus 1997c). Véem-se empurrados por uma cultura que dita, em nosso pafs, que a escolha por uma profissdo deve ocor a ‘mento esse que nem sempre coincide com a maturidade necesséria a essa tarefa Apesar de pensar que esse tema seja justificado pelas circunstancias citadas, 6 importante lembrar que essa temitica foi discutida somente pelos membros do grupo formado por filhos de pais separados. Por isso, podemos observar que, além dos te- mores naturais ocasionados pela necessidade de decidir, esses jovens apresentam medo exacerbado de errar na escolha, com base nos acontecimentos familiares. E not6ria e direta a relagdo que o grupo faz entre o medo de ter que mudar sua escolha profissional ea vivéncia do casamento falido que, segundo eles, constituiu-se em uma mé escolha conjugal por parte dos pais. De fato, diversos autores pesquisados por Wagner ¢ colegas (1997) apontam que, além dos problemas que filhos de pais separados podem apresentar com respeito as suas relagées interpessoais, eles também podem casar-se precocemente ou ter medo quanto ao seu futuro casamento. Na ques- {Go em estudo interpretamos medo quanto as suas escolhas futuras, gerando impulsi- vidade ou adiamento da decisio profissional. 156 _Levenfus, Soares & Cols. Relagiio casamento-profissiio Eo tinico grupo pesquisado que faz relagdes entre escolha conjugal escolha profissional, entre casamento e profissio. Filhos de pais separados pensam que, assim como no casamento, na profissio € preciso que a pessoa aprenda a se relacionar bem com as demais sob o risco de no conseguir se estabilizar. Acreditam que 0 casamento, assim como a profissiio, deveria ser escolha para a vida toda e que uma escolha profissional malfeita afetard o resto da vida do sujeito. De um lado, manifestam-se verbalizagdes diretas no sentido dessa relagdo; de outro, so encontradas preocupagdes quanto a garantir 0 futuro de forma independen- te de uma relagdo conjugal: Relagao direta: 0 casamento € uma troca, bem como a escolha da profissio, voce vai escolher uma profissio, vai ter que lidar com pessoas; 0 casamento é para a vida toda, a escolha (da profissio) vai afetar o resto da minha vida. Quero poder sustentar os meus filhos: quero poder pagar os estudos dos ‘meus filhos; que eu consiga ter a minha casa propria. A questo da escolha conjugal, que remete a temas tais como o amor deve estar presente, teve seu representante na questio da escolha profissional com as aborda- fens de que é imprescindivel gostar do que se faz. Esse conte‘ido foi explicitado de forma imperativa para a idéia de que, para realizar determinada escolha, € preciso {gostar do objeto, Referem a escolha profissional com termos que relacionam paixio pela profissio a felicidade e a mé escolha a estados de infelicidade. ‘De fato, o adolescente sofre imensamente quando apenas durante o curso perce- be que a decisao estava incorreta. Brooks (1959) jd sugeria que o fracasso na escolha exerce influéncias negativas na personalidade do jovem, tais como tendéncia a desen- volver atitudes de inferioridade e inibicdo de seus ésforgos para outros direcionamentos, sendo conveniente orientar 0 jovem no sentido de prevenir esse tipo de fracasso. ‘Os orientandos, em especial os filhos de pais separados, concentraram a maior parte das falas sobre mercado de trabalho em um espectro negativista quanto ao mes- ‘mo. Mas sua marca principal é uma angistia ligada & idéia de que se ndo tem merca- do, nao adianta fazer o que se gosta, e também nao adianta escolher pelo mercado, {quando nfo se gosta da profissio. Existe o grande desejo de poder conciliar 0 gosto ‘com 0 mercado, mas a angiéstia & a de que essa conciliagdo seja impossivel. Se néio tem mercado, néio adianta fazer 0 que se gosta: para fazer a minha escolha, eu penso que nao adianta optar por algo que eu adoraria fazer mas que no tenha muita recompensa depois; de que adianta fazer cinco anos de ‘uma coisa que vocé goste e na hora no ter onde trabalhar? Eu queria unir 0 Util ao agradavel, ter uma profissdo que eu goste e que tenha bom mercado. Nao é bom escother sé pelo mercado: tanta coisa que no conseguimos levar adiante; ou vocé