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Aula 14

A história e sua
relação com o
tempo presente
História e Documento

Metas da aula

Apresentar e discutir a relevância e os desafios da história do tempo presente.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

1. compreender que a distância temporal não é critério para a objetivação do


conhecimento histórico;
2. compreender que o papel ativo do historiador e o seu método na reconstrução
dos processos sociais do passado é rigorosamente o mesmo na reconstrução dos
processos sociais do tempo presente.

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

INTRODUÇÃO

Você se lembra em que ponto da história o seu professor do


Ensino Médio concluiu o programa? Na Guerra Fria? Na Ditadura
Militar? Na queda do muro de Berlim? Na globalização? No governo
do presidente Fernando Henrique Cardoso? Você lembra quando?
Por exemplo, se você estivesse no Ensino Médio hoje (2008), o
seu professor abordaria em sala de aula os temas contemporâneos
relacionados aos dois mandatos do presidente dos Estados Unidos,
George W. Bush, à violência no mundo ocidental, ao terrorismo, à
guerra do Iraque, à eleição de Barack Obama e à crise econômica
iniciada em setembro de 2008?

Quais são os temas e as épocas propriamente históricas? Será


que essa pergunta tem sentido? Pense nos nossos familiares; qual é o
conceito de história que eles têm em mente? “É o estudo do passado”,
diria o meu pai. Bem, até que ponto da “linha do tempo” vai então o
passado? Até um segundo? Até ontem? Até cinco, dez, vinte anos...
Tudo bem, você retrucaria, “o tempo não é uma linha, o tempo é
múltiplo, são várias as temporalidades e a experiência humana do
tempo”. Excelente! Mas o meu pai não sabe disso assim como a
maior parte da sociedade. Para eles há uma linha do tempo em que
os acontecimentos – aceitando a boa redundância – “acontecem”.

Mas quem fez a sociedade em geral pensar assim? Os histo-


riadores europeus do século XIX. Você se lembra? Eles sentiram a
necessidade de tornar a história uma ciência e, para tal, ela devia
ser “objetiva”. Como o padrão de referência científico na época era
dado pelas ciências da natureza (Física e Biologia, por exemplo),
a história deveria se adequar ao método dessas ciências para se
integrar ao seleto grupo de saberes respeitados. E quais eram as
exigências da objetividade nas ciências da natureza? Havia obje-
tividade quando o conhecimento produzido expressava isenção,
imparcialidade e neutralidade.

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Todos nós podemos nos imaginar neutros durante o exame


de uma rocha e imparciais perante uma briga entre chimpanzés...
Porém, como ser neutro e imparcial diante dos processos sociais,
por exemplo, do holocausto nazista no final da Segunda Guerra
Mundial (1938-1945)?

Figura 14.1: Civis apresentados ao horror, 1945.


Fonte: http://isurvived.org/Holocaust-definition.html

Não dá, não é mesmo? Um dos recursos utilizados para


praticar alguma objetividade – isto é, uma objetividade assemelhada
a das ciências da natureza – foi tratar apenas de processos
sociais já distantes no tempo e com, pelo menos, 20 ou 30 anos
decorridos. A idéia embutida nesse procedimento é dar tempo ao
tempo, serenar os ânimos e equilibrar os julgamentos para que
o historiador (observador) pudesse analisar os processos sociais
(acontecimentos) sem estar misturado ou ser influenciado por eles.
Segundo esse pensamento, não era apenas desaconselhável, era
de fato impossível submeter os acontecimentos contemporâneos ao
estudo científico da história.

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

Muita responsabilidade foi depositada na distância, no simples


passar do tempo. E mais, o prazo de 20 ou 30 anos é absolutamente
arbitrário. Vamos fazer um teste? Veja a foto do holocausto uma vez
mais. Já se passaram mais de 60 anos, e duvidamos que alguém
consiga permanecer frio e imóvel diante dela. Pelo contrário, ela
causa indignação, desequilíbrio e assombro. Ela fere a humanidade.
Mas não foi o próprio homem quem cometeu essa atrocidade? Foi
sim, e só sabemos disso por causa da história.

Alguns criminosos nazistas foram processados e julgados em


Nuremberg (Alemanha), pelo Tribunal Militar Internacional, em
1945. Anos mais tarde, em 1961, em Jerusalém (Estado de Israel),
foi julgado Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela deportação de
judeus para os campos de concentração, que havia sido seqüestrado
num subúrbio de Buenos Aires (Argentina) por um comando israelense.
A filósofa Hannah Arendt fez a cobertura do que chamou “julgamento-
espetáculo” para um jornal norte-americano e que depois se transformou num
livro publicado em 1963. Não deixe de lê-lo. É uma aula de como escrever
sobre os acontecimentos no exato instante em que acontecem com crítica
radical, discernimento científico e rara inteligência, relacionando-os com
o passado e com os princípios do pensamento humanista contemporâneo.
Podemos considerar o livro uma obra de história do tempo presente. Hannah
Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, São
Paulo, Companhia das Letras, 2007.

Hannah Arendt (1906-1975)


Fonte: http://library.gmu.edu/resources/
german/German%20page%20images/
Hannah_Arendt_by_Fred_Stein_2.jpg

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Mas será que precisamos deixar o tempo passar para saber o


que é uma atrocidade? Será que precisamos nos “ausentar” do presente
para poder julgá-lo cientificamente? Você já deve ter notado que quando
um professor de História aborda qualquer temática contemporânea
sempre tem alguém perguntando se isso não é tarefa da sociologia ou
da antropologia como se o historiador fosse um “deficiente do tempo
presente”, isto é, como se o seu método e o seu discernimento científicos
não estivessem capacitados para abordar um tema atual.

