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Anthony Bourdain é uma festa 15/01/2020 21'26

EDIÇÃO 142 | JULHO_2018

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ANTHONY BOURDAIN É UMA


FESTA
Com um apetite insaciável por culturas e cozinhas nativas, o chef se tornou um
estadista itinerante
PATRICK RADDEN KEEFE

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Num restaurante de sushi em Manhattan, Anthony Bourdain disse, contemplativo: “Tenho o melhor emprego do mundo.
Se eu não estiver feliz, será por falta de imaginação” FOTO_MILLER MOBLEY_AUGUST

Esta reportagem foi publicada originalmente pela revista The New


Yorker em fevereiro de 2017. Dezesseis meses depois, em 8 de junho
de 2018, o chef e escritor norte-americano Anthony Bourdain se
suicidou no quarto de um hotel francês. Tinha 61 anos e estava
preparando um novo episódio de Parts Unknown, programa que
estrelava na CNN.

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***

Q
uando viaja para o exterior, o presidente dos Estados Unidos
leva seu próprio carro. Momentos depois do Air Force One
pousar no aeroporto de Hanói em maio de 2016, o presidente
Barack Obama se enfiou numa limusine blindada de mais de 5 metros
de comprimento conhecida como Besta – um abrigo antibombas
disfarçado de Cadillac, equipado com uma conexão segura com o
Pentágono e suprimento de sangue. As largas avenidas de Hanói
estão coalhadas de carros que buzinam, vendedores ambulantes e uns
5 milhões de scooters e motocicletas que entopem os cruzamentos
como uma enchente. Era a primeira viagem de Obama ao Vietnã, mas
ele contemplava aquele espetáculo através de um vidro com 5
polegadas de espessura, à prova de balas. Se estivesse assistindo pela
televisão, o efeito seria o mesmo.

A agenda de Obama previa um encontro com o presidente Trần Đại


Quang e com o novo chefe da Assembleia Nacional do Vietnã. Em
sua segunda noite em Hanói, porém, ele teria um compromisso

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insólito: um jantar com Anthony Bourdain, o peripatético chef que


virou escritor, apresentador de Parts Unknown, a série da CNN sobre
viagem, premiada com o Emmy. Nos últimos quinze anos, Bourdain
tem mostrado versões cada vez mais sofisticadas do mesmo
programa. Começou com A Cook’s Tour, transmitido pelo Food
Network; ao migrar para o Travel Channel, foi rebatizado como Sem
Reservas e teve nove temporadas antes de se transferir para a CNN,
em 2013. Ele já viajou para quase cem países e filmou 248 episódios,
cada um com uma exploração inusitada da comida e da cultura de
um lugar. O ingrediente secreto do programa é o entusiasmo do tipo
“em Roma como os romanos” com que Bourdain compartilha
costumes e cozinhas locais, seja chacoalhando uma garrafa de vodca
antes de mergulhá-la num rio congelado nos arredores de São
Petersburgo, seja lanceando um porco cevado como convidado de
honra numa palhoça comunitária em Bornéu. Em geral ele é
fotografado com os maxilares escancarados, prestes a cravar os dentes
numa iguaria, qual um grande tubarão branco. Originalmente,
pensou em anunciar a série dizendo mais ou menos assim: “Eu viajo
ao redor do mundo, devoro tudo o que é porcaria e só faço o que me
der na telha.” A fórmula tem se mostrado um sucesso improvável.

Com frequência as pessoas perguntam aos produtores do programa


se podem acompanhar uma das aventuras do apresentador. Numa
visita a Madagascar, ele teve a companhia do diretor de cinema
Darren Aronofsky. (Fã do programa, Aronofsky propôs a Bourdain
que fossem a algum lugar juntos. “Meio brincando, eu disse
Madagascar, só porque é um lugar longe à beça”, o diretor me
contou. “E Tony disse: ‘Que tal em novembro?’”) Uma jornada com
Bourdain promete uma experiência cada vez mais rara em tempos de
turismo homogeneizado: a imersão praticamente na veia em uma
cultura estrangeira. Pulando de paraquedas num canto remoto do
planeta, Bourdain desencava o restaurante que só os nativos mais

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descolados conhecem, onde as sardinhas grelhadas ou os pisco sours


são divinos. Muitas vezes ele se mete na casa de alguém, onde a
comida é melhor ainda. Bom companheiro de garfo, come com
disposição e é um conversador imprevisível. “Sua prosa tem um
estilo encantador, oscila entre a erudição e a gíria mais deslavada”,
observou sua amiga Nigella Lawson. Embora seja um manancial de
opiniões francas, ele também escuta com atenção, e talvez a palavra
que mais empregue seja “interessante”.

Antes de ficar famoso, Bourdain trabalhou mais de duas décadas


como cozinheiro profissional. Em 2000, quando era chef executivo do
Les Halles, uma agitada brasserie na Park Avenue South, ele publicou
um desbocado livro de memórias, Cozinha Confidencial, que se tornou
best-seller. Conhecido por dizer tudo que pensa, envolveu-se em
polêmicas públicas com figuras famosas – certa vez atacou Alice
Waters por seu ódio fanático à junk food, dizendo que ela lembrava o
Khmer Vermelho. Quem não o segue na televisão ainda o identifica
como o chef de Nova York, falastrão e de uma franqueza brutal. Com
o passar dos anos, porém, ele se transformou num próspero nômade
que perambula pelo planeta encontrando gente fascinante e
saboreando comidas incríveis. Ele admite que sua carreira é, para
muita gente, a profissão dos sonhos. Anos atrás, numa narração em
off de um ensolarado episódio na Sardenha, ele perguntou: “O que é
que você faz depois que seus sonhos se realizam?” Bourdain poderia
ser um sujeito odioso, se não fosse tão adorável. “Por muito tempo
Tony achou que não chegaria a lugar nenhum”, me disse seu editor,
Dan Halpern. “Ele se acha um cara sortudo. Parece estar sempre feliz
por ser realmente Anthony Bourdain.”

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O
encontro no Vietnã foi sugerido pela Casa Branca. De todos os
países em que Bourdain já esteve, o Vietnã, que ele visitou meia
dúzia de vezes, talvez seja o seu favorito. Apaixonou-se por
Hanói muito antes de conhecê-la, ao ler O Americano Tranquilo, o
romance de Graham Greene publicado em 1955. A cidade preserva
até hoje uma carregada atmosfera de decadência colonial – palacetes
caindo aos pedaços, lúgubres figueiras-de-bengala, nuvens de
monções e coquetéis vespertinos – que ele desfruta numa boa. Houve
um tempo em que cogitou seriamente morar lá.

Bourdain acredita que foi-se a era do menu degustação de quinze


pratos. Ele é um apóstolo da comida de rua, e Hanói se destaca por
sua cozinha a céu aberto. Pode-se até aventar a hipótese de que
metade da população está sentada em torno de fogueiras, debruçada
sobre tigelas fumegantes de phở. Enquanto o pessoal da Casa Branca
planejava a logística da visita de Obama, uma equipe da Zero Point
Zero, a produtora do programa, esquadrinhava a cidade à procura do
lugar perfeito para comer. Escolheram o Bún chả Hương Liên, um
estabelecimento estreito em frente a um karaokê, numa rua
movimentada do Bairro Antigo. A especialidade do restaurante é bún
chả: noodles com linguiça defumada e barriga de porco à pururuca,
servidos num caldo agridoce picante.

Na hora combinada, Obama desceu da Besta e entrou no restaurante,


precedido por um par de agentes do Serviço Secreto que lhe abriam o
caminho, verdadeiros zagueiros a bloquear os avanços de um
atacante. Num salão nos fundos do segundo andar, Bourdain o
esperava ao lado de uma mesa de aço inoxidável, rodeado por
comensais previamente instruídos a ignorar as câmeras e o
presidente. Como muitos restaurantes no Vietnã, o lugar era
extremamente informal: fregueses e garçons pisavam em restos
caídos no chão, as lajotas exibiam uma pátina encardida que rangia
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sob as solas dos sapatos. Obama, vestindo uma camisa branca com o
primeiro botão desabotoado, cumprimentou Bourdain, sentou-se
num banquinho de plástico e foi muito receptivo a uma garrafa de
cerveja vietnamita.

“Com que frequência o senhor dá uma escapada para uma


cervejinha?”, Bourdain perguntou.

“Não consigo escapar, não tem como”, Obama respondeu. Vez ou


outra ele levava a primeira-dama para comer fora, explicou, mas
“parte do prazer de um restaurante consiste em sentar com outros
clientes e curtir a atmosfera, e quase sempre acabamos sendo
conduzidos a uma daquelas salinhas privativas.”

Enquanto uma jovem garçonete de camiseta polo cinza lhes servia


uma tigela de caldo, um prato de verduras e uma travessa de noodles
trepidantes, Bourdain pescou um par de hashis do porta-talheres de
plástico sobre a mesa. Obama, examinando os componentes da
refeição, revelava certa apreensão: “Muito bem, vamos ter que…”

“Vou ajudá-lo na travessia”, Bourdain o tranquilizou, aconselhando-o


a apanhar um feixe de noodles com os hashis e embebê-los no caldo.

“Vou te imitar”, disse Obama.

“Mergulhe o macarrão e mexa”, aconselhou Bourdain. “E prepare-se


para o que virá.”

À visão de uma linguiça boiando no caldo, Obama perguntou: “A


gente pega ela toda, ou você acha que deveríamos ser um pouco
mais…”

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“Sorver fazendo barulho é totalmente aceitável nesta parte do


mundo”, declarou Bourdain.