continua sem gostar. De fato, a pesquisa de Lassance, Grocks e Francisco (1993) apontou que os jovens que procuram decidir a profissao centrados na facilidade ¢ na amplitude de possibilidades de insergio no mercado de trabalho no parecer ocupar-se com as priticas profissionais especificas, demonstrando imenso desconhecimento acerca de cada uma das profissdes envolvidas em suas escolhas. Orientago Vocacional Ocupaional Utilizando-me da maxima: nem s6 de pao vive 0 homem, citamos Odorizzi e Rosiski (1997), que colocam que, quando se aborda a questo do trabalho, pensa-se ser 0 trabalho, como fonte de renda e subsisténcia, uma das maiores preocupagdes do ser humano. Entretanto, o trabalho deve ter muitos outros significados para o indivi duo; seja como realizador de potencialidades individuais, seja como elemento que possibilita a realizagao dos tempos culturais, dos tempos ideolgicos ¢ dos tempos de lazer, assegurando plena satisfago e equilfbrio do homem como cidadiio. ‘Tendo vivenciado a separagdo dos pais, esses orientandos discutem a questio da presenga ou auséncia de amor pelos objetos como fundamental na idéia de continui- dade da vinculaco. Eles temem ter que trocar de escolha por nio gostar do curso ¢ temem ser dificil manter esse casamento s6 por amor, sao enfiticos ao apontar que casamento ndo é um conto de casal, um amor embaixo da ponte, indicando que virias outras questdes implicam a manutencao do casamento, Dessa forma, referem, por Go vai ser feliz; se trabalhar o resto da vida exemplo: se ndo é 0 que vocé quer, voce com uma coisa que vocé nito gosta, vocé vai ser infeliz Autoconceito superpositivo E interessante observar a contradigo apresentada por esses jovens. Assim como os orientandos dos demais grupos pesquisados, estes jovens colo- cam a maior parte do lacus de controle como externo na questtio do mercado de trabalho, ou seja, pensam que o ingresso no mercado de trabalho depende muito mais da conjuntura externa do que das capacidades e potencialidades do individuo. Em contrapartida, este foi o tinico grupo a fazer referéncias exclusivamente po- sitivas ao seu autoconceito, inclusive relacionando-as com éxito nas tarefas esperadas pela profissio, Estes orientandos demonstram pensar que sua situagio Thes coloca em vantagem, Eles acham que filhos de pais separados tém mais iniciativa, responsabili- dade, determinagdo, tém pais mais empenhados, so mais alegres que os demais. Eles verbalizam que os filhos de pais separados adotam as seguintes atitudes: ; + Tomam a dianteira/ mais iniciativa: nos trabalhos em grupo, a gente sempre fazia tudo; a gente sempre acabava levando todo mundo nas costas; eram sempre os mesmos que tomavam a dianteira Sao mais responsiveis Esto prontos para lutar mais, Sao mais determinados. Sio mais pra cima. Tém pais mais empenhados. Enfrentam as dificuldades: vou lé na frente e apresento 0 trabalho, niio que eu nfio tenha medo, niio trema; todo mundo sente medo por um trabalho que apresenta, + Tém um bom discurso: eu sentia Direito, + Gostam de chamar a + Sio sociaveis Sio prestativos. eu tinha um bom discurso para fazer jengdo: de estar lA na fren ncia comega mais cedo para filhos de io. Boa parte das criangas passa a ocu- Wallerstein (2000) coloca que a adoles familias que sofreram um processo de separag: 158 Levenfus, Soares & Cos. par-se dos problemas da mie e, algumas vezes, dos conflitos do pai. Nao raro elas tém de desenvolver por conta prépria seus conceitos de moralidade. As mais velhas ten- dem a cuidar dos irmiios mais novos, como se fossem adultos. E isso é vantajoso? Na opinido do grupo, sim, Mas sera que essas atribuigdes favoreceriam a entrada do individuo no mercado de trabalho, segundo a orientagao da nova ordem mundial? Se pensarmos essa questo sob 0 prisma do movimento atual de substituir a nogdo de qualificacdo pelo chamado modelo da comperéncia, talvez pudéssemos con- siderar essa observaco. A partir do resgate que fez das diversas construg6es concei- tuais da nogo de competéncia, Manfredi (1998) identificou um conjunto de conota- Ges hist6rica e socialmente constru‘das referentes a essa nogdo, que poderia ser as- sim