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Curso de Extensão Universitária

A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global


 

Au la 6

An ális e d o Film e
“O Qu e Vo cê Faria?”

Cinco hom ens e duas m ulheres disputam um a vaga para um alto cargo
executivo de um a grande empresa em Madri (Espanha). Os candidatos
participam da últim a etapa da seleção, do qual apenas um restará. Fechados
num a sala, as provas são elaboradas baseadas num cham ado “Método
Grönholm ”, que basicam ente incitará os piores instintos de cada candidato na
tentativa de elim inar os concorrentes. Esta é a tram a narrativa do film e “O Que
Você Faria?” (El m étodo), de Marcelo Piñeyro, produzido em 20 0 5, que baseia-
se na peça de teatro “El m étodo” (de 20 0 3), escrita pelo autor catalão J ordi
Galcerán (na peça eram quatro os candidatos a executivo de um a m ultinacional
– e não sete, com o no film e).

 
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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

O cham ado “m étodo Grönholm ” é um m étodo de contratação de pessoal


onde o avaliador faz jogos psicológicos entre os participantes e joga uns contra
os outros. É com posto por testes psicológicos e práticas que induzem ao
com portam ento nervoso e transparente, um a vez que os candidatos são
subm etidos a situações extrem as que os jogam um contra o outro. Nesse
contexto, conflitos e discussões abrem espaço para a insegurança, de form a que
o candidato lute com todas as forças para sair ileso desse processo, tanto física
com o em ocionalm ente, e de preferência, com o em prego conquistado. O
processo de seleção envolveu algum as fases, que foram desde a descoberta de
um integrante da organização, disfarçado entre eles de candidato, até a escolha
de um líder no grupo, sendo que em todas as fases, a própria equipe age com o
um a espécie de juiz, com poder de contratação e de elim inação. Ao final, o
vencedor será aquele que resistir a todas as pressões e ao estresse, e dem onstrar
alto grau de equilíbrio psicológico e em ocional.

Num prim eiro mom ento, a abertura do film e nos m ostra fragm entos
com postos do despertar cotidiano dos candidatos ao posto de alto executivo da
em presa Dekia, num a Madri sitiada pelos m anifestantes anti-globalização que
protestam contra o encontro de cúpula FMI-Banco Mundial. Com certeza, este é
um dia especial para todos eles – e para o centro de Madri, tom ado pela
agitação popular. Assim , um dos candidatos, J ulio, acorda às 7 horas. Ana dá
café da m anhã ao filho e observa na TV as notícias da m anifestação popular.
Diz: “Parece que vai ter confusão”. O filho parece querer aproveitar a confusão
para faltar à escola. Ricardo, outro candidado, lê os jornais na m esa do café da
m anhã ao lado da fam ília Nieves se prepara para a seleção, m aquiando-se.
Fernando tom a o café da m anhã na rua, lendo m anchetes do jornal. Enrique
escreve em seu palm , sentado no banco traseiro de um a van. Carlos chega de
m oto à torre da Dekia. Panfletos de m anifestantes dizem : “Outro m undo es
posible”. Carlos – o últim o a chegar - se dirige ao Departam ento de Pessoal da
grande empresa.

 
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A abertura do film e, através da com posição (e recom posição) de imagens


em m ovim ento, nos coloca diante da dialética candente entre cotidiano e
história. Assim , ao lado de cenas do despertar cotidiano de alguns trabalhadores
candidatos de alta qualificação, que naquele dia especial participarão dos testes
de seleção para contratação do alto executivo da grande em presa, observam os,
lado a lado, fragm entos de cenas de m anifestações populares anti-globalização
durante o encontro de cúpula FMI-Banco Mundial em Madri. Ora, o m ovim ento
da história, totalidade concreta em m ovim ento contraditório, história da luta
de classes, é constituída, em si, pela vida cotidiana de hom ens e m ulheres que
vivem do trabalho.

Mas, além da dialética candente entre cotidiano e história, o m ovim ento


intrincado de cenas da abertura do film e sugere outra im portante “disjunção”:
por um lado, a m assa de m anifestantes anti-globalização – m assa-m ultidão que
se faz classe social em si através do confronto com o poder constituído do
capital; por outro lado, o conjunto dos candidatos (J ulio, Ana, Nieves,
Fernando, Ricardo e Enrique), individualidades pessoais de classe –
“proletários de classe m édia” - em busca de seus interesses egoísticos (todos eles
querem com o teleologia egoístico-singular, um em prego com o executivo da
Dekia). Portanto, tem os, de um lado, a representação im agética do interesse

 
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coletivo em m ovim ento, constituído por um a m ultidão de hom ens e m ulheres,


individualidades pessoais de classe m ovidos (e unidos) pelo ideal anti-
globalização; e, por outro lado, im agens em representação de interesses
particularistas de hom ens e m ulheres que visam se inserir no m ercado de
trabalho. De um lado, a m ultidão-m assa que abole – por alguns m om entos - a
concorrência ao se unir no m ovim ento por um “outro m undo possível”; de
outro lado, um pequeno conjunto de individualidades pessoais de classe que
afirm am a concorrência em sua luta pela existência alienada no m ercado de
trabalho. Ora, é esta suposta “disjunção” que caracteriza a “sociedade civil”
burguesa.

H is tó ria

In te re s s e s co le tivo s In te re s s e s p articu laris tas

Vid a Co tid ian a

Fechados num a sala do Departam ento de Pessoal da grande em presa, os


candidatos à executivo da Dekia, por um instante, têm sua atenção capturada
pela palavra de ordem das m ultidão-m assa que clama: “O povo unido jam ais
será vencido”. Na verdade, este é o único m om ento do film e em que a História
com o m ovim ento do interesse coletivo, “invade” a sala onde estão os candidatos,
um verdadeiro m icrocosm o de m anipulações incitadas pelos “m étodo
Grönholm ”. É Enrique que se interroga: “O que estará acontecendo lá
em baixo?”. Todos se levantam – com exceção de Carlos e Ana – e se dirigem à
janela de vidro (um detalhe: Ana – que com seu voto tinha, anteriorm ente,

 
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elim inado J úlio, tinha acabado de ser eliminada do jogo). Diante da janela de
vidro, é Ricardo, ao lado de Fernando e Enrique, que observa: “Não se vê nada
daqui”. Ora, esta observação de Ricardo é bastante significativa: os “proletários
de classe m édia” tendem a estar im ersos num a névoa ideológica que encobre a
percepção do verdadeiro m ovimento da história, que é a história da luta de
classes. A partir do pequeno m undo da pseudo-concreticidade cotidiana, eles
nada vêem – a não seus interesses particularistas. Enquanto individualidades
pessoais de classe im ersos na existência alienada que apenas reitera sua
condição de proletariedade subsum ida ao acaso e contingência, eles não vêem
nada (talvez não vêem sequer som bras, com o os hom ens e m ulheres no m ito da
Caverna, de Platão). Eles apenas ouvem sons ecoando à distância, sons das
palavras-de-ordem inscritas na dialética das m assas em m ovim ento - m assas-
que-se-fazem -classes-sociais.

De onde provém a “cegueira branca” que oculta (ou obstaculiza) a


percepção pelas individualidades pessoais de classe, dos interesses coletivos que
constituem a dim ensão da “classe social” com o sujeito histórico capaz de
prom over a “negação da negação”?

 
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Sob o “capitalism o m anipulatório”, expressão utilizada por Georg Lukács


para caracterizar o capitalism o tardio (o capitalismo que em erge após a II
Guerra Mundial), a vida cotidiana e a reprodução social, tanto quanto o
trabalho e a produção social, são m arcadas pela intensificação da m anipulação
sistêm ica. O avanço do m undo das m ercadorias na m odernidade do capital
significa que a sociedade industrial tende a torna-se, cada vez m ais, um a
sociedade adm inistrada pelas coisas.

O predom ínio da form a-m ercadoria na vida social, com a consolidação


da sociedade de consum o de m ercadorias, faz com que os dispositivos sócio-
reprodutivos estejam à m erce da lógica m ercantil, caracterizada pela ânsia da
vendadabilidade universal e pelo fetichism o da m ercadoria que prom ove a
ocultação da essência das coisas – no caso, oculta o trabalho social com o sendo
a origem dos produtos-m ercadoria e oculta a contradição estrutural antagônica
entre capital e trabalho.

Existe, deste m odo, um a derivação histórico-estrutural entre predom inio


da form a-m ercadoria, que se im pulsiona sob as condições históricas do
capitalism o do pós-guerra, com a expansão (e hegem onia) do am erican way of
life, e predom ínio da m anipulação sistêm ica nas várias instâncias da vida
social.

Nesse caso, a sociedade do capital sob o capitalism o m anipulatório


aparece com o a sociedade do trabalho ideológico que visa à “captura” da
subjetividade do hom em que trabalha. Põem -se com vigor inaudito, o poder da
ideologia. O processo de m anipulação com o posição teleológica secundária
socialm ente condicionada pelos interesses da reprodução social do sistem a do
capital – seja no consum o, lazer, e inclusive na política e nas relações sociais em
geral – torna-se um traço essencial do metabolism o social da m odernidade
burguesa.

Em sua “Ontologia do ser social”, o velho Lukács distingue a posição


teleológica prim ária da posição teleológica secundária. A prim eira – a posição

 
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teleológica prim ária, que caracteriza o ato do trabalho, diz respeito a ação do
hom em sobre a Natureza; a segunda - a posição teleológica secundária, traço
distintivo da esfera da ideologia, diz respeito a ação do hom em sobre outro
hom em (ou ação do hom em sobre si m esm o). Na m edida em que se desenvolve
o com plexo do trabalho, am plia-se o cam po das posições teleológicas
secundárias, caracterizadas pelos atos de preparatórios do trabalho social.

Trabalh o e Id e o lo gia
(segundo Lukács)

Trabalh o Posição teleológica prim ária

H o m e m – N atu re za

Id e o lo gia Posição teleológica secundária


Hom em - Hom em

O “trabalho ideológico” tende a ocupar um a função crucial no


desenvolvim ento da esfera do trabalho. É o que podem os considerar com o
sendo a ideologia com o exigência sócio-ontológica da produção/ reprodução
social (é o sentido ontológico de ideologia dado, por exem plo, por Antonio
Gram sci). Além disso, o “trabalho ideológico” constitui não apenas a esfera do
trabalho, m as tam bém a esfera da reprodução social e vida cotidiana, sendo ele
próprio, em si e para si, o terreno do im aginário social.

Ora, toda sociedade hum ana precisa de ideologia. A distinção


trabalho/ ideologia é m eram ente heurística, tendo em vista que todo trabalho

 
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pressupõe – com o dim ensão intrínseca a si – um a ideologia. Isto é, im plica não


apenas a ação do hom em sobre a Natureza, m as a ação do hom em sobre outros
hom ens e ação do hom em sobre si m esm o (m ediada, nesse caso, pelas relações
sociais de produção, que no caso da sociedade do capital, está lastreada na
propriedade privada/ divisão hierárquica do trabalho).

Assim , sob a relação-capital, o “trabalho ideológico” assum e, cada vez


m ais, um caráter m anipulatório – no sentido negativo. É o que podemos
considerar com o sendo a ideologia com o recurso sistêm ico de
controle/ manipulação social. (é o sentido negativo de ideologia com o falsa
consciência). Portanto, o “trabalho ideológico” tende a reforçar, intensificar e
am pliar, o sentido do trabalho capitalista com o trabalho estranhado.

A ideologia sob a sociedade de classes – e a sociedade burguesa é a form a


histórica m ais desenvolvida de sociedade de classe – tende a assum ir, cada vez
m ais, um caráter m anipulatório. A form a-mercadoria e seu fetichism o, que se
dissem ina sob a sociedade capitalista, a mais desenvolvida sociedade mercantil
da história hum ana, tende, por sua vez, a ocultar a natureza da m anipulação
sistêm ica. Aliás, o fetichism o é o m odo de operar da ideologia sob um a
sociedade produtora de m ercadorias. Na m edida em que
oculta/ inverte/ perverte o sentido real (ou essência) das objetivações sociais
(produto-m ercadorias, instituições e valores m orais que aparecem com o coisas),
a operação de fetichização é, em si e para si, um “trabalho ideológico”, que
constitui significantes a partir de significados estranhados (posições
teleológicas secundárias que reiteram a relação-capital).

Sob o capitalism o global ou capitalism o m anipulatório, a ideologia com o


m anipulação sistêm ica que é a ideologia propriam ente dita, em seu sentido de
negatividade, tende a assum ir um a nova textura interna decorrente das próprias
exigências do processo de produção/ reprodução social do capitalism o
com plexo.

 
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Fo rm as d e s e r d a Id e o lo gia

Ideologia com o exigência sócio-ontológica da produção/ reprodução social

Ideologia com o recurso sistêm ico de controle/ m anipulação social

A crise estrutural do capital que em erge em m eados da década de 1970 ,


abre um período histórico de reestruturação capitalista nas várias instâncias da
vida social. No centro do complexo reestruturativo do capital coloca-se a
reestruturação produtiva que im pulsiona um com plexo de inovações
tecnológico-organizacionais e inovações sócio-m etabólicas do m ais am plo
espectro social. Na verdade, a crise estrutural coloca a necessidade sistêm ica da
reestruturação da produção do capital com o produção de sobretrabalho
alienado. A produção do capital se coloca com o totalidade social cujo traço
essencial é a “captura” da subjetividade do hom em que trabalha.

