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O Mundo

Inteiro
como Lugar
Estranho

ESP U N I V E R S I D A D E D E SAO PAULO


NESTOR
GARCÍA
Reitor Marco Antonio Zago
Vice-reitor Vahan Agopyan

|ed"^P

CANCLINI
EDITORA DA UNIVERSIDADE D E SÃO PAULO

Diretor-presidente Plínio Martins Filho

COMISSÃO E D I T O R I A L

Presidente Rubens Ricupero


Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Chester Luiz Galvão Cesar
Maria Angela Faggin Pereira Leite
Mayana Zatz
Tradução de Larissa Fostinone Locoselli
Tânia Tomé Martins de Castro
Valeria De Marco

Editora-assistente Carla Fernanda Fontana


Chefe Téc. Div. Editorial Cristiane Silvestrin
1. L U G A R PARA A DÚVIDA 11

2. MANEIRAS DE CITAR 21

3. Q U A N T O O U C O M O SE LÊ 27

4. O QUE NÃO PODEMOS RESPONDER 37

5. O MUNDO INTEIRO COMO LUGAR ESTRANHO 55

6. PÓS-XEROX 73

7. S U P E R M E R C A D O D E PAPERS 77

POR QUE EXISTE A LITERATURA E NÃO O NADA 83

9. DEMOCRACIA CANALHA 99

10. E S C O L H E R O QUADRO TEÓRICO 119

11. O MÉTODO 127

12. P O R Q U E os CIENTISTAS ESCREVEM ENSAIOS I33

13. DEIXAM A GENTE SIMULAR MENOS:

DA TELEVISÃO A SNOWDEN 145

14. INTEMPÉRIE 159

15. FONTES E VERSÕES 167


10. E S C O L H E R O QUADRO TEÓRICO
I

Na tarde em que o estudante foi escutar o que seu orientador opi-


nava sobre o projeto que tinba mandado para ele, saiu confuso.
O professor, depois de voltar a Ibe agradecer a colaboração no
congresso, contou dos convites que Ibe enviaram participantes
do evento durante as semanas seguintes, para ir a simpósios em
Paris, Cbicago e Sevilba. Antecipou que talvez, em reconbeci-
mento ao apoio que seu aluno tinba Ibe dado, tentaria conseguir
que também o convidassem para a Bienal de Istambul. Sim, sabia
que ele não se dedicava a artes visuais, mas os colóquios dessa
bienal procuravam se distinguir, entre as mais de duzentas bie-
nais disseminadas em todos os continentes, organizando eventos
académicos inovadores. Não se ocupavam de transgênero, pós-
-colonialismo e movimentos artísticos radicais-cbiques, como a
maioria, e sim de questóes surpreendentes. E o tema que estava
encarando para sua tese, sobre o que distingue as conferências
de abertura das de encerramento, prestava-se a uma comparação
com o que bá na arte - e, sobretudo, nas bienais - de invenção
incessante enfrentada nas conclusóes.
- Está bem, eu agradeço - balbuciou o estudante. Mas não
tenbo ideia de como trabalhar meu tema, nem sequer comecei.
Não sei como provar a bipótese que coloquei no pré-projeto que
mandei a você bá duas semanas. Seria mais útil apbcar a teoria do
carisma de Weber, a teoria de Bourdieu sobre a distinção paradoxal
que se conquista no mundo académico ao ser u m herege consagra-
do ou a de Richard Sennett sobre o respeito, visto em certos casos
como uma má adaptação que acontece em sociedades de desigual-
dade entre a confiança em si próprio e a consideração dos demais?
- Não se trata de aplicar nenhuma teoria. As teorias servem
*ó se não se aplicam a algo. E por que escolher entre as três?
- Porque bá incompatibilidades e não quero ser eclético.
- Como as teorias não nos dizem como funciona a realidade,
"^^s, antes, como não estudá-la, dispor de várias é útil para ver o
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que esqueceram de analisar as outras e, se são de diferentes épo- objeto, como quando damos uma volta ao redor de uma estátua
cas, observar o que mudou. ou vemos uma paisagem de baixo, entre as árvores, ou de cima, no
- Deixe-me ver se estou entendendo. Mesmo que eu lide com estacionamento com u m mirante.
várias teorias, preciso construir u m quadro para ordenar meus da- - Então a tarefa é somar descrições para chegar a uma boa ex-
dos sobre quem deu conferências magistrais, em que países, qug plicação do conjunto de perspectivas que existem do fenómeno
