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carta da argentina
A ORIGEM DA TRISTEZA
Reflexões sobre o aborto e sua legalização
JOSEFINA LICITRA
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Quando perguntaram a Margaret Atwood como nascera a ideia de O Conto da Aia, ela falou dos experimentos nazistas e da Escola de Mecânica da Arm
durante a ditadura argentina ILUSTRAÇÃO_ZOË VAN DIJK
S
ó lembro do quarto e do banheiro. Minha casa toda, com vários
cômodos, jardim e escritório no andar de cima, se reduz a esses
únicos espaços onde tudo aconteceu. Foi há dez anos. No
banheiro, vi no teste de gravidez as linhas que indicavam “positivo”.
E no quarto seguiu-se o resto. A imagem é tão nítida que a recordo no
presente: ando de um lado para o outro com os dedos cravados na
cabeça, e repetindo “meu Deus”. Não quero outro filho; puxo os
cabelos tentando arrancar alguma ideia. “Meu Deus, meu Deus”: é só
isso que sai.
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computador. Fica na sala de cima, mas não tenho lembrança daquele
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cômodo. Sei que estive lá, só isso. E que abri uma agenda de contatos.16/01/2020 09(35
Durante anos, cobri notícias sobre aborto para o jornal Crítica de la
Argentina. Procurei os médicos que eu tinha entrevistado sempre que
precisei de uma opinião a favor da legalização. Eram poucos. Anotei
os números e desci para o quarto: o lugar onde a lembrança volta a
estar viva.
Depois, sento e espero. Ou não: fico em pé. Vou e venho pelo quarto,
Balbucio coisas, perco o olhar nas paredes alaranjadas. O mundo não
passa de matéria em fuga; nele eu me dissolvo. Não sei quanto tempo
transcorre até o telefone tocar.
Atendo.
Ele sabe.
D
e lá para cá, já se passou uma década. Durante todo esse tempo,
encontrei o doutor Sebastiani em várias oportunidades. Não só
porque desde aquele dia ele é meu ginecologista, mas também
em função do trabalho: continuo a entrevistá-lo.
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desde 2010, todo ano é apresentado na Câmara dos Deputados um
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projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez, mas agora 16/01/2020 09(35
parece que, pela primeira vez na história, a proposta vai ser debatida
com o objetivo de obter uma sanção histórica, que depois será
encaminhada ao Senado. Na rua, nas redes sociais e na mídia, o tema
começa a ganhar força. Ainda não começou o que logo mais será
chamado de “maré verde”, ainda não surgiram os lenços verdes que
identificam a posição favorável à legalização do aborto, mas, no
espaço público, cada vez mais gente pede uma mudança na lei.
Mulheres são a maioria.
O oitavo também.
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Ele continua falando. A primeira vez que teve contato com o aborto
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foi em 1974, durante um plantão num centro de saúde pública da
província de Buenos Aires. Cursava medicina, entrou como residente
e recebeu – ao chegar, na troca de turno – o relatório geral dos
médicos que estavam de saída. “Tem uma mulher morrendo”,
disseram. Referiam-se a uma garota de 19 anos com uma infecção
generalizada, causada por uma bactéria – Clostridium perfringens –
que, a partir do aparelho reprodutor, se espalha pelos demais órgãos
quando se pratica um aborto em condições de higiene precárias. No
caso dessa paciente, a gravidez tinha sido interrompida com uma
sonda: uma pequena mangueira é introduzida no colo do útero para
estimular as contrações e expulsar o embrião, ignorando que essas
contrações não são provocadas pela presença de um corpo estranho –
a sonda –, e sim pela infecção dela decorrente. Sebastiani observou a
mulher: estava pálida devido à anemia, azul pela falta de oxigênio no
sangue e amarela por causa da insuficiência hepática. Naquela
mesma noite ela morreu.
“Nenhuma morte é boa, mas essa é das piores”, ele diz no rádio. E
acrescenta que, a partir daquele dia, em seus plantões começou a
fazer uma estatística com base em todos os casos que iam chegando: o
número de abortos era similar ao de partos. E, por serem
clandestinos, muitas vezes terminavam mal: com extrações cirúrgicas
de úteros gangrenados ou infeccionados, úlceras vaginais ou morte.
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N
A origem da tristeza aquele dia, há dez anos, depois de telefonar a Sebastiani passei 16/01/2020 09(35
À tarde fui buscar meu filho na escolinha. A rua era um filme alheio,
como as sequências que vemos da janela de um trem. Isso voltaria a
me acontecer em outras ocasiões: ao me separar, ao perder um
emprego, ao ver minha mãe doente. Todas essas vezes, a rua e eu
seguíamos por raias paralelas, incapazes de tocarem uma na outra.