Na reestruturação produtiva do capitalism o m anipulatorio , o “trabalho


ideológico” organiza a construção de consentim entos espúrios à dinâm ica da
exploração capitalista. É a busca por um a nova hegem onia do capital na
produção e reprodução social, implicando a vida cotidiana das individualidades
pessoais de classe. No plano da produção de valor, instauram -se novos m étodos
de organização corporativa plasm ados pelo espírito do toy otism o cujo nexo
essencial é a “captura” da subjetividade do hom em que trabalha.

O toy otism o é a ideologia orgânica da produção do capital nas condições


históricas do capitalism o m anipulatário. Enquanto m odo de subjetivação
social – e não apenas m odelo de produção e gestão em presarial - o toyotism o,
organiza, inclusive no plano da reprodução social e vida cotidiana, um a série de
valores-fetiches que visam construir, através de escolhas pessoais das

 
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individualidades de classe, consentim entos indispensáveis para o


funcionam ento de dispositivos organizacionais do sistem a do capital.

Deste m odo, busca-se constituir na produção (e reprodução social) – isto


é – no âm bito da totalidade social, novas disposições psicofísicas necessárias
para o envolvim ento do hom em que trabalha com o sistem a-m undo do capital.
O que se põe cada vez m ais é o capital com o um m odo de controle do
m etabolism o social.

Assim , das estratégias de contratação dos gestores do capital (com o


vim os no film e “O que você faria?”) às estratégias de organização dos grupos de
trabalho e de produção nos locais de trabalho reestruturados, o que se coloca é a
lógica da “captura” da subjetividade do hom em que trabalho im plicado, em cada
m om ento da vida cotidiana, com escolhas pessoais sob constrangim entos
sistêm icos dados.

A “captura” da subjetividade do hom em que trabalha – nexo essencial do


toyotism o enquanto ideologia orgânica da reestruturação produtiva sob as
condições históricas do capitalism o m anipulatório - ocorre através de escolhas
pessoais sob condições sistêm icas constrangedoras, im plicando, portanto,
consentim entos espúrios construídos sob efeito do “trabalho ideológico”.

Portanto, a “captura” da subjetividade do hom em que trabalha é um a


escolha pessoal alienada, um tipo de servidão voluntária de agentes/ sujeitos
de classe sob determ inadas condições. Ela opera um nexo psicofísico de novo
tipo que im plica dim ensões inconscientes e pré-conscientes da alm a hum ana.
Enquanto efeito do trabalho ideológico, a “captura” da subjetividade do hom em
que trabalha, im plica a despersonalização do trabalho vivo através de
dispositivos de desconstrução pessoal (com o, por exem plo, a culpabilização da
vitim a).

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N e xo s d o Cap italis m o Glo bal

“cap italis m o m an ip u lató rio ”


Prim ado do “trabalho ideológico”

Cris e e s tru tu ral d o cap ital

Reestruturação Produtiva

Produção com o Totalidade Social

To yo tis m o

“Cap tu ra ” d a s u bje tivid ad e d o h o m e m qu e traba lh a

Es co lh as p e s s o ais e s tran h ad as

O título em português do film e “El m étodo” (titulo original) – “O que


voce faria?” – foi feliz, na m edida em que conseguiu apreender o nexo m oral
dos dispositivos de “captura” da subjetividade do hom em que trabalha: a
pergunta “o que você faria” im plica um a escolha m oral das individualidades de
classe constrangidas, jogadas na “selva do m ercado” pelas estratégias de
negócios das corporações globais.

Assim , a “captura” da subjetividade do trabalho se dá por m eio de


escolhas pessoais às perguntas feitas em situações estratégicas do cotidiano: “O
que você faria?”. Enfim , escolhas que im plicam a adoção “voluntária” de valores
– valores-fetiches da ordem burguesa.

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Sob o capitalism o m anipulatório, o foco privilegiado é o Eu das


individualidades pessoais de classe. Estam os do “capitalism o Você S/ A”. Por
isso, o apelo às ideologias do empreendedorism o e trabalho por conta própria
que usam e abusam da noção de talentos hum anos ou m esm o de capital
hum ano.

É claro que as ideologias do auto-em preendedorism o são (1) expressões


da crise do em prego sob o capitalism o global, além de (2) expressarem a
transform ação do conhecim ento em capital im aterial sob a lógica de m ercado e
o capitalism o da sociedade em rede. Mas tam bém o foco no Eu das
individualidades pessoais de classe expressam (3) a constituição de um a nova
form a de capitalism o – o capitalism o m anipulatório - onde a disputa pelo valor
ocorre no interior da subjetividade do trabalho vivo. Nessa etapa do processo
civilizatório hum ano-genérico, pressuposto negado do capitalism o global, de
fato, é o Eu das individualidades pessoais de classe, que faz, no interior da vida
cotidiana, escolhas éticas, cada vez m ais im prescindíveis ao processo de
reprodução social (em bora negada – e subsum ida à relação-capital – a ideologia
no sentido sócio-ontológico, isto é, ação do hom em sobre outro hom em e
tam bém ação do hom em sobre si, não deixa de ser um a necessidade
inelim inável do processo civilizatório).

As individualidades pessoais de classe enquanto “proletários de classe


m édia”, trabalhadores assalariados de alta qualificação que visam se inserirem
no m ercado de trabalho com o gestores do capital (o que im plica graus de status
e prestigio social), têm um a vida de provação pessoal – ou “vida de entrevistas”
buscando galgar novas posições de trabalho com patíveis com seus interesses
pessoais e de carreira profissional. Por exem plo, num a das cenas do film e “O
que você faria?”, Ana observa que já veio a duas entrevistas. Enrique diz que
veio a três – sendo que o prim eiro teste não foi propriam ente um a entrevista,
m as sim , um teste psicotécnico.

Ora, a condição de proletariedade dos gestores do capital é m arcada pela


subalternidade aos valores-fetiches da em pregabilidade e com petência na
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gestão da ordem burguesa, além da contingencia de carreiras profissionais


m arcadas pela interm itência de m ercado. Parecem livres m as estão subm etidos
ao poder das coisas. A vida pessoal é quase reduzida à interesses de carreira
profissional. Na verdade, a vida pessoal é clivada de testes que buscam validá-
los com o hom ens da adm inistração das coisas, hom ens e m ulheres coisificados
capazes de incorporarem valores-fetiches da ordem burguesa. Por isso, o
devassam ento da alm a hum ana através de entrevistas e testes psicotécnicos
quase que recorrentes

Os candidatos se interrogam sobre as condições da avaliação a qual serão


subm etidos. Eles desconhecem a natureza do m étodo de seleção de pessoal. Há
um claro estranham ento no processo de seleção, que incita os candidatos a
especularem sobre o que é o “m étodo Grönholm de seleção de pessoal”.
Enrique, o candidato m ais bem inform ado sobre as técnicas de contratação de
pessoal, explica o que seria o dito “m étodo Grönholm ”. Diz ele: “Um m étodo em
que se reúnem todos os candidatos e os fazem interagir para ver quem se
destaca.” É um tipo de dinâm ica de grupo. J ulio im agina ser um a entrevista
conjunta com todos os candidatos.

Na verdade, o “m étodo Grönholm ” não é m era entrevista com todos os


candidatos, m as sim um tipo de dinâm ica de grupo. Enrique observa:
“Apresentam aos candidatos um a série de casos teóricos, por exem plo, ou
problem as inerentes ao cargo, e eles têm que discutir qual a m elhor solução.”
Noutro m om ento, ele observa que nos EUA, fazem um tipo de seleção de
pessoal em que os candidatos são convocados e trancados num a sala e eles
observam com o agem , com o se relacionam entre si, quem tem algum conflito,
quem se acha m ais do que é, quem fala m ais, quem fala m enos.” É um tipo de
reality show do capital.

O problem a dos realities show aplicados a seleção de pessoal – com o o


“m étodo Grönholm ” – está em saber quem avaliará os candidatos, tendo em
vista que aparentem ente não há ninguém da em presa presente no local do
experim ento. Ora, todo processo de avaliação im plica um avaliador externo que,
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não estando presente, pode se utilizar – ou não - de aparatos técnicos para


acom panhar o desem penho dos candidatos à distância.

Num prim eiro m om ento, os candidatos suspeitam de m icrofones ou


câm eras na sala de teste. Por exem plo, Enrique coloca a possibilidade de
existirem m icrofones ou câm eras instaladas. Por outro lado, J ulio, que apela
para a noção de direitos individuais da pessoa hum ana, pergunta: “Mas é legal
colocarem câm eras?”. Enrique observa: “Com o se a ilegalidade fosse um
problem a”.

Entretanto, a lógica interna do m étodo Grönholm de seleção de pessoal é


outra. Ele não im plica o olhar externo que utiliza aparatos de controle ou
inform antes que observam o desem penho dos candidatos, m as sim o
envolvim ento de cada candidato num jogo de m anipulação do Outro visando
atingir, com com petência, interesses particularistas.

A dúvida continua: com o os candidatos serão avaliados se não há


ninguém da em presa? Após suspeitarem de m icrofones ou câm eras, levantam a
possibilidade da existência de um inform ante da em presa entre eles. Ora,
m esm o deste m odo, o que se coloca ainda é um olhar externo de controle que
todos tem em – m icrofones, câm eras ou inform antes não deixam de ser um
“vigia externo” a cada um deles.

Mas o que cada um não tem e com o agente da avaliação da em presa é o


Outro-próxim o-de-si, o Igual que com partilha os m esm os valores
particularistas. Na m edida em que o Outro-próxim o– de-si, o concorrente que
se encontra lado a lado se envolve com valores-fetiches, ele tende a agir –
m uitas vezes sem o saber – com o o agentes capazes de avaliar o colega
concorrente. É o que podem os denom inar de m anipulação reflexiva, um a
m anipulação invisível e onipresente instigada pelas estratégias do reality show .

Eis o sentido da m anipulação sistêm ica do capital e do novo panoptism o


dos m étodos de gestão toyotista – no processo de obtenção das m etas pelas
equipes de trabalho, cada um é “carrasco” de si e do Outro com o próxim o.
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Enfim , não há chefias externas im ediatas para o controle, m as ela está


introjetada em cada um . É o sentido radical do dito hobbesiano do “bellum
om nes contra om nes” (a luta de todos contra todos).

Entre o grupo de candidatos observa-se que há um m em bro do


departam ento de seleção de pessoal. A prim eira tarefa é fazer a identificação
deste “inform ante” da em presa. Entretanto, o que talvez não saibam é que, a
presença do “inform ante é m ais para propiciar a dinâm ica de m anipulação
reflexiva, que para “vigiar” os candidatos nas provas de seleção. Num certo
m om ento, Enrique observou: “Se fazem passar por candidatos e assim podem
nos observar de perto, ouvir o que dizem os.” Entretanto, Enrique não entendeu
a nova lógica de controle do capital baseado na estratégia da m anipulação
reflexiva, onde o verdadeiro “vigia” de si e dos outros não é um “Inform ante
externo”, m as sim , cada um dos colegas.

Ora, a prim eira tarefa da em presa foi ocultar a nova lógica da


m anipulação sistêm ica. No decorrer do processo de seleção de pessoal, tornar-
se-á claro que quem observa de perto, ouve e olha cada um deles não é o
Inform ante da em presa, m as sim , os próprios Iguais, onde cada um elim ina o
Outro-próxim o-de-si através de subterfúgios pessoais

Ao ser inquirido se tem câm era ou não, Ricardo apenas confirm a que a
em presa Dekia se utiliza de um novo m étodo de seleção de pessoal baseado na
técnica do reality show , estratégia de m anipulação reflexiva que altera o
registro da m anipulação sistêm ica. Com o o espírito do protestantism o, que,
com o observou Marx, coloca os grilhões no interior da alm a hum ana, o espírito
do toyotism o – base m aterial da nova lógica de m anipulação reflexiva – tende a
excluir o vigia exterior (câm eras e m icrofones, por exem plo), e m esm o o
inform ante oculto - com o salientam os, a função de Ricardo, o suposto
“Inform ante da em presa”, é m enos vigiar os candidatos que m ediar (ou
facilitar, com o se diz) a dinâm ica do reality show ). Os verdadeiros algozes de
cada um dos candidatos é o Outro-proxim o-de-si ou o próprio candidato (o que
dem onstra que a culpabilização da vítim a possui um lastro real).
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Mais tarde, Ricardo iria confirm ar que não tem “vigia externo” – em bora
possam os verificar, ao final, que há sim , câm eras de video nos recintos da Dekia.
Na verdade, as câm eras de video não cum prem a função de vigiar os candidatos
da dinâm ica de seleção de pessoal. Diz ele: “Não porque seja ilegal [o que
dem onstra o desprezo das grandes em presas pelos “preciosism os” legais - G.A].
Não nos parece ético.”