Obama se serviu de um bocado e deixou escapar um gemido. “Que


coisa boa”, disse, e ambos – aqueles dois sujeitos esguios, descolados,
maduros – passaram a sorver ruidosamente o caldo enquanto três
câmeras, que Bourdain uma vez comparou a “beija-flores bêbados”,
pairavam em torno deles. Envolto pela rusticidade do momento,
Obama se lembrou de uma refeição memorável, quando criança, nas
montanhas nos arredores de Jacarta. “Havia aqueles restaurantes de
beira de estrada com vista para as plantações de chá”, rememorou.
“Tinha um riozinho que atravessava o restaurante, com aqueles
peixes, aquelas carpas. Você escolhia o peixe. Eles pescavam e
fritavam, e a pele ficava bem crocante. Era servido com uma porção
de arroz.” Obama estava falando a língua de Bourdain: mundana,
viva, sem firula. “Era a comida mais simples possível, e não havia
nada mais gostoso.”

Mas o mundo está ficando menor, disse Obama. “As surpresas, as


descobertas de viagem, encontrar alguma coisa fora do habitual, já
não restam muitos lugares assim.” Acrescentou, com nostalgia: “Não
sei se aquele lugar ainda estará lá quando minhas filhas tiverem idade
para viajar. Tomara que sim.” No dia seguinte, Bourdain postou na
internet uma foto do encontro. “Custo total do jantar com o
presidente: 6 dólares”, tuitou. “Paguei a conta.”

“A
pós três anos sem fumar, recomecei”, disse Bourdain
quando nos encontramos pouco tempo depois, no bar do
Metropole Hotel, onde ele se hospedava. Ele ergueu uma
sobrancelha: “Culpa do Obama.” Bourdain tem 60 anos, é

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imponentemente alto – 1,90 metro – e impossivelmente magro, com


uma cabeça monumental, um bronzeado caramelo e o cabelo grisalho
cuidadosamente penteado. Certa vez ele descreveu seu corpo como
“cartilaginoso, fibroso”, como se fosse um corte de carne de segunda;
um recente entusiasmo com o jiu-jítsu brasileiro o deixou com a
musculatura bem definida, o torso tanquinho. Ele tem algo de
roqueiro de outros tempos – a camiseta dos Sex Pistols, o
sensualismo. Mas basta uma breve convivência para perceber que ele
é controlado num nível quase neurótico: limpo, organizado,
disciplinado, cortês, sistemático. Apolo travestido de Dioniso.

“Ele tem sua mise en place”, disse seu amigo, o chef Éric Ripert, ao
comentar que a meticulosidade de Bourdain reflete não só sua
personalidade e sua formação culinária, mas também advém da
necessidade: se não fosse tão organizado, nunca poderia dar conta de
seus compromissos, a cada dia mais numerosos. Além de produzir e
protagonizar Parts Unknown, ele escolhe as locações, escreve o texto
da locução em off e trabalha em estreita colaboração com os
cinegrafistas e o pessoal da trilha sonora. Quando não está diante das
câmeras, está escrevendo: ensaios, livros de cozinha, história em
quadrinhos sobre um sushiman homicida, roteiros etc. (David Simon
o recrutou para escrever as cenas de restaurante da série Treme.) Ou
então está apresentando outro programa de tevê, como The Taste, um
reality show que foi transmitido ao longo de dois anos pela ABC. No
segundo semestre de 2016, num hiato entre filmagens, ele lançou uma
turnê de stand-up por quinze cidades. Ripert aventou que o que move
Bourdain, pelo menos em parte, talvez seja o temor do que ele seria
capaz de fazer caso parasse de trabalhar. “Sou um cara que precisa de
um monte de projetos”, Bourdain reconheceu. “Eu provavelmente
seria feliz como controlador de tráfego aéreo.”

O encontro com Obama ainda estava vívido em sua memória

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enquanto bebericava uma cerveja e beliscava delicados rolinhos


primavera. “Acho que para Obama é fundamental essa noção de que
a diversidade não é ruim, de que os norte-americanos deveriam
aspirar a se pôr no lugar de outras pessoas”, refletiu. Essa ideia ressoa
fortemente em Bourdain, e, embora ele insista que seu programa seja
uma trip egoísta e epicurista, a ética de Obama poderia dar as cartas
em Parts Unknown. Na abertura de um episódio em Mianmar,
Bourdain observa: “É provável que você nunca tenha estado neste
lugar. É provável que este seja um lugar que você nunca viu.”

A partir do momento em que concebe um episódio, Bourdain fica


obcecado com a trilha sonora; para a sequência com Obama, ele
queria incluir The Boss, de James Brown. Quando não conseguem
obter os direitos de uma canção, em geral os produtores encomendam
uma música que evoque a original. Para homenagear O Grande
Lebowski num episódio em Teerã, eles providenciaram a gravação de
uma versão, em pársi, de The Man in Me, de Bob Dylan. Mas Bourdain
dessa vez queria a faixa original de Brown, não importava o custo.
“Não sei quem vai pagar por ela”, ele disse. “Mas alguém vai pagar,
porra.” Ele cantou o refrão para si mesmo – “I paid the cost to be the
boss” [Paguei o preço de ser o chefe] – e observou que o preço que o
presidente pagava pela liderança tinha sido reprimir o desejo de
correr o mundo que Bourdain personifica. “Até tomar uma cerveja é
um grande acontecimento para ele”, exclamou. “Ele tem que superar
obstáculos para isso.” Antes de se despedir de Obama, segundo me
contou, Bourdain ainda tirou uma onda: “Saindo daqui, sr.
presidente, vou subir numa scooter e desaparecer no meio da
multidão.” Ele soltou um suspiro e disse: ‘Isso deve ser ótimo.’”

Tom Vitale, o diretor do episódio, que tem 30 e poucos anos e uma


energia exasperada, passou para discutir com Bourdain sobre a
gravação planejada para aquela noite. Geralmente Bourdain precisa

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de uma semana de trabalho frenético para gravar um episódio em


cada locação. Tem uma equipe pequena – dois produtores e uns
poucos cinegrafistas – que recruta técnicos e auxiliares locais.
Frequentemente gravam de sessenta a oitenta horas de material para
fazer um episódio de uma hora. Vitale, como outros da equipe,
trabalha há anos com Bourdain. Quando perguntei como foram suas
relações com a Casa Branca, ele respondeu, espantado: “Fiquei
surpreso por termos passado incólumes pela checagem de
antecedentes.”

Bourdain estava ansioso para filmar numa espelunca de bia-hơi, um


estabelecimento popular de Hanói especializado em chope. “Vamos
atrás da cerveja?”, perguntou.

“Vamos atrás da cerveja”, confirmou Vitale. Já tinham sondado um


lugar. “Mas, se a energia for meia-boca, melhor desistir.”

Bourdain concordou. “Não queremos fabricar uma cena”, disse. Ele


faz da autenticidade um fetiche, e despreza muitas das convenções
dos programas de culinária e viagem. “Não fazemos refilmagens de
uma situação”, disse. “Não fazemos cenas de ‘olá’, nem cenas de ‘até
logo, muito obrigado’. Prefiro perder a tomada a fazer uma tomada
falsa.” Quando encontra alguém num café de beira de estrada, ele usa
um microfone de lapela que capta o ruído ambiente – buzinas
estrepitosas, cigarras estridentes –, normalmente eliminado pelos
engenheiros de som. “Queremos que você saiba como é o som de um
lugar, não apenas a aparência visual”, me disse Jared Andrukanis, um
dos produtores de Bourdain. “Os caras que fazem a mixagem do
programa odeiam isso. Eles odeiam, mas acho que também adoram.”

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B
ourdain é extremamente próximo de sua equipe, em parte
porque os caras são companheiros fixos numa vida em que
tudo mais é transitório. “Eu mudo de locação a cada duas
semanas”, ele me disse. “Não sou cozinheiro, tampouco jornalista.
Sou francamente incapaz de proporcionar o cuidado e a atenção que
se espera dos amigos. Não estou presente. Não vou me lembrar do
seu aniversário. Não vamos ser amigos, não importa o que eu sinta a
seu respeito. Há quinze anos, mais ou menos, tenho viajado 200 dias
por ano. Faço boas amizades que duram uma semana.”

Até os 44 anos, Bourdain viu muito pouca coisa do mundo. Cresceu


em Leonia, Nova Jersey, não muito longe da ponte George
Washington. Seu pai, Pierre, um executivo da Columbia Records, era
reservado, gostava de ficar lendo em silêncio no sofá, mas tinha um
gosto ousado em matéria de comida e cinema. Tony se lembra de ir a
Nova York com o pai nos anos 70 para experimentar sushi, que na
época parecia algo absolutamente exótico.

As únicas experiências de viagem que Bourdain teve quando garoto


foram duas viagens à França. Aos 10 anos, seus pais o levaram junto
com seu irmão mais novo, Chris, para as férias de verão. Parentes de
seu pai tinham uma casa num friorento vilarejo litorâneo francês.
Tony então experimentou o que passou a descrever como um
encontro proustiano com uma enorme ostra, comendo-a fresca,
recém-tirada do mar. (“Tony gosta de inflar o episódio da ostra”, me
disse Chris, que hoje é banqueiro. “Nem sei se é fato ou ficção.”) Os
irmãos brincavam em velhos blocauses nazistas na praia e passavam
longas horas lendo Tintin – saboreando histórias do jovem repórter
errante e mergulhando nas detalhadas ilustrações de Shangai, do
Cairo, dos Andes. As histórias, relembra Bourdain, “levavam-me a
lugares para onde eu tinha certeza de que nunca iria”.

