Meus casamentos e outras histórias
Prefácio
Já fazia tempo que os algoritmos da nossa
plataforma social preferida só selecionavam para mim
notícias e depoimentos — cada um mais preocupante
que o outro — sobre as improváveis peripécias da vida
política brasileira. Neste mar de lama, as pitadas da vida
do "único carioca de Ipanema" — como o autor se
proclama em certo momento — me interpelavam.
Narradas com humor e delicadeza, os posts me davam
aquele gosto esquisito de um Brasil já distante e ao
mesmo tempo tão íntimo.
Escritos inicialmente para serem expostos a amigos
e conhecidos no mural das interações, como quem vai
ao bar e conta a última, os textos de Ricardo são
crônicas atualíssimas que, por detalhes significativos e
uma perspectiva única, revelam de maneira aguçada as
transformações profundas do país. No reboliço das
manifestações reacionárias que monopolizam a atenção
da grande mídia, a vida do carioca continua e o Brasil
avança.
Pois transpiram nestes instantâneos literários um
saudosismo novo, um olhar sutilmente reflexivo sobre
um Brasil arcaico que enfrenta com caráter e ternura
seus desafios de modernização. Quão reveladora e
comunicativa é esta capacidade de estranhar as
experiências da vida quotidiana, a ponto de ter vontade
de pô-las em verbo e por escrito, de partilhar as
pequenas surpresas íntimas que nos reservam os
percursos pela cidade, os encontros proporcionados
pela vida profissional, a sociabilidade festiva de sua vida
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Ricardo Pessanha
de melômano, e os caminhos tão pessoais de um
tijucano pelas rotas turísticas no exterior.
Chama particularmente à atenção a perspectiva do
tradutor juramentado. Ela permite descrever o
momento preciso em que a instituição penetra a carne.
Quando o juiz autoriza o beijo dos recém-casados ele
sela — pelo reconhecimento público da relação mais
íntima — a união de duas histórias coletivas. E os
casamentos de Ricardo são muito peculiares,
representando uma atualização desta história universal
que na tradição brasileira se pensou
11 muito em termos de
mestiçagem: a exogamia radical, que só é radical por
transcender fronteiras socialmente construídas pelas
lógicas de classe, de raça, de estado-nação, de cultura, de
língua e até de gênero.
Sem nenhum voyeurismo, mas pelo seu ofício, o
tradutor público nos dá acesso a paixões e trajetórias
realmente novas: pois, quem são hoje os brasileiros que
viajam ao exterior? E que caminhos levam estrangeiros
a pisar no Brasil e fazer desta mobilidade um destino?
Os deslocamentos do intérprete entre os cartórios das
cidades pequenas do estado, ou pelos diferentes bairros
do Rio, nos dão a ver servidores públicos e familiares
que atuam com emoção — e às vezes com gafes tão
reveladoras — no ritual que sacraliza pelo direito a
escolha marital dos filhos. E pelo que vemos aqui, esta
pode levá-los muito além do que jamais poderiam
imaginar.
Vassili Rivron
Sociólogo e brasilianista – Professor da Universidade de Caen,
Normandia, França
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