Pois é, o que foi regra ontem não é mais. Hoje em dia não
existe mais esse negócio de o historiador não poder tratar de temas
contemporâneos. Por quê? Por duas razões. Em primeiro lugar,
porque o conceito de objetividade científica não é mais o mesmo.
A objetividade idealizada do século XIX verificou-se impossível, mesmo
para as ciências da natureza. Como conseqüência, não se exige mais
que as ciências humanas imitem as ciências naturais. Em segundo
lugar, porque se percebeu que a distância temporal não é critério
confiável de objetividade científica. O fato de algo ter acontecido há
muito tempo atrás não nos livra dos juízos de valor, dos preconceitos,
das influências ideológicas etc.

Pelo contrário, se a história se define como diálogo entre o


presente e o passado, se formos descuidados na crítica do presente, aí
mesmo é que transportaremos para o passado aquilo que ali não estava.
A passagem da história historizante para a história-problema exige o
desenvolvimento da história contemporânea, isto é, da história do tempo
presente, porque, afinal, toda história é história contemporânea.

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

1. Atende ao Objetivo 1

Leia com atenção esta parte do livro Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, e
responda às perguntas que se lhe seguem.

O caso de consciência de Adolf Eichmann, que é realmente complicado, mas de


modo nenhum único, não é comparável ao caso dos generais alemães, um dos quais,
quando lhe perguntaram em Nuremberg, “Como é possível que todos vocês, honrados
generais, tenham continuado a servir um assassinato com lealdade tão inquestionável?”,
respondeu que “não era tarefa de um soldado agir como juiz de seu comandante
supremo. Que a história se encarregue disso, ou Deus no céu”. (Era o general Alfred
Jodl, enforcado em Nuremberg.) Eichmann, muito menos inteligente e sem nenhuma
formação, percebeu pelo menos vagamente que não era uma ordem, mas a própria
lei que os havia transformado a todos em criminosos. Uma ordem diferia da palavra
do Führer porque a validade desta última não era limitada no tempo e no espaço – a
característica mais notável da primeira. Essa é também a verdadeira razão pela qual a
ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos
e diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por
meros administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como
uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser
um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito eficientemente para
dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade.

E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo
mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam
às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”,
embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era
contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal

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perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem – a qualidade
da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria
deles, devem ter sido tentados a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos
partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados
para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis),
e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes, tirando proveito deles. Mas Deus
sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação (ARENDT, 2007, p. 167).

a. O general nazista afirmou que ele não podia julgar as ordens de Hitler. Esse julgamento
caberia a Deus e à história. Quanto a esta, certamente o general confiava no passar do
tempo, na sua qualidade dissipadora que supostamente depura os aspectos secundários
e deixa o substancial como verdade de uma época. À luz do que já analisamos, você
concorda com esse pensamento? Justifique.
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b. Qual é o significado da distinção que Hannah Arendt considera ter feito Eichmann
entre “uma ordem” e “a palavra do Führer”? Esse significado é muito importante porque
constitui uma etapa importante do método histórico.
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c. A palavra “Deus” aparece duas vezes no texto: a primeira, na boca do general nazista;
a segunda, a última frase é referida aos alemães, nazistas ou não. Explique o jogo feito
com a palavra “Deus”.
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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

Respostas Comentadas
a. Não. O passar do tempo não é mais um critério aceitável para o estabelecimento do
juízo histórico porque a verdade sobre o passado não depende da parte substancial que
sobreviveu, mas da qualidade do diálogo crítico estabelecido entre o presente e o passado pelo
historiador. De fato, o general nazista encontrou uma saída para se eximir da responsabilidade
por seus atos.

b. “Uma ordem” diz respeito à responsabilidade de um indivíduo em particular enquanto “a


palavra do Führer” era a própria lei daquela sociedade em geral, por isso foi sucedida por
uma série de outras ordens e regulamentos com determinações de grande alcance. O passo
metodológico dado aqui é relacionar a especificidade do acontecimento com a sua dimensão
mais geral, isto é, a relação entre o geral e o específico. Desse modo, não só Eichmann pode
ser compreendido assim, mas o próprio Hitler.

c. Na primeira vez, o general tenta passar a idéia de que os seus atos não podem ser julgados
pelos homens que ali o processam, isto é, ou serão julgados por homens muito distanciados
no tempo (a história) ou por Deus, que está imensamente distante e inalcançável no céu. Na
segunda vez a autora, com fina ironia, refere-se indiretamente ao “Deus” citado pelo general
para mostrar que a população alemã não aprendeu nada com “Deus” sobre a tentação, que
é o critério para identificação do mal.

A problemática do documento atual

Qual é a diferença entre os documentos usualmente utilizados


para a construção de uma história ancorada num passado longínquo
e os documentos utilizados na história do tempo presente? Qual é a rela-
ção entre o historiador e os documentos nesses dois tipos de história?

Vamos primeiro ao documento para depois discutir a relação


entre este e o historiador. Vejamos esta bela passagem de Lucien
Febvre:

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Um documento de história, esse pólen milenário. A história


faz com ele o seu mel. A história, que se edifica, sem
exclusão, com tudo o que o engenho dos homens pode
inventar e combinar para suprir o silêncio dos textos, os
estragos do esquecimento...” (FEBVRE, 1989, p. 24).

O documento é o pólen, antigo, muito antigo, milenário mesmo.


O pólen é a matéria-prima para a abelha-historiador fazer o mel da
história. Com a história referida ao passado, o documento é tudo
aquilo que ficou depois de processado os estragos do esquecimento.
Mas mesmo no documento há silêncios. O texto que ficou nunca diz
tudo. Sempre se perde algo.