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Sua mãe, Gladys, revisora no Times, era intimidadora e crítica, e volta


e meia entrava em choque com o filho. No colégio, Bourdain se
apaixonou por uma garota mais velha, Nancy Putkoski, que andava
com uma turma de drogados, e ele começou a se envolver com
substâncias ilícitas. A certa altura Gladys disse ao filho: “Eu te amo,
querido, mas não estou gostando muito de você ultimamente.” Em
1973 Bourdain terminou o ensino médio um ano adiantado e foi para
o Vassar College atrás de Nancy Putkoski. Deixou a faculdade depois
de dois anos e se matriculou no Culinary Institute of America, em
Hyde Park, estado de Nova York.

Não era sua primeira experiência na cozinha: nas férias de verão após
concluir o ensino médio, ele tinha lavado pratos no Flagship, um
restaurante de peixe frito e marisco em Provincetown. Em Cozinha
Confidencial ele relembra o momento decisivo em que, durante uma
festa de casamento no Flagship, testemunhou uma escapada da noiva
para um tórrido encontro furtivo com o chef. Conclusão: “Foi então
que eu soube pela primeira vez, caro leitor: eu queria ser um chef.”

Essa passagem capta como Bourdain concebe a vocação de cozinheiro


– ela é sedutoramente carnal e insolentemente transgressiva. Um de
seus filmes favoritos é Os Selvagens da Noite, de 1979, sobre gangues
de rua em Nova York, e foi a virilidade infratora da cozinha que o
atraiu. Houve um tempo em que ele costumava sair com um par de
nunchucks – aqueles bastões de madeira unidos por uma corrente,
usados nas artes marciais e em brigas de rua – preso à perna num
coldre, como um revólver de seis balas; frequentemente se deixava
fotografar com o uniforme branco de chef e uma faca longa e curva na
mão, do tipo que se poderia usar para eviscerar uma criatura
mitológica. (A capa de Cozinha Confidencial mostrava Bourdain com
duas espadas ornamentais presas ao cinto do avental.) Bem antes de
se tornar a celebridade internacional perseguida por fãs no aeroporto

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de Singapura, Bourdain já sabia como dispor seus braços e pernas de


gafanhoto numa boa pose, e desde o início mostrou talento para a
desfaçatez.

D
epois de se formar no Culinary Institute, em 1978, ele se mudou
com Nancy Putkoski para um apartamento na Riverside Drive.
Casaram em 1985. Ela teve vários empregos, e Bourdain
encontrou trabalho no Rainbow Room, no Rockefeller Center.
Quando perguntei sobre o casamento, que terminou em 2005, ele o
comparou ao filme de Gus Van Sant Drugstore Cowboy, no qual Matt
Dillon e Kelly Lynch encarnam viciados em drogas que roubam
farmácias para sustentar o vício. “Uma mistura de amor, dependência
mútua e senso de aventura – éramos criminosos juntos”, disse.
“Grande parte da nossa vida foi construída em torno disso, e ainda
bem.” Quando contava histórias sobre as “merdas muito estúpidas”
que fez quando usava narcóticos – ser parado pelos policiais com 200
doses de ácido lisérgico no carro, ser flagrado pela Polícia Federal ao
tentar retirar uma “carta do Panamá” numa agência do correio –,
Bourdain alude vagamente a uma “outra pessoa” que o
acompanhava. Tem o cuidado de não citar o nome de Nancy
Putkoski. À parte as drogas, eles levavam uma vida doméstica
relativamente pacata. À noite, pediam comida pelo telefone e
assistiam a Os Simpsons. De tanto em tanto, se juntavam algum
dinheiro, iam para o Caribe nas férias. Caso contrário não viajavam.

Mas Bourdain viajava dentro de Nova York, como freelancer. No


Rainbow Room era responsável pela mesa de bufê, e era subchef no
W.P.A., no SoHo. Trabalhou no Chuck Howard’s, no bairro dos
teatros; no Nikki e Kelly, no Upper West Side; no Gianni’s, uma
arapuca para turistas no South Street Seaport; no Supper Club, um

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clube noturno não exatamente preocupado com a comida. Com o


tempo, adquiriu uma equipe de colaboradores que migrava com ele
de um restaurante para outro. Seu amigo Joel Rose, um escritor que
conhece Bourdain desde os anos 80, contou: “Ele era um salvador da
pátria. Toda vez que um restaurante estava com algum enrosco, ele
chegava e solucionava o problema. Não era um grande chef, mas era
organizado. Estancava a sangria.”

Em 1998 ele atendeu a um anúncio publicado no New York Times e


conquistou o cargo de chef-executivo no Les Halles. Era o lugar ideal
para ele: uma brasserie despretensiosa, com açougueiro próprio, que
trabalhava junto ao bar, atrás de um balcão de bifes, costelas de vitela
e linguiças. Cozinha Confidencial, que teve trechos publicados na New
Yorker, inspirava-se em Na Pior em Paris e Londres, no qual George
Orwell descreve os chefs como “a classe mais hábil, e a menos servil”.
Karen Rinaldi, a editora da Bloomsbury que lançou o livro, disse que
subestimou o impacto que a publicação teria. “Era uma aposta no
escuro”, contou – as reflexões profanas de um sujeito que grelhava
bifes para viver. “Mas uma porção de livros que acabam mudando a
cultura são apostas no escuro.”

Cozinha Confidencial dava um monte de dicas: Bourdain abominava o


brunch dominical (“uma liquidação do que sobrou de sexta e
sábado”) e desaconselhava pedir peixe às segundas-feiras, porque ele
geralmente “já está guardado há cinco dias”. O marketing de venda
do livro apostava em conselhos vindos da pia de lavar louça, um
relato de bastidores que talvez interessasse mais ao cliente leigo do
que ao cozinheiro experimentado. (“Eu não como em restaurante com
banheiro imundo”, alertava. “E olha que banheiro eles deixam a gente
ver. Se o restaurante não se dá ao trabalho de trocar a pastilha da
privada ou manter o vaso e o piso limpos, imagine como serão a
geladeira e as instalações da cozinha.”) Para Bourdain, porém, eram

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seus pares que importavam. A frase final da página de


agradecimentos era “Os cozinheiros imperam”, e ele esperava,
desesperadamente, que outros profissionais captassem o espírito do
livro e passassem de mão em mão, nas cozinhas, exemplares
manchados de molho.

Bourdain não deixou o emprego no Les Halles quando Cozinha


Confidencial virou um sucesso. “Tive o cuidado de equilibrar minhas
esperanças, porque vivia num ramo em que todo mundo era escritor
ou ator”, relembrou. Durante décadas ele tinha visto colegas
chegando ao trabalho exultantes por terem sido chamados depois de
um teste, para em seguida ver seus projetos grandiosos fazerem água.
“Portanto, para mim não tinha nada de ‘Adeus, seus otários.’” Seus
colegas no Les Halles achavam divertida, ainda que desconcertante,
sua carreira florescente como escritor, e os proprietários eram
compreensivos quanto às turnês de lançamento do livro. Quando
Bourdain começou a viajar para promover a obra, passou a acontecer
uma coisa curiosa. Ele entrava sozinho num restaurante e pedia uma
bebida no balcão. Do nada, surgia um prato de tira-gosto, cortesia da
casa. Bourdain via isso como sinal de aprovação: os chefs estavam
lendo o livro, e gostando. Mas também significava uma profunda
inversão. Ele tinha passado a primeira parte da vida preparando
comida para alimentar os outros. Passaria a segunda metade sendo
alimentado.

K
ang Ho Dong Baekjeong é um restaurante animado e cacofônico
na rua 32, uma churrascaria coreana com um toque hipster.
Numa noite gélida de fevereiro de 2016 eu cheguei na hora
marcada e encontrei Bourdain já esperando por mim, a meio caminho
de terminar uma cerveja. Ele é mais do que pontual: chega

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precisamente quinze minutos adiantado a todos os compromissos.


“Isso vem de seus tempos na cozinha”, me disse Tom Vitale, o
diretor. “Se ele não aparece, já sabemos que tem alguma coisa
errada.” Bourdain qualificou como “patológica” sua obsessão em
chegar na hora. “Julgo as pessoas por esse critério”, admitiu. “Hoje, a
pessoa está só atrasada, mas um dia vai me trair.”

Eu já tinha jantado no Baekjeong, mas estava prestes a descobrir que


comer num restaurante com Bourdain é uma experiência totalmente
diferente. Ao longo da refeição, o chef principal – Deuki Hong, um
homem simpático de 27 anos e cabelo desarrumado – fez questão de
apresentar cada prato. Bourdain, por ser quem é, é impiedosamente
soterrado de comida em todo lugar aonde vai, de um templo elogiado
pelo Michelin a uma biboca camponesa na tundra. Avesso a recusar
cortesias de qualquer tipo, ele come muito mais do que gostaria.
Acaba sendo “fodido pela comida”, como diz. Atualmente, treinando
jiu-jítsu quase todo dia, ele tenta comer e beber de modo mais
seletivo. “Longe das câmeras, não saio pela noite me embebedando”,
ele disse; durante as refeições que compartilhamos quando ele não
estava gravando, Bourdain mais beliscou do que devorou a comida.
Não é fácil encarar um enorme prato de massa se você sabe que isso o
deixará mais lento na manhã seguinte, quando um craque das artes
marciais vai querer sufocá-lo com um golpe. Desde que começou a
lutar jiu-jítsu, há três anos, Bourdain perdeu 15 quilos. (Agora está
pesando 79.) Mas ele adora a comida do Baekjeong, e estava disposto
a ser permissivo. Depois que Hong dispôs finas e tenras lascas de
carne marinada numa grelha instalada na mesa, Bourdain esperou até
ficarem douradas e pinçou uma delas com os hashis, me incentivando
a fazer o mesmo. Saboreamos o gosto suculento e rústico da carne. Ele
então serviu duas doses de soju, a aguardente de arroz coreana, e
disse: “Bom demais, né?”

