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O ritmo antigo que há em pés descalços

Ricardo Reis

Dawn enters with little feet


Ezra Pound
para Aline, meu amor

HÁ SENSAÇÕES que são tuas e te excedem,


se precipitam do ermo do teu corpo,
eriçam os pelos, acendem a pele,
redimem os erros
em tua paleta de cores

Há sensações que são tuas e me derramam,


me precipitam ao termo aéreo
dos sentidos, turbilhão de miragens –
miríades de matizes
em que a vida nasce
I.
QUANDO DORMES precária como o dia,
Assinalada por tão densa luz,
Carregas um peso somente teu.
Quando, à margem de qualquer figura
(como esta em que remota finges),
Segues despreocupada em teu sono,
Em lugar algum perguntam por ti.
Quando pendes ebúrnea, silenciosa,
Ébria – num momento antes do gesto
Límpido de um pássaro que não sofras –,
Tornas-te calmamente este dia.
E nenhum alísio sopra em teu peito,
Nenhum sonho ou cinzel ousa talhar
O mínimo detalhe em que acordas.
A BELEZA QUE TENS, não a que dás,
Roça a eternidade nos meus olhos.
Sob as árvores, da sombra que a Natureza concede,
Sinto os teus dedos leves repousarem em minha nuca.
Teus lábios breves – a tua pele –
A minha voz dispersam: instantes da tarde.
Sobre meu peito deitada lanças tua sombra, teus cabelos,
A beleza que tens: é efêmera e me basta.
TEUS LÁBIOS COBREM minhas feridas com delicadeza.
Cessa o rio que corre da lembrança
Neste instante –
E este instante resta enquanto some.

Teus lábios percorrem minhas feridas


E não sou mais –
Somos, eu e tu,
Este instante nossa vida. ´
QUANDO BALBUCIAS tuas sílabas
E eu te devolvo a noite,
Estás em minha boca e tua língua
É minha língua.
Quando fremem os teus lábios
E eu os toco com a carne,
Estou já sobre teu corpo e teu corpo
É meu corpo.
Quando impera o silêncio
E meus olhos os teus tão perto,
Estamos juntos entre as pernas, existimos,
Somos nossos.
ANTES DE VER a grande beleza
Dos teus olhos mal abrindo –
Qual infância despertou daquele sonho?
Qual saudade se afogou feito criança?

Qual um sono só errância: chega aos dentes – qual um


soco?
Aos mares da memória – qual socorro?
Às raízes da infância – qual fissura a reabrir a terra –
Qual cesura a discernir em sopro o soluço desta estança?

Antes de ver fechas teus olhos


À grande beleza, ao cio das lembranças,
Ao fogo-fátuo do visível, estes fogos de artifício –
Chamas.
BEBE da minha boca
O vinho o fogo o desejo
Estamos juntos
Bebe
E me calo
E te amo
E somos o mesmo
GUARDAS SILÊNCIO
Como incêndios
Sob a língua
AS CORES MUDAM
Nos céus acima de nossas cabeças
Mudam
As estrelas e
A maneira pela qual
Emitem luz
Muda
O que víamos e o que vemos
Nos fissura
Nos sentimos
Nos tocamos
As campanas
Nossas trompas
Entre as coxas
Nossa música
Sob um timbre de arrepios
Mudos
UM E TRÊS SONETOS

Ancoragem

Construo sobre a luz tua morada,


As cinzas que irás lograr tardia.
Construo tua chegada, tua saudade,
A sombra inatural que em ti esculpes.

Construo a farsa, o rosto da amada,


Os simples gestos que irradiam os dias.
Construo sobre os traços da tua culpa
A curva da viragem: a ancoragem

Intuída corpo adentro, à margem


De teu ventre em mênstruo devoluto.
Construo sobre a luz do branco hábito

O rubro hálito desta vigília.


