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Psicopatologia Junguiana

Nós vamos falar hoje aqui sobre a Psicopatologia dentro da perspectiva


Junguiana e ela nos coloca uma questão importante: Seria possível uma
psicopatologia onde a loucura não aparecesse separada do psiquismo normal e
saudável? Para isso a gente tem que entender a doença não como uma coisa
tomada como um ente em si. A doença como o efeito de uma perspectiva, algo
que é interpretado por um complexo, como um contrário a determinados valores
considerados saudáveis.

Diz o Jung que em toda situação de experiência a um certo


condicionamento psíquico que se interpõe ao que é imediatamente dado, tudo
aparece na psique associado a um complexo afetivo, que ele chama de uma
imagem de determinada situação psíquica que assimila o evento dando a este
uma interpretação. Isto é importante porque imagem do ponto de vista Junguiano
aqui não é uma figura que a gente vê, imagem é o que nos permite ver alguma
coisa como sendo uma aula, uma mesa ou uma pessoa, ou seja, aquilo que é
imediatamente visto, imediatamente dado, é visto e vivido como tendo um
determinado significado, um determinado sentido.

Os complexos, eles seguem processos de automatização, autonomização


chamados de hábitos. Os complexos se configuram em torno de grandes temas,
padrões arquetípicos que possuem uma tendência para a autonomia. Uma coisa
importante na perspectiva Junguiana é que a unidade da consciência é uma
mera ilusão. Não que a fantasia de unidade não exista na consciência, mas nós
gostamos de pensar que somos unificados mas isso não acontece, nem nunca
aconteceu, nos diz o Jung.

Com isto, o complexo tem uma posição relativamente autônoma diante do


complexo do eu. O complexo do eu é um dos complexos, ele não é o único. E
os outros seriam para o complexo do eu uma outra normatividade, um outro
padrão. Eles se configuram em torno então desses grandes temas que movem
coletivamente, que são o quê? Estilos de consciência, fantasias dominantes,
estilos imaginativos de discurso, que organizam os eventos em constelações.
Nós podemos chamar estes padrões de padrões arquetípicos, ou podem ser
vistos como deuses, como estas fantasias dominantes que nos atravessam e
nos constituem de alguma maneira.

Uma forma interessante da gente se aproximar disso é como o Roberto


Calasso, mitólogo, fala nas núpcias de Cadmo e Harmonia. Ele diz: “Quando a
vida se inflamava no desejo, no sofrimento ou mesmo na reflexão, os heróis
homéricos sabiam que ali havia um deus em ação”. Portanto deuses, como tudo
que nos move, faz rir, chorar, pensar, etc.
Da mesma maneira Levi Strauss quando fala do Cru e Cozido sobre os
mitos, ele diz: “Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos,
mas como os mitos se pensam nos homens e a sua revelia e como sugerimos,
talvez convenha ir mais longe, abstraindo todo o sujeito para considerar que de
certo modo, os mitos se pensam entre si”.

O eu aparece como apenas um dos complexos e não como fundamento


do si mesmo. Ao buscar realizar-se, a unidade que emerge não é o eu anterior,
diz o Jung, em sua ficção, senão que um outro que ele designa como Si mesmo.
Si mesmo é o outro do eu sem deixar de ser eu, é dois que é um. Por isso é
importante a gente poder discriminar o que é complexo do eu, o que é Si mesmo
e o que é sujeito na narrativa Junguiana.

Nos tipos psicológicos, Jung nos diz que ele entende por sujeito, convém
dizer desde já, todos aqueles estímulos, sentimentos...

Ou seja, sujeito não é sujeito da identidade, não é sujeito do


conhecimento, é algo que de alguma maneira se coloca indeterminando tudo o
que parece determinado na consciência.

O poeta Fernando Pessoa nos fala disso, talvez de uma maneira mais
interessante. Ele diz:
Os complexos, eles poderiam interferir, realizar processos de invasão na
consciência, estes não seriam de forma alguma patológicos, a não ser no sentido
do pathos, da paixão, do ser movido, do apaixonar-se. Por isso que este
processo da invasão do complexo é tão importante na psicopatologia e a
psicopatologia é tão central na experiência da alma, porque ele traz de alguma
maneira algo que invade, algo que é enigmático, algo que é novo e portanto
ligado com a alma como personificação do inconsciente. Daí começarmos pelo
estranho, pelo incompreensível, pelo sintoma que é o mais alienígena para o
complexo do ego.