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É irônico que Bourdain tenha despontado como um embaixador da


profissão culinária, uma vez que, como ele mesmo admite, nunca foi
um chef inspirado. Alan Richman, o crítico de restaurante da revista
GQ, um paladino da haute cuisine de toalhas imaculadas, me disse que
o Les Halles “não era um restaurante particularmente bom quando
ele estava lá, e ficou pior quando ele saiu”. Achei meio injusto:
frequentei o Les Halles até ele fechar, em 2016, e até o fim o lugar me
pareceu animado e confiável, com uma boa salada de chicória frisée e
um robusto cassoulet. Mas nunca foi um restaurante fora de série.
Bourdain costumava reverenciar chefs inovadores como Éric Ripert,
do Le Bernardin. Na página 5 de Cozinha Confidencial, ele brinca que
Ripert, que ele nunca havia encontrado, “não vai me telefonar em
busca de ideias para seu peixe especial do dia”. Certa vez, depois que
o livro saiu, ele estava na cozinha do Les Halles quando recebeu um
telefonema. Era Ripert, convidando-o para almoçar. Hoje são amigos
de infância, e Ripert frequentemente encarna o parceiro sério de
Bourdain em Parts Unknown. Um episódio em Chengdu, na China,
mostrava um agitado e suado Ripert sendo submetido a pratos
mortalmente picantes enquanto Bourdain discursava sobre as
propriedades de “entorpecer a boca” da pimenta de Sichuan e se
divertia com o desconforto do amigo.

“Cozinhei lado a lado com ele”, disse Ripert a respeito de Bourdain.


“Ele é rápido. Preciso. Hábil. Tem bom paladar. A comida é
saborosa.” Hesitou. “Quanto à criatividade… não sei.” Ao longo dos
anos, Bourdain tem sido sondado sobre a possibilidade de abrir seu
próprio restaurante, o que poderia lhe render uma fortuna. Mas ele
sempre declinou, talvez consciente de que seu renome como trovador
da culinária dificilmente poderia ser igualado na cozinha
propriamente dita.

Mesmo assim, aonde quer que ele vá, jovens cozinheiros o saúdam

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como “chef”. Quando perguntei se isso soava estranho, ele ficou


levemente ouriçado. “Bem, eu faço o que posso, de modo que isso não
me incomoda”, disse. “O que me deixa incomodado é quando um
verdadeiro chef em atividade, que cozinha melhor do que já fui capaz
de cozinhar na vida, me chama de chef.” Como se tivesse ouvido a
deixa, Deuki Hong – que antes de abrir o Baekjeong trabalhou para
Jean-Georges Vongerichten e David Chang – apareceu com uma
travessa de batatas-doces cozidas no vapor e o chamou de chef.

No meio da refeição, chegou Stephen Werther, um empresário de


óculos que é sócio de Bourdain em um novo empreendimento: um
mercado em Manhattan inspirado nos camelódromos de Singapura,
ou praças de alimentação a céu aberto. Está previsto para abrir, em
algum momento dos próximos anos, no Píer 57, um antigo e
cavernoso terminal de barcos no West Side. Se a série na tevê propicia
a degustação de uma audaciosa expedição culinária, o mercado vai
proporcionar ao consumidor uma versão real da experiência
apresentada no programa. Os melhores ambulantes de comida serão
recrutados no mundo todo e ganharão vistos de moradia –
presumindo que os Estados Unidos ainda estejam emitindo vistos –, e
assim os nova-iorquinos poderão desfrutar tostadas de polvo e
espetinhos yakitori de coração de frango. O Bourdain Market, como
será conhecido, é um projeto absurdamente ambicioso: terá três vezes
o tamanho do Eataly original – o superempório de comida italiana de
Mario Batali no Flatiron District. Werther estava acompanhado de
Robin Standefer e Stephen Alesch, casal que dirige a Roman and
Williams – uma firma de design que cria espaços contemporâneos
como o Ace Hotel, em Nova York – e que havia topado trabalhar no
projeto do mercado. Tendo elaborado cenários em Hollywood, casam
à perfeição com a sensibilidade de Bourdain.

“Imagine uma Grand Central Station pós-apocalíptica que tivesse

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sido invadida pela China”, disse Bourdain.

“Mas embaixo d’água”, brincou Standefer.

Bourdain foi além, dizendo que o mercado devia evocar Blade Runner
– varejo sofisticado como forma de distopia molambenta e poliglota.
Quando ele era garoto, seu pai costumava alugar um projetor de 16
milímetros e passar filmes de Stanley Kubrick e Mel Brooks. “Nunca
conheci alguém que tivesse aquele catálogo de filmes na cabeça”,
disse Zach Zamboni, um de seus cinegrafistas de longa data. Um
episódio romano de Sem Reservas fazia alusão em preto e branco a
Fellini. O episódio de Buenos Aires de Parts Unknown era uma
piscada de olhos a Felizes Juntos, de Wong Kar-wai. A maioria dos
espectadores provavelmente não capta essas referências, mas para
Bourdain isso não importa. “Quando outros cinegrafistas e diretores
de fotografia gostam, é um prazer”, ele disse. “É exatamente como
cozinhar, quando outro cozinheiro diz ‘Ótimo prato’. De certo modo,
não tem a ver com os fregueses.” A produtora Lydia Tenaglia, que,
com o marido, Chris Collins, recrutou Bourdain para fazer A Cook’s
Tour na televisão e hoje dirige o Zero Point Zero, disse que, em parte,
a razão pela qual a experiência de Bourdain é filtrada com tanta
frequência por meio de filmes é que, até a meia-idade, ele tinha visto
muito pouco do mundo. “Livros e filmes, era isso que ele conhecia – o
que havia lido em Graham Greene, o que havia visto em Apocalypse
Now.”

O
s organizados camelódromos de Singapura combinam as
delícias da gastronomia de rua com regras de saúde pública
que poderiam cumprir as exigências da Nova York pós-
Bloomberg.[1] “Eles se enquadraram sem perder sua fantástica

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cultura”, disse Bourdain. Alguns de seus parceiros no mercado serão


restaurateurs bem estabelecidos, como April Bloomfield, o chef
(destacado pelo Michelin) do Spotted Pig e do Breslin. Mas Bourdain
também quer que o mercado tenha um açougue das antigas, com
“sujeitos de avental ensanguentado retalhando a carne em grandes
pedaços”, e comida de rua asiática que atraia não apenas os leitores
ilustrados do site Eater, mas também asiáticos deslocados em Nova
York que anseiam por um sabor autêntico de sua terra. “Se os hipsters
coreanos mais jovens e seus avós gostarem de nós, vamos ficar
satisfeitos”, ele disse.

Eu me perguntei em voz alta se espetinho de coração poderia dar


dinheiro em Nova York. Será que empreendimentos mais ousados
não seriam campeões de prejuízo, enquanto ofertas mais
convencionais, como um bar de ostras, acabariam equilibrando as
contas?

“Sou um otimista”, respondeu Bourdain. O gosto evolui, insistiu. Ser


exposto a culturas estrangeiras derruba as inibições. “Cresci
assistindo ao seriado Barney Miller, e faziam piada com asiáticos o
tempo todo. Eles zombavam da comida asiática. Tinha cheiro de lixo.
Hoje isso não tem mais graça.” Com seus hashis, ele aponta para uma
tigela de kimchi entre nós. “Os americanos querem kimchi. Querem
usá-lo nos seus hambúrgueres. É como quando eles começaram a
comer sushi – foi um enorme movimento tectônico.” A nova fronteira
para os paladares americanos é a fermentação, continuou Bourdain.
“Aquele cheiro forte. Aquela decomposição da carne. É exatamente
em direção a esse território de sabor que estamos todos nos
dirigindo.”

– É esse o segredo do mundo da comida – disse Stephen Werther. – O


podre é delicioso. Mas jamais alguém vai dizer isso na sua cara. Carne

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sazonada. “Sazonada” é o eufemismo para “apodrecida”.

– Curada – disse Bourdain, se animando com o argumento.

– O álcool é o subproduto da leve-dura – reforçou Stephen Alesch. – É


o mijo da levedura.

– Basicamente, o que estamos dizendo é que o estragado é bom –


Bourdain concluiu.

Deuki Hong reapareceu com um prato de entrecôte marmorizado.


“Restaurantes coreanos normalmente não maturam a carne a seco”,
ele disse. “Mas estamos experimentando a maturação a seco. Esta
carne, por exemplo, tem uns 38 dias.”

– Está vendo? É a putrefação! – exclamou Werther. – O que acontece


depois de 38 dias?

– Coisas boas – disse Bourdain.

– Uma vez, para o Dia dos Namorados, preparamos um ensopado


com um grande coração de boi – disse Alesch.

– Muito romântico – comentou Werther.

