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À sombra de uma árvore, nas bordas de Lago, ________observava os navios pescando as famosas trutas

da região, o artigo de importação do qual Dez-Burgos, localizada na região inóspita do Vale do Vento
Gélido, dependia para existir. O sol, lentamente mergulhando no horizonte aquoso e cinzento do lago,
dava ao crepúsculo outonal escuras tonalidades derivadas do dourado.Ainda que o inverno estivesse
próximo, aquele cenário passava ao guerreiro uma agradável sensação calor.

Talvez ali Dorn pudesse esquecer.

Começou a caminhar de volta para o humilde vilarejo. Bosque Solitário era o refúgio dos criminosos que
vinham ao Vale do Vento Gélido para serem esquecidos. Ainda assim, Dorn, escolhido como chefe da
milícia local devido suas habilidades com a espada, tinha pouco trabalho. Ali, os criminosos
abandonavam suas antigas vidas para se tornarem simples pescadores e escultores de marfim. Uma
segunda chance, uma nova vida, o passado para trás, pensou Dorn enquanto acenava para os
pescadores que atracavam nas docas.

Dez anos, fazem dez anos, acabou. E então, como acontecia todos os dias, ele lembrou.

Em um outro local, muito diferente daquele vilarejo, Dorn era o caçula da nobre família Amblecrown e
tinha o privilégio de servir o Lorde Alester Tallstag como seu pajem. E Lady Talltag, a Beleza Rubra, filha
de Lorde Alester, era dona de seu coração. Eram dias esplendorosos no agora esquecido Reino de
Clegória. Vivia-se então na riqueza, com uma cultura avançada e uma sociedade assentada nos valores
da honra e da tradição. O ar quente que pairava na cidade, contrastando com o clima rígido de sua
localização, aos pés da Espinha do Mundo, carregava promessas de um futuro magnífico.

De repente, pedras gigantescas começaram a cair sobre a cidade e, no alto, todos viram um enorme
vulto vermelho. Lorde Alester vestiu sua reluzente armadura com o auxílio de Dorn. “Um dragão! Um
dragão!”, gritava o Lorde se preparando para ajudar na defesa de Clegória. Porém, enquanto reunia seus
soldados no pátio interior de sua fortificação, uma das enormes pedras derrubou com violência a torre
em que Lady Talltag vivia com suas damas de companhia.

O instante de horror que acometeu Dorn vendo sua amada morrer esmagada, ao longe, solidificou-se
em imagem para sempre na sua mente.

O que aconteceu depois era, para ele, a consequência lógica do desastre anunciado pela morte da sua
amafada. O aparecimento do terrível dragão, a investida desesperada de Sire Alester juntamente com
seus soldados e outros heróis esquecidos de Clegória, acontecimentos que rugiam em torno do
catatônico Dorn. Sua Beleza Rubra esmagada entre as pedras, seu reino ruíndo frente a um grotesco
ataque: sua esperança no futuro havia morrido.

E havia os olhos do dragão, onde ardiam a chama que passava aos seus adversários sensações terríveis e
impossíveis de serem expressas em palavras.

Outros sobreviveram. Os dias que se seguiram a queda do Reino de Clegória eram confusos para Dorn. O
que lembrava a seguir era da taverna na cidade de Mirabar, e depois da taverna na cidade de Luskan. Os
nomes dos locais não importavam, somente a ardência quente do álcool na garganta para aplacar a
vontade de desaparecer. A sua volta, as pessoas falavam: “O Dragão Rei! O Dragão Rei!”. Para Dorn,
nada mais importava. Desejava ter sido consumido pelas chamas que engolfaram Clegória e se odiava
profundamente por continuar a viver.

Foi quando vieram as visões.

Lorde Alester com a armadura chamuscada e a pele carbonizada. Lady Talltag, com seus longos cabelos
vermelhos soltos, desfigurada pelo peso das pedras das torres. Familiares, amigos e conhecidos
trazendo marcas em seus corpos das horríveis mortes que sofreram. Todos a sua volta, encarando-o,
como se esperassem algo, mas sem nada a dizer.

Primeiro, ele pensou em suicídio. Era o caminho mais rápido e prático para finalizar sua dor e suas
alucinações. Mas, por algum motivo maior, ele não conseguia morrer voluntariamente. Percebeu que o
álcool de nada ajudava. Logo ficou conhecido nos centros urbanos como um louco, pois suas visões
surgiam em momentos completamente inusitados. Dedicidiu sumir, ir para o lugar mais longe que
pudesse encontrar, e assim chegou à Dez-Burgos e ao Bosque Profundo.

O que Dorn desejava, enquanto se lembrava de tudo isso na tarde crepuscular do vilarejo, era esquecer.
Ser outro, como os criminosos que se refugiavam em Bosque Profundo. Mas as imagens voltavam, a
torre desabando, os olhos do dragão. E, às vezes, a visão dos mortos novamente se impunha ante seus
olhos.

Os habitantes de Bosque Profundo, seguindo para as suas casas ao fim do dia, não deixaram de notar
que o chefe da milicia local estava parado no centro do vilarejo ostentando um olhar vazio, gesticulando
e sussurrando sons incompreensíveis. Dorn, percebendo a atenção que estava chamando para si,
decidiu finalizar sua ronda e entrar em seu casebre para descansar.
Em casa, deitou em sua cama e fechou os olhos. Lágrimas caiam pelos cantos de seus olhos. Inútil, o
passado se repete e se repete novamente em frente aos meus olhos. O que posso fazer? O que posso
mudar? É uma tortura inútil!, pensou Dorn enquanto se encolhia na cama em posição fetal.

De repente, sentiu. Todos estavam ali: Lorde Alester, Lady Talltag, seus familiares, conhecidos, todos os
que um dia respiraram o ar alegre do próspero Reino de Clegória. Foi nesse momento que Dorn
compreendeu, finalmente, o que os mortos desejavam.

Vir aos confins de Faerun fora inútil. Ainda que toda a sua esperança tivesse morrido, todo o seu desejo
de viver tivesse esvanecido, forças para além de sua compreensão e de seu controle o impeliam. Era sua
sina, provavelmente tecida por algum deus indiferente contra a qual era inútil lutar. Sabia o que tinha de
fazer, ainda que visse a nulidade de tudo aquilo.

Deveria voltar. Os mortos exigiam.

Começou a empacotar seus pertences para viagem. Tendo terminado essa tarefa, passou a polir seus
equipamentos de combate. Bosque profundo vai precisar de um novo chefe de milícia, pensou
laconicamente. Foi olhando para seu reflexo no escudo de metal que teve. então. uma nova visão.

Sua imagem aos poucos se dissolvia no reflexo metálico para dar forma a um par de olhos reptilianos.
No centro dessa imagem, havia fogo. Dorn sabia que aquele fogo não trazia a esperança que um dia
sentiu em Clegória nem a sensação de quentura do sol poente no Lago Dinneshare .

O que aquele olhar de fogo trazia era o ardor destrutiva cobiça que tudo corrompe.

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