Retomando então a revisão Junguiana da noção de doença mental, ela


vai tomar que doença é quando você tem um padrão unilateralmente dominante
na consciência, ele torna-se um governo interior tirânico, esteja a serviço do eu
ou não, imbuído de ações dominadoras em revolta e em combate, contra
manifestações diversas. Vivem estas manifestações diversas como inimigos a
serem eliminados – os sintomas. Por isso que os sintomas nos lembram da
autonomia dos complexos. Há sempre algo aparecendo que para o complexo do
eu ou para o estilo dominante na consciência, a personalidade consciente, aquilo
está sendo vivido como um invasor.
O mentalmente doente refere-se a quais ideias, a quais comportamentos,
que são fantasias vividas como erradas. Vividas como erradas por quem? Pelo
padrão dominante que avalia como elas não deveriam ser.

Normas são as ilusões que determinadas partes prescrevem as outras,


nos diz o James Hillmann, no Reveem da Psicologia. Um outro autor que nos
ajuda a rever a noção de doença é o Jorge Caguilhem, ele diz que doença
aparece quando só se pode admitir uma única norma, o que caracteriza a saúde
é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a
possibilidade de tolerar infrações a norma habitual e de instituir normas novas
em situações novas.

E quando é que nós temos situações novas na vida? Sempre! A saúde


não é a adaptação completa, ao contrário, é a possibilidade de tomar distância,
de tolerar infrações para instituir outros padrões que não apenas o que está
dominante naquele momento. Portanto, doente é que é a completa adaptação
da normatividade do meio.

A normatividade do meio não está externa, porque o padrão arquetípico,


uma fantasia dominante, o estilo de discurso, ele é tanto externo quanto interno
– nos configura e nos atravessa. Eles são valores coletivos, estéticos, morais,
como nos diz o Jung. Por isto, quando estes padrões diferentes do que está
dominando no momento são vividos como ameaça, quando não se consegue
tomar distância do padrão dominante acionam-se múltiplos mecanismos de
defesa contra o outro padrão e aí configura-se o sintoma.
O Jung nos descreve como “(...) ‘está constelado’, indica que o indivíduo
adotou uma atitude... por própria vontade”. Quando um complexo é acionado,
ele aciona como um todo. Aciona todas as reações, as associações feitas, sejam
emocionais, sejam lembranças, sejam as reações corpóreas, liberação de
adrenalina, cortisol, tônus musculares, expressão facial, brilho no olho. Há um
complexo que é acionado e ele é acionado como um todo. Quando está
constelado, todo este circuito de alguma maneira é acionado involuntariamente.

Portanto, para o Canguilhem, não existe fato que seja normal ou


patológico em si, eles exprimem outras normas de vida possíveis. E para o Jung
as doenças são processos normais perturbados e nunca entidades em si. Seria
preciso então uma dissociação, e a cisão seria efeito da revolta e combate do
estilo predominante na consciência – o que o Jung chama de personalidade
consciente – contra manifestações diversas. A oposição e o combate às
reivindicações ampliariam a cisão.

A questão da cisão também está relacionada não apenas na luta e no


combate, mas no desagrado e paralisação de energia psíquica que estava
fluindo num determinado padrão. O padrão complexo que de alguma maneira
está instalado ele flui a energia e um outro padrão é vivido como paralisação
desta sequência, o que é vivido como desagrado.

Portanto sintomas, as ideias patológicas, elas não são necessariamente


coisas ruins. É ao contrário, como nos diz a narrativa Junguiana. Elas
frequentemente têm um papel fundamental porque, as invasões, elas são
favoráveis, elas são uma tentativa de auto cura. O que quer dizer, uma tentativa
de que um único padrão não permaneça dominando unilateralmente o tempo
todo.

Se o Jung disse que a psicose aparece com a invasão dos complexos, ele
também nos diz que com a assimilação destes é que há uma proteção contra o
isolamento e contra a psicose. Isso é importante porque nós estamos aqui
falando de uma psicopatologia que não separa mecanismos doentes de
mecanismos saudáveis. Os mesmos mecanismos supostamente saudáveis ao
funcionarem demais numa fixação unilateral configuram-se como algo que de
alguma maneira vai se colocar como a situação de uma crise.

