Você está na página 1de 4

Aula 1 

: Introdução ao estudo da Idade Média: Idade das Trevas ou Idade os


Homens (História Medieval, vol. 1, Aula 1, pp.7-29)

‘Introdução: Por que se interessar pela Europa Medieval?’ (BASCHET, J. A Civilização


Feudal.  Do Ano Mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. pp.23-46)

O objetivo da Aula 1 é conhecermos as interpretações do conceito de Idade Média para


refletirmos sobre sua construção e seu uso. O conceito de Idade Média apresenta a sua própria
historicidade uma vez que foi pensado e interpretado como contraponto do presente no qual
essas interpretações estão circunscritas, mas também em relação à construção de um futuro
pretendido, no qual o discurso nacionalista e a construção da Nação, na Europa, são suas
manifestações mais significativas.

No caso do Brasil e da América Latina o estudo do período medieval do Ocidente Europeu se


situa em dois níveis. Primeiro, para compreendermos a dinâmica do processo histórico global,
para compreendermos nossas heranças ibéricas culturais, sociais, políticas e econômicas.
Segundo, como um importante exercício de reflexão historiográfica, para compreendermos a
escrita da história e os avanços da historiografia. Mas também, para repensarmos o lugar do
Ensino da História diante das políticas educacionais atuais. Conhecer o outro, o aparentemente
distante, é um exercício de alteridade.

Atualmente, de forma paradoxal, enquanto na escola o conteúdo de história antiga e  medieval,


bem como a filosofia e a sociologia, perdem espaço no currículo, podemos considerar que esses
períodos estão na moda. Vemos filmes, jogos, feiras, apropriações culturais diversas dos temas
antigos e medievais. Dessa forma, nossa intenção como professores e historiadores é a de
repensar esse imaginário para buscar uma melhor compreensão histórica dessas sociedades
desconstruindo mitos, aqueles ligados aos conceitos de barbárie, de obscurantismo - a Idade
Média como Idade das Trevas - bem como aqueles ligados aos discursos nacionalistas
construídos no século XIX.

O termo Idade Média – Media Aetas - foi concebido no século XIV primeiramente pelo poeta e
humanista florentino Petrarca (1304-1374), mas foi em 1469 na obra do bibliotecário pontifical
Giovanni Andrea Bussi (1471-1475) que encontramos a primeira utilização do termo “Idade
Média” como a denominação de um período específico na história distinguindo os homens
da media tempestas dos homens de seu tempo (é preciso,  entretanto, considerar que os homens
‘medievais’ conheciam os conceitos de antiguidade e de modernidade). Assim, seu uso se torna
corrente a partir do século XVII, o termo ‘dark ages’ começa a ser usado por eruditos ingleses. O
historiador alemão Christoph Keller, ou Cellarius, (1638-1707), na sua História Universal periodiza
a Idade Média como o espaço de tempo entre a elevação de Constantino como imperador de
Roma (312) e a tomada de Constantinopla (Império Romano do Oriente) em 1453.  Assim, no
período renascentista o termo Idade Média está atrelado à cultura, às artes, à retomada de
autores gregos e latinos clássicos, opondo-se assim à suposta barbárie do latim medieval e da
formação das línguas vernáculas que corrompiam a verdadeira cultura. Roma é assim central
nessa contagem do tempo. Nesse sentido, a Roma antiga e a Itália renascentista (dividida por sua
vez entre repúblicas, papado e império) são os paradigmas desse processo de periodização
histórica. Mas, convém lembrarmos que o conceito de Renascimento também foi construído,
nesse caso pelo historiador francês Jules Michelet (1798-1874), que o utiliza na sua aula inaugural
no Collège de France em 23 de abril de 1838. Porém, foi com o historiador da cultura Jacob
Burckhard (1818-1897), em sua obra A cultura do Renascimento na Itália, que o termo se
consagrou.

Podemos considerar então que o termo Idade Média é construído por oposição a um momento e
a um espaço históricos: o humanismo italiano, mas também por oposição a um processo, que
veremos adiante, que é o das conturbações dos séculos XIV e XV com a peste, as revoltas rurais e
urbanas e a Guerra dos Cem Anos.