– Foi mesmo – disse Alesch. – Nós o comemos por uns quatro dias.

Saímos do restaurante, com Hong a reboque, e pedimos uma rodada


de bombas de soju num bar anônimo no terceiro andar de um prédio
comercial das redondezas. Nosso pequeno grupo seguiu então para
uma casa noturna coreana na rua 41. Uma série de salas de karaokê
apinhadas rodeava uma pista de dança central, onde canhões de laser

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iluminavam uma multidão de jovens de aparência próspera, todos


asiáticos. Numa sala vip com vista para a pista de dança, Bourdain
perguntou a um dos proprietários – Bobby Kwak, um jovem coreano-
americano de camiseta preta – sobre a clientela. “Quando vão a uma
casa no Centro, tipo Marquee, eles destoam como uma ave rara”,
Kwak explicou, gritando para se fazer ouvir por cima da estrepitosa
música eletrônica. Apontou para Bourdain. “Aqui você é a minoria.”

Aquele era exatamente o tipo de multidão que Bourdain queria atrair


para o seu mercado. Não tinha o menor interesse em servir aos
“gringos”. Em vez disso, ele queria ensinar aos gringos que eles
podiam amar um lugar legítimo o suficiente para ser aclamado por
toda aquela multidão.

“Vai ser difícil”, disse Kwak. “Você vai ter os asiático-americanos…”

Bourdain insistiu que também queria os jovens coreanos que tinham


crescido em Seul, não em Fort Lee. Eram quase duas horas da
madrugada. “Então, depois que saem daqui, para onde eles vão?”, ele
perguntou.

Kwak riu e gritou: “Vão direto para o lugar onde vocês acabaram de
comer.”

E
m julho de 2006, Bourdain voou para o Líbano para rodar um
episódio de Sem Reservas sobre Beirute. Planejava centrar fogo
na vida noturna cosmopolita da cidade, beliscando quibe,
bebendo áraque e captando a vibração das casas noturnas à beira-
mar. No programa, ele explica, em off: “Todo mundo passou por aqui:
gregos, romanos, fenícios. Por isso eu sabia que a comida seria

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excelente.” Mas um dia, enquanto caminhava pela rua, viu um


comboio de veículos ostentando as bandeiras amarelas do Hezbollah.
Comemoravam um ataque surpresa – forças do Hezbollah tinham
entrado em Israel, haviam matado três soldados israelenses e
capturado outros dois. No dia seguinte, Israel lançou mísseis contra
Beirute, matando dezenas de civis.

Bourdain e sua equipe acabaram no Royal Hotel, no alto de um morro


não muito distante da embaixada dos Estados Unidos, jogando
baralho enquanto aguardavam para ser evacuados. Num acaso
surreal da geografia, na relativa segurança da piscina do hotel eles
podiam assistir à guerra que se desenrolava.

Toda viagem implica certo grau de improviso, e Bourdain e seus


cinegrafistas são versados em reformular um programa em pleno
voo. Uma vez, mergulhando de snorkel na costa da Sicília em busca
de frutos do mar, ficou perplexo ao ver um polvo meio congelado
afundar a seu lado. Seu anfitrião, um siciliano muito bronzeado,
ansioso por agradar, estava atirando animais no mar para que
Bourdain os “descobrisse” e os registrasse com a câmera. Isso, é claro,
violava o dogma de veracidade de Bourdain. Ele ficou indignado,
mas decidiu incorporar o momento no episódio, com efeito cômico.
(“Não sou nenhum biólogo marinho, mas reconheço um polvo morto
quando vejo algum.”)

Em Beirute, não havia como omitir a guerra na edição. Mas Bourdain


e seus produtores sentiram que tinham uma história para contar, e
montaram um programa sobre como é ficar ilhado no meio do
conflito. No episódio, os espectadores veem os cinegrafistas da equipe
preocupados em como voltar para casa, e os produtores e técnicos
locais aflitos com a segurança de seus parentes e amigos. A certa
altura da narração, Bourdain diz: “Este não é o programa que viemos

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fazer no Líbano.” Até viajar a Beirute, aonde quer que tivesse ido, por
mais triste que pudesse ser o lugar, ele sempre encerrava o episódio
com uma voz que era, se não otimista, pelo menos esperançosa. Na
conclusão do episódio de Beirute, ele disse: “Olhe para nós nessas
cenas… Estamos ali sentados, em trajes de banho, pegando um
bronze, assistindo a uma guerra. Se existe uma metáfora em toda essa
experiência, provavelmente é essa.”

Darren Afonofsky descreve o programa de Bourdain como uma


forma de “jornalismo pessoal”, na tradição do documentário de 1985
de Ross McElwee, Sherman’s March, no qual uma história é
deliberadamente filtrada pela experiência individual do cineasta. Em
Beirute, numa praia onde pessoas agarravam firme seus pertences,
Bourdain e sua equipe foram escoltados por fuzileiros navais norte-
americanos até um apinhado navio de guerra dos Estados Unidos.

Na época, Bourdain vivia um novo relacionamento. Éric Ripert lhe


havia arranjado um encontro com uma jovem italiana, Ottavia Busia,
que era hostess num de seus restaurantes. Tanto ela como Bourdain
trabalhavam sem parar, mas Ripert imaginou que podiam encontrar
tempo para um namorico. Na segunda vez que se viram, Busia e
Bourdain já fizeram tatuagens iguais (uma faca de chef). Oito meses
mais tarde, Bourdain voltou abalado de Beirute, e eles conversaram
sobre ter filhos. “Vamos deixar rolar”, Busia disse, acrescentando de
modo ambíguo: “Afinal, seu esperma está velho.” A filha deles,
Ariane, nasceu em abril de 2007, e eles se casaram onze dias depois.

Busia também é fanática por jiu-jítsu e, quando entrei em contato com


ela, sugeriu que nos encontrássemos na academia onde os dois
treinam, não muito longe da Penn Station. “Venho aqui todos os
dias”, ela disse. Busia tem 38 anos, grandes olhos castanhos, um
sorriso caloroso, cheio de dentes, e os ombros compactos de um rato

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de academia. Sentou-se numa esteira, usando uma camiseta preta


com a frase “In Jiu Jitsu We Trust” e legging estampado com carinhas
de gatos. Disse que experimentou artes marciais depois de dar à luz,
na esperança de perder um pouco de peso, mas logo foi conquistada
pelo jiu-jítsu e convenceu Bourdain a fazer aula particular. (Ela o
subornou, segundo alega, com um Vicodin.) “Eu sabia que ele iria
gostar do aspecto ‘resolução de problemas’ da coisa”, ela me contou.
“É um esporte muito intelectual.”

Anos atrás, enquanto filmava um episódio no Rajastão, Bourdain


encontrou um vidente que lhe disse que um dia ele seria pai. “Aquele
cara falou um monte de merda”, Bourdain disse depois a um dos
produtores. “Eu seria um pai horrível.” Mas Ariane é, segundo o
relato dos pais, uma menina bem-comportada. Por algum tempo,
Busia a levava em algumas das viagens de Bourdain, mas quando
Ariane entrou na escola isso se tornou inviável. Uma vez, Busia
acordou assustada no meio da noite com a terrível sensação de ter um
estranho em sua cama. Então ela se virou e lembrou que era o próprio
Tony – tinha esquecido que ele estava em casa. (Em 2016, Bourdain
passou apenas umas vinte semanas em Nova York.) Agora que está
no auge de seu preparo físico, Busia espera escalar o monte Everest.
Bourdain me contou que ela estava dormindo numa câmara de
hipóxia – um aparelho que simula a baixa taxa de oxigênio das
grandes altitudes. “A câmara basicamente recria o que se passa a 10
mil metros de altura”, ele disse, dando de ombros. “De todo modo,
nenhuma pessoa está sentada em casa esperando que eu a defina.”

Quando perguntei sobre a paternidade, ele ficou pensativo. “Eu me


espanto ao ver como minha filha é feliz”, disse. “Não acho que eu
esteja me iludindo. Sei que sou um pai amoroso.” Fez uma pausa.
“Será que às vezes eu desejaria, num universo alternativo, ser o
patriarca que está sempre presente? Com um montão de filhos? Netos

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correndo em volta? Sim. Me parece bem bom. Mas não tenho a menor
dúvida de que sou incapaz disso.”

T
alvez o texto mais bonito que Bourdain escreveu seja um ensaio
de 2010 chamado “Minha meta é a verdade”, um perfil de Justo
Thomas, um obstinado homem de meia-idade da República
Dominicana que toda manhã desce ao porão do Le Bernardin e lá
prepara uma série de facas bem afiadas para, em seguida, com a
precisão de um cirurgião cardíaco, cortar 300 quilos de peixe fresco.
Os peixes chegam ao restaurante, diz Thomas, “direto do barco”, o
que, segundo Bourdain, significa inteiros, vindos direto do oceano –
“reluzentes, de olhos brilhantes, guelras rosadas, firmes, cheirando só
a água do mar”. A tarefa de Thomas é partir cada carcaça em postas
delicadas que serão servidas no andar de cima, e o texto de Bourdain
é um caloroso tributo a ele e aos detalhes de seu ofício totalmente
invisível. (“As paredes, curiosamente, foram forradas com plástico
adesivo, como o porão preparado por um serial killer, por causa das
escamas de peixe e para facilitar e agilizar a limpeza.”) Quando
Thomas termina seu turno já é meio-dia e Bourdain o convida para
almoçar no salão do restaurante. Em seis anos de trabalho no Le
Bernardin, Thomas até então nunca havia comido lá como cliente.
Bourdain aponta para os fregueses ao redor e observa que alguns
gastarão numa garrafa de vinho o que Thomas talvez leve uns dois
meses para ganhar. “Creio que na vida algumas pessoas recebem
muito, e o resto não recebe nada”, Thomas lhe diz. Mas acrescenta:
“Sem trabalho não somos nada.”