E com a história referida ao presente, a história do tempo


presente? Você poderia dizer: “Ah, ainda não deu tempo para o
tempo estragar os documentos. Tá tudo aí!” Isso mesmo, “tá tudo
aí”. Mas mesmo esse tudo não diz tudo e, por outro lado, esse tudo
é um excesso. Como? Há muitas fontes disponíveis. Veja bem, com
a história referida ao passado podemos dizer que as sociedades
ao longo do tempo se encarregaram de “selecionar” (voluntária ou
involuntariamente) os documentos. Por isso não restaram tantos. Já com
a história referida ao presente não dispomos dessa “pré-seleção”.

Mas por que falar de “pré-seleção”? Retornemos a Lucien


Febvre: a história se edifica com tudo o que o engenho dos homens
pode inventar e combinar. Desse modo, a seleção que vale é a feita
pelo historiador. Sem dúvida que este também é sociedade, mas a
responsabilidade final é dele, historiador. Ele é um ser ativo nesse
processo de construção da história. Quando esta se refere ao passado,
ele usa a sua inteligência (engenho) para inventar e combinar e para,
por outro lado, criticar e desconstruir as invenções e combinações feitas
pelos homens em sociedade e que chegaram com matéria-prima, como
documentos, até o momento em que ele pratica o seu ofício.

E quando a história é história do tempo presente? Muda muito


pouco. O papel ativo do historiador. por exemplo, é o mesmo. A “pré-

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

seleção” é que está em curso, isto é, o trabalho social de depuração dos


acontecimentos, de valorizar alguns e esquecer outros, está em processo.
E o historiador mergulhado nele como membro da sociedade que a faz.

Alguns historiadores dizem que isso dificulta bastante o seu


trabalho, outros vêem apenas como o mesmo tipo de trabalho
acrescentado das dificuldades específicas que sempre se encontram
em cada época pesquisada, seja a Antiguidade, a Idade Média
ou o Tempo Presente. E, por conta disso, cabe ao historiador do
tempo presente desenvolver metodologias que dêem conta dessas
dificuldades, a exemplo dos seus colegas de ofício de outras épocas.
Não há, portanto, qualquer empecilho para se produzir uma história
científica sobre os processos sociais do mundo contemporâneo.

Praticando a história do tempo presente

Não há “receita de bolo” para fazermos história. Aliás, mesmo


para fazermos um bolo só a receita não basta. Você já notou que
sempre queremos ver como a pessoa fez o bolo? Assim se passa
com a história. Só aprendemos a fazê-la com quem a faz.

Como dar forma à crítica do presente? Como relacionar os


temas contemporâneos a partir da crítica radical e segundo uma lógica
científica que explicite os interesses em jogo, colocando-os frente a
frente para que possamos descortinar os sentidos do movimento da
realidade social no exato instante em que ela se move?

Vamos acompanhar o raciocínio de um dos mais notáveis


historiadores do nosso tempo, Eric Hobsbawm. Leia com atenção
o texto que se segue. Trata-se de uma conferência intitulada
“A ordem pública em uma era de violência” que ele proferiu em 2006
(HOBSBAWM, 2007, p. 138-151). Portanto, bem contemporânea.
Em seguida, responda às questões propostas.

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Um dia, na década de 1970, a Associação dos Chefes


de Polícia disse ao governo britânico que já não havia
condições de impedir desordens públicas nas ruas, como
antes, sem uma nova lei de segurança pública. Poucos
anos depois, creio que no começo da década de 1980, fui
convidado a um colóquio em um lugar da Noruega e notei
que o folheto de propaganda do hotel em que se realizava
o evento — um centro de convenções normal em um lugar
turístico de belas paisagens — proclamava que as janelas
do edifício eram à prova de balas. Na Noruega? Sim, na
Noruega. Quero começar esta conferência com esses dois
incidentes. Nossa era tornou-se mais violenta, inclusive nas
imagens. Não há dúvida a respeito. Esta conferência é
sobre o que isso significa e sobre como os governos podem
proporcionar proteção à vida normal dos cidadãos. Ela
se refere sobretudo à Grã-Bretanha, onde o aumento da
violência pública (revelada nos índices de criminalidade) é
particularmente expressivo. Mas o problema não se limita

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a um único país. Nem se refere apenas ao terrorismo.


O tema é muito mais amplo. Inclui, por exemplo, a violência
nos campos de futebol, outro fenômeno historicamente novo
que surgiu na década de 1970.

Como sugere minha lembrança da Noruega, é patente


que grande parte dessa violência é possibilitada pela
extraordinária explosão da oferta e disponibilidade global
de armas destrutivas poderosas que estão ao alcance de
pessoas e grupos privados. Armas baratas e portáteis, que
podem ser manuseadas por qualquer um. Originalmente, isso
era uma conseqüência da Guerra Fria, mas, como esse é
um negócio lucrativo, a produção continuou a aumentar. Em
todas as décadas desde a de 1960, o número de empresas
que produzem essas armas vem aumentando, especialmente
na Europa ocidental e na América do Norte. Em 1994, havia
trezentas companhias em 52 países no negócio das armas
pequenas, 25% mais do que em meados da década de 1980.
Em 2001, a estimativa já era de quinhentas empresas. Em
outras palavras, os Kalashnikovs, rifles de assalto AK-47,
desenvolvidos originalmente na União Soviética durante a
Segunda Guerra Mundial, são uma forma absolutamente
terrível de arma leve e, de acordo com o Bulletin of the
Atomic Scientists, algo como 125 milhões deles circulam
hoje pelo mundo. Podem ser encomendados pela internet,
pelo menos nos Estados Unidos, em Kalashnikov USA. Quanto
aos revólveres e às facas, quem é que sabe?