Construo avesso ao viço da estiagem
O teu regresso em torpe balbucio.
Margem

Construo sobre a luz tua morada,


As cinzas que irás lograr tardia.
Construo tua chegada, tua saudade,
A sombra inatural que em ti esculpes.
Construo a farsa, o rosto da amada,
Os simples gestos que irradiam os dias.
Construo sobre os traços da tua culpa
A curva da viragem: a ancoragem
Intuída corpo adentro, à margem
De teu ventre em mênstruo devoluto.
Construo sobre a luz do branco hábito
O rubro hálito desta vigília.
Construo avesso ao viço da estiagem
O teu regresso em torpe balbucio.
Vigília

Construo sobre a luz tua morada,/ As cinzas que irás


lograr tardia./ Construo tua chegada, tua saudade,/ A
sombra inatural que em ti esculpes.// Construo a farsa, o
rosto da amada,/ Os simples gestos que irradiam os dias./
Construo sobre os traços da tua culpa/ A curva da
viragem: a ancoragem// Intuída corpo adentro, à
margem/ De teu ventre em mênstruo devoluto./
Construo sobre a luz do branco hábito// O rubro hálito
desta vigília./ Construo avesso ao viço da estiagem/ O teu
regresso em torpe balbucio.
II.
TU –
sempre tu no princípio de tudo,
tu
__________ de amplitude,
tu
multitudinoso, infindo,
tempestuoso mar,
avulso, vivo,
tu:
teus olhos sombras
cheios de estrelas
cobrem as areias, ondas
sussurram conchas,
cascos, corais
incendeiam
o fundo.
NO TEU CORPO,
no teu rosto

(
duas frinchas, i.e.,
duas frestas
estas portas para
(
estas pálpebras entre
)
o que ver e o que não:
vultos, vãos
cravejados de espinhos
)

uma promessa
sangra
ANESTESIADO: ASSIM ESTÁ o teu corpo,
As mãos tremulam. A vulva.
O nome que te acompanha, as chaves
Da passagem do dia. Púrpuras.

Transportas – traduzes. Balbucias


Certas vontades. Verbos. Nasces em teu
Ventre. Sentes: alguma coisa cobre
Os gestos frágeis da tua nudez.

Ainda não o céu que abres, nem o róseo


Entre tuas pernas. Lábios. Nada
Pelo véu que encobre o Nunca – muda:
Nadas na deriva dos teus sonhos. Nada.
MEU OLHO SE ABRE como ferida,
Abre-se como tua boca incerta,
Porto íntimo em tua fronte.
Abre-se em falhas e lágrimas,
Abre-se em fenda, chaga impossível,
Abre-se de tua cicatriz, como um livro,
Abre-se como tuas pernas
Que me apertam inconsútil
Até que cedo e me achego cego
Em derradeiro afã
À fonte que ao se dar
Me suga por completo,
Que me sutura vivo
Da noite até de manhã cedo.
ouço glory box e penso
na tua pandora
na tua boca quase desnecessariamente
a sussurrar
nos teus lábios quase eternamente

nas tuas caixas


dentro de outras caixas
como encantamentos

e na tua pele que freme


estremece
e nas cordas que tocas
entre as coxas

nas mãos que delicadamente afastam


os lábios as saudades os segredos
que te escorrem pelas pontas dos dedos
COBRE

Minha boca passeia


pelo teu corpo
escorre da nuca
às costas
desce
e faz brotar
a seiva
que anseio
entre teus entres
desce
até a base
da coluna
desse
deslumbramento
que arranho
com os dentes
descem
os meus lábios
deslizam lentos
em tua pele
descem
em direção
ao cóccix
em busca de
acesso
como se
dessem
conta dos teus sumos
que não cessam
desço
ao teu cu fúcsia
ou quase (a cor)
que minha língua
rubra cobre
ao abrir-se de desejo
que me chama
acesa intensa
mais adentro
em nosso
quente
e urgente
movimento
III.
ESQUECIMENTO DOS DEUSES