prémios receberam antes e depois de serem convidados, quantas que está sendo analisado.
citações foram feitas de seus trabalbos em cada ano. - Eu diria que, se sua descrição precisa de uma expbcação, ela
- Se você quer guardar mais dados, compre u m disco rígido não é uma boa descrição. Isso é tudo. Só as descrições ruins preci-
maior. Os especialistas em metodologia costumam atuar como sam de explicação. Na verdade, é bastante simples. O que se quer di-
um vendedor de quadros. É verdade que as molduras dos qua- zer com "explicação social" na maioria das vezes? Acrescentar outro
dros são bonitas para mostrar coisas: douradas, brancas, talhadas, ator para dar aos já descritos a energia necessária para atuarem. Mas,
barrocas, de alumínio. Mas alguma vez você encontrou u m pintor se você tem de acrescentá-lo, então a rede não era completa. E, se os
que começasse sua obra-prima escolhendo a moldura? atores já reunidos não têm energia suficiente para atuarem, então
- Mas sempre é preciso pôr as coisas em u m contexto, não é? não são "atores", mas meros intermediários, tolos, marionetes. Não
- Nunca entendi o que significa contexto. Uma moldura faz fazem nada, motivo pelo qual não deveriam estar na descrição, de
que uma pintura seja bem-vista, pode orientar o olbar, aumentar o qualquer modo. Nunca vi uma boa descrição que precise de uma ex-
valor, permite estabelecer a data, mas não acrescenta nada à pintu- pbcação. Mas já b incontáveis descrições ruins em que não se acres-
ra. A moldura, ou o contexto, é exatamente a soma dos fatores que centava coisa alguma com a adição de inumeráveis "expbcaçóes".
não incidem nos dados, algo que todos sabemos sobre as moldu- - Bom, não vamos cbamar de moldura, nem de explicação.
ras. Se eu fosse você, abster-me-ia completamente das molduras. Mas devo ter em conta o contexto em que se produzem as dife-
Simplesmente descreva o estado das coisas em questão. rentes observações.
- "Simplesmente descreva." Desculpe perguntar, mas não é - Quando aparece o contexto, é uma maneira de deter a des-
muito ingénuo isso? Não é o tipo de empirismo ou realismo con- crição porque a gente está cansado ou é preguiçoso demais para
tra o qual já nos alertaram? Pensei que seu raciocínio fosse... é... continuar.
mais sofisticado. - Este é meu problema: o senhor me conseguiu dois anos de
- Por que você acha que é fácil descrever? Deve estar se con- prorrogação e tenbo de terminar nesse tempo uma tese que ainda
fundindo, suponho, com sequências de clichés. Para cada cem não comecei.
livros de comentários e argumentos, bá só u m de descrição. Des- - É que também devemos questionar o que significa ter ter-
crever, estar atento ao estado concreto de coisas, encontrar a úni- minado uma tese. Não é escrever as trezentas páginas que deter-
ca forma adequada de descrever uma situação dada sempre foi mina o regimento, nem chegar a uma conclusão que demonstre
incrivelmente difícil para m i m . para sempre uma bipótese. A tese deve propor descrições, olha-
- Por que o senhor fala de uma única forma de descrever? res, debates densos, que não repitam o que já se sabe. Uma tese
Então, de que me serve lidar com várias teorias se devo construir é como u m laboratório, em que o que importa é não repetir os
u m único ponto de vista? mesmos testes, experimentos, simulações.
- Diferentemente das teorias (e das instituições académicas - Isso me ajuda u m pouco. É preciso simular, mas provar que
que as difundem como boas), o produtivo de u m ponto de vista e 3 gente está simulando melhor do que antes, porque aquilo que
que ele pode se modificar. E também ter vários sobre u m mesmo imaginávamos é posto à prova.
124 o MUNDO INTEIRO COMO LUGAR ESTRANHO E S C O L H E R o QUADRO TEÓRICO