Portanto, a loucura não apareceria separada do psiquismo normal. Ao


contrário, ela adquire um sentido. As pessoas em crise são as que sofrem os
mesmos problemas humanos que todos nós. É na loucura que se pode descobrir
um sentido no que parecia sem sentido. Ou seja, a loucura revela novos
sentidos, novas organizações complexas, novas possibilidades de visão. Doente
é quando há uma dissociação na psique e instala-se uma cisão com revolta e
combate.

Muito resumidamente, na narrativa Junguiana a neurose aparece quando


há dissociações que são fluidas e mutáveis. Ao conflito entre o complexo do eu
e forças contrárias relacionadas ao inconsciente mas permanece a autonomia
relativa dos complexos. A psique não consegue se libertar de um complexo não
superado e fundamentalmente não ocorre um trabalho de colaboração entre
estes elementos.

Quando um complexo no entanto, ele se fixa, não se modifica de forma


alguma, ele intoxicaria e comprometeria as funções psíquicas aparecendo como
psicose. Jung também refere que na psicose a uma predominância de material
coletivo.

Portanto, estilos dominantes – padrões arquetípicos “deuses” vividos


como normas, disciplinarmente internalizadas, organizam padrões de conduta e
de reação que passam a conduzir os sujeitos.
Assim, os modos de socialização são, ao mesmo tempo, os modos de
suporte do sofrimento vivido. “Haveria um tipo de sofrimento... psique e a vida”.

Há uma forma de sofrimento por não se conseguir realizar valores, normas


sociais que são vividas como imperativos para uma vida bem realizada e por
viver outras normas como ameaças catastróficas. E se as aspirações racionais
do sujeito moderno, valores muito fortes e arraigados como autonomia,
autenticidade, unidade, auto identidade se aglutinaram na forma indivíduo, como
um padrão saudável ideal e se for vivido como norma única, se não se puder
tomar distância destes valores como imperativo, então esse padrão vivido como
normal pode ser a base daquilo que funcionando unilateralmente se configurará
como doença.

Se tiver que ser vivido: Você tem que ser autônomo, independente,
autêntico, único, espontâneo, autodeterminado, se estes padrões tornarem-se
imperativos e se o sujeito, se o vivente não puder tomar distância o que se
configurará? Pode se configurar a doença e o pathos pode mostrar a vida que
não foi normatizada. A vida que pulsa em inquietude e indeterminação, intenção
com tudo o que foi configurado, normatizado, determinado.
E aí, os diagnósticos categoriais, o que aparece como psicopatologia nos
clássicos, nos códigos, eles vão nos mostrar as normas coletivas valorizadas...

A figura que estamos mostrando ela não nos apresenta uma imagem do
contrário do padrão saudável. Diferente disso, a doença se coloca por não poder
tomar distância de valores considerados saudáveis, como por exemplo,
magreza, etc.

Quando as aspirações racionais do sujeito moderno tornarem-se


unilateralmente tirânicas em revolta e combate contra os padrões arquetípicos,
“deuses”, vividos de outra maneira, então estes outros padrões serão vividos
como doenças, e por isso a célebre frase de Jung: “Os deuses tornaram-se
doenças”. Porque se o único Deus dominante são o Deus dos padrões racionais
do sujeito moderno, configurados como unidade, autenticidade, autonomia e
dependência, tudo o que não for isso vivido como ameaça configurar-se-á como
doença.

Vamos pegar a definição de transtorno mental do CID-10, ele está dizendo


que Transtorno é usado aqui para “indicar a existência de um conjunto de
sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecíveis associados, na maioria
dos casos, a sofrimento e interferência nas funções pessoais”. Tudo que interfere
com o padrão dominante da consciência.
Também no DSM-V o Transtorno Mental é visto como uma síndrome
caracterizada por perturbação, clinicamente significativa que pode aparecer na
cognição, na regulação emocional ou no comportamento do indivíduo.
Transtorno é sempre uma disfunção para o indivíduo. Não é possível, do ponto
de vista dos códigos, uma classificação de doença que não seja disfunção no
indivíduo autônomo, independente, autêntico, único, autodeterminado.