Álvaro de Campos

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Stéphane Mallarmé

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João Guimarães Rosa

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William Shakespeare

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John Milton

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Emily Dickinson

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Elizabeth Bishop

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Bernardo Soares

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IV.
TENHO PENSADO no fato de haver
neste mundo astronautas e dispersos
maestros, poetas, relojoeiros.
Tenho pensado talvez que no fundo
ourives, alfaiates, sapateiros,
raros afinadores de piano
de cauda, afiadores de facas,
domadores de leões, perfumistas,
lixeiros, transformistas, xamãs, mímicos,
piratas – corsários e bucaneiros –,
tecelãs, coletores de cadáveres,
tocadores de realejo, lambe-
lambes, carpideiras, pajés, arqueiros
etc. etc. e tal,

sejam todos o mesmo vasto ser,


sejam todos o mesmo vasto nada.
INTOCADOS pela manhã
E ainda não tocados pela tarde,
Seguem como grade escura
No cárcere em que ardem.

Nesta prisão furiosa desde o alto,


A melodia não se ausenta,
O dia é exato (e os remos
São espadas trácias).

E o mar, se as ondas são lentas


Ou audazes, mantém-se cárcere.
E o mar, terso ou tenso,
É um lar em viagem.
UM ALBATROZ

A primeira vez que vi um albatroz


Achei que ele tinha penas estúpidas inventadas por
Samuel Taylor Coleridge
[em The Rime of the Ancient Mariner
Achei também que o que eu lia era aquilo que eu via

Quando vi um albatroz de novo


Achei que os olhos eram de melro recolhidos em outro
corpo
(até que fossem necessárias treze formas para perceber o
negror tão distante
[da presença alba de sua envergadura contra o sol)

Da terceira vez não vi mais nada


Os sons se misturaram pelas letras
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre as estrelas
que ora (direis) ouvir.
olho
pela janela através do vidro baço
o escuro da noite a estender seu limiar
para aqui e adiante sua caligrafia torpe enquanto
tenciono escrever a pressa os gestos da mudança
no que vejo e risco algumas coisas outras
deixo ao papel estrelas estelas cheias de inscrições
enquanto tenciono esta caligrafia baça este vidro fino
torpe
tenciono escurecer a noite e suas pequenas janelas de luz
pontos até o limiar
até a fúria com que vejo o aqui e o adiante a se aproximar
a fúria em que arrisco não mais ser mas escurecer
ou escapar às pressas com a caligrafia
que o esforço ruidosamente espessa
com a caligrafia que esgarço para
pela janela escrever seus riscos luzes sua fúria
escura tormenta a avançar a noite o risco as estrelas
aqui enquanto algumas coisas esqueço
outras vidros gestos noites adiante
cesso
traço
teço
EM HOMERO e Demócrito
E Milton e Borges
E Joyce e Camões
O invisível traça nubla embaça
Exila da luz
Rastros da existência
Devorante proliferação
Rostos reminiscentes do interminável
CHUVA MÍNIMA

Estar na possibilidade,
Em todas as ruas que ela detém,
Em cada simples expressão do dia.

Estar nas coisas frugais que,


Quando coisas pensadas,
São pequenos relevos.
II

São somente imagens duras de


Uma chuva mínima. São a vasta multidão de
Um nome que não se lê.

De um nome sozinho –
Protegido no rubor que brota
Ante o despido destino.
ANDAS em tuas trevas
Enquanto a noite te atravessa.

Tens andar irretocável,


De bordas estreitas.
Tens a morada que descobrem
Teus passos a andar.

Teu insuficiente espaço,


O que resta dentro – teu
Alheio e impróprio –,
Transborda-te longe.

Transborda-te vida
Espaçada a passar.
SINTO. O SOL se põe e assenta sua sombra em meu
peito.
Quem sob meu sonho dorme mais profundo
dorme os medos, as faltas, o pensamento.

Então: noite. Os cavalos que domavas pelos campos se


perderam e
esperá-los corta teus dedos ao sentir a morte. Nenhum
galope. Dóceis,
restam como corcéis da ausência no aceno que se acende
à distância.

Como tudo. Vastidão negra da noite. Pensamos viajar em


seu dorso
rotas de sensações alheias a qualquer pronúncia,
adentramos a floresta
que é também lembrança da qual arrancaram os cílios, os
olhos – e agora a língua.