- Como u m trabalhador que perdeu seu emprego e experi- ra de televisão ou uma página de internet, que vende outro tipo
menta-se em outro lugar, quem sabe mudando u m pouco seu cur- ae saberes.
rículo, seu perfil, os modos de apresentar suas habilidades, conse- O estudante saiu tão inquieto da entrevista que ligou para a
gue arranjar outro trabalbo. O u uma rede de televisão que vê cair namorada para ter certeza de onde ela estava.
sua audiência e modifica seu comportamento diante do público - Em minba casa - respondeu.
- Mas a ciência não pode manipular a realidade como uma Pegou u m táxi para chegar rápido. N e m bem entrou, contou
empresa televisiva. Não simulamos em u m laboratório como em tudo. Ela disse:
uma atividade dedicada a prender clientela. - Esse diálogo está publicado. Exceto as recomendações
- É a isso que devemos aspirar. Construir saberes que des- um pouco moralistas do fim - acrescentou enquanto pegava em
montem a simulação que prejudica as pessoas, que as submete, sua biblioteca u m livro em que Bruno Latour contava o diálogo,
para experimentar com formas de compreensão, de relação com quem sabe em parte verdadeiro, em parte apócrifo, que tinba tido
os outros. Não se trata de mostrar para as pessoas como suspei- com u m aluno em sua sala da Escola de Economia e Ciência Po-
tarem de quem simula para dominá-los, mesmo que isso seja lítica de Londres ( L S E ) .
necessário às vezes, mas de nos aproximarmos para ver como as O estudante de conferências magistrais leu na capa do livro:
pessoas comuns se viram para organizarem saberes que escapem - Changer de société, refaire la sociologie.
às maquinarias. As campanhas de revelações do tipo Anistia In- Ela disse:
ternacional ou WikiLeaks tornam visíveis processos de engano - Olhe só. Comprei quandofizaquele ano de intercâmbio em
ou controle social de que alguns críticos suspeitavam, colocam- Oxford. - Então começou a ler para ele em francês. - A q u i diz que
-nos em números e exibem seu desmesurado tamanho. Inibem "la tbéorie de lacteur-réseau... ne peut sappliquer à quoi que ce
alguns mecanismos de ocultamento ou simulação. Conseguem soit... elle peut être utile, mais seulement si elle ne sapplique pas
alguma vez que algum governo tire u m fusível, ou seja, um mi- à nimporte quelle cbose".
nistro, e ponha outro. O u que u m comercial para vender medica- Ele pegou o livro e continuou encontrando frases que seu
mentos que não curam se torne inútil para uma corporação. Seu professor tinba usado, quase textuais, na conversa. Exclamou:
estudo desmistificador das conferências magistrais também não - Nem mencionou o Latour. Toda a sua crítica a meu modo
vai conseguir que desapareçam. Mas admiro sua vocação crítica. de encarar a pesquisa era recitada de algo pensado por outro. É
Vou continuar apoiando sua pesquisa e confio que chegará a ser um repetidor que esconde as fontes.
apreciada. Se isso não acontecer, acabarão me convidando para - Não exatamente - disse ela. - Quando estive no Reino Uni-
vários congressos por ano e, nofim,para dar conferências magis- do e na França, em 2008 e 2009, essa maneira de argumentar tinba
trais. Se não for aos cinquenta, será aos sessenta anos. Saberemos se tornado senso comum em algumas universidades.
se sua tese é realmente boa se você encontrar a maneira de deixar - E por que você comprou o livro francês se estava em Oxford ?
de ser magistral, mesmo que aceite os convites, pelo interesse - Porque, como é a língua nativa de Latour, preferi ler naquilo
turístico da cidade onde o evento for feito ou por amizade com que eu supunha ser o original. Mas descobri que a primeira edi-
o presidente do congresso. O principal assunto não é moral: por ção tinba sido feita pela Oxford University Press em 2005, u m ano
que vou a congressos e mais congressos? Talvez possamos dizer antes de ser traduzida em Paris e com outro título: Reassembling
que é também moral, considerando que eu não vou para vender file Social. Ele tinba escrito em inglês. Parecia uma homenagem
u m saber consolidado, mas para compartilhar incertezas. Quem do Latour à língua a que dava prioridade para suas redes como
sabe podemos dizer que a pergunta é parecida para uma emisso- 3for científico.
Falei, sem dar nomes, de como se tornou insustentável o méto-
do dedutivo: onde está a teoria social nesta época globalizada e
dispersa, ou seja, interdependente e errática, que permita extrair
consequências observacionais, explicar por que os atores agem
de maneiras tão diferentes e instáveis?
Também o método indutivo é protelatório: aonde nos leva a
acumulação de dados e experiências? Quando tem sentido parar
para estabelecer como se organizam interações sempre variáveis,
que só aos poucos perseveram?
Entre as iluminações de u m método e de outro, que - não va-
mos negar - produziram conbecimentos (insuficientes), cbama-
-me a atenção a atitude epistemológica de poetas como Arnaldo
Calveyra, tão sutis para ver "a luz que milagrosamente se recupera
entre as cinzas dos fogos mal apagados". U m escritor espanhol,
José Ángel Cilleruelo, desconcertado com seu modo de alternar,
até em u m mesmo texto, poesia, narração e teatro, perguntou a ele:
- Que limites internos você acredita que existem boje entre
os géneros?
- Nenhum, não existe nenhum limite interno quando o que a
gente busca de verdade é uma espécie de incandescência da pala-
vra que se torna palavra poética... Em meu caso, não vejo descon-
tinuidade entre escrever u m conto e escrever u m poema ou uma
peça de teatro. Eu sempre digo de brincadeira que cheguei tarde
a repartição de géneros...
Marina Mariascb e Santiago Llacb o entrevistaram sobre o
método para o suplemento Grandes Lineas do jornal El Ciuda-
dano:
- Depois de tantos anos de escrever, você foi encontrando
técnicas ou mecanismos para encher uma página em branco?
- Se tivesse isso, eu me dedicaria a outra coisa. A curiosidade é
eomeçar de novo. Se a gente soubesse fazer as coisas, seria sem graça.
A escrita é uma tarefa de curiosidade com a lingua em grau máximo.
o MUNDO INTEIRO COMO LUGAR ESTRANHO o MÉTODO 131