Portanto a patologia, ela pode então surgir como apresentação do devir,


como uma potência de inquietude, que corrói o determinado dissolvendo
entropicamente no seio das mudanças. Diz o Jung que “é na raiz das mutações
ocorridas nos fenômenos que há uma energia que se mantém constante
produzindo entropicamente um estado de equilíbrio geral no seio das mutações”.

No seio das mutações, no conjunto, na vida, na sua mutação constante,


na sua transformação constante com infinitos sentidos, com infinitas
possibilidades há algo se configurando e há algo entropicamente se dissolvendo.
E esse entropicamente se dissolvendo é o próprio devir, na sua inquietude em
tensão com tudo que parece determinado. E se o determinado domina
unilateralmente, o devir e as transformações podem ser vistos como sintomas,
como ameaças e aí configurados como doença.

Como nós vamos perceber isso relendo os diagnósticos clássicos e


categoriais? Porquê? Eles se apresentam mostrando a perspectiva
universalizante do pensamento conceitual, colocando-se no dever ser normal,
que é usada na validação de condutas e no julgamento que classifica os outros
elementos desviantes. É o horizonte de normalidade saudável que instalará a
cisão no interior da perspectiva genérica idealizada.

Como ultrapassar esta norma? Ultrapassa-se a norma ideal aprofundando


no contexto singular. O ato em uma situação própria da existência. E aí Fernando
Pessoa nos ajuda novamente. Ele diz:

Vamos tomar um exemplo: a esquizofrenia descrita no CID-10. O


sofrimento, o pathos é apresentado como distorções fundamentais
características do pensamento e da percepção. Mas quais são as características
fundamentais do pensamento e da percepção? Por acaso há uma unanimidade
na descrição dessas características? Por acaso há uma única visão que define
quais são as características fundamentais?

E aí diz a classificação: a perturbação das funções mais básicas que dão


a pessoa normal o senso de individualidade, unicidade e direção de si mesmo.
Ou seja, o horizonte normal é que o sujeito não pode ter o senso de
individualidade e unicidade ameaçado. Eu tenho que me saber único e individual
e eu não posso perder a direção de mim mesmo. Se isso for vivido
imperativamente, tudo se tornará, tudo que for contrário a isso, que for diferente
disso, se tornará ameaça. O que produz a ameaça é o padrão normal vivido
imperativamente.

Se a gente pegar a descrição do Bleuler quando a categoria é instalada


em 1911, ambiguidade é um dos elementos fundamentais como uma das
tendências da psique esquizofrênica – nos diz Bleuler, e o índice positivo e outros
negativos são vividos ao mesmo tempo. Imagine que sentimentos agradáveis e
desagradáveis, ou seja, ambivalência afetiva é vivido como uma tendência de
psique esquizofrênica. Por exemplo, ama e odeia a sua mulher, quer e não quer
comer, como se não fosse possível viver a ambiguidade. Agora, não poder viver
a ambiguidade é que pode transformar a ambiguidade no sintoma e com isso
configurar a doença.

A norma tácita, saudável, vivida como imperativo seria: “Você tem que ser
único, autodeterminado, na direção de si mesmo, tem que ser autenticamente
certo, sem sentimentos contraditórios, não deve ter dúvidas, incertezas ou
ambiguidades”. O sujeito está em crise quando está absorvido pelo meio, quando
estes padrões coletivos, arquetípicos, dominantes, obrigam a dar importância e
responder e seguir todas as vozes que aparecem. As vozes se literalizam em
vozes porque são ouvidas por um padrão literal. Ter que reagir, explicar e
entender tudo o que aparece. Ter que separar nitidamente o que pensa do que
acontece, não poder ter dúvidas, incertezas, não saber. Não poder viver uma
situação onde não entendo o que acontece.

O entendimento cabe na vida, mas a vida não cabe no entendimento. Há


coisas para serem vividas que não vão ser entendidas, se isto se tornar uma
ameaça, isso pode virar sintoma. Então a crise se configura quando não se pode
dividir, falar, compartilhar. Não se pode se ver como múltiplo e um, ao mesmo
tempo, não se pode ter sentimentos contraditórios, amar e odiar uma pessoa ao
mesmo tempo.
Um outro exemplo é sobre o Transtorno Depressivo. No CID-10 o pathos,
o sofrimento, aparece como humor deprimido, perda de interesse e prazer e
energia reduzida, fatigabilidade aumentada e atividade diminuída. Está reduzida
também a concentração, atenção, autoestima e autoconfiança. Ou seja, qual é
a norma dominante? Você tem que ter interesse e prazer, deve manter interesse
e prazer estável ou ao menos não reduzido. Só se pode aumenta-los, se
acontecer uma diminuição e esta não responde a circunstâncias eventuais, teria
que instabilizar-se os valores que orientam a ação ou localizar o acontecimento
na doença, preservar a forma de vida que assim valoro.