Nenhuma palavra. Nada. Na pele cresce a feição do


desespero, a dor
das nossas mãos que se tocam sob a noite espessa
que atravessa a viagem em que estamos.
V.
1,6180339

Tentáculos preênsis,
Nectônicos são ou

Cedros,
Cupressáceas quaisquer.

Não,

Verso fosse útero todo,


Intenção-concha, sequência então

Nautilus:

Comunicação por orifícios


Sifonais – hinos, corais de Hermes,
Tuas margens
Derramadas –, sustentação
Ideal.
NOVE SUPOSIÇÕES DO AMOR

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01101111 00100000 01110100 01100101 01110101 00100000
01100011 01101111 01110010 01110000 01101111 00101110
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00100000
MIRAGENS

Homero
Augusto de Campos
Arthur Rimbaud
VI.
‫בָּ בֶ ל‬

พูดไม่ได้ แปลไม่ได้
outtalbar oöversättbar
uudsigelige uoversættelige
telaffuz edilemez çevirilemez

発音しにくい 翻訳不可能な
unaussprechlich unübersetzbar
kimondhatatlan lefordíthatatlan
onuitspreekbaar onvertaalbaar

‫ﻟﻠﺘﺮﺟﻤﺔ ﻗﺎﺑﻠﺔ ﻏﯿﺮ ﻟﻠﻨﻄﻖ ﻗﺎﺑﻠﺔ ﻏﯿﺮ‬


ndikatuíva oñembohasá ambuê ñe'me
αναπαραχθεί φωνητικά μη μεταφράσιμο

снимачот за пообјективно непреводливи


amhosibl i'w hynganu oes modd ei gyfieithu
hindi kayang bigkasin hindi maisalin sa ibang wika
AQUILO
que se torna fala,
camada sobre camada,
forma a ser dita, tanto falta
quanto falha, tanto guarda
quanto vara – cada palavra,
vala escavada no ar –
retorna, cala
SINGULAR,
Solitário,
Segue com seu peso
Sob a luz.
TORNAR,
Contornar –
Uma-vez-e-somente,
Simultaneamente
Primeira e última,
Única:
Data impronunciável,
Unwiederholbar,
Nesta língua-vida,
Em qualquer.
PASSADO e promessa
Se encontram

Aqui
Enquanto

O agora
Vigora
LANÇAS MARCAS na paisagem.
Deixa-a mais lenta com teu peso.
Fazes, sei, para que eu me detenha
Aqui, extenuado, febril e sem descanso.
A PAR
Da página
A dois – calar

A cada
Espaço
Um limiar
PALLAKSCH

com que a língua em ruína versa e atravessa a vertigem


da tua fala
que farfalha entre as torres e rios de Hölderlin

Folhas de outro outono feito rastros recém-engolidos


pelas sombras
da terra sem rosto do desterro

Outrora é hoje-e-agora com seus destroços

Rente às margens sentas, sonhas, experimentas os


escombros como mobília
para a paragem de que ora podes somente ouvir o ruir de
seu deteriorar

O pássaro da noite vibra frente aos teus


olhos convertidos à cegueira,
canta o indecifrável, redime a tua
memória, sibila junto ao teu coração
Afundas os pés na lama do rio que no fundo é tudo
aquilo que cala:
estás em casa, estás
aqui
feito
fluxo de eloquência
da tua
própria presença
que
per-
trans-
ultra-
passa
e
fica


Pallaksch
teu passo pássaro
rasga a paisagem
em sua passagem

tuas águas

como sal de lágrimas da infância


como sol que assola à distância
como soluço nos colos femininos
SAUDADE

disso –
aço
movediço
ora
cor-
roído
em
areia
e
lágrima –
faço
o
que
possas
lembrar
de
cor
DEFINIÇÃO

Toda saudade é lágrima e sangue


SOMBRAS EM DOBRAS

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LÉXICO DO EXÍLIO

a Mohsen Emadi

Para tua bicicleta escrevo o movimento,


Inscrevo-a no meu vocabulário.
Para cada volta entre as ruínas do mundo,
Entre os silêncios do mundo – nossas falas, esses nadas.
Sinto tua dor se abrir como voragem. Toco as feridas,
toco as chagas.
Leio da tua pele estas linhas sem linguagem,
estes sulcos
Fingem rostos de um idioma inavegável – inacessível,
miragem.
Adentro tua morada à deriva. E na deriva da saudade te
encontro.