Mas é evidente que a desordem pública, mesmo na forma


extrema do terrorismo, não depende de equipamentos
caros e de alta tecnologia, como ficou demonstrado em 11
de setembro de 2001. Os seqüestradores dos aviões que
destruíram as Torres Gêmeas só estavam armados com facas
pequenas. Os grupos armados mais duradouros, como o IRA e
o ETA, utilizam sobretudo explosivos, alguns dos quais podem
ser feitos em casa. Os perpetradores do atentado de 7 de

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julho de 2005 em Londres produziram seu próprio explosivo.


E, se os informes mais recentes forem corretos, esse massacre
custou aos seus autores apenas umas centenas de libras no
total. Além das suas vidas, naturalmente. Assim, ainda que
saibamos que o mundo de hoje está mais cheio de coisas
que matam e mutilam do que em qualquer outro período da
história, esse é apenas um dos dados do problema.

Está mais difícil manter a ordem pública? Claramente, os


governos e os dirigentes empresariais pensam que sim.
O tamanho das forças policiais na Grã-Bretanha aumentou
em 35% desde 1971. Para cada 10 mil cidadãos havia, ao
final do século, 34 agentes de polícia, em comparação com
24,4 trinta anos antes (um aumento de mais do que 40%).
E não estou sequer contando o meio milhão de pessoas que se
estima estarem empregadas nos ofícios de segurança, como
guardas e profissões semelhantes — setor da economia que
se multiplicou nos últimos trinta anos, desde que a Securicor
sentiu-se suficientemente grande para ter suas ações cotadas
na Bolsa, em 1971. No ano passado já havia umas 2500
firmas nessa área. Como se sabe, a desindustrialização da
Grã-Bretanha gerou um grande número de pessoas sadias para
as quais conseguir um emprego como guarda de segurança é
uma das poucas oportunidades de trabalho disponíveis. Pode-
se dizer que a economia, em vez de basear-se no princípio
de que “um ajuda o outro”, pode um dia basear-se na oferta
maciça de empregos em que “um vigia o outro”.

Não é só o emprego de mão-de-obra que aumenta. Também


aumenta o emprego da força. Os especialistas em controle
de massas dispõem hoje de quatro tipos principais de
instrumentos para enfrentar manifestações violentas: químicos
(por exemplo, gás lacrimogêneo); “cinéticos”, como armas de
dispersão, balas de borracha etc.; jatos de água; e tecnologias
de atordoamento. Aqui está uma lista de países que ilustra as

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variações entre o enfoque tradicional e o moderno no campo


real do controle de massas. A Noruega não emprega nenhum
dos quatro; Finlândia, Holanda, Índia e Itália, apenas um, a
saber, do tipo químico. Dinamarca, Irlanda, Rússia, Espanha,
Canadá e Austrália usam dois; a Bélgica e os pesos pesados
Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido e mais a
pequena Áustria têm os quatro tipos prontos para a ação. É
evidente que a Grã-Bretanha, que antes se orgulhava de que
sua polícia andava completamente desarmada, já não vive
no mesmo mundo ordeiro da Noruega ou da Finlândia.

Como ocorreram esses desenvolvimentos? Acho que duas


coisas estão acontecendo. A primeira é a reversão do que
Norbert Elias analisou em uma obra chamada O processo
civilizador: a transformação do comportamento público no
Ocidente a partir da Idade Média. Ele se tornou menos
violento, mais “educado”, mais atencioso; inicialmente no
seio de uma elite restrita e depois em escalas mais amplas.
Mas hoje isso já não é verdade. Já nos acostumamos
tanto a ouvir xingamentos em público e ao uso coletivo de
linguagem deliberadamente rude e ofensiva que quase não
nos lembramos de quão recente é essa alteração, em termos
comparativos. Porra e merda há muito tempo são expressões
comuns entre homens especializados em atividades rudes,
como soldados — embora eu não conheça nenhum Exército
ocidental que tenha o mesmo repertório de obscenidades dos
russos. De toda maneira, depois da guerra, quando deixei o
Exército, onde me familiarizei com essa prática, voltei para
um mundo de palavras mais doces. Com certeza, nenhuma
mulher usava esse tipo de linguagem, que só começou a surgir
como prática social ampla na década de 1960. Lembrem-se
de que antes dessa década a palavra “puta” ainda não fazia
parte da cultura impressa. A palavra “fuck”, por exemplo, só
foi incorporada a um dicionário britânico em 1965, e a um
americano em 1969.

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Ao mesmo tempo, as regras e convenções tradicionais


enfraqueceram-se. Parece claro, por exemplo, que a
delinqüência juvenil — entre catorze e vinte anos de idade
— começou a crescer desproporcionalmente na segunda
metade da década de 1960. Jovens do gênero masculino,
estimulados pela testosterona e pela afirmação sexual, sempre
foram turbulentos, sobretudo quando se organizam em grupos,
algo que supostamente se mantinha dentro de limites por ser
tolerado em ocasiões especiais. Isso se aplicava também
aos jovens bem-educados, como os membros do “Clube dos
Vagabundos”, dos livros de P. G. Wodehouse. Lembrem-se de
que a propensão que eles tinham para derrubar o capacete
da cabeça dos policiais nas noites de corrida de barco levou
Bertie Wooster para a cadeia de Vine Street. Mas não é apenas
a erosão das regras e das convenções sociais, e sim também a
erosão das convenções e das relações no seio da família que
transformaram os rapazes no que os vitorianos chamavam de
“classes perigosas”. Não vou mais falar sobre isso nem sobre
o processo mais longo de barbarização do século XX, que
levou até a situações de escândalo, quando alguns ideólogos
do Ocidente chegaram a oferecer justificativas intelectuais para
a prática da tortura, mas é claro que ele pesa na balança.

