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A ALMA E A MORTE
Maria Cristina Mariante Guarnieri
crisguarnieri@uol.com.br
Falar sobre o ser humano é falar sobre uma condição que, por natureza, é ambígua.
Jung, diante dessa complexidade, assume que podemos encontrar muitas respostas, mas
também vamos nos deparar com muitas indagações. E, para piorar, muito teremos que
simplesmente aceitar. Portanto, o resultado de nossa tarefa será mais dúvidas do que
certezas. Nos resta, então, o exercício da especulação e a necessidade de fé.
A consciência, então, tomou o lugar do instinto e é nela que confiamos para nos
guiar e nos dar segurança, mas ela não é tão perfeita como desejamos. Perdemos a
confiança na natureza – a queda é inevitável. Tal como o mito da queda que sugere que a
consciência é uma maldição, nós, da mesma forma, entendemos qualquer problema que
nos obriga a uma maior consciência e nos afasta da inconsciência. Nós vivemos buscando
uma vida simples, segura, explicada e que apresente resultados positivos. Não desejamos
problemas, porque queremos o “paraíso” (a tranquilidade), mas a única coisa que nos dá
alguma certeza e clareza são o enfrentamento dos problemas. E é esse enfrentamento que
trará a expansão da consciência.
Jung tratará das etapas da vida humana como duas fases do processo de
individuação. As realizações psicológicas da primeira fase consistem na separação da mãe e
na conquista de ume ego forte: uma trajetória que fala do abandono da infância até a
conquista da idade adulta. Todos os problemas que surgem nessa etapa têm uma
característica comum: diante dos problemas desejamos permanecer na fase anterior, isto é,
algo dentro de nós quer permanecer inconsciente. Queremos apenas ser consciente do que
já assimilamos egoicamente; rejeitamos tudo que é estranho ao ego. A parte estranha
anuncia o novo ser, o que faz com que o sentimento de aniquilação do velho seja
experimentado pelo ego como fim. Há, então, uma resistência à essa transformação. Para
Jung,
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Quem se protege contra o que é novo e estranho regride ao passado está na
mesma situação neurótica daquele que se identifica com o novo e foge do passado. A única
diferença é que um se alheia do passado e outro do futuro. Em princípio, os dois fazem a
mesma coisa: mantém a própria consciência dentro de seus limites, em vez de fazê-la
explodir na tensão dos opostos e construir um estado de consciência mais ampla e mais
elevada. (JUNG, 1984, § 767, p.342)
A própria sociedade parece oferecer recursos para evitar essa tensão: estabelece
padrões, premia os feitos e não a personalidade; leva o indivíduo a se limitar ao que é
possível alcançar e a diferenciar determinadas capacidades. Um indivíduo socialmente
eficaz e útil é aquele que consegue sair dos problemas. Isso nos ajudar a fixar raízes no
mundo, mas nem sempre ajuda a ampliar a consciência. O alcance do objetivo social é feito
sob o sacrifício da totalidade da personalidade.
Vida e morte, portanto, são duas fases de uma totalidade, duas formas de
representar uma existência. Acostumados a privilegiar a vida, esquecemos que esta é cíclica
e que para todo começo há um fim, em toda renovação é preciso que a morte leve o velho,
abrindo espaço para o novo surgir. Aceitar a morte é aceitar que não temos controle, é um
total desprendimento do Eu. Implica em aceitarmos uma dimensão que transcende a
consciência. Aqui se faz necessária uma atitude de confronto com o inconsciente, pois
surge de forma emergente, a questão do sentido da vida.
Para Jung, a vida, em seu processo natural, pode ser equiparada ao percurso do sol.
Em seu surgimento, ele cresce no horizonte e chega a seu pico ao meio-dia, passando a
uma curva descendente, até o final da tarde, quando morre. A vida humana teria este
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mesmo caminho: crescimento, expansão e amadurecimento. Na metade da vida,
obrigatoriamente, estaríamos nos dirigindo ao fim. A morte deveria ser nossa meta a partir
desta fase, e por tal motivo, Jung coloca que só permanece realmente vivo quem estiver
disposto a morrer com vida.
Considerando que a estrutura psíquica da forma como foi concebida por Jung
entende a morte como parte da existência, torna-se importante entender alguns aspectos
específicos da psicologia analítica. O conceito principal é o processo de individuação, que
como afirma Aniela Jaffé “...não é uma mera escola de vida, mas quando bem
compreendido, uma preparação para a morte.” (JAFFÉ, FREY-ROHN E VON FRANZ, 1995,
p.12)
O Si- mesmo pode ser considerado uma autoridade psíquica suprema que mantém
o ego sob o seu domínio, o que possibilita considerarmos o Si-mesmo como uma
representação interna da imagem de Deus.