Portanto, a norma valorizada que tenta manter sobre controle é a que


coloca como ideal de saúde prazer, energia, concentração, atenção, autoestima,
autoconfiança, utilidade, não se sentir culpado, visões otimistas de futuro, ideias
de auto conservação, sono sem perturbação e apetite estável. Tudo o que
ameaça estes valores deverá estar relacionado de forma causal a alguma
circunstância temporária e controlável, não sendo o caso, só poderia ser
resultado de uma doença, de um transtorno.

Desta maneira, o padrão normativo saudável produz, cria, como poiesis,


doença. A doença ela é efeito performático da psique. A psique não só produz
obra de arte, não só produz música, escultura, ela também produz doença,
configurando aquilo que é o outro do padrão saudável.
Portanto é possível, na perspectiva Junguiana, ver uma psicopatologia
onde a loucura não esteja separada do psiquismo normal ou saudável, onde os
sintomas, ideias patológicas desempenham um papel fundamental, pois revelam
novos sentidos, onde o erro possa ser um caminho. E como diz Hegel, o “temor
de errar introduz uma desconfiança na ciência, (...) porque não introduzir uma
desconfiança nesta desconfiança, e não temer que esse temor de errar já seja o
próprio erro? ”.

Alguns questionamentos surgem frequentemente quando discutimos na


perspectiva Junguiana a respeito da psicopatologia. Será que nesta perspectiva
então a gente está defendendo que a doença não existe? Pelo contrário! O que
a gente está falando é que a psique produz o tempo inteiro, performaticamente
ela produz doença, assim como ela produz outras coisas. Então quanto mais
padrões dominantes forem internalizados e vividos imperativamente, como por
exemplo na depressão, que a gente falou agora a pouco, quanto mais for vivido
como um elemento forte, mais este padrão dominante produzirá o seu efeito
contrário; produzirá outros padrões.

Então isso significa que a doença não existe, que ela é uma fantasia, que
ela não é real, que ela é produzida? Veja, Jung nos coloca uma questão
importante no que ele entende por real. Ele nos diz: Não acredito em nada que
seja suprarreal. O que não quer dizer que realidade é exclusivamente o que é
possível de ser palpável, visto, mensurável, exclusivamente o que é equivalente.
Um pensamento produz efeito? Se produzir efeito, ele nos diz, é real. Uma
fantasia produz efeito? Se a fantasia produz efeito, ela é real.

De alguma maneira, todas essas configurações ao produzirem efeitos, e


se pensamos essas configurações como fantasias dominantes que organizam a
sociedade, a cultura, as famílias, as formas de se relacionar, ao trabalho; enfim,
estes padrões, estes estilos, eles são reais. Eles não precisam de substância
para ser real.

A perspectiva Junguiana, ela coloca em questão duas perspectivas. A


perspectiva mecanicista-causal, que pensa que as coisas só existem enquanto
substancias, e uma perspectiva energética que entende que as coisas podem
existir como efeito de relação. As coisas são em relação e para isso elas não
precisam ter substância para existir. Então um padrão arquetípico, uma fantasia
dominante, ela é real, ela não precisa de substância para ser real. Portanto uma
doença ela é real, mesmo que ela não tenha substância na sua realidade, porque
essas configurações, elas produzem efeito.

E quando elas acionam um padrão arquetípico que aciona os complexos


que estão internalizados nas vivências empíricas de cada um de nós. Isto vai
fazer com que todo o complexo seja acionado, liberação de hormônios, tônus
muscular, expectativas, sentimentos, emoções, pensamentos. Isso tudo
funciona associado, não há uma separação nesse sentido entre uma coisa e a
outra.