O segundo fenômeno, mais direto, também teve início na década


de 1960. Trata-se da crise do tipo de Estado em que todos nos
acostumamos a viver no século passado — o Estado nacional
territorial. Antes desse ponto de inflexão, durante 250 anos o
Estado vinha ampliando seus poderes, recursos, espectro de
atividades, conhecimento e controle sobre o que acontece no
seu território. Esse desenvolvimento ocorreu independentemente
da política e da ideologia: ocorreu nos Estados liberais,
conservadores, comunistas e fascistas. Alcançou o auge nos
anos dourados do “estado de bem-estar” e da economia mista
depois da Segunda Guerra Mundial. Mas tudo isso estava
baseado na premissa anterior do monopólio da lei e da justiça
estatal sobre outras leis (por exemplo, o direito religioso ou o

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direito costumeiro). O mesmo é válido para o monopólio do uso


da força armada. No transcurso do século XIX, a maior parte dos
Estados do Ocidente eliminou a posse e o uso de armas (salvo
para o uso desportivo) por parte de todos os cidadãos, exceto
seus próprios agentes, e mesmo a prática dos duelos no seio
da nobreza (os Estados Unidos têm uma posição de flagrante
exceção nesse campo, entre os países desenvolvidos, pois tem
uma taxa crescente de homicídios nos últimos dois séculos,
contra uma taxa decrescente na Europa). Na Grã-Bretanha, as
convenções chegaram a proibir o uso de facas e adagas em
lutas, por ser “antiinglês”, e criaram regras para as lutas de boxe
e assemelhadas — as Regras de Queensberry. Em condições de
estabilidade social, até o poder oficial passou a sair desarmado
em público. No Reino Unido, os policiais só andavam armados
na Irlanda do Norte, conhecida pelo seu potencial insurrecional,
mas não na ilha maior. As revoltas públicas, arruaças e marchas
foram institucionalizadas, ou seja, reduzidas ou transformadas
em manifestações cada vez mais pré-negociadas com a polícia.
O prefeito de Londres, Ken Livingstone, acaba de recordar aos
chineses que isso é o que acontecia no Hyde Park e na Trafalgar
Square desde a época vitoriana. Isso era verdadeiro mesmo
em países que consideramos propensos à violência urbana,
como a França, independentemente das palavras de ordem
incendiárias das manifestações de massa. Por isso a grande
revolta estudantil de 1968 em Paris não causou praticamente
nenhuma morte em nenhum dos dois lados. O mesmo vale para
as mobilizações recentes que derrubaram a nova lei de empregos
para a juventude francesa.

Mas há outro elemento no enfraquecimento do Estado: a lealdade


que os cidadãos lhe devotam, assim como sua disponibilidade
para fazer o que o Estado lhes pede, estão erodindo. As duas
guerras mundiais foram lutadas por exércitos de recrutas — ou
seja, por soldados cidadãos preparados para matar e morrer
aos milhões “por seu país”, como se diz. Isso já não acontece.

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Duvido que qualquer governo que dê algum direito de escolha


aos seus cidadãos nessa matéria — e mesmo vários dos que não
dão — possa fazê-lo. Esse é, certamente, o caso dos Estados
Unidos, que aboliram o serviço militar depois da Guerra do
Vietnã. Mas, de maneira mais discreta, isso também se aplica
à disposição dos cidadãos a cumprir a lei — ou seja, o senso
de que a lei tem uma justificação moral. Se sentimos que uma
lei é legítima, ela é logo acatada. Nós acreditamos que os
jogos de futebol realmente precisam de árbitros e bandeirinhas
e confiamos a eles o exercício de uma função legítima. Se não
o fizéssemos, quanta força seria necessária para manter o jogo
em ordem? Muitos motoristas não aceitam a justificação moral
das câmeras de controle de velocidade e por isso não hesitam
em burlá-las. E, se vocês conseguirem trazer para casa algum
contrabando, ninguém vai pensar mal de vocês. Quando a lei
carece de legitimidade e o respeito a ela depende sobretudo do
medo de ser apanhado e punido, é muito mais difícil mantê-la
vigente, além de ser mais caro. Acho que há pouca dúvida de
que hoje, por várias razões, os cidadãos têm menos propensão
a respeitar a lei e as convenções informais do comportamento
social do que antes.

Além disso, a globalização, a vasta ampliação da mobilidade


das pessoas e a eliminação em grande escala dos controles
fronteiriços na Europa e em outras partes do mundo tornam
cada vez mais difícil para os governos controlar o que entra
e sai dos seus territórios e o que ocorre neles. É tecnicamente
impossível controlar mais do que uma fração mínima do
conteúdo dos contêineres que transitam pelos portos sem
reduzir o ritmo da vida econômica diária quase pela metade.
Os traficantes e os comerciantes ilegais valem-se amplamente
dessa facilidade, assim como da incapacidade dos Estados
de controlar ou mesmo monitorar as transações financeiras
internacionais. O estudo mais recente desse fenômeno, o livro
Ilícito, de Moisés Naim, diz com franqueza que “na luta contra

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o comércio ilícito global os governos estão fracassando [...].


Não há simplesmente nada no horizonte que aponte para uma
rápida reversão dessa situação para as miríades de redes [...]
do comércio ilícito”.