Abraço-te, amigo, abraçamo-nos – ‫دﻟﺘﻨﮕﯽ‬

Deslocamo-nos, os destinos sem pedais. Os sentidos,


Sentimo-los: estamos inteiros em cada, ouço tua
chamada.
Não há territórios nem fronteiras.
Alheios: selvagens, selvagens.
Traduzimo-nos ao indizível, ao sem sentido de partir.
Entre nossas vozes o espaço necessário,
Margens que se buscam e se afastam –
Dois pulmões, duas raias de palavras: apátridas.
RETORNO A TI pelo indecifrável
Lastro das têmporas.
Voz de ninguém,
Outra vez,

Poços.

Penso adivinhar os teus passos


Em maio.
Não há pressa
Nem estrelas

No que ouço,
Só os longes dormem aqui.

Lanço minha corda ao fundo


E peço qualquer imagem
Nesta noite.

A corda não retorna


Nada.

Passas.
VII.
GRANDE SEMEADOR

I
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S

Ó Grande Semeador,
Ó Grande Semeador de Mistérios – o mesmo é dizer –,
Ó Grande Semeador, –
O mesmo é não dizer uma só palavra,
Opera,
O Vosso Verso. Êxodo 20, versículos. E sereis salvo.

O Sapientia!
O Adonay!
O Radix Jesse!
O Clavis David!
O Oriens!
O Rex Gentium!
O Emmanuel!

Mas nenhum disse, nem podia dizer:

Ó Filho!

Salvo aquele a quem

O
O
O
Jesus, 33,
1 14 14 4 11 7 6 9 8 10 10 5 13 2 3 15,
Vosso Nome. Exultai!

1 14 14 4
11 7 6 9
8 10 10 5
13 2 3 15

YHWH: ‫יה‬-‫וה‬
Por mais de seis mil vezes tocado.
Por todas as cifras tocadas.
II

Nem todos os Adonais,


Nem todos os ancestrais deste Deus,
Nem todos os Filhos originais em Vosso cerne ou carne.

Antes de Vós
Caos,
Chronos,
Éter,
Nix,
Physis,
Gaia.

Escrevi para eles as grandezas da Minha lei;


Mas isso é para eles como coisa estranha.
Inscrições, Oséias, 8:12.

***

Originais o Eixo e o Espírito,


Originais o Imo, o Interior, o Meio.
E da Medula o cimo de uma frágil existência.

Mas sois capazes de estender o Espírito


Até quando? Sois
Até que ponto tenazes para fazer do Interior o Imo
De onde a carne sangra?
Da noite que ainda cinge os corpos,
Da noite que a Ideia de noite perdura a beber,
Da noite em que o Sonho é sempre três vezes o prelúdio
de um Sonho.

Nesta Noite – inequívoca –, nesta reiterada força,


Não de ínfimo, mas íntimo,
De muito profundo, interno, Negro, mas não íntegro,

Nesta Noite absurda em que nem o ventre de Nix pode


supor o Não de todas
[as faltas,
O reverso do Grande Mistério, do âmago físico das
entranhas da Noite.

E Vós, por mais de seis mil vezes tocado,


Infértil, supurando o inaudito YHWH em seu vir-a-ser
macerado.

Nas entranhas físicas do âmago da Noite – e em todas as


suas atribuições
[secundárias –,
Nas negras entranhas de Nix, o fervilhar em mênstruos
Do que poderia ter sido e não foi.