Alguém poderia responder que na ciência não se trata de não


se entediar, mas de conhecer. Seria possivel argumentar que as o que descrevemos náo é o que pensamos que os músicos deveriam
duas situações não estão longe uma da outra. Mas, escutemos fazer, n e m o que desejaríamos que eles fizessem, n e m o que fariam se es-
cientistas sociais que também são artistas e encontraram na cria- tivessem fazendo as coisas bem, de acordo com algum critério. E m c o m -
tividade cbaves para fazer ciência. pensação, descrevemos o que fazem, conforme pudemos ver, registrar e
E m vez da literatura, pode ser a música. Robert Faulkner e entender. Portanto, em última instância, a pergunta que respondemos náo
Howard Becker, jazzistas e sociólogos, quiseram entender como é a que tínhamos a princípio, mas a que aprendemos a formular ao avançar
os músicos que trabalham em bares e festas - isto é, lugares onde em nosso trabalho: como os músicos fazem para combinar saberes parciais
descobrem que têm de tocar uma variedade de peças que nem e conseguir criar u m a atividade coletiva suficientemente boa para a varie-
sempre conhecem antecipadamente - podem tocar juntos com dade de pessoas envolvidas no evento?
pouco ou nenhum ensaio e com u m minimo de música escrita
para se orientar. Por meio dessa observação, disposta a abandonar o que t i -
nham aprendido em correntes sociológicas que eles mesmos en-
Achávamos que tínhamos u m a resposta simples, mas certeira: são sinavam em universidades, chegaram a notar que muitos não mú-
capazes de fazer isso porque sabem a mesma música, as mesmas canções. sicos, que se ocupam de outras práticas - curar, roubar, drogar-se
Muitos deles conheciam vários temas em c o m u m , mas muitos outros náo - em vez de atuarem executando habitualmente um programa
sabiam esta ou aquela canção, e o músico que confiasse que todos podem que todos os seus colaboradores conhecem com perfeição, estão
tocar algo correria o risco de cometer u m erro grave. alertas a cada dia para o que os outros estão fazendo e ajustam
continuamente sua ação conforme o que vão ouvindo e vendo.
Como os músicos criam uma atuação se não podem confiar Mais do que descobrir leis que existiriam antes dos membros de
que todos sabem u m repertório comum? A atuação provém tanto um grupo atuarem, mais do que sociedade e cultura como algo já
do inventado como do já sabido. instalado, encontram "repertórios" para usar, complicações, con-
flitos, deslizes, como ocorre quando várias pessoas tentam fazer
Prestamos atenção ao contínuo processo de ajuste mútuo por meio do algo juntas.
qual sào compartilhados, ao passarem, fragmentos de conhecimento que
se combinam para produzir u m a atuação suficientemente boa para a oca-
sião e seus participantes. C o m o qualquer outra atividade que várias pessoas
empreendem juntas, o que os músicos de jazz fazem náo é aleatório nem
desarticulado, mas também náo é totalmente fixo e previsível. A s propor-
ções variam de u m momento para outro e de u m lugar para outro, mas as
atuações sempre misturam as duas coisas e os termos da mistura náo sáo
uma simples aplicação de maneiras conhecidas de chegar a u m acordo, mas,
antes, uma criação do momento.