Ora, nesse caso, o discurso da ética faz parte da técnica de m anipulação


reflexiva, na m edida em que visa preservar a credibilidade indispensável que a
em presa deve ter perante os candidatos a postos de executivos. Para que o
espírito do toy otism o seja incorporado pelos candidatos que pleiteiam um cargo
de executivo ou em prego, é necessário que a em presa apareça com o portadora
de confiabilidade ética. Eles têm que acreditar, de fato, na im agem de “em presa
responsável”.

Na verdade, o discurso da ética é a m oeda de troca no jogo do auto-


engano. O discurso da ética oculta a ética do (m ero) discurso, sem lastro no
m undo real do capital – o m undo da exploração e estranham ento social. Ele
torna-se um recurso sublim inar do “trabalho ideológico”, não apenas na ação do
hom em sobre o hom em (a suposta im agem de credibilidade pública da em presa
responsável), m as do hom em sobre si m esm o (a ética com o m atéria-prim a
ideológica do auto-engano).

No com eço da dinâm ica de seleção de pessoal, a em presa Dekia, que se


com unica com os candidatos através de telas de com putadores ligados em rede,
dá boas-vindas aos candidatos finalistas e apresenta o term o de com prom isso
m oral entre ela e eles. Num prim eiro m om ento, a em presa – que não tem voz,
pois são os próprios candidatos finalistas que lêem os com unicados da Dekia
nas telas dos m onitores - levanta a m oral dos candidatos, parabenizando-os por
serem eles os finalistas!: “Parabéns por terem chegado até aqui. Vocês são
finalistas das entrevistas e provas anteriores porque dem onstram capacidade e
experiencia para ocupar o cargo. No entanto, hoje se decidirá quem é o m ais
apto. Considerarem algum as das provas inaceitável para vocês, podem
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abandonar o processo. Ninguém é obrigado a fazer o que não quer, m as


enquanto perm anecerem na sala, deverão aceitar as condições descritas no
m étodo Grönholm .” (o grifo é nosso). Quem lê o com unicado de apresentação
da em presa é J ulio Quintana, um dos candidatos finalistas, advogado,
econom ista e ex-diretor com ercial de um a grande em presa (ele seria
considerado por Ricardo, m uito qualificado para o cargo). J ulio será o primeiro
candidato a ser elim inado na dinâm ica de seleção do m étodo Grönholm .

No com unicado da empresa salientam os a observação: “...hoje se decidirá


quem é o m ais apto.” Eis a questão-chave: a lógica da seleção de pessoal é
decidir quem é o m ais apto para ocupar o cargo de executivo da em presa Dekia.
Com o na selva, sobrevive os m ais aptos. A questão é saber quais os critérios de
avaliação e o m étodo de seleção do “m ais apto” entre os candidatos finalistas.
Irem os desvelar, aos poucos, a natureza do m étodo Grönholm .

Um detalhe curioso: além de não ter voz – pois a voz é dos próprios
candidatos finalistas que lêem seus com unicados nas telas dos m onitores
(expressão da em presa toyotista), não sabem os o que a em presa produz (o que é
expressão da lógica social do trabalho abstrato). É interesante observar que o
processo de seleção de pessoal por m eio do m étodo Grönholm é m ediado por
telas de m onitores ligados em rede que dizem quais os próxim os passos da
dinâm ica de grupo. Um dos concorrentes diz, logo que a logom arca da em presa
Dekia aparece na tela do com putador: “Vam os ver o que as m áquinas têm a
dizer”. Na verdade, no sistem a-fetiche do capital, são as m áquinas que se
expressam . Máquinas que têm algo a dizer e hom ens que agem com o m áquinas
– eis a dimensão fetichizada da sociabilidade capitalista.

Na lógica da m anipulação reflexiva, as grandes em presas criam a


redundância planejada com o técnica de im plicação subjetiva. Na verdade,
trata-se de estratégia de despersonalização do hom em que trabalha visando
testar sua disposição de auto-hum ilhar-se diante das im posições sistêm icas do
capital. DE certo modo, é um elem ento-teste de resiliência onde o sujeito

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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

escolhe – e se trata de um a escolha pessoal – aceitar as condições de sua


própria anulação pessoal.

Por exem plo, vejam os a cena em que um dos candidatos – Ricardo -


observa que já preencheu um m esm o form ulário várias vezes – um em cada
entrevista. E diz: “E entreguei um curriculum onde digo praticam ente o
m esm o.” E protesta: “Não sei porque tenho que preencher outra vez.” Ricardo
se insurge contra a redundância planejada, considerando isto um a hum ilhação.
A secretaria da em presa, Montse, observa: “Todos estão preenchendo”.

Deste m odo, ela apela para a reflexividade social a serviço da construção


do consentim ento espúrio. Enfim , faça o que todos fazem , m esm o que isto seja
hum ilhante. Depois, ela observa que não é obrigatório preencher o form ulário
redundante, m as terá que preenche-lo se quiser participar da avaliação. Ora,
trata-se de um a argum entação cínica que desvela a farsa da liberdade burguesa
(você é livre, m uito em bora esteja subm etido ao poder das coisas).

Ricardo vê no artifício da redundância planejada um teste de paciência.


Montse, a secretária, observa que ele está sendo “pouco flexível”. Nesse caso,
um recurso de ironia desvelado por Ricardo: “É incrível Tenho que preencher
um form ulário m il vezes e o inflexível sou eu.” Ora, desm itifica-se o m ito da
acum ulação flexível – o capital exige flexibilidade do trabalho vivo, m as
enquanto relação social, é a form a social m ais rígida na face da Terra.

Diante do em bate verbal entre Ricardo e Montse, Fernando e Enrique


aproveitam para exibir suas disposições colaborativas com a lógica da
redundância planejada. Nesta cena, os dois se aproveitam da atitude não-
colaborativa de Ricardo, para exibir sua capacidade flexível. Diz Fernando:
“Tudo bem, com panheiro. J á deixou claro que não se rebaixa. Agora deixe que
nos rebaixem os se quiserm os.” Enrique dem onstra que soube verifique detalhes
na solicitação de preencher mais um form ulário, julgando não ser isto
redundante. Diz ele: “Desculpe, não sei se reparou, mas o form ulário não era
igual aos anteriores. Por exem plo, nesse havia a cláusula do m étodo Grönholm .”
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Após a elim inação de J úlio, Enrique, Ricardo e Carlos conversam no


banheiro. O tem or de câm eras ocultas é instigado por Ricardo que observa – de
form a sarcástica: “Acha que se pode tirar algum a conclusão pelo m odo com o
alguém urina?”. De repente, aquele coletivo de candidatos tem e um “vigia
externo” – câm eras, microfones ou inform ante oculto. Ou ainda, a exposição de
segredos pessoais que com prom etam a avaliação. Ricardo – que instiga os
dem ais candidatos – pergunta: “Fico pensando se não terão um segredo de cada
um nós guardado para usar quando for preciso.”. Ao m esm o tem po, a
elim inação de J úlio, para Ricardo, significou apenas “um candidato a m enos”.
Ele procura instigar nos candidatos afetos particularistas adequados para o
enfrentam ento que ocorre naquele processo de seleção (o m edo e o egoísmo
pessoal). Com o psicologo da em presa infiltrado no grupo de candidatos, Ricardo
não “vigia”, m as faz a m ediação catalisadora capaz de prom over a auto-seleção
de pessoal para exercer o cargo de executivo na em presa.

Em bora Ana tenha elogiado Fernando pela boa defesa que fez de J úlio,
colocando, segundo ela, os colegas concorrentes contra a parede, Ana votou
contra J úlio, desclassificando-o. Fernando intrigado pergunta: “Se achou tão
boa, por que votou contra?”. Ana dá uma resposta intrigante: “Acho que gosto
de que m e im plorem .” Ora, a atitude dela expressa um tipo de auto-satisfação
perversa. Im potentes diante das condições de produção de sua vida pessoal,
individualidades de classe com personalidades narcísicas, se auto-satisfazem
com a exaltação de sua pessoa por outrem . Ao dizer que gosto que m e im plorem ,
Ana expressou um a falha de personalidade que expõe um a crueldade interna.
Na sociedade do fetiche, as falhas de caráter que expõem o lado desum ano das
pessoas, tornam -se quase constantes. Nas situações de concorrência, elas são
recorrentes, com a exaltação perversa do Eu por atitudes de imploram ento se
pondo com o bálsam os da alm a hum ana alienada.

Após exercitar sua crueldade narcísica no jogo da predação pessoal com o


m étodo de seleção para ocupar um cargo executivo na em presa Dekia, Ana é
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excluída tal com o J úlio foi excluído pelo voto dela na prova anterior. Nesse caso,
coube a Carlos exercer o papel de predador – predação exercida com
argum entação lógico-racional (no sentido da racionalidade sistêm ica). Mas
Carlos – com o Ana – sabem que estão inseridos num jogo cruel. Ele diz: “Sinto
m uito, Ana. Fiz o m esm o que você. Cuidei de m im . O que eu disse, não foi pra
valer. Só estava interpretando um papel para ganhar um jogo.”

Traço s d a p e rs o n alid ad e p articu laris ta

Auto-satisfação perversa

Pragm atism o cínico

Resignação e auto-hum ilhação

Enfim , com sinceridade, Carlos expõe, com consciência, a atitude cínica


que o sistem a exige de cada um . Prim eiro, expressa sentim entos hum anos
(Sinto m uito!) para depois, im buído do pragm atism o cínico, expor a verdade
das coisas: “Fiz o m esm o que você. Cuidei de m im ”. Está é a m oral sistêm ica que
involucra a “guerra de todos contra todos” do m undo neoliberal. Enfim , com o os
antigos gladiadores no Coliseu da Rom a Antiga, que vença o m elhor ou o mais
apto. Eis a lógica interna do m étodo Grönholm . Na atitude cínica de Carlos ao
dizer – “cuidei de m im ” - há a m oral particularista que m arca as
individualidades de classe sob a (des)sociabilidade neoliberal.

Ao lado da “culpabilização da vítim a”, um dos recursos cruéis do


m etabolism o social do capital em sua etapa de crise estrutural, onde o desm onte
da pessoa hum ana (ou desefetivação hum ano-genérica) tornou-se regra
sistêm ica, é a frustração recorrente de expectativas.

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A frustração – m esm o que de form a sim ulada, com o ocorreu por alguns
segundos no film e - é o sentim ento adequado para esm agar as veleidades
pessoais das individualidades de classe. Frustra-se para decom por vontades e
projetos – m esm o que sejam projetos particularistas, com o o de cada um dos
concorrentes pelo cargo de executivo da Dekia. Na verdade, Montse, a
secretária, sim ula que o RH decidiu term inar as provas. Por alguns segundos,
frustraram -se expectativas. Mas logo a seguir, ela diz: “Brincadeira! . Na
verdade, não é apenas um a brincadeira, m as um a técnica de revolver e
m anipular a subjetividade dos candidatos.

Ora, m anipula-se expectativas (e sonhos) com o técnica de “captura” da


subjetividade. Um pequeno traum a de frustração que logo aparece com o mera
brincadeira – na verdade, é um ardil da equipe de psicólogos da Dekia. Enfim ,
eles querem testar a capacidade de resignação às frustrações – elem ento
recorrente da ordem burguesa.

Cada situação da tram a do reality show instituído pelo m étodo


Grönholm é um verdadeiro teste para os candidatos onde – intim am ente - se
interroga sobre o que você faria. A m anipulação im puta às vítim as a culpa
pelas escolhas constrangidas. Por exem plo, ao sim ular por alguns segundos o
térm ino do teste, avaliou-se, naquele m om ento, a atitude dos candidatos à
frustração, que é um elem ento recorrente do m etabolism o do capital. Depois, ao
servir com ida fria e m al-cheirosa aos candidatos, na hora do lanche, avalia-se a
resignação dos candidatos às situações degradantes. Ninguém reclam a.
Observam que a com ida está fria. Montse atribua a culpa aos protestos
populares anti-globalização que fizeram os restaurantes fechar. Carlos observa:
“É im aginação m inha ou isto está fedendo?”. Entretanto, ninguém se m anifesta.
Talvez saibam que estão sendo avaliados em sua capacidade de resiliência.
Nieves desiste de com er, m as diz: “É que não estou com fom e”.

Enfim , a prova da com ida estragada visa apreender traços


com portam entais que são relevantes para a em presa toyotista, onde m ais
im portante que a qualificação profissional propriam ente dita, são as
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com petências em ocionais e habilidades com portam entais adequadas à lógica


do capital. Enfim , o capital exige hoje atitudes colaborativas, m esm o que isso
signifique frustração ou hum ilhação da pessoa hum ana.

A dinâm ica do m étodo Grönholm prom ove um tipo de interação espúria


onde – pouco a pouco – cada candidato, ao m esm o tem po em que exerce um
“trabalho ideológico” sobre o Outro, buscando convence-lo com argum entos
factíveis, intim am ente visa elim ina-lo. Há um processo de auto-aprendizagem
pessoal estranhada, onde cada um é predador do Outro. Enrique observa: “É
tudo m uito bem pensado. E se aprende m uito. Com o debate, por exem plo. De
início eu pensava um a coisa e Nieves m e fez m udar de opinião.” Mais tarde,
Ricardo observaria: “Há alguns candidatos que m e agradecem , m esm o sendo
elim inados. Dizem que se sentem m elhor preparados para a luta diária, mais
conscientes de suas possibilidades e de suas lim itações.”