Todas essas coisas têm causado uma forte diminuição nos


poderes dos Estados e dos governos nos últimos trinta anos.
Em casos extremos, eles podem até perder o controle de partes
dos seus territórios. A Agência Central de Inteligência (CIA)
identificou, em 2004, cinqüenta regiões do mundo sobre
as quais os governos nacionais exercem pouco ou nenhum
controle. “Mas”, citando novamente o livro de Naim sobre
a economia ilegal, “na verdade é raro encontrar-se hoje um
país que não tenha bolsões de ilegalidade que, por sua vez,
estão bem integrados em redes globais mais amplas.” Em
casos menos extremos, é possível para os Estados estáveis
e florescentes, como o Reino Unido e a Espanha, conviver
durante décadas com pequenos grupos armados em seus
territórios, como o IRA e o ETA, que os governos não são
capazes de eliminar por completo. E isso apesar do fato
evidente de que as informações de que dispomos sobre os
países e as populações são hoje muito maiores do que no
passado. Embora a capacidade tecnológica das autoridades
públicas para observar os habitantes, escutar suas conversas,
ler seus e-mails e, como na Grã-Bretanha, vigiá-los com
inumeráveis câmeras de TV de circuito fechado supere a de
qualquer governo no passado, é provável que eles tenham
menos conhecimento do que seus predecessores a respeito de
quem são e até quantas são as pessoas que estão nos seus
territórios em qualquer momento determinado, onde elas vivem
e o que fazem. Os organizadores dos censos atuais têm muito
menos confiança nas suas informações do que tinham até a
primeira metade do século XX — e com boas razões.

Esses fatores explicam por que mesmo Estados que funcionam


bem tiveram de ajustar-se, em certa medida, a um grau muito

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História e Documento

mais alto de violência não-ofícial do que no passado. Pensem


na Irlanda do Norte nos últimos trinta anos. Graças a uma
combinação da força com arranjos tácitos, a governança efetiva
e a vida normal, o que inclui os movimentos de entrada e de saída
da província, tiveram prosseguimento apesar de uma situação
de quase guerra civil. Em todo o mundo os ricos ajustam-se à
ameaça dos pobres violentos formando condomínios fechados,
mais visíveis em áreas de expansão imobiliária recente. Estima-se
que existem cem deles na Inglaterra, pequenos na maior parte
dos casos, o que não é nada em comparação com os 7 milhões
de famílias que vivem nessas verdadeiras fortalezas nos Estados
Unidos, mais da metade das quais são comunidades “em que o
acesso é controlado com portões, códigos, cartões magnéticos
e guardas”. Com o aumento da violência, essa tendência vem
crescendo rapidamente, o que pode ser confirmado por qualquer
pessoa que tenha estado no Rio de Janeiro ou na Cidade do
México ao longo destes anos. Há algo que se possa fazer para
controlar essa situação?

Duas perguntas surgem. Primeira: os problemas de ordem


pública podem ser controlados em uma era de violência?
A resposta tem de ser afirmativa, embora não se saiba ainda
em que medida. A violência nos campos de futebol é um
exemplo de como isso pode e vem sendo feito. Ela surgiu
como fenômeno de massas recorrente na Grã-Bretanha
na década de 1960 e foi amplamente copiada em outros
países. Chegou ao ponto máximo na década de 1980, com
os terríveis incidentes de Bradford e as 39 mortes no estádio
Heysel, em Bruxelas, durante a final da Copa da Europa entre
o Liverpool e a Juventus. Falou-se muito na necessidade de
medidas extremas, como cartões de identidade compulsórios,
mas, na verdade, desde então o “hooliganismo” reduziu-se
muito na Grã-Bretanha com o emprego de métodos mais
moderados, que incluem modificações técnicas, como a venda
de ingressos exclusivamente para lugares sentados, circuitos
fechados de televisão, melhor inteligência e coordenação,

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

táticas policiais mais seletivas— o isolamento dos hooligans


já conhecidos além, ou melhor, em vez da “contenção”
geral dos torcedores visitantes tanto dentro quanto fora do
estádio. Paralelamente, a polícia desenvolveu a capacidade
de concentrar-se em incidentes mais sérios, uma vez que o
controle da ordem dentro dos estádios foi transferido para
os funcionários dos clubes locais. Todas essas coisas são
mais caras, muito mais caras, tanto em termos de dinheiro
quanto de trabalho. Foram necessários 10 mil homens para
policiar o Euro 96 na Grã-Bretanha. Não vi as estimativas
de gasto em dinheiro e trabalho para Copa do Mundo da
Alemanha, no verão de 2006. Mas o fato é que a melhoria
foi obtida sem as medidas extremas inicialmente sugeridas.
Nova York também é um lugar bem mais seguro do que era,
como podem atestar todos os que se lembram de como a
cidade era perigosa e suja nas décadas de 1970 e 1980.
Na medida em que isso se deve ao prefeito Rudy Giuliani,
pode ser atribuído muito mais a mudanças nas táticas da
polícia (tolerância zero) do que aos acréscimos feitos ao seu
armamento, que já era impressionante.

Isso nos leva à segunda pergunta: qual deve ser a proporção


entre força e persuasão, ou confiança pública, no controle
da ordem pública? A manutenção da ordem em uma era
de violência tem sido mais difícil e mais perigosa, inclusive
para os policiais, que usam armas e tecnologias cada vez
mais robustas, destinadas a repelir os ataques físicos, e se
assemelham a cavaleiros medievais com escudos e armaduras.
A polícia sofre a tentação de ver-se como um corpo de
“guardiães”, com conhecimentos profissionais especializados,
separada dos políticos, dos tribunais e da imprensa liberal, e
criticada, com ignorância, por todos eles. O mundo de hoje
— e não apenas fora da Europa — está cheio de aparelhos
policiais e serviços de segurança que estão convencidos de
que, independentemente do que os governos e a imprensa

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História e Documento

digam em público, não é o estado de direito e sim a força (e,


se necessário for, a violência) o que assegura a manutenção
da ordem, e também de que essa atitude tem o apoio pelo
menos tácito tanto dos governos quanto da opinião pública.
No Reino Unido, depois da tranqüilidade das décadas de
1950 e 1960, a reação inicial à nova situação, com o IRA, as
greves dos mineiros e os distúrbios raciais, foi a de aumentar
a hostilidade e levar as confrontações a um nível quase militar,
mesmo na ilha principal. O enfrentamento com os terroristas
promoveu a militarização da polícia. A orientação de “atirar
para matar” provocou diversas vítimas inocentes e, diga-se,
evitáveis — a mais recente das quais foi o brasileiro Jean
Charles de Menezes. No entanto, felizmente a Grã-Bretanha
ainda não chegou, como é a tendência no continente europeu,
ao ponto de dotar-se de esquadrões especiais antidistúrbios,
como o CRS da França.