Sonha seus Sonhos enquanto desfila em veste Negra,


Deusa da Morte,
E sonhar, por isso, seria também Deus.
III

Ó Grande Semeador,
Onde estais?
Ó Grande Semeador,
Onde estais quando a Noite toma forma e transtorna o
seu porvir?
Ó Grande Semeador,
Onde estais quando o Seio da Noite punge este Filho?
Onde, quando o Ventre da Noite se abre e envolve este
Filho em seus veios?

Ei-la, Noite intransponível,


Ainda sob o céu imenso, conquanto impuro,
Sob o mudo negror do espaço impenetrável,
Tendo todas as necessidades do mundo em torno,
A espessura dos seus gestos de areia,
O contorno próximo e palpável da areia.

Eis um cenário sem estrelas, só palavras no horror de sua


pronúncia.
Precipício da pronúncia, poucos passos adiante.
Extirpado útero, istmo de Nenhures, Areia novamente –
Rotas.

Apesar de tudo:
O Domine, libera animam meam.
IV

Lá está também a melancolia da Noite, a Negra carne da


Noite,
Com sua frouxa razão a encobrir o infinito, Sonho de
grandes mares.

Paira a Dúvida, como uma Ave, neste céu imenso de


mudo negror,
Ave de esplendor radiante por toda a extensão de
grandes mares.

A Imagem recorrente clama da Noite ávida o que foi


antes Sombra
Inclinada no sentido da Luz, Sombra ante o Sonho hostil
de grandes mares.

Palavra aprisionada em desvario intenso de cômodos


sem janelas, Albatroz,
Mônadas tristes na ferocidade de pássaro a forjar seu voo
em grandes mares.

As Noites se fixam nos olhos daquela que dita a Noite,


nos lábios: feroz e eternal,
Imanente, sempiterna qual distâncias na melancolia de
grandes mares.

Grandes mares de eternidade difusa,


Grandes mares de Nadas e nadas,
Grandes mares remotos de toda Memória,
Grandes mares repartidos e nunca plenamente
navegados,
Grandes mares da Ideia, por tantos Aedos cantados,
Grandes mares dos Ídolos, das Histórias, das Farsas.

***

Em vossa Presença, qualquer Idílio seria pouco,


Ó Grande Semeador!
Ó Grande Semeador,
Sempre a tantos misturado,
Por que mereceríeis mais?

Por quê, se de vosso Verbo este Filho recolhe todas as


cinzas?
Por quê, se de vossas Cinzas nenhum Corpo,
Somente as sílabas do Corpo pronunciado.

***

Vossas mãos não são leves,


Ó Grande Semeador.

Carregais o granizo negro da melancolia pelos campos,


A profunda tristeza de Ceres sem quaisquer sementes.

Nunca a encontrais em Vossa busca, pois buscais.


Somente lançais as sementes, qual Verbo de Pai que vos
lega o Nome.

Dizeis palavras simples com a Vossa promessa,


displicentemente,
E Vossas palavras não dizem nada, YHWH, nada mais
do que são.
V

Sob o Sol de todos os Sonhos,


Sob o Sonho primordial,
Dormis.

Dormis, Orfeu, Deus tardio,


Que Ártemis nenhuma conheceis.
aqui onde concentro sombras
aqui onde te escondes onde
te escondo onde te esqueço
onde os escombros são dobras onde
desdobras a luz onde nada mais
luz onde o verso luz a vida a vastidão
se dobra aqui onde te exploro onde
te escrevo sorvo sirvo como servo a fonte
o tempo aqui onde não tem centro nem obra
onde não tem margem estiagem
sossego nem hora mensagem segredo
só sobras só falhas sonoras aqui onde
te adoro onde te condeno onde te percebo
infinitamente selvagem onde é ontem e agora
e depois onde é ruína onde é rumor onde
recito onde precipito a saudade onde sonhas
o som o jogo onde a cor o sabor o rosto
sopra onde qualquer palavra conta
onde a dicção o sangue corre escorre
em dobres de tintas em redes de breus
onde nenhum deus faz com que tu dobres
aqui onde teus céus somente teus sinos
dobram soçobras aqui onde soberana
tu te dobres com teus dobres sobre
a luz

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