Para Bourdain, escrever é uma arte menos extenuante que cozinhar.


“Acho que sempre observei todo mundo através do prisma da
cozinha”, ele me disse a certa altura. “Ok, você escreveu um bom

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livro, mas é capaz de dar conta do bom andamento de um brunch?”


Escrever é efêmero, ele disse. Mais efêmero que um brunch?,
perguntei. “Trezentos brunches, nenhuma reclamação”, ele disse,
com a voz endurecida pela férrea convicção de um combatente
veterano. “Trezentos ovos Benedict. Sem nenhum voltar para a
cozinha. Isso é precisão mecânica. Tenacidade. Caráter. Isso é real.”

Quando conta sua história, Bourdain frequentemente dá a impressão


de que o sucesso literário foi algo com que ele topou por acaso; na
verdade, ele passou vários anos tentando fazer da escrita um caminho
para sair da cozinha. Em 1985 começou a enviar manuscritos não
solicitados a Joel Rose, que então editava um jornal literário na área
central da cidade, Between C & D. “Vou ser direto: minha volúpia pelo
texto impresso não conhece limites”, escreveu Bourdain na carta
anexada a uma série de cartuns e contos para avaliação, observando:
“Embora eu não resida no Lower East, em tempos recentes tenho
desfrutado de uma íntima, apesar de claudicante, familiaridade com
seus pontos de interesse.” Rose acabou publicando uma história sobre
um jovem chef que tenta obter heroína mas é rechaçado porque não
tem marcas recentes de picadas. (“Tem marcas aqui! Elas são velhas
porque andei no programa de reabilitação!”)

Bourdain comprou sua primeira dose de heroína na Rivington Street


em 1980, e mergulhou no vício com seu costumeiro entusiasmo.
“Quando comecei a ter sintomas de abstinência, senti orgulho de mim
mesmo”, ele contou. O vício, tal como a cozinha, era uma subcultura
marginal com suas regras e estética próprias. Para Bourdain,
admirador de William S. Burroughs, a heroína possuía um fascínio
especial. Em 1980, diz, ele comprava todo dia. Mas depois de um
tempo se desencantou com a vida de viciado, pois detestava ficar à
mercê de outras pessoas. “Sendo extorquido, fugindo dos tiras”,
relembrou. “Sou um sujeito vaidoso. E não gostava do que estava

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vendo no espelho.” Bourdain acabou decidindo combater o vício com


a metadona, mas se incomodava com as indignidades da lei: não
poder sair da cidade sem permissão, esperar numa fila para fazer xixi
numa caneca. Parou de repente por volta de 1987, mas ainda
continuou viciado em cocaína por vários anos. “Por fim caí no crack”,
recordou. Ocasionalmente, entre uma pedra e outra, ele se via
escavando lascas de tinta no carpete do apartamento e fumando-as,
na possibilidade remota de serem resquícios de crack. As coisas
ficaram tão feias que Bourdain se lembra de certa vez, na época do
Natal, estar sentado sobre um cobertor na Broadway, vendendo sua
adorada coleção de discos.

Dada sua tendência ao exagero, houve momentos em que me


perguntei se os anos ruins foram tão horrendos como ele os faz soar.
“Há os viciados românticos e há os barras-pesadas”, disse Karen
Rinaldi. “Acho que Tony estava mais para o tipo romântico.” Nancy
Putkoski me contou num e-mail que Tony é “bastante dramático”. Ela
escreveu: “Parece mesmo bem deprimente quando se olha pelo
retrovisor. Mas quando você está vivendo a coisa, aquilo é
simplesmente a sua vida. Você se vira como pode.” Uma vez,
Bourdain estava num táxi com três amigos – tinham acabado de
conseguir cocaína no Lower East Side – e disse que tinha lido um
artigo sobre a probabilidade estatística de se livrar das drogas.
“Apenas um em cada quatro tem chance de conseguir”, ele disse.
Seguiu-se um silêncio desconfortável. Anos depois, em Cozinha
Confidencial, Bourdain contou que ele conseguiu e seus amigos não.
“Eu fui aquele um.”

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E
m 1985 Bourdain se matriculou numa oficina de escrita
monitorada pelo editor Gordon Lish. “Ele levou a coisa muito a
sério”, Putkoski me contou. Em cartas a Joel Rose, Bourdain se
referia à oficina como uma experiência transformadora, e falava sobre
a “vida depois de Lish”. (Quando entrei em contato com Lish por
telefone, ele disse que Bourdain era “um sujeito absolutamente
encantador, muito alto”, mas não tinha lembrança de seu texto.)

Depois de se livrar das drogas, por volta de 1990, Bourdain conheceu


um editor da Random House que lhe deu um pequeno adiantamento
para que escrevesse um romance policial ambientado no mundo dos
restaurantes. Escrever sempre foi uma coisa fácil para ele; no Vassar,
fazia trabalhos de final de semestre para os colegas em troca de
drogas. Não se angustiou para terminar o romance: “Não tinha tempo
para isso.” Todo dia, antes do amanhecer, ele batucava um novo
trecho no computador, fumando um cigarro atrás do outro, e depois
cumpria um turno de doze horas no restaurante. O romance Bone in
the Throat foi publicado em 1995. (“Com seus 130 quilos, Salvatore
Pitera, de agasalho esportivo azul-esmalte e óculos coloridos de
aviador, saiu da Franks Original Pizza para a Spring Street. Segurava
uma fatia de pizza quente demais para comer.”) Bourdain, que pagou
do próprio bolso a turnê de promoção do livro, lembra de estar
sentado atrás de uma mesa numa Barnes & Noble em Northridge,
Califórnia, com uma pilha de livros, e as pessoas passarem direto,
evitando contato visual. Esse romance e uma continuação, Gone
Bamboo, logo saíram de catálogo. (Foram reeditados posteriormente.)

Em 1998, o Les Halles abriu uma filial em Tóquio e um dos


proprietários, Philippe Lajaunie, pediu a Bourdain que passasse uma
semana lá, orientando a equipe. Bourdain se inquietou com a
perspectiva de passar treze horas num voo sem poder fumar, mas

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assim que pousou em Tóquio ele se animou. “Este lugar é como Blade
Runner”, escreveu a Joel Rose, num e-mail. “Estou falando francês,
ouvindo japonês e pensando em inglês o tempo todo, ainda sob o
efeito do jet lag, enlouquecido pelo sushi gelado, mergulhando no
fugu, e deslumbrado com a porra toda.” Descreveu o frisson de entrar
no restaurante menos convidativo, mais exótico e mais lotado que
podia encontrar e, apontando para um prato que parecia bom, dizer:
“Quero um desse!”

Rose tivera recentemente um filho com Karen Rinaldi, a editora de


livros. Ele mostrou a ela os e-mails e Rinaldi ficou espantada com o
linguajar obsceno de Bourdain. “Você acha que dentro dele tem um
livro?”, ela perguntou.

“Você nem imagina”, disse Rose.

Escrever pode ter feito parte dos planos de Bourdain por um bom
tempo, mas a televisão, segundo Nancy Putkoski, “nunca esteve de
fato em seu horizonte até que o convidaram”. Pouco depois da
publicação de Cozinha Confidencial, Lydia Tenaglia e Chris Collins
começaram a conversar sobre um eventual programa. Ele disse que
estava planejando um livro que desse sequência ao primeiro, no qual
viajaria pelo mundo, comendo. Se estivessem dispostos a segui-lo
com câmeras, por que não?

Putkoski ficou menos animada. “Ela logo identificou a televisão como


uma ameaça potencial ao casamento”, disse Bourdain. “Eu sentia que
o mundo estava se abrindo para mim. Eu tinha visto coisas. Tinha
farejado coisas. Desejava desesperadamente mais. E ela via tudo
aquilo como um câncer.” Quem assistir a episódios de A Cook’s Tour
poderá vislumbrar Nancy Putkoski no canto de uma cena. Ela não
tinha o menor desejo de ser filmada. Recentemente, contou que seu

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grau ideal de fama seria aquele de um juiz da Suprema Corte: “Quase


ninguém conhece a sua cara, mas você sempre consegue uma reserva
no lugar que quiser.”

Por um tempo Bourdain tentou salvar o casamento. Reformou o


apartamento do casal com o dinheiro extra que estava ganhando. Mas
não funcionou. “Eu era ambicioso, ela não”, disse. “Tenho uma
curiosidade turbulenta a respeito das coisas, e ela se contentava, acho,
em estar comigo. Em ir ao Caribe uma vez por ano. Havia coisas que
eu queria, e estava disposto até mesmo a machucar alguém para
conseguir.” Bourdain descreve sua separação de Nancy como “a
grande traição” da sua vida.

Num e-mail, Nancy Putkoski me escreveu: “Valorizo muito as


experiências compartilhadas, achei que elas haviam blindado a nossa
parceria… Tínhamos passado juntos por uma porrada de coisas,
muitas delas não tão boas, outras incrivelmente divertidas.”
Concluiu: “Eu simplesmente não previ que o sucesso poderia ser tão
traiçoeiro.”