Faulkner e Becker não chegaram a essa certeza por meio de um


raciocínio teórico nem deduzindo-a de compromissos estéticos, filo-
sóficos ou sociológicos anteriores. Foi mediante a observação direta-
12. POR QUE OS CIENTISTAS
E S C R E V E M ENSAIOS
_ Nessa altura não está claro o que é o específico do trabalho
científico. Não nos arriscamos a retroceder o caminho segundo
o qual as ciências sociais apareceram como superação do ensaio?
Na Argentina, em meados do século x x , a iniciação da sociolo-
gia cientifica com Gino Germani mostrou que as meditações de
Eduardo Mallea sobre o ser nacional ou as tentativas de Ezequiel
Martinez Estrada de radiografar os pampas se tornavam insusten-
táveis diante da pesquisa empirica. No México, houve uma ruptu-
ra semelhante ao passar de O Labirinto da Solidão, de Octávio Paz,
à critica de antropólogos como Cláudio Lomnitz e Roger Bartra
em ensaios sustentados com estudos de campo.
- É verdade, o ensaio humanístico ou literário é uma estra-
tégia de compreensão de u m processo histórico ou de u m movi-
mento da sociedade com base em reflexões subjetivas e leituras
de u m autor. Também dentro do ensaio existem métodos dife-
rentes. Pode se basear em ideias inovadoras ou em percepções
agudas que se distanciam do senso comum de uma época, com
diferentes critérios de rigor. Recordo a polémica em que Octá-
vio Paz atacou Carlos Monsiváis dizendo que não tinba ideias,
mas tiradas. Os ensaios e, sobretudo, as crónicas de Monsiváis
não se limitam a reunir tiradas. Seu trabalbo se parece, às vezes,
com a etnografia, pelas observações extraordinárias que fogem
aos estereótipos com que pensamos o que é habitual. Dá cbaves
da bistória e do presente que não estavam na historiografia oficial.
Grande parte de sua astúcia, no melhor sentido da palavra, residiu
nessa observação quase etnográfica. Não usou a metodologia an-
tropológica, mas soube perceber situações emblemáticas, como
uma dança popular, uma marcha politica, espaços cotidianos da
cidade, como u m observador singular. Veio-me à cabeça que,
trabalhando sobre a Cidade do México, ou em temas de bistória
cultural e politicas culturais, ia aos textos de Monsiváis e efetiva-
uiente não encontrava quase nada sistemático, quase nunca uma
136 o MUNDO INTEIRO COMO LUGAR ESTRANHO P O R Q U E os C I E N T I S T A S E S C R E V E M E N S A I O S

cifra, u m dado puro que ancorasse as observações, mas anotações Também Roland Bartbes soube oscilar entre o tratado e o
sugestivas para olbar de outro modo o que acontecia. ensaio. Escreveu obras densas, rigorosas, como Elementos de Se-
Certa sociologia, em compensação, tenta pôr entre parênte- miologia e O Sistema da Moda, mas dedicou a maior parte de seus
ses as ideias e a subjetividade para captar as estruturas objetivas livros a falar de O Prazer do Texto, dos vínculos da leitura com o
dos processos sociais. Abandonam-se as generalizações sobre Eros, da escrita com a sedução. Esclarece Susan Sontag:
a identidade nacional, o pensamento ou os sentimentos de um
povo para pesquisar os comportamentos e discursos de cada clas- Trata-se da sedução como jogo, nunca como violação. T o d a a obra de
se ou grupo social. Bartbes é u m a exploração do histriónico o u do lúdico; de muitas e enge-
O ensaio bumanistico ou literário corresponde ao papel do nhosas maneiras, u m a desculpa para o paladar, para u m a relação festiva
intelectual como revelador do sentido oculto da sociedade (sé- (mais do que dogmática ou crédula) com as ideias. Para Bartbes, como para
culos X I X e primeira metade do x x ) . O tratado cientifico, em Nietzsche, a finalidade náo é atingir algo em particular. A finalidade é nos
compensação, forma-se em u m saber académico baseado na pes- fazer audazes, ágeis, sutis, inteligentes, célicos. E dar prazer.
quisa ao mesmo tempo racional e empirica, com o objetivo de
controlar ou promover a transformação social: questionários, es- Uma segunda razão para justificar os ensaios é que não existe
tatísticas, observação prolongada de comportamentos coletivos um sistema do conhecimento, uma teoria geral do social que pos-
no trabalbo de campo. sa ser exposta sem fissuras, como estrutura compacta. O ensaio é
N o entanto, o género ensaio regressa ao mundo contempo- esse modo de apresentar o saber que o mantém aberto, u m tipo
râneo. Jobn Berger, Umberto Eco e Ricbard Sennett são intelec- de conhecimento que inclui a retificação. Em compensação, o
tuais com rigorosa formação académica que preferem em alguns livro-tratado tenta se desenrolar como o progresso de u m princí-
bvros recorrer à forma vacilante do ensaio. pio até u mfim,até uma conclusão. Diz Clifford Ceertz:
- Por que usar esse género vagabundo para comunicar co-
nbecimentos obtidos na pesquisa social? Para dar rodeios e avançar por ruas paralelas, nada é mais conveniente
- Uma razão, mesmo que não se diga, é que os tratados ou do que o modelo do ensaio. A gente pode se deslocar praticamente para
livros com muitas citações e notas de rodapé, com estatísticas qualquer direção; mesmo sabendo que, c o m certeza, a coisa náo vai fun-
e gráficos, são cbatos. À recepção restrita de muitos livros cien- cionar, a gente pode voltar e recomeçar por outra opçáo c o m u m custo
tificos poderia ser aplicada a sentença de Borges: "Várias vezes moderado de tempo e decepções. N o meio do caminho, as retificações sáo
empreendi o estudo da filosofia, mas sempre me interrompeu a bastante fáceis, já que náo é necessário sustentar cem páginas de argumen-
felicidade". Mesmo que Borges esclareça que o estudo filosófico tos prévios, como ocorre em u m a monografia ou e m u m tratado.
também pode nos fazer afortunados.
Não apenas a leitura de tratados eruditos consegue ente- - Então, em que se diferencia o ensaio científico do filosófico
diar; também sua escrita (sabem disso aqueles que batalham ou literário?
para chegar ao fim de uma tese de doutorado). Mas não é fa- - A escrita científica não pode se sustentar só com ideias ou
tal: Lévi-Strauss (em Tristes Trópicos) e Clifford Ceertz qua- hipóteses do autor. Ela se baseia em pesquisas. Contrastamos as
se sempre fizeram avançar o saber em ensaios que importam observações subjetivas com os referentes empíricos, submetemos
tanto por seus dados novos como pelas surpresas da escrita. as interpretações a u m manejo controlado pelos dados. A prática
Manifestam que conhecer, fazer ciência, tem certa cumplici- científica se distingue por voltar sobre suas próprias afirmações
dade com o prazer. para colocá-las à prova uma vez após a outra. Como sabemos des-
138 o M U N D O INTEIRO C O M O LUGAR E S T R A N H O P O R Q U E os CIENTISTAS E S C R E V E M ENSAIOS 139