Então é importante entender que quando na clínica alguma pessoa chega


dizendo assim: “Ah, eu sou um deprimido, um bipolar” ou qualquer outro
diagnóstico, a postura clínica não é de negação do sintoma, mas a questão é
poder escutar: “O quê que essa pessoa está dizendo quando diz isso? ”. Se ela
chega dizendo que “Eu sou um deprimido”, ok. O que está querendo dizer? Então
me conta: O quê que isso? Como sente, como vive? E aí a gente vai extraindo
de alguma maneira indeterminação, enigma, vai escutando o inconsciente, vai
escutando o que há de mistério naquilo que parecia mais claro e nítido. Então
não é uma perspectiva de forma alguma, contrária a classificação, contrária aos
diagnósticos. É através dos diagnósticos, é através das configurações é que a
psique vai dissolvendo e vai produzindo novas configurações.
Outra questão que frequentemente me colocam: “Bom, se nesta
perspectiva as categorias diagnósticas das doenças, elas são uma produção da
psique, então que sentido faz usar medicações? Que sentido faz usar os
remédios? ”.

Primeiro, eu diria que a gente tem que tomar um certo cuidado quando a
gente escuta uma pergunta como esta e não tomar literalmente todas as
formulações colocadas, porque parece tudo muito claro se a gente não olha de
uma maneira um pouco mais aprofundada para os temas. Afinal de contas,
quando se toma um remédio, quantos remédios se toma? De que remédio está
se falando quando se fala de um remédio?

E aí, se nós relermos na perspectiva Junguiana o que seriam os


remédios? Tudo que de alguma maneira pudesse agir que reduzisse, que fizesse
resistência a um padrão dominante na consciência ou o estilo dominante
funcionando tanto na consciência do vivente quanto nas relações sociais, nas
relações familiares, de trabalho, funcionaria como remédio. E aí nós temos uma
infinidade de possibilidades de dispositivos que podem ser utilizados. Tudo que
de alguma maneira resiste ao padrão dominante é de alguma maneira um
remédio. Tudo aquilo que, ao contrário, funciona incrementando, estimulando o
fluxo de energia no padrão complexo dominante funciona contrário aos
remédios.

Então uma medicação, literalmente falando, ela pode funcionar e ela só


funciona dentro desse ponto de vista, quando ela atrapalha. Porque que a vida
é o melhor remédio? A vida é um grande remédio, porque de alguma maneira,
ela atrapalha todos os padrões dominantes que se constelam de maneira única
e quanto mais constelado de maneira única, quanto mais rígidos, mais a
multiplicidade de sentidos da transformação da vida produzem resistência. Por
isso o inconsciente regula? Ele regula porque produz resistência. Resistência ao
que está unilateralmente constelado, do que está unilateralmente dominado de
maneira mais rígida, seja na consciência de um vivente, seja nas relações
familiares, sociais e culturais.

Então, acho que é importante não haver, primeiro: uma literalização de


tudo que é remédio. Nem todos os remédios são os mesmos remédios, não
funcionam do mesmo jeito para todas as pessoas. De que maneira eles vão
funcionar? E aí então, a arte pode ser um remédio? Música pode ser remédio?
Realizar uma atividade, trabalho pode ser remédio? Amar pode ser um remédio?

E é interessante, algumas pesquisas vão mostrando que quando algum


remédio funciona, ele não age em locais diferentes do que os outros. Porque
talvez o que a gente esteja falando é que esses circuitos que de alguma maneira
são acionados, não são diferentes. Tudo que produz uma certa resistência, e é
interessante quando Jung fala que, o fundamental na perspectiva colocada na
narrativa Junguiana não é curar, não é eliminar o sintoma, porque o sintoma nos
fala daquilo que o padrão dominante está lutando contra. Se for eliminar o
sintoma, o padrão dominante fica mais forte.

Ele nos diz que o terapeuta vai estar sempre do lado do mais fraco, do
que não tem voz. Ele vai estar sempre no lugar do advogado do diabo, que
defende o enigmático, o desconhecido, porque de alguma maneira o que ele está
colocando é ouvir o desconhecido, é ouvir o inconsciente e com isso resistir ao
padrão dominante. Mas não porque exista um padrão certo e outro padrão
errado, na vida cabe infinitos padrões. Mas a vida não vai caber em padrão
nenhum, em norma nenhuma. Ela vai ter que ir produzindo novas normas e
novos padrões nas infinitudes de produção e de sentido de padrões colocados.

Ajax Pérez Salvador

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