Ora, as provas de seleção nas em presas, além de possuírem um a caráter


avaliativo, têm um sentido pedagógico. Ao m esm o tem po que avaliam , educam .
Elas conform am os candidatos que as exigências postas pelo m etabolism o social
do capital. A concorrência com o prática sócio-m etabólica recorrente no m undo
do capital “educa” hom ens e m ulheres para a conform ação à selva do m ercado.
Portanto, im pulsionam um tipo de processo de subjetivação que conform a
hom ens e m ulheres ã lógica do trabalho heterônom o.

Ricardo, o psicologo do m étodo Grönholm , explica com o surgiram as


provas de seleção. Diz ele: “Sabiam que os m ilitares inventaram as provas de
seleção? Depois da 1ª . Guerra Mundial, na Alem anha, já que im puseram m uitas
lim itações ao exército alem ão depois do Tratado de Versalhes, eles resolveram
testar seus com andantes com provas com o esta. E, para melhor avalia-los,
incluíam um psicologo na com issão de seleção. Do exército alem ão, passou ao
inglês; do inglês para o am ericano e depois para as em presas.”
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As provas de seleção nas em presas buscam afirmar um padrão de


subjetividade adequada à lógica do capital que im plica, com o seu traço
estrutural, a divisão hierárquica do trabalho. Na verdade, a hierarquia social é
a alm a do capital. A m anipulação sistêm ica, que visa afirm ar a lógica do capital
nas condições de subjetividades com plexas, origina-se no exército, um a das
instituições sociais onde a hierarquia é sua coluna vertebral. Do exército sai para
as em presas capitalistas.

Existe um m edo prim ordial no “coletivo” de candidatos finalistas na


dinâm ica de seleção para o cargo de executivo da empresa Dekia: o m edo do
im postor ou inform ante da em presa. O subproduto do m edo é a desconfiança.
Na lógica da concorrência, instigada pela sociabilidade neoliberal, o principio
basilar é sem ear desconfianças m útuas entre hom ens e m ulheres. Ora, a
desconfiança desconstitui o Outro com o próxim o. Ela é um subproduto da
“sociabilidade” da concorrência. Na verdade, a desconfiança é o afeto que
inaugura o cam po da predação concorrencial, corroendo e elim inando
quaisquer laços de reconhecim ento hum ano-genérico.

O im postor ou inform ante da em presa é o Outro negativo, e naquele


sim ulacro de coletivo, que é o grupo de concorrentes, qualquer um pode não ser
um verdadeiro candidato. Com o diz um candidato, “tem um de nós que não é
um de nós.”Ao colocar com o prim eira prova a ativação da desconfiança m útua,
o m étodo Grönholm sedim enta as bases da sociabilidade concorrencial, abrindo
o espetáculo de predação m útua entre os candidatos.

Enrique lê a prim eira prova da dinâm ica de seleção de pessoal:


“Dissem os que são os últim os candidatos. Só que não são sete candidatos. Entre
vocês, há um m em bro do nosso departam ento de seleção de pessoal. Sua
prim eira tarefa é averiguar qual de vocês não é um verdadeiro candidato.” Ora,
não deixa de ser curioso que, após sem ear a desconfiança – não se conseguiu

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identificar quem é o Im postor – a em presa propõe com o próxim a tarefa a


escolha do líder do grupo, não por m aioria, m as por consenso do próprio grupo.

Ora, o capitalism o manipulatório visa sem ear um com plexo de afetos


contraditórios na alm a hum ana. O m étodo Grönholm revolve a subjetividade
pessoal, esgarçando-a com afetos contraditórios. Por exem plo, instiga
desconfiança e exige confiança.. Além disso, coloca escolha do líder de um
grupo que é m ero sim ulacro de grupo, tendo em vista que se trata de um
conjunto de candidatos concorrentes (a atitude de Fernando é a m ais coerente
com a lógica particularista im plícita – diz ele: “não vou escolher ninguém a não
ser eu m esm o”). E pior: exige-se que a escolha do suposto líder do grupo – m ero
sim ulacro de tim e – deve se dar por consenso, ativando nesse caso, a capacidade
de construir supostos consensos em situações adversas.

J úlio diz: “Não nos conhecem os. Terá que ser por intuição.” E indica
Enrique com o líder do grupo. Mas Enrique estava sob suspeita de ser o
Im postor. Fernando diz que se recusa a escolher o Inform ante da em presa.
Diante do im passe, Enrique indica J úlio e Nieves propõe um a votação por
escrito e secreta para escolher o “capitão do tim e”, e verificar quanto apoio tem
Enrique ou J úlio. No final, depois de rom per im passes com Fernando, J úlio é o
líder escolhido.

A m anipulação sistêm ico-reflexiva constrói verdadeiros sim ulacros –


um líder de grupo que não é um líder propriam ente dito, pois a dinâm ica de
seleção de pessoal instiga atitudes predatórias de uns para com o outro –
incluindo o próprio suposto líder (o que se verá a seguir); além disso, não se
trata, a rigor, de grupo (ou tim e), pois sim , de um conjunto de individualidades
de classe concorrente.

Na verdade, vive-se num m undo de sim ulações ou atribuições fictícias É


a lógica do capitalism o m anipulatório em sua expressão plena, onde paz é
guerra, liberdade é escravidão, confiança é desconfiança;

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O sistem a da m anipulação reflexiva cria expectativas e as frustra, joga


uns contra os outros, sim ula com situações, revolve, inverte e perverte a
subjetividade do hom em que trabalha. Enfim , a interioridade do hom em
singular é devassada por estím ulos de valoração que a todo m om ento exigem
dele um posicionam ento ético. Eis o significado do título: “O que você faria?”.
Toda escolha existencial im plica um posicionam ento ético mais ou m enos
significativo no plano sócio-ontológico. Os candidatos estão a todo m om ento
sendo inquiridos no plano ético-m oral. A subjetividade do hom em que trabalha
está a todo m om ento sendo convocada para se posicionar, assum indo para si
um a responsabilidade que não é sua.

A m anipulação reflexiva se constitui no interior deste cam po ético-m oral


que m obiliza os sujeitos de classe. Assim , a em presa que instigou os candidatos
a escolherem o líder do grupo, provoca, logo a seguir, um a situação capaz para
destitui-lo – de fato, são os colegas que o elegeram, que o destituem . Na
verdade, o expulsam .

Ora, talvez, a em presa tenha vasculhado a vida pessoal de cada


candidato. Qualquer candidato que fosse escolhido com o líder, teria um fato
com prom etedor contra si. Com o observa Fernando: “Estam os com eçando a
perceber com o funciona o tal m étodo Grönholm . Terão um a assim guardada
para cada um de nós?”. É parte da técnica de m anipulação reflexiva ir
com pondo um am biente de concorrência onde cada um possa predar o outro.
Não se trata apenas da em presa explorar o hom em que trabalha, m as sim , dos
próprios trabalhadores assum irem a responsabilidade m oral pela exploração
instituída pelo capital (o trabalhador é algoz de si próprio). Sob a m anipulação
reflexiva, a exploração é plenam ente com partilhada entre capital e trabalho
assalariado.

Líder escolhido, líder deposto – deposto pelos próprios colegas que o


escolheram . Após J úlio Quintana ser escolhido com o líder do grupo, aparece de
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im ediato, na tela dos m onitores, a reportagem de um jornal que relata a luta de


J úlio contra a em presa em que trabalhava, um a fábrica de pesticidas que iria
provocar um a catástrofe ecológica no Rio Douro (o título da m anchete é é
“David contra Golias” - o David da consciência ético-ecológica contra o Golias
da avidez de lucros).

A em presa Dekia coloca para o grupo após a denúncia apresentada contra


J úlio a seguinte a tarefa: “Decidam agora o que fariam com a candidatura de
J úlio Quiroga ao cargo se fizessem parte do Departam ento de Pessoal da
em presa. Sua decisão determ inará se J úlio Quiroga continuará ou não no
processo de seleção.”

Nesse m om ento, discute-se a atitude de J úlio Quiroga em denunciar a


em presa em que trabalha, acusando-a de com eter catástrofe ambiental. Nieves
diz: “Tem os que decidir se confiam os em J úlio, ou não?”. Em bora diga que não
quer julgar J úlio, diz que ele, do ponto de vista em presarial traiu a em presa.
J úlio diz que não traiu pois não teve opção: “Não tive outra saída”.

O que está em jogo são valores ecológicos que devem ser respeitados
inclusive pela em presa (Enrique chegou a dizer: “A ecologia e o meio-am biente
são fatores que nenhum a em presa pode prescindir”). Num prim eiro m om ento,
coloca-se, portanto, um a discussão no plano ético-m oral: Júlio fez ou não a
coisa certa? O próprio J úlio quer que a discussão perm aneça nesta instância
ético-m oral. Enfim , coloca-se o prim ado ético-m oral (diz ele: “O que tem os que
discutir é quais são as conseqüências das nossas decisões. Se a em presa lhes
pedisse algo ilegal, vocês fariam ?” – todos se calam ).

Fernando, que defende a responsabilidade social das em presas, fica do


lado de J úlio. Diz: “Eu escolheria o J úlio e digo porque: o que im porta para um a
em presa são os resultados das discussões. De fato, as m elhores em presas são as
que sabem absorver as m elhores idéias, não im porta de que em pregado. No caso
da fábrica de pesticidas, ou o que fosse a em presa de J úlio, o problem a está na
diretoria. A responsabilidade é claram ente dela, por haver assum ido um risco
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suicida ao lançar resíduos no rio e por não ter sabido prever as conseqüências,
com o a denúncia de J úlio.”

Deste m odo, Fernando assum iu um a posição de critica à im putação de


responsabilidade às v ítim as – m ecanism o de m anipulação reflexiva ao estilo da
“culpabilização das vítim as”. O capital com o sistem a de m anipulação reflexiva
tende a implicar cada vez m ais a dim ensão m oral do hom em . Fernando discorda
que a responsabilidade pela expulsão de candidatos concorrentes possa ser dos
próprios candidatos concorrentes. Diz ele: “Isso é um a responsabilidade que a
em presa jogou sobre nós, sem nos consultar e de graça.” E diz para os colegas:
“E vocês aceitaram sem reclam ar porque acham que é isso que a em presa espera
de vocês. Mas se não for assim ? Estão convencidos que é isso que a empresa
espera de vocês?”. Diante do em pate técnico na votação sobre a expulsão de
J úlio, Fernando diz que é a em presa que deve decidir se expulsa ou não J úlio.

Ora, enquanto se coloca no plano ético-m oral, a atitude de J úlio Quiroga


é defensável. Carlos reconhece que, do ponto de vista do juízo m oral, J úlio agiu
corretam ente. Entretanto, ele passa a avaliar o colega concorrente a partir da
lógica da razão com unicativo-instrum ental.

Diz ele: “J úlio agiu bem e a em presa agiu m al. Ninguém aqui duvida de
que sua intenção e objetivo eram corretos. Mas nosso dever agora é decidir se
nessas circunstâncias, hoje aqui, escolheríam os você para o em prego. E nesse
caso, há um detalhe que m e faz pensar que não o escolheria. Não é haver posto
os interesses dos outros na frente dos da sua própria em presa, m as ter usado os
m eios equivocados para consegui-lo. Se era tão evidente que tinha razão, se era
tão evidente o erro da diretoria, m oral e empresarialm ente, com o não conseguiu
faze-los ver?”. E conclui: “A empresa provavelm ente tam bém errou, m as aqui
avaliando J úlio, m inha conclusão é que você não soube estabelecer um a
com unicação correta e eficaz com a diretoria. Por isso não o escolheria para o
cargo.”

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Enfim , o que é decisivo não são os valores m orais em si (a causa


ecológica), m as a capacidade de transm iti-los aos outros. Nesse caso, passam os
da com petência m oral à incom petência com unicativo-instrum ental. Isto é,
J úlio Quiroga não teve com petência com unitivo-instrum ental. De qualquer
m odo, Carlos encontrou um a lógica adequada para “expulsar” J úlio Quiroga da
dinâm ica de seleção de pessoal (inclusive, influenciando Enrique que passou a
dizer que não aceitaria o pedido de J úlio para fazer parte da em presa) – além de
ser, é claro, um m otivo m ais digno que a m era desqualificação do juízo m oral e a
contestação do valor ecológico em nom e do valor em presarial (com o queria
Nieves).

Logo após a elim inação de J úlio, abre-se outra prova que propicia que
outro candidato possa ser eliminado pelos dem ais. Na verdade, eis a lógica do
m étodo Grönholm : não é a em presa que elim ina os candidatos, m as sim , seus
colegas concorrentes. As vitim as se elim inam um as as outras. É a lógica da
m anipulação reflexiva, onde a culpabilização das vitim as possui seu reverso: a
incorporação, pelas vitim as, da própria perversidade do capital (Enrique
conseguiu apreender, de form a não-critica, a lógica do m étodo Grönholm ao
observar: “Terão que disputar para ver quem ganha”. Aliás, Enrique é a
personalidade conform ista que visa se adequar às disposições sistêm icas. É um
hom em m edíocre e perspicaz, m as volúvel às im posições dadas).