O segundo período que contribuiu para uma imagem negativa da Idade Média foi o Iluminismo e
o discurso revolucionário que culminou com a Revolução Francesa que romperia com as
instituições feudais: a Monarquia e a Igreja.  Filósofos como Montesquieu (1689-1755), Voltaire
(1694-1778) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) cristalizam a ideia de que a Idade Média é o
posto do que está por vir: a Razão, o Estado as Leis e a Laicidade. Mas, cristalizaram também os
conceitos de feudalidade, de vassalidade, de servidão, que atualmente a historiografia se esforça
em compreender.  O historiador Alain Guerreau, considera que no século XVIII opera-se uma
dupla fratura conceitual expressadas por Rousseau que concebe o conceito de religião e por
Adam Smith (1723-1790) com o conceitos de economia e mercado.

Mas, é na virada dos séculos XVIII e XIX que a Idade Média ganha novas colorações. O
romantismo e o historicismo alemães contribuem para buscar nas origens da Europa no
momento das migrações germânicas, seu passado guerreiro e triunfante. A França, por sua vez,
dividida entre monarquia e república, após a derrota napoleônica, busca também sua identidade
nacional, sua etnogênse, questionando-se se é gaulesa (Celta), germânica (Franca), ou latina (a
herança cultural e linguística da romanização). Esse jogo identitário que constrói o Estado-Nação
leva, nesse momento à guerra Franco-Prussiana e a unificação da Alemanha em 1870 e, um
pouco mais tarde, à Grande Guerra (1914-1918).

O Reino-Unido, com Inglaterra, germanizada em bloco com as migrações anglo-saxãs, pode,


entretanto, buscar suas raízes Celtas (Irlanda, Escócia e País de Gales). Portugal e Espanha se
dividem entre o passado celta, a romanização, as migrações germânicas e construção precoce do
Estado monárquico que vai ser enaltecido nos governos fascistas do século XX, rejeitando toda e
qualquer contribuição árabe e judaica na civilização ibérica.

Para desenvolvermos esse tópico utilizaremos as observações do historiador Patrick Geary em


seu livro, O Mito das Nações: As Origens Medievais da Europa, aonde critica de forma veemente a
utilização do passado na construção do nacionalismo étnico através de conceitos como ‘aquisição
primária’ e ‘comunidades imaginadas’ elaborado por Benedict Anderson (Imagined Communities :
reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Londres, 1983.). Sua argumentação consiste
no fato de que no século XIX a ideia e os instrumentos para a elaboração de um discurso
histórico nacionalista e identitário surgiram simultaneamente. O Romantismo alemão nas figuras
dos filósofos Johann Gottfried Herder (1744-1803), Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e dos
linguistas Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhem Grimm (1786-1859), buscando as origens históricas
e linguísticas, através dos cantos populares, folclóricos, contos, documentos criaram o
instrumento e o método historiográficos, a  Filologia, o estudo das línguas, que proporcionou
descoberta das raízes linguísticas comuns dos chamados povos indo-europeus. Daí, rapidamente,
as academias de ciências, as universidades, a organização dos arquivos públicos e históricos
compilaram e editaram uma vasta documentação. O resultado mais importante desse movimento
historicista é a Monumenta Germaniae Historica patrocinada pelo barão Von Stein a partir de
1819 e retomada pelo grande historiador Theodore Mommsen (1817-1903). A Arqueologia, ou a
etno-arqueologia também contribuiu para a afirmação dos movimentos de caráter nacionalista.
Com a descoberta de sítios arqueológicos e com uma concepção racista da antropologia, muitas
vezes se supunha que por um determinado povo estar ali antes da dominação de outro
justificaria a reivindicação desse território. O exemplo dado pelo autor é o do discurso
nacionalista e racista que culminou com a guerra, na antiga Iugoslávia, em 1990 e o genocídio
dos Bósnios. Assim, através do discurso histórico nacionalista são construídas ‘comunidades
imaginadas’, fundamentadas em um passado idílico e ‘puro’ de raça, cultura e língua e
consequentemente de território. Para o autor, constrói-se uma “pseudo-história que parte do
princípio de que os povos da Europa são distintos e estáveis, unidades socioculturais
objetivamente identificáveis, e são diferenciados pela língua, pela religião, pelos costumes e pelo
caráter nacional, que não são ambíguos nem mutáveis.” – povos “supostamente formados em um
momento remoto da Idade Média, quando esse processo de formação terminou uma vez por
todas” (Geary, P. 2005). Esse critério étnico que define um território ocupado milenarmente
implica a ideia de ‘aquisição primária’ e um ‘raciocínio circular’ que deslegitima os processos
migratórios e as fusões biológicas, linguísticas e culturais.