Por outro lado, duas coisas fazem parte da sabedoria


básica da polícia. A primeira é que os policiais não são
utópicos e não pensam em eliminar o crime de uma vez
por todas; ele tem de ser reduzido e controlado para que a
população civil viva em paz. Isso faz com que os policiais
vejam com ceticismo as cruzadas políticas e, por outro lado,
também pode tentar alguns para o caminho da corrupção.
A segunda, ainda mais pertinente, é que as pessoas que
compõem a ordem pública devem ser protegidas, e não
antagonizadas enquanto os policiais isolam e perseguem os
“baderneiros”. A força ostensiva ou excessiva, em especial
quando dirigida contra grupos, pode antagonizar, se não o
público como um todo, os grandes grupos que supostamente
podem conter uma proporção maior de maus elementos:
negros, adolescentes de áreas degradadas, asiáticos, ou
quem quer que seja. Se assim for feito, os riscos para a
ordem pública se multiplicarão. Um bom exemplo desse tipo
de situação ocorreu nos distúrbios do Carnaval de Notting
Hill, na década de 1970, desencadeados por uma operação

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

policial de revistas pessoais destinada a deter punguistas, que


afetou um número excessivo de pessoas e foi tomada pelos
circunstantes como um ataque racial dirigido contra negros.
Esse é um perigo real. Durante o tumulto de Brixton, em 1981,
ninguém duvida de que a polícia agiu como se todos os negros
fossem arruaceiros potenciais, o que exacerbou as relações
com o público local. Felizmente, durante os problemas da
Irlanda do Norte, as forças policiais britânicas resistiram à
tentação de considerar todos os irlandeses da Grã-Bretanha
como membros potenciais do IRA. A manutenção da ordem
pública, seja em uma era de violência ou não, depende do
equilíbrio entre a força, a confiança e a inteligência.

Na Grã-Bretanha, em circunstâncias normais, descontados os


descontroles ocasionais, pode-se ter confiança, grosso modo,
no equilíbrio estabelecido pelo governo e pela força pública.
Mas, desde o Onze de Setembro, as circunstâncias já não
são normais. Estamos nos afogando em uma onda de retórica
política a respeito dos perigos terríveis e desconhecidos que vêm
do estrangeiro — a histeria das armas de destruição em massa,
a inadequadamente chamada “guerra contra o terrorismo”
e a “defesa do nosso estilo de vida” — e contra inimigos
externos mal definidos e seus agentes terroristas internos.
Trata-se de uma retórica que visa mais arrepiar os cabelos
dos cidadãos do que enfrentar o terror — com objetivos que
deixo a vocês a tarefa de identificar, pois arrepiar os cabelos e
criar o pânico é exatamente o que os terroristas querem fazer.
O objetivo político deles não é atingido pelo ato de matar, e sim
pela publicidade dada aos seus atos, que quebra a moral dos
cidadãos. Na época em que a Grã-Bretanha tinha um problema
terrorista real e contínuo, ou seja, as operações do IRA, a regra
fundamental seguida pelas autoridades encarregadas da luta
contra o terror era, tanto quanto possível, não dar nenhuma
publicidade aos atos de terror e não anunciar as contramedidas
a serem tomadas.

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História e Documento

Vamos então livrar-nos dessa balela. A chamada “guerra


contra o terror” não é uma guerra, exceto no sentido
metafórico, assim como quando se fala da “guerra contra
as drogas” ou da “guerra entre os sexos”. O “inimigo” não
tem condições de derrotar-nos nem de causar-nos danos
volumosos. Recente estudo sobre o terrorismo global, feito pelo
Departamento de Estado americano em 2005, enumera —
sem contar o Iraque, que é uma guerra de verdade — 7.500
ataques terroristas no mundo inteiro, com 6.600 vítimas, o
que sugere que a maioria dos ataques falhou. Estamos
enfrentando terroristas articulados em pequenos grupos,
semelhantes àqueles aos quais já estamos acostumados
há muito tempo — mas com duas inovações significativas.
Ao contrário dos terroristas antigos, eles estão dispostos a
perpetrar massacres indiscriminados e podem mesmo tê-los
como objetivo predeterminado. Com efeito, já praticaram
um massacre com milhares de mortos, alguns com centenas
de mortos cada um e muitos com dezenas de vítimas fatais.
A outra é a arrepiante inovação histórica do homem-bomba.
Essas mudanças são sérias, especialmente na era da internet
e do acesso generalizado a armas portáteis muito destrutivas.
Não nego que esta ameaça seja mais séria do que a do
terrorismo antigo e justifique medidas excepcionais por parte
dos que se ocupam de enfrentá-la. Mas devo repetir que isso
não é nem pode ser uma guerra. É basicamente um problema
muito sério de ordem pública.