A discussão para elim inação de J úlio não foi propriam ente um a tarefa,
m as um ardil arm ado pela em presa para elim inar o líder escolhido. Na segunda
tarefa propriam ente dita coloca-se um a tarefa que apela para o m ito clássico da
escassez com o elem ento da exclusão prim ordial. Diz o texto da prova: “Ano de
20 13. A Terceira Guerra Mundial estourou e o planeta se afoga sob um a nuvem
radioativa. Por sorte, todos vocês estão a salvo porque tiveram acesso a um
abrigo antinuclear equipado com o necessário para sobreviverem 20 anos.
Infelizm ente o refúgio foi projetado para um a fam ília de cinco pessoas e um de
vocês terá que abandona-lo. Decidam quem deverá ir em bora, defendendo
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antes, cada um , a sua perm anência com argum entos com prováveis. Quem for
expulso do abrigo, abandonará tam bém o processo de seleção.”

Existe perm eando o texto da prova o que podem os denom inar de


ideologia da escassez, cuja lógica interna, em últim a instância, visa legitim ar a
relação-capital. Na verdade, a escassez é um m ito do capital, principalm ente no
atual estágio civilizatório quando ocorreu um a redução inédita dos limites
naturais e a produtividade social do trabalho alcançou níveis altíssim os. Com o
se pode falar em escassez quando a capacidade de produção social
increm entada pela nova base tecnológico-cientifica, conseguiu atingir um
elevado patam ar? Na verdade, a lógica da escassez tende a legitim ar a exclusão
social do acesso à riqueza produzida, concentrada nas m ãos da oligarquia
capitalista.

A parábola do abrigo anti-nuclear contém um fundo ideológico que


expressa em si, a própria lógica da exclusão social. Isto é, deve-se excluir porque
não há riqueza – ou o necessário - para todos sobreviverem . Ressaltem os a
seguinte passagem do texto da prova: “Infelizm ente o refúgio foi projetado para
um a fam ília de cinco pessoas e um de vocês terá que abandona-lo.”

Nesse caso, o trabalho ideológico opera nos dois níveis de discurso:


prim eiro, o discurso m anifesto, que supõe, num nível acritico, um a dada
racionalidade social não-discutivel – “infelizm ente o refúgio foi projetado para
um a fam ília de cinco pessoas...”. A exigência m anifesta é: alguém terá que
abandona-lo. O discurso parabólico é organizado pela lógica da m era
adequação/ adaptação à realidade dada quase com o “destino”. Naquelas
condições dadas, cada um deve m eram ente justificar, com argum entos
com prováveis, sua perm anência no abrigo. No caso da prova, o candidato deve
perm anecer no plano do discurso m anifesto, sem ousar questionar as exigências
im postas por aquela racionalidade.

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Segundo, o discurso latente que contém o viés ideológico com sua lógica
social – ora, a artim anha da escassez organiza os significados do discurso
m anifesto. E pergunta-se: por que se escolheu – e trata-se de um a escolha
m oral – construir o discurso parabólico com o registro sim bólico da escassez?
Não se poderia faze-lo com outro registro ideológico (por exem plo, a lógica da
abundância e a perspectiva da solidariedade)? Nesse caso, poderia-se aferir, do
m esm o m odo, com petências m orais com outros conteúdos sociais. É claro que,
sem escassez, não haveria necessidade da concorrência...e inclusive, do poder
social estranhado (o capital). É curioso que Fernando atribui a si, a função de
representar o poder político com o “com petência” necessária sob as condições
sociais da escassez. Isto é, a escassez im plica, por natureza, o poder político.
Ora, a inquirição crítica desvela, num a cam ada m ais profunda, o telos
ideológico da construção da parábola do abrigo nuclear: ora, por que o abrigo
anti-nuclear só foi projetado para um a fam ília de cinco pessoas?

Aos poucos, a parábola do abrigo antinuclear – com o os m itos biblicos –


possuem um com plexo de significados que desvelam a natureza da ordem sócio-
m etabólica do capital. Indo além do m ero registro ideológico m anifesto, pode-se
interrogar - por que existe hoje exclusão social no m undo capitalista, ou seja,
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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

por que um im enso contingente de pessoas deve ser excluído do usufruto da


riqueza social, se a capacidade de produção de riqueza tem crescido de forma
im pressionante no século XX?

Ora, a relação-capital baseia-se no princípio da apropriação privada da


riqueza coletiva. Produz-se cada vez m ais não para satisfazer de form a am pliada
as necessidades/ carecim entos sociais, m as para se acum ular, nas m ãos de
proprietários privados, m ais riqueza social em sua form a abstrata. Sob o sistem a
do capital, acum ula-se visando acum ular cada vez mais. Produz-se, assim , de
m odo contínuo, a escassez, tendo em vista que poucos se apropriam da riqueza
social produzida coletivam ente.

Na parábola do abrigo antinuclear há escassez porque o refúgio foi


projetado apenas para um a fam ília de cinco pessoas. Mas no m undo social do
capital, há escassez social porque há propriedade privada/ divisão hierarquica
do trabalho. Enfim , existe a relação-capital.

A ló gica d a m an ip u lação re fle xiva

Im p u tação d a cu lpa
(cada um assum e a culpa pela sua própria desgraça)

Atribu ição d e re s po n s abilid ad e s


(é atribuída a cada um a responsabilidade pela elim inação do outro)

Jo go d e p e rve rs id ad e s m ú tu as
(cada um age para elim inar o outro)

Com o salientam os acim a, a parábola do abrigo anti-nuclear está


perm eada de significados ideológicos do m undo do capital. Por exem plo, Ana

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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

contesta a utilização do currículo para escolher quem irá sobreviver no abrigo


antinuclear. Diz ela: “Tem os que nos basear só nos nossos currículos?”. Afinal,
diz ela, que há coisas que não estão no currículo. Ela adota o ponto de vista da
com petência do saber que nasce da experiencia vivida, um elem ento desprezado
pelas necessidades sistêm icas. No sistem a da m anipulação reflexiva, im põe-se a
ditadura do currículo, que pode ser usado para m ediar o jogo das perversidades
m útuas.

Na verdade, o desprezo pelo saber vivido – ou experiencia de vida


decorre da própria relação-capital que se baseia na desconfiança intrínseca na
pessoa hum ana. Enrique expressa o espírito sistêm ico quando diz que, sem o
currículo, “não tenho com o saber se isso é verdade ou não”. Enquanto Ana adota
o ponto de vista do saber vivido – propõe-se a ser cozinheira (e inclusive,
procriadora, com o Nieves), atividades que atendem às necessidades hum anas
básicas, Fernando, Ricardo e Carlos se propõem a atividades sociais
instrum entais (m ilitar, m édico, literato e técnico de rádio).

No jogo das perversidades m útuas que transparece no desenrolar do


m étodo Grönholm , tem os preconceitos de todos os tipos. Por exem plo, Ana é
elim inada por um ardil de preconceito. Ela se expôs e foi predada por Carlos.
Em bora Fernando tenha se expostos tam bém , soube contra-argum entar com
Nieves. Mas no jogo de perversidade, Carlos identificou um ponto fraco no
argum ento de Ana – ela se propôs a ser, com o Nieves, procriadora da raça
hum ana. Carlos a interroga: “Sua idade não é um pouco avançada?”. Ana
discorda. Mas Carlos arrem ata: “Até que idade vai poder ser m ãe?”.

O ardil de Carlos foi se utilizar de preconceitos arrigados na


cotidianidade burguesa. Ele se utiliza do preconceito contra hom ens e
m ulheres “im produtivos”. Na verdade, ele m obiliza em seu argum ento, um
duplo preconceito – prim eiro, preconceito ancestral de gênero (contra o “sexo
frágil”) – Ana é m ulher; e, depois, preconceito contra os supostos
“im produtivos”.e “fracassados” da ordem burguesa – Ana é m ulher em idade
avançada, portanto, “im produtiva”, segundo os padrões burgueses (preconceito
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Curso de Extensão Universitária
A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

sem inal que nasce da ordem capitalista produtivista). Com o um predador voraz,
Carlos se utiliza com habilidade discursiva, do preconceito para desqualificá-la
– e “exclui-la” Ana – com o o ancião cansado do conto de J ack London – teve
seu tem po e deve ser sacrificada. Sob o capitalism o global, a exclusão social de
hom ens e m ulheres fracassados é quase com o um a “lei da vida”.

Sob a barbárie social, pode-se utilizar a arte para desqualificar, com


requinte de crueldade m ental, o Outro-como-próxim o. Foi o que Carlos fez ao se
utilizar do conto “A lei da vida”, de J ack London, para justificar a exclusão de
Ana. Ele diz: “J á leu J ack London, Ana? Escreveu um conto sobre um a tribo de
esquim ós que m igra sazonalm ente. É a história de um ancião cansado, quase
cego, que sente que não pode acom panhar a tribo e então, todo o grupo pára e se
despede dele, um por um ; seus filhos tam bém , e sim plesm ente o deixam ali com
um pouco de lenha. O ancião senta-se na neve, tranquilo, se lem brando do que
foi sua vida. E quando acaba a lenha, m orre congelado.”. E arrem eta que este
conto é bastante didático – “há m uita gente que deveria aprender com ele”. É
curioso que Carlos se utilize do conto de um escritor socialista (J ack London) à
serviço do darw inism o social que m arca hoje a dinâm ica do capitalism o global.

Ao se propor ser o literato do abrigo anti-nuclear, Carlos opta por se


tornar o ideólogo do grupo. Enquanto os dem ais m em bros do grupo adotam
encargos de natureza instrum ental (Fernando, o juiz e m ilitar, verdadeira
representação do poder político estranhado; Enrique e Ricardo, o técnico e o
m édico, representações do poder técnico, respectivam ente; Nieves, a m ulher
procriadora, representação do poder natural – e no caso de Ana, a m ulher
cozinheira), Carlos optou por um a função ideológica: “Vou lhes contar um a
estória a cada noite. Pode parecer estranho, m as estudei literatura nesses anos.
Posso fazer sua vida sob a Terra m ais tolerável.” Através de seus contos ele iria
incutir visões de m undo que transparecem na literatura. Enquanto Ana opta por
um a função ligada a necessidade do estom ago – elaborar um bom prato, Carlos,
opta por um a função ligada à necessidade da fantasia – contar um a estória. Por
isso, ele se utiliza do conto de J ack London – “A lei da vida”, para desqualificar
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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

Ana. Ele se utiliza, com inteligência, do conto de London para exprim ir valores
com positivos da lógica do capital que hoje, m ais do que nunca, desqualifica e
exclui àqueles que não se adaptam às novas disposições sistêm icas. Os fracos –
hom ens e m ulheres que não se adequam à lógica produtivista – m erecem
m orrer (com o o ancião cansado).

Enfim , o capitalism o global é intrinsecam ente capitalism o m anipulatório.


Por isso, o poder da ideologia assum e dim ensões inéditas na história hum ana
(não é a toa que é Carlos que consegue ser o hom em escolhido para exercer o
cargo de executivo da Dekia).

O m étodo Grönholm é um a dinâm ica de avaliação de atitudes morais das


individualidades pessoais de classe. A todo m om ento, avaliam -se
com portam entos m orais – isto é, atitudes pessoais diante de situações
concretas. É um m odo de aferir – em term os qualitativos – não apenas
disposições de personalidades, m as com petências m orais.

Por exem plo, a exclusão de Enrique é bastante ilustrativa – Ricardo, o


psicologo da em presa infiltrado no grupo, testa Enrique sem ele saber. Apesar
do aparente intervalo na dinâm ica de grupo, transcorre ali, naquele m om ento
de diálogo entre Ricardo e Enrique, um teste m oral-psicológico. O que significa
que, não há trégua (ou intervalos) na avaliação dos candidatos concorrentes. Na
verdade, o m étodo Grönholm é um m étodo de avaliação continuada, baseado na
m anipulação reflexiva das pessoas – cada um por si e todos contra todos.

Num prim eiro m omento, Ricardo confidencia a Enrique ter sido líder
sindical de um a em presa récem -privatizada na Argentina. Ricardo executa um
m irabolante jogo de provocações. É um das características do jogo da
m anipulação reflexiv a – provocar para testar. Com o um bom ator – qualidade
intrínseca de quem m anipula, Ricardo assum e o papel de ativista sindical
enrustido. J oga palavras de ativism o social, provocando a opinião de Enrique,
verificando com o ele se m anifesta diante de afirm ações progressistas (“O FMI
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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

está sufocando o m undo” ou ainda: “Mas vai concordar com igo que o m undo
está um a m erda”).

Depois, a seguir, pressionado por Montse, Enrique delata Ricardo à titulo


de lealdade à em presa. Entretanto, o que desqualifica Enrique na ótica da
em presa é m enos sua atitude de delação e m ais sua constrangedora vacilação,
quando Ricardo, a seguir, se apresentando com o o Inform ante da em presa,
perguntou a ele se sua atitude de delatar o colega foi correta ou não.

Enfim , Enrique dem onstrou ser um a pessoa inconfiável e oportunista. Ao


contrário de J úlio, Enrique demonstrou ser um hom em m oralm ente frágil que
se adequa às exigências dadas. É um típico filisteu sem vertebração m oral. Ao
vacilar, dem onstrou ser m oralmente incom petente. Não assum iu pra valer, sob
pressão extrem a, sua lealdade com a em presa..