resumido: um desempenho individual racional ¢ eficiente visando & adequagio entre fins € meios, objetivos e resultados; uum perfil comportamental de pessoas que agregam capacidades cognitivas, socioafetivas e emocionais, destrezas psicomotoras e habilidades operacio- nais, adquiridas através de percursos ¢ trajet6rias individuais (percursos es- colares, profissionais ¢ outros), atuacdes profissionais resultantes, prioritariamente, de estratégias formativas agenciadas e planificadas visando a funcionalidade e a rentabilidade de um determinado organismo e/ou subsistema social. Diante desse quadro, 0 mercado que rege as relagdes sociais de produgdo exige profissionais que saibam aprender e que estejam abertos ao novo, que sejam capazes de pensar 0 seu proprio fazer e que 0 fagam de forma coletiva. ‘Uma das contradigdes desse grupo pesquisado esté na dificuldade do fazer coleti- vo. Os jovens expressaram contetidos relativos a sua falta de confianga nas pessoas € sua tendéncia a preferir trabalhar isoladamente. Pela 6tica do grupo, é melhor ndo de- ender dos outros, com os outros ndo se pode contar. O grupo € enfético em afirmar que no dé para confiar nos outros, que acabam faltando com sua parte nas obrigagdes, ora referindo-se aos colegas de escola em trabalho de grupo, ora ao pai. Concluimos, entio, que os otientandos pesquisados, filhos de pais separados, manifestaram sentimentos perfeitamente cabiveis nos tempos atuais. No entanto, a0 imaginarem-se com melhores qualidades que os demais jovens, seria de se esperar que se sentissem mais fortalecidos quanto ao ingresso no mercado de trabalho, o que nilo ocorreu. Deixamos em aberta a questio de se esses jovens se apercebem de uma sobreadaptacio, de sua pseudo-independéncia, assumida por forgas das circunstanci- as (separacdo dos pais) ou simplesmente da realidade do mercado de trabalho. Pai desvalorizado versus mie competente O pai é um tema de discussio somente nesse grupo. E muito significativa a representagio desvalorizada que esse grupo tem da figura paterna. Na grande maioria das falas, 0s jovens descrevem 0 pai como sendo cheio de problemas psiquidtricos, alcoolista, jogador compulsivo, desempregado, sem capacidade de se sustentar e de ajudar 0s filhos, ausente, despreocupado com os filhos e mentiroso, dentre outras. Em, uma quantidade bem menor sio feitas referéncias a um pai que contribui com alguma coisa (pensio), que é trabalhador, que gosta do que faze que pensa nos filhos. Orientagio Vocacional Ocupacional 159 A auséncia de um modelo paterno, segundo algumas pesquisas, contribui para 0 aparecimento de dificuldades na consecugao de tarefas desenvolvimentais no ambito vocacional (Young, Friesen e Pearson, 1988), Bastante diversa da imagem do pai est a imagem da mie. Esta é tida como uma mulher batalhadora, trabalhadora, concursada, independente, que ganha bem ¢ que gosta do que faz, “minha mae pagou a faculdade dela”; “passou no concurso do Mi io em primeiro lugar”; “ela ganha bem 1a”. Lassance e cols. (1993) constataram a expressiva presenga da influéncia paterna nas escolhas vocacionais de sujeitos de ambos os sexos. O pai € comumente referido como um modelo, enquanto a mie freqiientemente aparece como conselheira. Segui do a fala do grupo, os filhos de pais separados parecem apresentar uma inversio nesses valores identificat6rios. Medo de depender dos outros A questilo da separaciio, com todas as queixas referentes a falta de participagio adequada do pai, parece desencadear nesse grupo a temitica da dependéncia. Embora este tema —a dependéncia ~ esteja presente em todos os grupos estudados, é no grupo de filhos de pais separados que predomina uma generalizada falta de confianga, Pela tica do grupo, é melhor nao depender dos outros, com os outros néo se pode contar. * Nao dé para depender dos outros: se eu fosse depender do meu pai eu esta- ria perdida; por isso eu acho que somos assim (desconfiados dos outros); j& aconteceu também de eu depender de alguém e acabar fazendo 0 trabalho sozinho; nunca me esquego de uma vez. que tive que fazer um trabalho em. grupo e ninguém fez nada; eu nao gosto de depender de