Mas a segurança pública, que as pessoas chamam de “lei


e ordem”, tem como salvaguarda essencial as instituições e
as autoridades da vida civil em tempo de paz, o que inclui
a polícia. As instituições de guerra — ou seja, sobretudo as
Forças Armadas — são mobilizadas apenas em situações
de guerra e nas raríssimas ocasiões em que os serviços
públicos entram em colapso. Mesmo em situações parciais
de guerra, como na Irlanda do Norte, uma longa experiência

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

mostrou-nos os perigos políticos a que nos expomos quando


a manutenção da ordem é feita por soldados, sem uma força
policial regular e separada do Exército. Apesar de tudo o
que se tem falado sobre o terrorismo, nenhum país da União
Européia está em guerra nem é provável que venha a estar,
e suas estruturas sociais e políticas não são frágeis a ponto
de se desestabilizarem seriamente pela ação de pequenos
grupos de ativistas. A fase atual do terrorismo internacional é
mais séria do que no passado pela possibilidade de massacres
deliberadamente indiscriminados, mas não pela sua ação
política ou estratégica. Eu diria que ele é menos perigoso do
que a epidemia de assassinatos políticos que começou na
década de 1970 e que não despertou a atenção da grande
imprensa porque não afetou a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos. O próprio Onze de Setembro não logrou interromper
a vida de Nova York por mais do que algumas horas, e suas
conseqüências físicas foram equacionadas com rapidez e
eficiência pelos serviços civis normais.

O terrorismo requer esforços especiais, mas é importante não


perdermos a cabeça ao desenvolvê-los. Teoricamente, um país
que nunca perdeu a calma durante trinta anos de tumultos
irlandeses não deveria perdê-la agora. Na prática, o perigo real
do terrorismo não está no risco causado por alguns punhados de
fanáticos anônimos, e sim no medo irracional que suas atividades
provocam e que hoje é encorajado tanto pela imprensa quanto
por governos insensatos. Esse é um dos maiores perigos do
nosso tempo, certamente maior do que o dos pequenos grupos
terroristas (HOBSBAWM, 2007, cap. 1).

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História e Documento

2. Leia novamente o primeiro parágrafo.

a. Você notou que Hobsbawm narrou primeiramente dois acontecimentos específicos que
ele chamou de “incidentes”? Quais?
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b. Em seguida, ele fez uma afirmação bastante geral, apoiada nos dois acontecimentos
narrados mas que, na verdade, vai muito além deles. Qual?
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c. Por fim, ele formulou duas indagações – uma bastante geral e outra mais específica
– referidas às afirmações anteriores. Quais são essas indagações?
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3. Leia novamente o sexto e o sétimo parágrafos. Você sabia que o comportamento público
havia passado por uma espécie de processo social civilizador que deixou a Europa menos
violenta? Qual é a função dessa informação na argumentação do autor?
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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

4. Você percebeu que as perguntas estruturam a argumentação do texto? É assim que


um historiador da história problema procede: ele interroga o acontecimento. Retire um
exemplo do texto.
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5. Releia o parágrafo dez. Fazer história é fazer relações. Relacione a informação sobre
os contêineres e o comércio ilícito à luz da violência nas grandes cidades brasileiras.
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6. No parágrafo dezessete, o autor aprofunda a crítica e desmonta a reação oficial norte-


americana frente ao acontecimento-espetáculo do Onze de Setembro. Por que a “guerra
contra o terror” não é uma guerra?
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Respostas Comentadas
2.a. Primeiro, a Associação dos Chefes de Polícia disse ao governo britânico que já não havia
condições de impedir desordens públicas nas ruas e que era preciso uma nova lei de segurança
pública. Segundo, um hotel na Noruega fazia propaganda de que os vidros das suas janelas
eram a prova de balas.

2.b. Nossa era tornou-se mais violenta, inclusive nas imagens.

2.c. Qual é o significado de a sociedade ter se tornado mais violenta? Como os governos
podem proteger os cidadãos dessa violência?

33
História e Documento

3. Ela contribui para a fundamentação de que houve uma mudança na tendência do processo
histórico. A sociedade européia ocidental que havia construído gradativamente durante séculos
formas de convívio social cada vez menos violentas agora reintroduz comportamentos violentos,
trazendo novos desafios para a manutenção da ordem pública.

4. No parágrafo treze: “os problemas de ordem pública podem ser controlados em uma era
de violência?” No parágrafo quatorze: “qual deve ser a proporção entre força e persuasão,
ou confiança pública, no controle da ordem pública?”

5. Uma relação possível: o comércio ilícito de armas de fogo também pode se valer dessa incapa-
cidade de se verificar a maior parte dos contêineres para fornecer seus produtos aos criminosos das
grandes cidades brasileiras, contribuindo, assim, para o crescimento desmedido da violência.

6. Para o autor, a alegação “guerra contra o terror” é um argumento retórico construído pelos
governantes norte-americanos. Os terroristas estão articulados em pequenos grupos, e não em
“Estados” com os quais se possa fazer uma guerra. A questão do terrorismo para o autor, “não
é nem pode ser uma guerra. É basicamente um problema muito sério de ordem pública”, sendo,
portanto, um produto da própria sociedade.

Globalização, terrorismo e violência social, dentre outros


temas do tempo presente, foram tratados com método, rigor e crítica.
Você discorda de alguma conclusão? Ótimo, então, argumente em
contrário com o mesmo método, rigor e crítica. Isso é assim tanto
para o passado remoto como para o presente imediato. É assim
que se faz ciência.

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Aula 14 – A história e sua relação com o tempo presente Módulo 1

RESUMO

O critério de deixar o tempo passar para assegurar


a objetividade do conhecimento científico da história não é
compatível com a história-problema. Como esta se caracteriza
pelo questionamento radical dos processos sociais, o que garante
a objetividade é a aplicação rigorosa do método histórico. A prática
historiográfica atual da chamada história do tempo presente é um
exemplo disso. A despeito da profusão de documentos sobre os
acontecimentos contemporâneos, o estabelecimento rigoroso dos
fatos e a sua crítica ocorrem sem se sucumbir ao juízo de valor ou
se limitar ao reino da opinião.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, discutiremos a relação entre história e imagem.

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