Quando vi meu filho, eu o apertei com força entre meus braços, fiz as
perguntas de sempre e sorri com exagero o caminho inteiro. Minha
cabeça começava a zumbir. Tinha dentro de mim demasiadas
palavras. Agora posso organizá-las e lhes dar sentido. Não vou te dar
um irmão, devo ter pensado. Enquanto tomo sua mão e te protejo, também
estou decidindo sobre sua vida, filho. Você vai acordar sozinho no quarto.
Não vai ter com quem brigar nem a quem ensinar o que já aprendeu. Quando
eu for velha, vai ter que cuidar de mim sozinho. E vai ser duro. É o que estou
tramando, filho, e ao mesmo tempo, te amo e pronto. Suas bochechas têm uma
forma diferente a cada dia. Parecem nuvens.
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quando Sebastiani abria a porta e dizia: “A próxima.” E lá iam elas,
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uma após a outra, com uma gravidez desajeitada e alegre como um
jardim selvagem. Não sei se senti inveja ou desprezo; eram dias
estranhos, sem futuro: meu tempo avançava para lugar nenhum, ou
talvez avançasse para dentro.
É por elas também que escrevo agora: assim pago minha dívida. Isto
– um depoimento que ajude a entender – é o que eu tenho para dar.
E
screvo esse depoimento em julho de 2018. Dentro de poucas
semanas, no início de agosto, quando a revista já tiver sido
publicada, o Senado argentino terá aprovado ou rejeitado a lei
do aborto legal, seguro e gratuito já sancionada na Câmara dos
Deputados. A chance de que haja, finalmente, uma lei que permita a
interrupção da gravidez nas primeiras catorze semanas de gestação
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está provocando um debate filosófico e de saúde pública, ao mesmo
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tempo que expõe a ignorância de alguns funcionários públicos.
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seu quarto. Guardo apenas uma lembrança da escuridão que horas
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mais tarde, de madrugada, se traduziu em dor. Acordei. Sentia uma
pressão no ventre parecida com a do início do ciclo menstrual.
D
ias depois do aborto, voltei ao consultório de Mario Sebastiani.
Ele pediu uns exames e me receitou anticoncepcionais para
evitar que aquilo acontecesse outra vez. Desde então, nunca
mais parei de tomá-los. Não quero engravidar, porque não quero
abortar. A liberdade de escolha me permitiu aprender.
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acabaria vencendo.
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Esse uso e descarte dos corpos respondia a uma visão de mundo que
também aparece em O Conto da Aia, o livro de Margaret Atwood –
que deu origem à série da Netflix –, que narra a história distópica mas
verossímil de um país submetido a uma ditadura teocrática que
organiza a sociedade em torno de duas classes: uma aristocracia com
dificuldade para gerar seus próprios filhos e uma classe baixa
contratada para servir num sentido amplo – algumas, “Marthas”,
cuidam da limpeza e da comida, e outras, as aias, são obrigadas a
gestar filhos para famílias que depois se apropriam deles.
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Quem votasse pelo “não”, não estaria votando pelas “duas vidas” (a
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da mãe e a do futuro filho): estaria votando pela clandestinidade. Foi
isso que Victoria Donda deixou claro. E graças ao discurso dela, e ao
de tantos outros, e principalmente ao de 1 milhão de pessoas reunidas
do lado de fora, na manhã de 14 de junho, a lei recebeu a sanção da
Câmara dos Deputados.
F
iquei sabendo que estava grávida do meu filho no final de 2004.
Sozinha no banheiro fiz um teste que deu positivo. A comoção
foi tão grande que por algumas horas não consegui telefonar
para ninguém. Passei a manhã inteira olhando minha barriga no
espelho, como se fosse uma imagem religiosa: uma entidade com
poder sobre mim.
Hoje meu filho tem 12 anos. Moramos juntos, sem o pai dele. Na hora
do jantar, assistimos ao noticiário e conversamos. Ao longo desses
dias, o aborto é um assunto recorrente. Um ano atrás, meu filho disse
que não era a favor de uma interrupção da gravidez porque não
queria que matassem um bebê. Mas agora sua posição é mais flexível.
Ainda mantém uma visão infantil, mas também começa a entender
que há mulheres que morrem abortando.
“Mas a gente pode ter sentimentos por uma não pessoa”, ele rebate.
Segue-se um silêncio.
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“Mas um embrião não é uma bactéria”, diz meu filho.
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“Não, Joaquín”, olho para ele intrigada: não sei onde ele aprendeu
sobre a Lei de Talião. “Acho que é a vida.”
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