de Popper, o cientista não busca cbegar à verdade, mas refutar o Além disso, se admitimos que é preciso transcender o ponto
que acredita ter descoberto: enquanto não refuta dirá que seus de vista individual, ou do narrador que ainda pretende ser onis-
enunciados mantêm seu temperamento, sua verossimilbança. As ciente, e passar ao teatro, mais receptivo a experiências discrepan-
estratégias persuasivas do discurso bumanistico obturam, muitas tes, com frases de diferentes personagens que não se juntam, que
vezes, essa possível autorreflexão e refutação. Pode ocorrer tanto entendem mal o que foi dito na fala anterior, interessa, mais do
no ensaio conservador como no de esquerda, quando interessa que a coerência conclusiva, dar atenção a todo o jogo dramático.
mais demonstrar a força de uma posição ideológica do que admitir Talvez as diferenças entre cientistas e artistas apareçam nos
as dúvidas diante do que fracassa. Também nesse sentido, diferen- critérios de avaliação e nas exigências de legitimidade de seus tra-
temente do tratado ou do manual, o ensaio é o cenário da dúvida. balbos: aquele que faz ciência está interessado em construir co-
Mas a evidência empírica não é a autoridade única. Tanto os nbecimentos em relação a referentes empiricamente observáveis,
questionários como o trabalbo etnográfico costumam se basear enquanto o artista se atrai, mais do que pela produção de u m sa-
em pressupostos sobre como funciona a sociedade, como se de- ber, por administrar a incerteza na sensibibdade e na imaginação,
finem as classes sociais, por que as pessoas roubam, migram ou sem buscar certezas cognitivas.
consomem. Os dados obtidos podem ser organizados com muito - O saber científico e o saber poético se complementam?
rigor, com os mais sofisticados programas de computação, mas, - Nem sempre. Mas alguns conseguem aproximá-los. Penso
se as perguntas forem feitas a indivíduos isolados dos grupos de em Lévi-Strauss e O Pensamento Selvagem:
pertencimento nos quais tomam as decisões, as respostas estarão
distorcidas. C o m o entender que os povos originários da América, c o m base em
Esse desencontro entre as perguntas e os processos sociais é um pensamento mítico e poético, tenham atingido u m saber minucioso
mais contundente em momentos de transformação social, quan- sobre a natureza e classificassem c o m grande rigor, conforme suas proprie-
do não dispomos de evidências empíricas porque tudo estreme- dades sensíveis, centenas e centenas de plantas e animais? Porque a explo-
ceu, nem as coisas, nem as pessoas estão no mesmo lugar. Então ração mítica ou poética náo é irracional. Aspira a u m a ordem e responde a
pode ser mais produtivo fazer uma sociologia ou antropologia uma exigência de compreensão do mundo.
narrativa que permita às pessoas contarem como bolam as coisas
para passar de uma condição social a outra. Existem dois modos diferentes de pensamento científico e
" O que você me conta?" é o começo de muitos encontros, tanto u m como o outro não existem em função de etapas desi-
de onde se começa a saber sobre o outro. Dizem isso sociólogos guais de desenvolvimento do espírito humano, mas dos dois ní-
como Pablo Vila: veis estratégicos em que a natureza se deixa atacar pelo conheci-
mento científico: " u m deles aproximativamente ajustado ao da
A s pessoas não atuam ou deixam de fazê-lo porque se sentem parte percepção e à imaginação, e o outro deslocado; como se as rela-
de u m a categoria social, como parece nos fazer entender a tabela de dupla ções necessárias, que constituem o objeto de toda ciência - seja
entrada, que é a forma hegemónica de entender a realidade segundo a so- neolítica, seja moderna pudessem ser atingidas por duas vias
ciologia tradicional. A s pessoas olham seu presente c o m base em sua expe- diferentes: uma delas muito próxima à intuição sensível e a outra
riência passada e em função de u m futuro possível; a partir daí, planejam niais distanciada".
a ação em relação ao personagem que dita a reconstrução do passado, e a No pensamento científico, as imagens são subordinadas aos
possibilidade de futuro chama, sempre contextualmente, para dar conta da conceitos. N o pensamento mítico ou poético, existem conceitos,
ação a empreender. mas submersos em imagens. Então, o conhecimento científico
140 P O R Q U E os C I E N T I S T A S E S C R E V E M E N S A I O S 141
o MUNDO INTEIRO COMO LUGAR ESTRANHO