Na ordem do capital, exige-se cada vez m ais com petência m oral – isto é a
capacidade de assum ir (e afirmar), sem vacilação, valores m orais da ordem
burguesa. Portanto, Enrique se desqualifica não quando delata o coleta
concorrente, m as quando vacila em afirm ar que o que fez foi expressam ente
correto. Não basta apenas acreditar, m as sim , assum ir plenam ente a
responsabilidade. Eis o sentido da com petência m oral.

Assim , o que está em jogo é não apenas o grau de percepção da lealdade à


em presa, m as a capacidade de sustentá-la m oralm ente. Na verdade, o capital
busca pessoas m oralm ente com petentes para executar, com firm eza seus atos
im orais. No m undo da lógica insana, a firm eza m oral – por incrível que pareça
– é um a qualidade apreciável para a consecução da im oralidade sistêm ica.
Ricardo tenta identificar em Enrique elem entos de com petência m oral – isto é,
a crença firm e em algo – nem que seja protestar contra o FMI.

Sob a tem poralidade histórica de sua crise estrutural, o capital exige


dedicação exclusiva – inclusive no plano m oral. As personas do capital tendem
a adotar atitudes fundam entalistas. A “captura” da subjetividade do trabalho
vivo pressupõe incorporar – inclusive no espírito – o horizonte cognitivo-
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em ocional do capital, não se perm itindo sequer reconhecer o Outro com o ente
existente. Enfim , Enrique deveria ser firm e em contestar a greve, evitando,
portanto, entender os m otivos dos grevistas. Ele diz que “entende os m otivos,
m as não está de acordo.” Ora, com o executivo do capital. não deveria se
perm itir a se colocar no lugar daqueles que contestam o m undo. Ele vacila –
com o todo equilibrista. Não tem a personalidade firme exigida pela em presa.
Por isso, Ricardo é categórico: “Nesse m om ento, não preenche o requisito para
o cargo.”

Ricardo percebeu, de im ediato, o caráter vacilante de Enrique: “Você é o


que cham o de equilibrista”. Diz: “Não entra em greve, m as pede o dia livre. E
assim , fica bem com todo m undo. Diante dos em pregados, posa de chefe
progressista e diante dos chefes, de hom em sensato que quer evitar o carro
incendiado.”. Não é que Enrique seja um aproveitador ou hipócrita, o que
exigiria dele certa argúcia m ental. Mas Enrique é um m ero equilibrista m oral,
que para se preservar acende uma vela a Deus e outra ao Diabo.

O jogo da m anipulação reflexiva, levado a cabo pelo m étodo Grönholm ,


im plica firm eza de caráter, embora a ordem burguesa hipertardia prom ova a
corrosão de caráter (com o observou Richard Sennet). Talvez, os m ecanism os de
corrosão de caráter da nova ordem do capital apenas “lim pem o terreno” da
velha m oralidade burguesa – m arcada ainda por princípios ético-morais rígidos,
para sem ear personalidades comprom etidas intim am ente com um a nova m oral
burguesa adequada à acum ulação flexível/ acum ulação por espoliação, onde o
valor m oral de fidelidade à em presa assum e dim ensões fundam entalistas.
Assim , diante do fracasso, deve-se culpar a si próprio. A lealdade à em presa,
im plica trapacear e delatar o Outro, sem vacilar diante da pergunta crucial se a
atitude foi (ou não) correta. Mais im portante do que se auto-hum ilhar diante da
em presa – com o fez Enrique – é agir com firm eza diante de atitudes m orais
tom adas. Enfim , a “captura” da subjetividade pelo capital pressupõe um a
subjetividade m oralm ente adequada a ser “capturada”.

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A m anipulação reflexiva é constituída por elem entos de provocação. Por


um lado, é o jogo da provocação, que instiga e revolve a subjetividade do
hom em que trabalha. Por outro lado, é a provocação do jogo, que possui o
sentido de dar caráter lúdico à concorrência voraz que dilacera as
individualidades pessoais de classe.

A utilização do jogo com o campo de provocação (e provação) cria um


cam po pleno de reflexividade perversa. Ela expõe no m icrocosm o da disputa, a
lógica do “om ni bellum contra om nes” (a luta de todos contra todos). O últim o
teste do método Grönholm é a provocação pelo jogo. Ricardo, o Inform ante da
em presa, apenas com anda e assiste os concorrentes se digladiarem num jogo de
palavras que exigem agilidade e desenvoltura no dom ínio de inform ações sobre
tem as de futebol, conhecim entos gerais e econom ia dos países Espanha, França
e Grã-Bretanha. A m ediação ocorre através da troca de bola.

Fernando adota a insígnia da Espanha; Nieves, da França; e Carlos, da


Grã-Bretanha. O jogo equaliza significados e significantes – por exem plo, o
tem a de “contribuições para a hum anidade”, coloca, lado a lado, Presunto
Serrano, guilhotina, Santa Inquisição, Shakespeare, “Dom Quixote”, “A
República”. Sob o jogo da m anipulação reflexiva instaura-se a platitude do valor
sim bólico. Não há diferenças entre Presunto Serrano e Shakespeare. Depois, o
tem a da troca de bola entre os concorrentes é “Vantagens financeiras”.

No entrem ear do jogo, Carlos e Nieves provocam Fernando. As


provocações ocorrerem num crescendo, visando exclui-lo da dinâm ica de grupo.
Carlos é m ais incisivo nas provocações. Apela em sua provocação para aquilo
que é m ais caro a Fernando: a auto-estim a sexual. Fernando é o tipo “m acho
ibérico”, com o o cham ou Nieves. Por exem plo, durante o jogo, Fernando fala em
“déficit fiscal”. Carlos rebate: “É m esm o? Talvez não fiscal, m as físico”.
Fernando diz que a Espanha é um a potência…E Carlos provoca: “Você deve
estar se referindo a um tipo de potência que não tem ”. Num certo m om ento,
Fernando está visivelm ente irritado. Carlos diz: “Calm a é só um jogo de
palavras!”. Mas prossegue: “Não confundim os ato sexual com olhar pelo buraco
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da fechadura.”, ou ainda, “sem pre quis ser corretor e acabou punheteiro”. brinca
Carlos com um trocadilho de palavras. Nieves é incisiva: “Está te cham ando de
punheteiro”. Fernando a agride com a bola do jogo.

Ao agredir Nieves com a bola, Fernando é excluído. Ele se volta não


contra Ricardo, psicologo da em presa que assiste a tudo, im passível Mas, sim
contra seus colegas concorrentes que o provocaram – Nieves e Carlos. A
m anipulação reflexiva envolve todos hom ens e m ulheres que concorrem entre
si, aceitando as regras do jogo. Além disso, invisibiliza as personas do capital ou
o próprio capital. Cada hom ens e m ulher, ao invés de se revoltar contra o
sistem a da m anipulação reflexiva, volta-se contra o Outro concorrente. É
intrínseca à lógica da m anipulação reflexiva, vítim as culpabilizarem vítim as –
inclusive a si – pela sua própria desgraça.

Raivoso e indignado, Fernando vocifera sua crítica à ideologia da


em presa m oderna, im ersa na ideologia da responsabilidade social e
desenvolvim ento sustentável. Carlos e Nieves tornaram -se os m ais aptos,
segundo ele porque acreditaram na ideologia do capital: “Acreditaram nessa
m entira de em presas responsáveis, com decoração japonesa; nessa m entira de
em presas dem ocráticas e desenvolvim ento sustentável.” E prossegue:
“Disseram -lhes que são os m elhores e vocês acreditaram ; os m ais inteligentes, e
vocês acreditaram ; os m ais solidários, os m ais tolerantes, os m ais m odernos,
inclsuive os m ais hum anos, o que é o cúm ulo e acreditaram .”

Enfim , o capital financeiro que articula as teias do capitalism o global,


alim enta – com pura auto-ideologia – as individualidades de classe sujeitas à
m anipulação reflexiva. Com seu “trabalho ideológico”, cria pequenos m itos a
respeito de si. Os vencedores aparecem como os m elhores, os m ais inteligentes,
os m ais solidários, os m ais tolerantes, os m ais m odernos e o pior – os mais
hum anos. Ora, o capital fictício, com o produto orgânico da crise estrutural da
valorização do valor, é capaz de criar personalidades fictícias im ersas em auto-
ilusões ideológicas.

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Em sua fala indignada, Fernando ataca a ideologia crucial do capitalism o


global: a ideologia da grande em presa responsável, dem ocrática, de gestão
toy otista, que investe no desenvolvim ento sustentável. Diante do caos global,
não se culpabiliza as grandes em presas, m as apenas individualidades de classe,
hom ens e m ulheres trabalhadores proletários e – no lim ite, os Estados-nação,
preservando-se, deste m odo, a im agem do m ercado e seus operadores
(investidores e grandes em presas).

Fernando é o tipo “m acho ibérico”, homem conquistador, objetivo e


direto na abordagem sexual. Por exem plo, ousou encontrar– se com Nieves no
banheiro e aborda-la com objetividade: “Passei o dia querendo falar com você a
sós. E não achei ocasião m elhor.”. Pode-se dizer que Fernando não m anipula as
m ulheres – ele se im põe com franqueza, tendo inclusive auto-consciência de sua
canalhice. No film e Fernando dem onstra ter personalidade autocrática,
dom inando pela força (por exem plo, assum e o papel de “m ilitar” no teste do
abrigo anti-nuclear). Apesar disso, ele é capaz de expressar generosidade
hum ana com colegas concorrentes com o J úlio. É um hom em tosco, m as firm e
de opinião (ao contrário, por exem plo, de Enrique).

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Fernando não faz o tipo jovem y uppie “globalizado” (com o Carlos) –


inclusive não chega a dom inar idiom as, Talvez no m undo da m anipulação
reflexiva, Fernando seja um velho “dinossauro” que não possui a agilidades (e
desfaçatez) dos jovens “predadores” - flexíveis e velozes. Ao contrário, dos
sujeitos/ agentes da m anipulação reflexiva, Fernando não dissim ula sua
canalhice. Ele é personalidade antípoda de Carlos (e Nieves é a versão fem inina
de Carlos).

Por ser um a jovem m ulher, Nieves é o objeto de obsessão sexual de


Fernando, o velho predador. Mas Nieves é um a m ulher m oderna, que foge dos
velhos predadores. sem deixar, é claro, de “m anipula-los” com sua natureza
graciosa, principalm ente no caso deles serem colegas concorrentes (por
exem plo, no banheiro, ela se deixaria ser seduzida por Fernando, para frustra-
lo, logo a seguir, terrivelm ente, deixando-o literalm ente na m ão. Disse:
“Term ine sozinho”. Ele retruca: “Maldita piranha!”).

A cena de Fernando e Nieves no banheiro é sintom ática das atitudes


antípodas entre eles. Por um lado, Fernando é o “m acho ibérico”, ousado e
galanteador, que busca seduzir a jovem m ulher. Enquanto Fernando assum e –
seja aonde for - seu desejo de predador sexual. Nieves, renunciou ao desejo de
m aternidade em prol da carreira profissional. Além disso, no film e, Fernando é
um dos poucos personagens que é capaz de expressar opiniões criticas sobre o
m undo social em que vive (o que Nieves – com o Carlos – são incapazes de
fazer). Por exem plo, é Fernando que observa que seria ruim se descobrisse que
hoje tem câm eras no banheiro, porque o banheiro é, segundo ele, “o últim o
lugar da em presa onde podemos ser nós m esm os. Onde podem os tirar o
disfarce.” Nieves não entende o sentido crítico dado por Fernando e diz: “Quer
dizer a roupa?”. Entretanto, o verdadeiro disfarce não é a roupa, que podem os
tira-la quando nos aprouver., m as sim os m odos de ser – pensar e sentir – que
correspondem aos interesses do capital com o sistem a de controle sócio-
m etabólico. O banheiro da em presa é o lugar onde confessam os nossas
inquietações e angústias diante do controle social dissim ulado do capital. É o
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espaço possível de serm os nós m esm os – com o diz Fernando. Entretanto, sob a
m anipulação reflexiva, este espaço de resistência pessoal está m inado pela
presença do olhar vigilante do Outro com o próxim o estranhado.

No film e, o casal Carlos e Nieves representam o núcleo hum ano-afetivo


dilacerado pela roda-viva do capital, verdadeira m áquina de m oer sonhos
pessoais. Há alguns anos viveram um sonho pessoal de afetividade mútua.
Durante um Congresso na Tunísia, na Sem ana Santa de 20 0 3, encontraram um
verdadeiro paraíso em ocional - tornaram -se am antes à beira da praia e
construíram um castelo de sonhos pessoais. Carlos relem bra os sonhos
passados: “Lem bra-se da noite na praia? Se fizéssem os o que dissem os, hoje
viveríam os na África.” E ela: “Sim , na beira do m ar. Em um a choupana, de onde
esticaria o pé e tocaria na água”. Carlos diz: “Seria ótim o. E pensam os em abrir
um restaurante lá, não?. Para ganhar algum dinheiro. Porque íam os ter m uitos
filhos e teríam os que alim entá-los. É verdade, um m ontão de filhos africanos.
Um tim e de futebol. Foi legal sonharm os juntos”.