D
o lado de fora da cervejaria em Hanói, embaixo de uma árvore
decorada com luzinhas de Natal, uma senhora corpulenta,
vestindo folgadas calças listradas e munida de um cutelo,
cuidava de uma barraquinha que servia cachorro assado. Bourdain
espairecia nas proximidades com Dinh Hoang Linh, um amável
burocrata vietnamita que era seu amigo desde 2000, quando o
ciceroneou em sua primeira visita a Hanói. Ao longo dos anos, a
receita do programa de Bourdain foi mudando sutilmente. Na
primeira vez que foi à Ásia, brincou que ia comer “cérebro de macaco
e moela de baiacu venenoso”. Num restaurante do Vietnã, o Sabores

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da Floresta, serviram-lhe uma iguaria – depois de agarrar uma cobra,


o proprietário a abre com uma tesoura, tira fora seu coração ainda
pulsante e o joga numa pequena tigela de cerâmica. “Saúde”, disse
Bourdain, antes de engolir aquilo como se fosse uma ostra. Se, em
temporadas subsequentes, tem experimentado outras coisas
medonhas – bile de urso no Vietnã, sopa de pênis de touro na
Malásia, o reto não lavado de um javali africano na Namíbia –, ele
toma o cuidado de não fazer menção de enfiar o dedo na garganta
para simular engulhos com efeito cômico. Quando estava começando,
um certo grau de sensacionalismo era “exatamente o preço a ser pago
para entrar no negócio”, ele me contou, acrescentando: “Não vou
escarnecer disso. São coisas que ajudam a atravessar o rio.”
(Observou, diplomaticamente, que o Travel Channel tem atualmente
um programa, Comidas Exóticas, dedicado a esse tipo de coisa.)

Ele nunca comeu carne de cachorro. Quando apontei para a


barraquinha logo ali, ele disse: “Não vou mais fazer esse tipo de coisa
só porque está aí.” Mas, quando se vê diante desses pratos, sua
primeira pergunta é se aquilo é um traço habitual daquela cultura.
“Se acontecer de involuntariamente eu ser o convidado de honra
numa casa rural no delta do Mekong, onde uma família, sem que eu
soubesse, tivesse dado o máximo de si para preparar aquela comida, e
eu ali como convidado de honra, e todos os vizinhos assistindo… eu
comeria o maldito cachorro”, ele disse. “Ofender meu anfitrião – em
geral uma pessoa pobre, que está me oferecendo o seu melhor e para
quem a dignidade é muito importante frente à comunidade – seria
desagradável. Então eu comeria o cachorro.”

Bourdain amoleceu em outros aspectos. Embora ainda atormente a


imprensa culinária com uma torrente contínua de provocações
destinadas a virar manchetes – “Anthony Bourdain: Comida de avião
e serviço de quarto são crimes”; “Anthony Bourdain deseja a morte à

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mania de abóbora”; “Anthony Bourdain sobre jantar com Trump:


nem pensar” –, ele frequentemente faz as pazes com gente que
espinafrou no passado. Em Cozinha Confidencial, ridicularizou
impiedosamente o chef televisivo Emeril Lagasse, chamando várias
vezes a atenção para sua semelhança com um Ewok, aquelas criaturas
de Guerra nas Estrelas que parecem um ursinho de pelúcia. Depois eles
se conheceram, Bourdain comeu a comida de Lagasse e acabou
retirando o que disse e pedindo desculpas. Lajaunie, o antigo
proprietário do Les Halles, disse que Bourdain “é extremamente
gentil, mas é a gentileza genuína, que vem de um profundo cinismo”.
E continuou: “Ele se conscientizou de que todo mundo tem um
parafuso solto aqui e ali. É dessa consciência que a maioria de nós
carece: a aceitação de que os outros são tão falíveis quanto nós.”
Depois de ler Como Viver, a biografia de Montaigne escrita por Sarah
Bakewell (2010), Bourdain tatuou no antebraço a divisa do filósofo
francês, em grego antigo: “Suspendo meu julgamento.”

Até mesmo Alan Richman, o crítico da GQ, cujo esnobismo Bourdain


uma vez desancou num artigo intitulado “Alan Richman é um
babaca”, acabou se tornando uma espécie de amigo. Quando estava
escrevendo para a série de tevê Treme, Bourdain concebeu uma cena
em que um personagem chamado Alan Richman visita um
restaurante em Nova Orleans e alguém lhe joga na cara um Sazerac,
um drinque típico de lá. Convidou Richman para fazer seu próprio
papel, e ele topou.

Numa era de refeições rápidas e informais, comentou Richman, a


cozinha “sem frescura” que Bourdain celebra tem um apelo enorme.
Bourdain ajudou a criar as circunstâncias em que um dos restaurantes
mais elogiados de Nova York passou a ser o Spotted Pig, o gastropub
de April Bloomfield no West Village, conhecido por seus
cheeseburgers descomplicados. Se é possível extrapolar a rixa pessoal

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entre Richman e Bourdain para um debate filosófico mais amplo


sobre o futuro do paladar norte-americano, Richman reconhece
prontamente a derrota. “Não conheço ninguém que seja tão século
XXI como ele”, disse Richman. “O modo como ele age. O modo como
fala. Sua loucura. Sua vulgaridade.”

À
medida que Parts Unknown foi evoluindo, a série se mostrou
menos preocupada com a comida e mais interessada na
sociologia e na geopolítica dos lugares que Bourdain visita.
Lydia Tenaglia qualifica o programa de “empreendimento
antropológico”. Chris Collins me disse que, cada vez mais, a palavra
de ordem é “não quero saber o que você comeu, e sim com quem você
comeu”. Bourdain, por sua vez, tem pressionado por rarefazer as
cenas em que ele come e incrementar mais o “lado B” da vida
cotidiana nos países que visita. Tornou-se um mantra para ele, disse
Collins: “Mais ‘lado B’, menos eu mesmo.”

Depois de visitar Beirute, Bourdain foi para a Líbia, Gaza e a


República Democrática do Congo, buscando captar como as pessoas
vivem seu dia a dia em meio a um conflito violento. Quando os
espectadores se queixam de que o programa passou a centrar demais
o foco na política, Bourdain responde que comida é política: a maioria
das cozinhas reflete um amálgama de influências e conta uma história
de migração e conquista, cada sabor representando uma camada
sedimentar de história. Ele também observa que a maioria dos
programas sobre culinária tem como premissa um nível de
abundância que não existe em muitas partes do mundo.

A mudança de tom do programa por acaso coincidiu com a


transferência para a CNN. Em 2012, a rede se debatia com um dilema

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comum às emissoras noticiosas a cabo. “Grandes eventos acontecem


no mundo e os espectadores chegam em manadas; assim que o
evento acaba, eles desaparecem”, me disse Amy Entelis, vice-
presidente executiva da CNN. A rede queria criar “audiência com
horário fixo”: programas originais que o público buscaria toda
semana. “O nome de Tony surgiu imediatamente”, disse Entelis. Foi
um arranjo feliz: a rede dá a Bourdain amplos recursos e liberdade
criativa quase total. “Até hoje nunca recebi um telefonema cretino”,
ele disse. O programa tem sido sucesso de audiência, e ganhou cinco
Emmys e um prêmio Peabody. Sinistramente, um dos episódios de
maior êxito de Parts Unknown foi ao ar logo depois do atentado à
bomba na Maratona de Boston, em 2013. Era um episódio sobre Los
Angeles, que Bourdain gravara exclusivamente no bairro Koreatown,
e é ótimo, mas ninguém atribui seus índices de audiência à excelência
do programa. Como milhões de pessoas tinham acompanhado pela
CNN as consequências devastadoras do ataque, no domingo elas
precisavam de um descanso.

Bourdain não se incomoda em ser visto como um fornecedor de


escapismo; incomoda-o mais a responsabilidade que acompanha o
material mais sério do programa. Num episódio ambientado no Laos,
ele comia peixe de água doce e broto de bambu com um homem que
tinha perdido um braço e uma perna ao detonar um explosivo norte-
americano remanescente da guerra. Em Hanói, um membro da
equipe de Obama lhe contou que, até o episódio ir ao ar, tinha gente
na Casa Branca que não sabia da extensão do problema do arsenal
não detonado no Laos. “Descontraído, ele disse: ‘Então acho que você
fez um bem, afinal de contas’”, relembrou Bourdain. “Fico um pouco
constrangido. Me sinto como o Bono Vox. Não quero ser esse cara. O
programa é sempre sobre mim. Eu estaria mentindo se dissesse estar
imbuído de uma missão. Não estou.”

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Seja como for, Bourdain sabe que a maioria dos espectadores que
viram seu episódio do Congo tinha lido muito pouco sobre os
conflitos no país. Lembrei que toda vez que se comentava que muitos
jovens se informavam por meio do programa satírico The Daily Show,
seu apresentador, Jon Stewart, protestava, de modo pouco
convincente, que ele não passava de um comediante fazendo piadas.
O editor de Bourdain, Dan Halpern, disse: “Queira ou não, ele se
tornou um estadista.”

Bourdain insiste que não é o caso. “Não vou ao jantar dos


correspondentes na Casa Branca. Não preciso ficar trocando
sorrisinhos com Henry Kissinger.” E então desandou a falar sobre
como lhe causa náusea, tendo viajado pelo Sudeste Asiático, ver
Kissinger sendo abraçado por figurões nos almoços de negócios.
“Olha, qualquer jornalista que tenha sido cordial com Henry
Kissinger tem mais é que se foder”, disse, num tom cada vez mais
indignado. “Acredito, e muito, que existem áreas morais cinzentas,
mas, quando se trata desse cara, por mim ele deveria ser proibido de
entrar num restaurante de Nova York.” Comentei com Bourdain que
ele já havia feito denúncias peremptórias a respeito de muitas
pessoas, e que depois fizera as pazes e jantara com elas.