Seria importante lembrarmos a conferência proferida em 1882 por Ernest Renan (1823-1892): ‘O
que é uma Nação?’ na qual ele afirma que uma Nação não é um território, língua ou religião, mas
um plebiscito diário formado por aqueles que lutaram e viveram juntos.

As implicações nacionalistas da história medieval ainda estão em vigor, basta vermos a


apropriação pela extrema direita dos mitos fundadores como El Cid na Espanha, Joana d’Arc na
França, o discurso supremacista branco que se utiliza da moda Viking...Uma das funções, para
Patrick Geary, do historiador medievalista é justamente a de desconstruir esse uso nacionalista e
perverso do passado histórico para repensarmos o processo migratório que construiu os povos
europeus modernos na sua ampla diversidade, compreendermos a historicidade dos seus
próprios paradigmas identitários, e para tanto devemos retornar as fontes.

Esse retorno às fontes, com novos questionamentos, foi o movimento empreendido pela Escola
dos Annales inaugurando uma nova forma de escrever a história e uma ‘Outra Idade Média’
como bem expressou Jacques Le Goff. É essa outra Idade Média que iremos explorar ao longo do
curso. Mas, diante do exposto acima, se a Idade Média parece estar ainda atrelada ao
nacionalismo e etnocentrismo europeus “Por que se interessar pela Europa Medieval?”.
Buscaremos responder a essa questão juntamente com Jérôme Baschet.

Jérôme Baschet escreve seu manual A Civilização Feudal.  Do Ano Mil à colonização da América,
para seus alunos da Universidad Autónoma de Chiapas, no México aonde busca empreender uma
síntese ou compilação da historiografia recente sobre a Idade Média desconstruindo o senso
comum no qual a Idade Média seria um período de trevas, estagnação econômica e anarquia
política. Mas, o autor acaba por explicitar, conforme Jacques Le Goff afirma no prefácio, a ideia de
uma ‘Idade Média de Longa Duração’ (importante lembrarmos do conceito braudeliano de longa
duração’) que ultrapassaria o recorte tradicional do século XV e adentraria o século XVIII
justamente embasado na ideia de Alain Guerreau, da qual fizemos menção, de uma dupla fratura
conceitual de Religião e Economia e Le Goff acrescenta o tempo linear e a história, a razão e a
ciência. Mas Baschet vai mais longe ao se questionar sobre a legitimidade do estudo de história
medieval em terras americanas e reafirma uma herança medieval no Novo Mundo, pois, a
“descoberta não surge de um ‘simples apetite de riqueza ou de um desejo de conversão dos
índios, tornada possível graças às caravelas”, ele estabelece “que ela se deveu ao dinamismo
próprio do sistema feudal, que está longe de ser um sistema de estagnação e é muito mais um
regime construído para o crescimento e desenvolvimento interno e externo, em torno de um
poder senhorial de dominação”. (Le Goff, prefácio, p. 17). Além disso, Baschet procura, como em
um estudo comparatista ‘articular de maneira global sociedade medieval e sociedade colonial e
(de) captar a dinâmica histórica que as une, em um processo em que se misturam reprodução e
adaptação, dependência e especifidades, dominação e criação.” (Baschet, p.32). Para finalizar,
Baschet ainda afirma: “Aplicar à Idade Média o quadro de uma história nacional, herdada do
século XIX, significa privar-se de compreender sua lógica profunda.” (Baschet, p.33). 

Você também pode gostar