- Seria o humor ou a ironia que nos devolve do êxtase poético


tem tanto mérito quanto o conhecimento poético ou metafóri-
CO? Talvez o que dê u m valor distinto ao discurso científico e ao para a realidade?
modo de escrever ensaios científicos seja, como dizia, sua capa- - Pelo menos o humor nos afasta dessa outra forma de delí-
cidade para questionar seus próprios fundamentos. O discurso rio - acreditar que sabemos de que trata o real - com a ilusão de
científico não está livre dos riscos da ideologia e, até mesmo, do controlar os jogos ibmitados da fantasia. Dado que sabemos o
delírio, mas tem instrumentos para questionar seu modo de se que é o real só por meio de aproximações, carecemos do direito
constituir, de construir seus objetos de estudo, duvidar deles e de reprimir o delírio: mas, por sua vez, parece que o fato de que a
repensá-los como relativos e mutáveis. ciência aspira a saber o que acontece na realidade e tem esse ob-
Colocar em tensão os pensamentos mítico e cientifico, e exa- jetivo, nunca atingível mas sempre passível de ser buscado, evita
minar, revela-se fecundo perante mitos mais recentes do que os que a gente se perca debrando.
estudados por Lévi-Strauss. Vários antropólogos contemporâne- Todos estamos expostos a delirar, seja pelo lado histérico,
os encontram na reflexão critica sobre os mitos e na escuta de sua seja pelo lado obsessivo; mas chega o momento decisivo de sair
lógica explicativa e narrativa cbaves para entender o irresoluto de do delírio. Para alguns, o problema é como entrar e não conse-
nossas sociedades. Alejandro Grimson mostra em seu livro Mito- guem isso nunca. Se acompanhamos trajetõrias como a de Walter
manias Argentinas quanto pode ser revelado desta sociedade lendo Benjamin, ou a de Freud, vemos que sua imaginação teórica se dá
nesses relatos sagrados como seus membros dizem que ela está or- em momentos em que conseguem fantasiar, em que se despren-
ganizada, o poder mobilizador e interpolador da mitologia, e tam- dem do real. Constroem algo que não está nos "fatos" - a aura, o
bém, com os dados e argumentos providos pela antropologia, a fal- inconsciente - e, com isso, chegam a olbar melhor o que talvez
sificação e deformação contida em narrações que tentam sustentar esteja na realidade. Se fazem isso, é porque, de alguma maneira,
por que "na Argentina não existe racismo", "o corrupto é o outro" e além de alçarem voo, houve u m momento em que aterrissaram
"a sociedade argentina é uma vitima inocente do Estado" ou "as no- e puseram isso em uma escrita que é possível ler, que tem uma
vas tecnologias democratizam a comunicação". Entretanto o saber organização comunicável, ou várias ao mesmo tempo.
antropológico não vem para demobr os mitos, mas para reconhe- Muitos cientistas e poetas constroem conhecimento com hu-
cer que não existe bnguagem sem eles e que podemos encontrar mor, esse outro incomodo do real, e evitam se valentear fazendo
complexidade em seus matizes, nas contradições entre mitos que metafísica ou misticismo. A poesia não é azar, escreveu Italo Cal-
defendemos no mesmo dia. Essa tarefa pode bmitar os riscos do vino, mas "uma tensão rumo à exatidão" que fez ele próprio circu-
delírio, que certamente não estão ausentes em estudos cientificos. lar, várias vezes, por teorias e livros científicos. Em u m texto dedi-
Existem delírios histéricos e delírios obsessivos na pesquisa. cado ao debate entre Jean Piaget e Noam Cbomsky, descobriu que
Os últimos textos de Jean Baudrillard e alguns de Jean-Erançois bá dois modelos de processo de formação dos seres viventes: "de
Lyotard parecem delírios histéricos. Em compensação, a obra um lado, o vidro (imagem de invariabilidade e de regularidade de
de Louis Altbusser é quase toda u m delírio obsessivo. Os dois estruturas específicas); de outro, a chama (imagem de constância
carregam inconvenientes para fazer pesquisa. Não tenbo quase de uma forma global exterior, apesar da incessante agitação inter-
nada contra o delírio como fenómeno cultural: é fecundo para na) ". O escritor, segundo Calvino, não opta pelo vidro ou pela cba-
o trabalbo poético, ou seja, uma via de acesso ao conhecimento. ma: busca reduzir, de u m lado, "os acontecimentos contingentes
Mas, se desejamos não nos instalar no delírio e preferimos certos a esquemas abstratos em que podem ser efetuadas operações" e,
arraigamentos em meio à desestabilização incessante, como an- ao mesmo tempo, dar potência às palavras para "expressar com a
corar no que socialmente se considera real? maior precisão possível o aspecto sensível das coisas".
P O R Q U E os C I E N T I S T A S E S C R E V E M E N S A I O S 143
142 o MUNDO INTEIRO COMO LUGAR ESTRANHO