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Ao nascer o ego encontra-se identificado com o inconsciente. Na primeira fase do
desenvolvimento humano o ego deverá se fortalecer, estruturar-se, diferenciando-se do
inconsciente, ampliando assim a consciência. O ego constrói-se lutando contra o
inconsciente: ora sentindo-se fragilizado por entender-se inferior ao inconsciente, ora
“todo poderoso”, onipotente, por estar identificado com o todo inconsciente. Edward
Edinger, em um estudo aprofundado dos conceitos junguianos, apresenta uma forma
circular como a mais adequada de expressar o desenvolvimento do ego:
Nascemos num estado de inflação. Na mais tenra infância, não existe ego ou
consciência. Tudo esta no inconsciente. O ego latente encontra-se completamente
identificado ao Si-mesmo. O Si-mesmo nasce, mas o ego é construído; e, no princípio, tudo
é Si-mesmo.”(EDINGER, 1995, p. 27)
Na inflação o ego encontra-se identificado com o Si-mesmo, identificação
necessária para a manutenção do eixo Ego-Si-mesmo, o que alimenta a fonte de energia
vital onde nascemos: o inconsciente. Porém, a realidade nos traz os limites do humano em
nós que provoca o outro estado que é chamado de alienação, que provoca uma danificação
no eixo ego-Si-mesmo. A ilusão de que somos imortais é um resíduo de inflação, e ao
experimentarmos a realidade da morte – este limite claro trazido pela realidade – estamos
vivenciando a alienação.
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influenciar no processo. “A individuação é um processo e não um alvo a ser alcançado.
Cada novo nível de integração deve submeter-se a uma nova transformação para que o
desenvolvimento se realize.” (EDINGER, 1995, p.143) A individuação produz um estado em
que o ego relaciona-se com o inconsciente, mas não se identifica com ele, é um diálogo, é a
consciência da realidade do eixo ego-Si-mesmo.
Os valores que regem a primeira etapa da vida não são os mesmo da segunda. Na
primeira estamos mais direcionados para fora, criando raízes, direcionando a “luz” para o
exterior. Na segunda estamos voltados para dentro, iluminando a si-mesmo. A segunda
metade da vida oferece objetivos diferentes da primeira. Nem sempre é fácil de vê-los e,
por mais absurdo que possa parecer, é a idéia do além vida – de um sentido maior – que
manterá o empenho de viver na segunda metade. Sabemos que não há como ter certeza
desse “além”, assim como não certezas para vida e, também, como nada sabemos sobre a
morte. Para Jung, uma vida orientada para um objetivo, com um sentido, é melhor, é mais
rica, mais saudável. Nesse sentido, ele defenderá a necessidade de um sentido para viver, e
também a necessidade de pensar a morte como transição, assim como algo que faz parte do
processo vital.
Observaremos que o medo da morte está intimamente ligado com medo da vida. a
vida é um processo energético que visa um estado de repouso. O processo todo é uma
perturbação inicial de um estado de repouso que procura se restabelecer sempre. “A vida é
teleológica par excellence, é a própria persecução de um determinado fim, e o organismo
nada mais é do que um sistema de objetivos prefixados que se procura alcançar. O termo
de cada processo é seu objetivo.” (JUNG, 1984, §798, p.358)
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conserva a vitalidade, porque no “meio dia da vida”, há uma inversão da parábola: nasce a
morte. A própria natureza se prepara para o fim e são nos símbolos, encontrados
principalmente nas religiões, que encontraremos um verdadeiro preparo para a vida e para
a morte.
Nos sonhos é possível observar o processo tanatológico muito antes da morte real.
Jung comenta que a psique faz pouco caso da morte e diz observar que a aproximação do
fim muitas vezes aparece em símbolos que denotam mudanças no estado psicológico,
como, por exemplo, os símbolos de renascimento, mudanças, viagens, etc. Na realidade, o
que percebemos é como se o inconsciente estivesse interessado em saber se a atitude da
consciência está em conformidade com o processo de morrer.
“A alma encerra tantos mistérios quanto o mundo com seus sistemas de galaxias
diante de cujas majestosas configurações só um espírito desprovido de imaginação é capaz
de negar suas próprias insuficiências.” (JUNG, 1984, §815, p.367) Nada podemos afirmar,
mas temos o dever de sempre buscar. A única coisa que se traduziria em um erro fatal seria
acreditar que o ser humano tem autonomia para mudar a natureza. Isso seria um milagre, o
que não compete a nós.
Referências
JUNG, C.G. A natureza da psique, In. Obras completas vol.8,Rio de Janeiro, Vozes, 1984.
_____. “Fundamentos da Psicologia Analítica”, in A vida Simbólica, Obras Completas,
v.18/1, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.