Nieves é um a m ulher m oderna, personalidade fictícia im ersa em seus


sonhos particularistas. Para ser o que é, teve que sacrificar sonhos pessoais de
afetividade m útua. Ao encontrar Carlos, ela diz, de im ediato: “É um a pena que
nos tenham os encontrado aqui, não? Porque não m e resta alternativa senão
vence-lo.” É a jovem m ulher que busca se afirm ar através da carreira
profissional. Utiliza a beleza pessoal com o m ero m eio de sobrevivência na selva
do m ercado – é sintom ática que a prim eira cena em que ela aparece no filme,
nas im agens da abertura, ela está se m aquiando .

Foi Nieves que abandonou Carlos – talvez tenha constatado naquele


rom ance, um perigo à sua carreira profissional. É a m ulher prisioneira dos
valores do capital. Por exem plo, m ora em Madri, m as com o ela diz, “não tem
tido tem po para curtir esta cidade”. E arrem ata: “Não paro de trabalhar”.
Talvez, Nieves tenha vindo de fam ília hum ilde que progrediu a duras penas
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através de seus próprios esforços pessoais. Por ser m ulher, utiliza-se de seus
atributos naturais para galgar posições profissionais. Na dinâm ica de grupo
para para seleção do cargo executivo da Dekia, Nieves dem onstrou ser a m ais
dura – por exem plo, foi ela que acusou J úlio de trair a em presa. Foi ela que
provocou Fernando, entregando-se a ele no banheiro e depois frustrando-o.
Mais adiante, a frustração de Fernando, o “m acho ibérico”, o conduziria a sua
expulsão da dinâm ica de grupo.

Num a das cenas finais, após a elim inação de Fernando, Carlos e Ricardo,
o psicologo da em presa, conversam no banheiro. Ele explica a Carlos a natureza
do m étodo Grönholm . Com o só restaram Carlos e Nieves, um dos dois deve ser
o escolhido para ocupar o cargo de executivo da Dekia. Na verdade, Ricardo e
Montse, a secretaria - a outra psicologa da em presa = “arm aram ” para Carlos e
Nieves um a arena onde os dois pudessem dem onstrar sua capacidade de
perversidade m útua. Torna-se necessário provocar Carlos, ex-am ante de Nieves,
para a predação derradeira. Assim , Ricardo elabora outra farsa. Diz ele: “O certo
é que o em prego é dela, Carlos. Neste m om ento, eu deveria estar dizendo ‘adeus,
obrigado por ter vindo, entrarem os em contato.’ E não é só porque Montse tem
certeza. Um a m ulher pode ser ótim a psicologa, m as sem pre decide por outra
m ulher. É que Nieves pontuou m elhor que você nas provas, esta é a verdade.”

Ora, não é que Ricardo quer mandar Carlos em bora – pelo contrário,
quer prepara-lo para provocar Nieves no lim ite. Cria-se m ais um a situação de
farsa. Por isso, diz: “Fiz um acerto com Montse. E vam os lhe dar um a últim a
oportunidade.” E exorta Carlos a “destruir” Nieves. Diz Ricardo: “Quero que
entenda que abriram um a exceção porque eu insisti. Se não conseguir destrui-
la, o em prego é dela.” Carlos está perplexo. Pergunta: “Mas com o destrui-la?”. E
Ricardo diz: “Isso é com você. Tive que brigar por isso. Não vá falhar. Tem 15
m inutos.”

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É interessante destacar, na conversa entre Carlos e Ricardo no banheiro,


o seguinte: Carlos pergunta: “E de onde vem esse ‘m étodo Grönholm ”? Ricardo
diz: “De lugar nenhum . Mas soa bem , não?”. De fato, o “m étodo Grönholm ”,
com o o capitalism o, incorpora em seu m icro-m etabolism o social, elem entos de
farsa. Por exem plo, o sistem a capitalista é capaz de prom eter um m undo de
palavras que soam bem , m as que não se realizam em lugar nenhum . O m étodo
Gronholm possui esse nom e apenas para soar bem , m as é a m era aplicação – na
dinâm ica de grupo – de práticas sociais da manipulação reflexiva.

Os psicólogos da Dekia apenas levaram às últim as conseqüências, a


lógica social do capitalism o m anipulatório, com a form a-m ercadoria se
exacerbando – isto é, am pliando-se e intensificando-se por conta da vigência da
crise estrutural do capital e do com plexo de reestruturação capitalista das
últim as décadas (neoliberalism o e reestruturação produtiva). Ao ser colocado
com o centro articulador da dinâm ica social, o m ercado deslocou o hom em e
colocou as coisas em seu lugar. A coisificação do hom em propiciou a
dissem inação de formas de m anipulação reflexiva, onde um hom em dilacera o
outro – de form a perversa. Na verdade, o capitalism o global apenas explicitou,
intensificou, am pliou e exacerbou conteúdos latentes da form a social capitalista,
vigentes, em m aior ou m enor proporção, desde os prim órdios da m odernidade
do capital.

O m étodo Grönholm busca verificar com o individualidades pessoais de


classes que pleiteiam cargo com o personas do capital, lidam com as
adversidades. Ainda na cena do diálogo no banheiro, Ricardo diz para Carlos:
“Queríam os ver com o se sairia em um a situação adversa”. Por isso, a construção
de um a dinâm ica de grupo que incorporasse elem entos do sócio-m etabolism o
capitalista. Ora, naquela sala de avaliação do Departam ento de Pessoal da Dekia
tem os um m icrocosm o do m undo burguês. O capitalism o global é, em si, o
sistem a social da adversidade. Por isso, a im portância de um a habilidade
cognitivo-com portam ental com o a resiliência que significa a capacidade do

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hom em burguês em lidar com adversidades do m undo social – principalm ente


nos locais de trabalho.

O m étodo Grönholm busca verificar se o candidato é um a pessoa


resiliente, isto é, pessoa capaz de vencer as dificuldades, isto é, os obstáculos,
por m ais fortes e traum áticos que elas sejam . A resiliência é um atributo de
personalidade, um a qualidade hum ano-pessoal que tende a ser apropriada pelas
em presas com o input da prática de gestão.

A capacidade de vencer adversidades – isto é, a resiliência - é um traço


hum ano das individualidades pessoais. Nesse caso, a adversidade pode ser
desde um desem prego inesperado, a m orte de um parente querido, a separação
dos pais, a repetência na escola ou um a catástrofe com o um tsunam i. Mas o que
interessa ao capital é se apropriar desta qualidade pessoal do trabalho vivo
oriunda das instâncias vividas da experiencia social, para suas finalidades
particularistas na instância sistêm ica. Incentiva-se a form ação de
personalidades resilientes adequadas às novas exigências da acum ulação
flexivel. A em presa toyotista – em presa flexível, difusa e fluida, exige
agentes/ sujeitos resilientes capazes de lidar com as adversidades de m ercado.

Num a entrevista dada ao site de RH, o consultor de em presas Eduardo


Carm elo, ao ser interrogado sobre qual o perfil do gestor que m elhor se adapta
às adversidades, observou:

“O gestor resiliente é aquele que sustenta e aprim ora continuam ente


suas organizações e tim es, com a com petência de absorver altos níveis de
m udança com o m áxim o de inteligência, desem penho e sabedoria possível. Os
saberes necessários para o gestor resiliente são: adaptar-se às m udanças e às
situações am bíguas; ser capaz de se recuperar de esgotam ento, exaustão ou
traum as; ser proficiente em m anter calm a, clareza de propósito e orientação
em situações adversas; ter capacidade para pensar estrategicam ente e tom ar
decisões acertadas m ediante pressão; liderar sistem as de trabalho com plexos
e adotar condutas flexíveis na resolução de problem as; contar com a
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capacidade de trabalhar eficazm ente com os superiores e liderados em


problem as com plexos de gestão”.

O perfil da personalidade resiliente descrita acim a pode ser adequado


não apenas ao gestor de em presas, m as ao com andante de um exército num
cam po de batalha. O capital em sua fase de crise estrutural, transform a o m undo
dos negócios - com o a própria totalidade social – num cam po de batalha. Ora,
ninguém sai ileso de um a guerra. É vã ilusão (ou m á fé) acreditar que alguém
seja capaz de se recuperar de esgotam ento, exaustão ou traum as sem danos
pessoais e perdas hum anas. Ao transform ar a vida cotidiana num a guerra civil
perm anente, com a m anipulação reflexiv a se tornando o arsenal privilegiado
das disputas intangíveis, o sócio-m etabolism o do capital instaura um a nova
etapa do processo de hom inização – a desum anização do hom em com o ser
génerico – isto é, a barbárie social.

É sintom ática que o consultor de em presas Eduardo Carm ello utilize o


personagem principal do film e “Gladiador” (de Oliver Stone) – Maxim us - com o
exem plo do gestor que consegue não apenas superar – m as conviver com a
adversidade. E m ais: o líder – verdadeiro gestor im buído do espirito toyotista –
consegue envolver pessoas com os propósitos do em preendim ento capitalista.

Diz ele: “Acredito que a grande riqueza do líder está na capacidade de


conseguir conscientizar seus funcionários a transform ar as adversidades em
desafios a serem conquistados. No film e Gladiador você nunca vê Maxim us -
personagem principal, que pode ser considerado um exem plo de líder - dizer: -
‘Hom ens, o dia de hoje será m uito difícil. Tem os poucos hom ens e não sei se
vam os dar conta da batalha. A adversidade é grande!’. Sua fala na prim eira
batalha do film e, aos seis m inutos e 33 segundos do film e é:- ‘Em três sem anas
estarei fazendo m inha colheita. Im aginem onde estarão, e assim será!-
Irm ãos, o que fazem os na vida, ecoa na eternidade.’ Maxim us oferece um
sentido de protagonização, responsabilidade e significado em cada ação da
vida. Para o líder resiliente, o foco não deve estar na adversidade e sim no
propósito e na capacidade de sua equipe em superá-la. N ão há nenhum a
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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

necessidade de se criar adversidades, pois já há m uitas exigências e estím ulos


a serem cum pridos”.

Realm ente, com o diria Ricardo, psicologo do film e “O que você faria?”,
soa bem as palavras “sentido de protagonização, responsabilidade e significado
em cada ação da vida”. Entretanto, o jogo de palavras é um recurso
m anipulatório que oculta a perversa irracionalidade social intrínseca à lógica da
concorrência com o guerra social total.

Nas condições históricas do capitalism o global predom inantem ente


financeirizado, cuja dinâm ica sistêm ica de acum ulação é intrinsecam ente
instável, o risco e as adversidades são m odos cotidianos de sua form a de ser. O
capitalism o global é a etapa histórica do capitalism o planetário com o guerra
civil permanente. Na m edida em que o m ercado se coloca com o modo
estruturante da dinâm ica social e a form a-m ercadoria com o nexo da
sociabilidade, altera-se o registro da m anipulação (m anipulação reflexiva) e o
m odo de ser da representação social - a guerra de todos contra todos torna-se o
m otivo do m icrocosm o social, perm eado de disputas intangíveis

Enquanto Ricardo incita Carlos a “destruir” Nieves, para poder ficar com
o cargo de executivo da Dekia, Montse procura persuadir Nieves a adotar um a
últim a estratégia para tirar Carlos da jogada: “Tem que convence-lo a
abandonar a prova”. Enfim , ela deve encontrar um jeito para fazer Carlos ir
em bora. Esta últim a prova é o em bate final entre os dois últim os candidatos.
Mais um a vez, o jogo da m anipulação reflexiva, organizado por Ricardo e
Montse, se im põe – tanto um quanto o outro buscam convencer os dois
candidatos que há ainda um a chance, apesar da vantagem do adversário.
Montse diz que parece que Carlos pontuou m elhor que Nieves. Mas Ricardo
disse o m esm o para Carlos – que Nieves está com vantagem em pontos). O que
procura é utilizar o recurso da vantagem do adversário para em ular o
concorrente. E a últim a chance que ainda existe. O prêm io é o em prego, o tão
cobiçado cargo de executivo da Dekia.

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A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
 

Um a das im agens da cena final do film e “O que você faria?” é significativa


da derrocada hum ana sob o capitalism o da m anipulação reflexiva: Nieves
decaída na poltrona, tendo, com o prim eiro plano, a m esa e as telas de m onitores
da Dekia (interface virtual da em presa que acusava as tarefas para a dinâm ica
de pessoal e indicava quem devia ser excluído da concorrência pelo em prego na
Dekia_ .

Apesar de Montse sugerir que a batalha da concorrência é sem pre duas


vezes m ais difícil para as m ulheres, estudos indicam que o estresse é m enos
agressivo nas m ulheres. Por exem plo, segundo a Dra. Shelley Taylor psicóloga e
professora do departam ento de psicologia e sociologia da Universidade da
Califórnia, em Los Angeles, enquanto os hom ens sob estresse experim entam
episódios de violência que podem conduzi-los a com eter hom icídios/ suicídio,
dependência de substâncias psicotrópicas e a reações cardiovasculares nocivas,
nas m ulheres o estresse produz m aior relaxam ento e cria necessidades de um
m aior núm ero de relações sociais.