ninguém. + As pessoas dependem das outras para trabalhar: se a pessoa for trabalhar em algum lugar ela vai ser contratada por alguém; de certo modo ela depen- de dos outros; precisa ter alguém que precise daquele servigo. O grupo € enfatico em afirmar que nao dé para confiar nos outros, que as pessoas acabam faltando com sua parte nas obrigagées. Ora refere-se aos colegas de escola em trabalho de grupo, ora refere-se ao pai. Mulher e trabalho O grupo composto por filhos de pais separados foi o ‘nico que debateu acerca da mulher como trabalhadora. Eo tinico grupo no qual todas as mées so trabalhadoras. Ocontetido é bastante percebido pela ética da separagio e percebe-se uma gran- de preocupagao quanto ao futuro. Eles fazem projetos no sentido de que sua profiss40 seja capaz de Ihes garantir 0 sustento pessoal e o de seus filhos como se estivessem prevendo um futuro de separagao. E como se estivessem querendo se prevenir da situagaio financeira que suas mies vivenciaram com a separacio. ‘A tendéncia principal é a de achar que a mulher no pode contar com o homem para prover o seu sustento e o de seus filhos. Eles exemplificam o quanto suas maes tiveram perda no poder aquisitivo depois da separagiio, em decorréncia da auséncia do pai como provedor e da dificuldade dos mesmos em manter a penso em dia: Levenfus, Soares & Cols. Nao pode contar com o homem: se minha mie dependesse do meu pai, esta ria perdida; como é que a mulher fica se 0 marido nao tem condigao de dar uma pensao fixa?; nao dé para ficar esperando demais pelos outros; todas as mulheres separadas com as quais eu convivi tinham emprego e batalhavam. Em quantidade bem menor, surge a idéia de que as mulheres precisam trabalhar para auxiliar no orcamento doméstico em vista da economia do pats: + Precisa ajudar no orgamento: as mulheres estio trabalhando cada vez mais porque hi necessidade; porque os maridos nao estavam conseguindo arcar com todas as despesa. Algumas referéncias foram feitas no sentido de apontar que, em decorréncia da separaciio, a mulher se torna competitiva com o ex-marido, Segundo a fala do grupo, as mulheres separadas, com raiva do ex-marido, querem ir para o mercado de trabalho para sustentar melhor a familia do que o parceiro seria capaz + Quer ser melhor que 0 ex-marido: se 0s filhos ficarem com ela, ela vai se preocuparem ser melhor que 0 ex-marido dela, vai se empenhar para susten- tar toda a familia, CONSIDERAGOES FINAIS A familia de hoje esté mudando, e 0 efeito desta outra mudanga social no mo- mento da escolha profissional é importante de ser compreendido. As entradas e saidas de novos membros repercutem nos processos identificatérios que, para Bohoslavsky (1982), estio na base das escolhas profissionais. A influéncia familiar no momento da escolha profissional é inquestiondvel deve ser analisada 4 luz das mudangas, do efeito que tém nos processos identificat6rios e na construco da subjetividade daque- le que escolhe (Oliveira, 1999). Muitos outros aspectos observados encontram-se mais detalhados na disserta- ‘do originada da pesquisa. A intengio deste capitulo foi a de abrir uma reflexio acer- ca das peculiaridades apresentadas especificamente por esse grupo de Orientagio Vocacional - composto apenas de jovens, filhos de casais separados, com dificulda- des no momento da escolha profissional, com vistas a auxiliar 0 orientador vocacional em suas hipéteses diagnésticas e operacionais. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANDRADE, T.D. A familia e a estruturagio ocupacional do individuo. In: LEVENFUS, R.S. et al Psicodinamica da escotha profissional. Porto Alegre: Artes Médicas (Artmed), 1997. p.123-134. ANDOLFI, M.; ANGELO, C. 0 tempo ¢ mito em psicoterapia familiar, Porto Alegre: Artes Mé (Artmed), 1989. BARDIN, L. Andlise de conterido. Lisboa: Edigdes 70. 1991 BLOS, P. Transigo adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas (Artmed), 1996. BOHOSLAVSKY, R. Orientagdo vocacional: a estratégia clinica. Si0 Paulo: Martins Fontes, 1982, BROOKS, FD. Psicologia de la adolescencia, 2.ed. Buenos Aires: Kapelusz, 1959

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