instituições que medeiam entre uns e outros. Mas descobriram


Nestes tempos de mutantes industrializações da cultura, de
que o conhecimento mais refinado desse conjunto de fatores não
expansão digital e decomposição da democracia, é chave "a pala-
vra [que] une o rastro visível com o invisível, com a coisa ausente, permite prever se uma obra vai triunfar ou fracassar. " O traba-
com a coisa desejada e temida, como frágil ponte improvisada lbo artistico está modelado pela incerteza", afirma Pierre-Micbel
estendida sobre o vazio". Menger.
Essas são algumas das justificativas para escrever o saber cien- Eu me interesso pelo modo como esse autor, talvez o que pro -
tífico como ensaio. Não só no sentido do género assim chamado, duziu o livro mais consistente sobre esses assuntos, Le travail créa-
mas como esse modo de interpretar o que se diz com suas indeci- teur, extrai dessa aprendizagem um saber utilizável para estudar
sões, narrar como quem explica u m comportamento e fazer tea- qualquer trabalbo, sobretudo os que perseguem a inovação. Por
tro para aceitar que se fale com sentidos contraditórios, incluidos mais que a biperprogramaçâo tenda a dar a sensação de que pode
aqueles que para o autor estão inteiramente equivocados. Assim reduzir a incerteza, nesta sociedade de organização flexível, tra-
é possivel nos aproximarmos da causalidade complexa ou das balbos por projetos e competições que impulsionam a sobressair
modulações sem estruturas, dispersas, em que aparecem muitas inovando incessantemente, os modelos de determinismo causal
causas de u m mesmo efeito ou efeitos sem causas. não captam a abertura do previsível ao acaso, as negociações e
O que geramos com esses exercícios inseguros, dando voltas abanças dos intercâmbios que são reinventados. Reconhecer
em uma linguagem que às vezes parece narrativa, outras, teatro ou a incerteza não é abrir a porta traseira para a irracionalidade. O
entrevistas improvisadas, apelando até para a poesia? Tentar ver conhecimento do sentido narrativo, dramático e poético - cria-
e escutar o que não cabe nos coeficientes, nas escalas de atitudes, dor das atuações sociais - habilita outro modo de saber racional:
quando os atores em rede se descobrem como atores sem rede, aquele que permite ter acesso a estruturas descontínuas, não arti-
como os migrantes e os jovens cronicamente desempregados, e culadas pela causalidade.
tantos de nós que somos pagos como cientistas, mesmo que o
que nos pareça mais decente seja contar nosso saber estranhado:
como se viram uns e outros para organizar experiências culturais
- mesmo as propiciadas pelas indústrias editoriais, televisivas e
de internet - que não têm apps para escrevê-las ou comunicá-las.
Aquilo que só pode ser analisado em estado de ateliê.
- Não bá u m resíduo romântico nesse recurso à poesia como
via de conhecimento?
- O que tento é uma atenção socioantropológica àquilo que
o trabalbo criativo nos ensina sobre a incerteza em todo trabalbo,
em qualquer prática social. A sociologia da produção artística
(não das obras) surge do pressuposto antirromântico de que é
possivel entender mais a arte se - em vez de ver seus resultados
como imprevisíveis - indagamos o que os criadores devem a seu
entorno, como se formam e qualificam, como constroem as re-
gras de avaliação de u m quadro ou de u m espetáculo junto com
outros profissionais, tendo em conta os virtuais receptores e as

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