Na verdade, existe um fundo horm onal para a conclusão da Dra. Taylor:


quando o organism o enfrenta situações de tensão, a oxitocina é gerada da
m esm a m aneira que a adrenalina. No caso das m ulheres, a geração de oxiticina
é am pliada graças à ação dos estrógenos, enquanto nos hom ens, tende a ser
inibido pelos horm ônios m asculinos. Pessoas e anim ais com altos níveis de
oxitocina são m ais calm os, relaxados e m enos ansiosos. Em outras palavras, o
horm ônio induz a condutas m aternas e sociais.

Nieves está estressada. Aparentem ente, com o m ulher, ela parece m ais
sensível às batalha psicológica pelo em prego. Montse a encontra desanim ada na
poltrona da sala. Pergunta se está bem . Oferece um a aspirina. É nesse m om ento
que observa: “Para nós [m ulheres], é sem pre duas vezes m ais difícil.” E
incentiva: “Mas você esteve incrível o dia inteiro, em todas as provas.”

Mas sob a m anipulação reflexiva, a situação de estresse assum e


dim ensões qualitativ am ente nova. Ela mobiliza (e revolve) em hom ens e
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m ulheres as instâncias sócio-afetivas, criando, deste m odo, situações de tensão


que envolve as relações sociais, frustrando, no caso das m ulheres, as condutas
m aternas e sociais.

Ora, desde o com eço da dinâm ica de pessoal, Nieves assum e o papel de
loba voraz – por exemplo, ela acusa J ulio de trair a em presa. Fica calada quando
Ana é “trucidada” pelos argum entos de Carlos; m anipula o desejo de Fernando,
frustrando-o quando o abandona no ápice do intercurso sexual no banheiro
(“Term ine sozinho”, diz ela). Além disso, encontra com o concorrente, Carlos,
ex-am ante, com quem tivera há alguns anos, um sonho pessoal de afetividade.
Portanto, Nieves sente um a excessiva carga de estresse que se m anifesta na
batalha final.

A batalha final ocorre entre Carlos e Nieves. Eles representam o núcleo


hum ano-afetivo do grupo, tendo em vista que possuem um a história de sonho
pessoal de afetividade em com um . Na verdade, é o cúm ulo da perversidade
m útua colocar ex-am antes que ainda preservam laços de afetividade, para se
digladiarem na arena num a luta de vida e m orte em prol de um a vaga de
em prego.

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Tem os o jogo da encenação final conduzida por Carlos, que tom a a


iniciativa de inquirir Nieves sobre as situações constrangedoras que ela viveu
com Fernando. Na verdade, à titulo de expressar apoio m oral à Nieves,
buscando ajudá-la, Carlos quer apenas estressa-la ainda m ais, fazendo-a
relem brar m om entos de tensão. Nieves reage, exclam ando: “Não quero falar
nisso, Carlos”. Ele diz: “Claro. Eu só queria ajudá-la. Se precisar desabafar…”.
Mas Nieves está preocupada com a situação de derrotar o ex-am ante: “Um de
nós terá que perder agora”. Carlos já identificou nela o “calcanhar de Aquiles”:
os sentim entos afetivos ligados à carência m aternal.

Ao colocar Carlos e Nieves com o os “gladiadores” finalistas da dinâm ica


de grupo, os psicólogos da Dekia souberam levar às últim as conseqüências um
dos m ecanism os da m anipulação reflexiva: o jogo de perversidade m útua.
Naquele m icrocosm o, deve-se dilacerar à exaustão, laços de afetividade m útua,
expressão-m or da dim ensão hum ano-genérica. São os sonhos pessoais de
afetividade m útua que lastreiam as experiencias de enam oram ento e am or que
contém os elem entos m ais plenos de genericidade hum ana. Assim , ao colocarem
Carlos e Nieves com o gladiadores finais da batalha pelo em prego, os psicólogos
da Dekia expuseram o sentido de barbárie social contido no capitalism o da
m anipulação reflexiva.

Carlos recebe de Ricardo a m issão de “destruir” Nieves, elim inando-a da


dinâm ica de grupo. Entretanto, há entre os dois um a história de am or. É este
lastro de sentim ento que Carlos irá m anipular para utiliza-lo contra Nieves.

Os sentim entos são m atéria privilegiada da m anipulação reflexiva,


Prim eiro, Carlos aparece com a solicitude cuidadosa de quem se preocupa com
Nieves: “Se eu puder ajudá-la em algo, se quiser desabafar. Que escroto o tal de
Fernando, não? Sujeito m ais violento. Fiquei com m edo.” Nieves – que parece
estar transtornada com todo o processo de predação do Outro, além de
angustiada em ter que enfrentar, na reta final, o ex-am ante, diz: “Acha m esm o
que é [Fernando] um canalha?”. Na verdade, Nieves possui, nesse m om ento, a

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clara consciência de que no jogo cruel da concorrência deixam os de ser o que


som os – enfim , nos alienam os de nós m esm os.

Carlos prossegue, rem em orando Nieves daqueles m om entos dolorosos.


Eis o ardil de Carlos: “Nieves, quase m achucou seu rosto com um a bolada.
Depois falou dos filhos que você não teve, que voce está sozinha…Talvez tenha
visto nisso seu ponto fraco.” Nieves retruca: “Prefiro não falar nisso”. Eis a
questão: Carlos identificou em Nieves o ponto fraco dela – os sentim entos de
m aternidade e afeição por ele (num a das provas Nieves se disponibilizou a ser a
m ãe da hum anidade pós-nuclear). A m anipulação dos sentim entos hum anos é a
fronteira final da m anipulação sistêm ica do capital.

A título de ajudar Nieves a desabafar, Carlos rem em ora m om entos


constrangedores dela com Fernando. Ela retruca: “Não quero falar nisso,
Carlos!”. É um ardil para derruba-la ainda m ais. Mas a cartada final é Carlos
expressar, naquele m om ento, seu am or por Nieves. Diz ele: “Adorei reencontrar
você, Nieves. Ainda que seja por aqui.” E prossegue: “Desta vez, não vou deixa-
la escapar. Pensei m uito em você esse tem po todo.” Diz ainda: “E nesses três
anos, não é que eu tenha sentido falta da vida que inventam os, m as tam bém não
consegui construir nada. O que disse do africaninho, era verdade? Teria m esm o
um filho com igo?” No íntim o, Carlos apela para o sentim ento m aternal de
Nieves.

Sob pressão sentim ental de Carlos, estressada com a dinâm ica de grupo,
sem saber com o convencer Carlos a abandonar a prova, Nieves num a atitude
inusitada, diz para Carlos: “Vam os em bora! Vam os abandonar a prova?”. Carlos
fica desconcertado: “Agora?”. Nesse m om ento, ela faz um desabafo pessoal no
estilo de Fernando”. Diz ela: “J á provam os para eles o que valem os. Vam os
desistir agora. Se quiserem escolher um de nós, que escolham .” E prossegue:
“Quanto m ais vão nos avaliar? Até quando terem os que com petir? Até que
arranquemos os olhos um do outro? Sei que são m uitos candidatos e só há um a
vaga. Entendo que seja necessário com petir. Estou até disposta a aceitar que a
vida é assim . Tudo bem , se é preciso ser um lobo, eu sou.” E expressa que o
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sentim ento afetivo que sente por Carlos é seu ponto fraco: “Com os outros, não
m e im portava com petir, m as com você…com você, não quero, não quero. O que
quero é voltar àquela praia, tom ar um porre e sonhar que montam os um
restaurante e m oram os lá.”

É claro que a estratégia da m anipulação reflexiva inscrita no film e “O que


você faria?”, cria uma névoa de insinceridade no discurso do Outro com o
próxim o. Na verdade, não há Próxim os, m as apenas Outros concorrentes. O que
prevalece é um a “cegueira branca” onde uns não reconhecem o Outro com o
sujeitos hum anos, m as apenas obstáculos a serem superados. Talvez Nieves
esteja – com o Carlos – jogando com sentim entos afetivos.

Finalm ente, Nieves convida Carlos a sair. Ele vacilante, a acom panha. No
elevador, ela exclam a: “Com o não percebi! Tam bém estabeleceram um objetivo
para você, não é?”. Transtornada, pergunta a Carlos: “Tudo que m e disse era
para alcançar o seu objetivo, certo? Quando m e perguntou sobre o africaninho,
queria saber m esm o se eu teria tido filho com você ou só foi para ganhar a
prova? Você ainda tem tem po. A vaga ainda pode ser sua. Tenho que fazer algo
para que a consiga? O que tenho que fazer, Carlos?”. Na verdade, Nieves se
rendera. Ela sai do elevador. Mas Carlos perm anece lá. Fora, ela acom panha o
elevador subindo até o andar do DP da Dekia. Carlos ganhara a prova.

Ao perguntar a Carlos, “Tudo que m e disse era para alcançar o seu


objetivo, certo?”, Nieves apreendera a lógica perversa da m anipulação reflexiva,
que reduz a interação hum ana à práticas instrum entais, onde o Outro com o
próxim o é m ero m eio para seus objetivos particularistas. Carlos soubera
m anipular de form a m agistral, a afetividade de Nieves, apreendendo a carencia
de m aternidade com o seu “calcanhar de Aquiles”.

Nieves possui um carecim ento radical – a m aternidade. Entretanto, ele é


incapaz de ser realizado em virtude de seu m odo de vida. Ela tornou-se um a
m ulher escrava do trabalho e da lógica sistêm ica do capital. “Capturada” pela
lógica da com petição e obsessão pela carreira profissional, Nieves renunciou à
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m aternidade. Entretanto, aquele carecimento radical está lá – pulsando, à


disposição para ser m anipulado. Carlos soube apreende-lo e o m anipulou a seu
bel-prazer.

Carecim entos radicais são necessidades/ carecim entos despertados nas


individualidades pessoais, no lim ite da alienação capitalista, e que, pela sua
natureza, são incapazes de serem incorporados plenam ente pelo sistem a do
capital. Eles são necessidades hum anas inelim ináveis “negadas” pelo capital.
Ora, o que o capital não consegue elim inar, ele tende a m anipular. Por exem plo,
no caso das m ulheres, a m aternidade é um a necessidade natural. Entretanto, ela
jam ais será plenam ente realizada nas condições da m ulher “capturada” pelo
m odo de vida à serviço dos valores do m ercado e roda-viva do trabalho
estranhado. Por isso, torna-se – no caso de Nieves – um carecim ento radical.

Nas cenas finais do film e “O que você faria?”, percebem os que existe sim ,
um a câm era que vigia todos os am bientes da em presa Dekia. Ela acom panha a
m ovim entação de Carlos e Nieves que se retiram da sala do Departam ento de
Pessoal e se dirigem ao elevador. Talvez Ricardo e Montse estejam m onitorando
os candidatos concorrentes, acom panhando deste m odo, a “batalha final”. Ela
focaliza a expressão de Nieves acom panhando a subida do elevador (com
Carlos) até o andar do DP.

Nieves renuncia à vaga para Carlos. É seu gesto quase m aternal,


rendendo-se àquele que soube jogar de form a m agistral até o final. A câm era de
video possui o “olhar” de um a persona virtual do capital. Sob o capitalism o da
m anipulação reflexiva, proliferam form as de controle m idiático que visam
“capturar” os m ínim os gestos hum anos. É claro que as câm eras de vigilância
exercem um a função de segurança pública. Entretanto, sob o capitalism o
m anipulatório, sob certas condições, cum prem o papel de enquadrar gestos
pessoais à lógica sistêm ica. Sob o olhar vigilante da câm era, não podem os tirar o
disfarce e ser nós m esm os.
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Ao sair da torre em presarial da Dekia, Nieves encontra um am biente de


total desolação nesta rua central de Madri. É a expressão plena do mundo
caótico do capitalism o global. Enquanto os candidatos a um cargo de executivo
da Dekia se digladiavam lá dentro, cada um deles im erso em seus interesses
particularistas, lá fora, um a m assa-m ultidão de ativistas anti-globalização, em
prol de interesses coletivos, enfrentavam a policia que garantia a segurança do
encontro de cúpula do FMI e Banco Mundial na capital espanhola.

Na verdade, o film e “O que você faria?”, soube articular, a dialética


candente entre o m icrocosm o das batalhas particularistas sob o capitalism o
neoliberal, onde dom ina a m anipulação reflexiva; e o m acrocosm o do cáotico
capitalism o global, perm eado de intensas (e am pliadas) contradições sociais –
um a delas sendo a contradição entre os carecim entos radicais e a relação-
capital em sua form a sócio-m etabólica

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Qu e s tio n am e n to s

1. Em que m edida o “m étodo Grönholm ” é um reality show ?

2. Em que outras situações sociais podem os apreender a dinâm ica da


m anipulação reflexiva?

3. Enum ere outros carecim entos radicais de hom ens e mulheres sob o
capitalism o global?

4. Com o explicar essa parte obscura das individualidades pessoais de


classe que, sob situações de concorrência, na luta pelo em prego, são
capazes de com eter atos perversos?

5. Analise a estratégia utilizada por Carlos para ser o vencedor.

Gio van n i Alve s


(20 0 9)

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