“Emeril Lagasse não bombardeou o Camboja!”, ele respondeu.

N
uma manhã de agosto de 2016, recebi um e-mail de Bourdain
informando que ele e Busia estavam se separando. “Não vai
mudar muito em termos de estilo de vida, já que vivemos vidas
separadas durante vários anos”, escreveu. “É mais uma mudança de
endereço.” Bourdain sentiu um certo alívio: ele e Busia não
precisavam mais “fazer de conta”. Em nossas conversas até então, ele

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celebrara a dedicação de Busia ao jiu-jítsu e a outros interesses com o


mesmo ímpeto com que ele se dedicara aos seus. Mas no e-mail ele
escreveu: “É uma mulher interessante. Admiro suas escolhas. Mas eu
casei com a Sophia Loren. Ela virou o Jean-Claude Van Damme.” (Eu
soube depois que essa era uma piada recorrente entre o casal, e que
não era para ser cruel.) Bourdain acrescentou que estava prestes a
promover um novo “livro de receitas para a família”, Appetites, que
“acarretaria algumas entrevistas embaraçosas”.

Chris Bourdain me contou que, quando Anthony ficou famoso, era


como se dissesse: “Não tenho a menor ideia de quanto isso vai durar,
então quero extrair o máximo enquanto posso.” Sempre que uma
oportunidade se apresentava, ele dizia sim. Na época em que
conheceu Busia, ele tinha alcançado um nível de reconhecimento e
riqueza que lhe permitiria diminuir o ritmo. Mas não maneirou. Parts
Unknown grava duas temporadas por ano. Mesmo viagens na
primeira classe podem ser desgastantes depois de um tempo, e
Bourdain reconhece que, embora ainda possa se comportar como um
jovem, já deixou de ser um. “Acho que você fica oficialmente velho
aos 60, não é?”, ele me disse logo depois de seu aniversário. “O carro
começa a enguiçar.” No entanto, astros da tevê formam laços com seu
público por meio da exposição contínua, e pode parecer arriscado dar
uma parada. “É um pouco como Poltergeist”, me disse Nigella
Lawson, que era coapresentadora de The Taste, ao lado de Bourdain.
“Você é sugado pela tevê e não consegue sair.”

A esta altura, observou Éric Ripert, o programa de Bourdain “já


correu o mundo todo!”. Agora, diz Bourdain, o prazer de fazer Parts
Unknown está em revisitar lugares para ver como eles mudaram – a
Cuba de cinco anos atrás é um país diferente da Cuba de hoje – ou em
rever um lugar com uma perspectiva nova. Para um episódio recente
em Houston, Bourdain decidiu que não queria “nenhuma pessoa

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branca” e nos proporcionou olhar para a cidade como “um lugar


vietnamita, centro-americano, africano e indiano”. Chris Collins
aventou que a eterna descontinuidade da vida de Bourdain talvez
tenha assumido uma continuidade própria, como se o jet lag fosse sua
condição natural. “Eu sempre penso se ele poderia seguir em frente
sem o programa”, disse Lydia Tenaglia. “É parte inextrincável dele…
Quem é Tony, tirando isso?”

Faz anos que Bourdain tem um sonho recorrente – ele se vê num


hotel vitoriano, percorrendo corredores bemdecorados, incapaz de
encontrar a recepção. No final de 2015, quando perguntei por quanto
tempo manteria o programa, ele respondeu: “Até perder a graça.” Em
setembro do ano seguinte, fiz a mesma pergunta num restaurante de
sushi em Manhattan e desta vez ele foi mais contemplativo: “Tenho o
melhor emprego do mundo”, disse. “Se eu não estiver feliz, será por
falta de imaginação.” Estava encantado com o episódio vietnamita,
prestes a ir ao ar. A CNN tinha pensado em abrir o programa com
Obama, mas Bourdain, querendo que o encontro parecesse casual,
deixou correr quase quarenta minutos do episódio para apresentar o
presidente. Conseguiu a música de James Brown. (“Talvez eu tenha
trapaceado dizendo que havia prometido ao presidente que teríamos
aquela canção como trilha sonora.”)

Depois da viagem ao Vietnã, Bourdain participou de um campeonato


de jiu-jítsu em Manhattan e foi derrotado por um fortão que apertou
sua cabeça com tamanha ferocidade que ele achou que seus miolos
fossem saltar para fora. Como desgraça pouca é bobagem, Bourdain
saiu do torneio com uma infecção na pele que o deixou “parecido
com o Quasímodo”. (Ripert diz que não entende o jiu-jítsu:
“Supostamente é bom para o corpo, mas parece que só causa dor o
tempo todo.”)

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Num arroubo de autoexílio, Bourdain voou sozinho para a França e


foi à aldeia de produção de ostras que visitara quando criança. Tinha
alugado uma grande villa, com a intenção de escrever um pouco. Ele
cultiva a figura do émigré misantropo. “Para mim, O Americano
Tranquilo era um livro feliz, porque Fowler termina no Vietnã,
fumando ópio com uma linda vietnamita que talvez não o tenha
amado”, ele me disse.

Mas na França ele descobriu que não conseguiria escrever. Estava


inchado e cheio de coceira por causa dos exantemas, a cabeça latejava
de dor. Como estava com uma aparência horrenda, só saía depois que
o sol se punha, como um vampiro. Por fim, procurou um médico que
lhe deu uma bateria de analgésicos e anti-inflamatórios. Depois de,
num impulso, engolir o suprimento de toda uma semana, Bourdain se
deu conta de que estava sem comer havia 36 horas. Foi dirigindo até
um café numa cidade próxima, Arcachon, e pediu espaguete e uma
garrafa de Chianti. Estava na metade da garrafa quando percebeu
suas roupas empapadas de suor. Então apagou.

Quando acordou, estava deitado, com os pés dentro do café e a


cabeça na calçada. Um garçom vasculhava seus bolsos, à procura de
uma carteira de motorista, como se quisesse identificar um cadáver. O
pai de Bourdain tinha morrido de repente, aos 57 anos, de derrame, e
Bourdain pensa na morte com frequência; mais de uma vez ele me
disse que, se um dia tivesse “uma radiografia ruim do tórax”,
retomaria alegremente sua amizade com a heroína. Ingerir remédios e
beber de estômago vazio era apenas um erro idiota, mas aquilo o
deixou abalado. Ele se levantou, tranquilizou os curiosos assustados,
dirigiu de volta para a villa e escreveu imediatamente um e-mail para
Nancy Putkoski.

Quando perguntei o que havia escrito, Bourdain fez uma pausa e

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disse: “O tipo de coisa que você escreve, sabe como é, quando acha
que vai morrer. ‘Porra, sinto muito. Sei que agi como se não sentisse.’
Tínhamos muito pouco contato – civilizado, mas escasso. ‘Sinto
muito. Sei que isso não ajuda. Não vai consertar as coisas, não tem
como remediar. Mas não é que eu tenha esquecido. Não é que eu não
saiba o que fiz.’”

A
ntropólogos gostam de dizer que observar uma cultura
geralmente significa, de um modo ou de outro, alterá-la. Algo
similar se aplica ao programa de Bourdain. Toda vez que
descobre uma joia culinária escondida, ele a insere no mapa turístico,
despojando-a da autenticidade que o atraiu. “É um empreendimento
gloriosamente condenado”, reconheceu. “Meu negócio é encontrar
lugares incríveis, e depois nós fodemos com eles.”

O restaurante que abre as portas para Bourdain e sua equipe passa a


desfrutar de vantagens óbvias. Nossa comida no restaurante de sushi
estava bem mais ou menos; Bourdain evitou os peixes e pediu katsu
de frango, deixando boa parte dele intocada. Quando estávamos
saindo, ele cedeu cordialmente ao pedido da proprietária para uma
selfie, e testemunhei um tango sutil e cômico – ela movia o corpo dele
de modo a enquadrar o letreiro do restaurante (forjando uma
aprovação implícita do chef) e ele gentilmente girava para o outro
lado, para que o fundo fosse a Terceira Avenida.

Em Hanói, alguns dias depois do jantar de Bourdain com Obama,


mencionei que ia dar uma passada no restaurante onde eles tinham
comido. Como se rememorasse um estabelecimento do passado,
Bourdain murmurou sonhadoramente: “Eu me pergunto como ele
estará agora.”

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Dei risada baixinho, mas no dia seguinte, quando fui ao restaurante,


ele de fato estava mudado. Um letreiro do lado de fora dizia, em
vietnamita, “Não temos mais bún chả!”; curiosos andavam de um
lado para outro diante da entrada. Na cozinha, a mulher que dirige o
restaurante, Nguyên Thi Liên, estava sorridente, transpirando, e
visivelmente aturdida. Sua família era proprietária do lugar havia
décadas. Ela me contou que a rapaziada de Hanói agora parava à
noite diante da fachada, bem depois de o restaurante fechar, para tirar
fotos.

Uma noite, no Vietnã, Bourdain terminou uma gravação diante de


uma casa de noodles e atravessou correndo a rua até onde eu estava
sentado. “Está a fim de dar uma volta?”, perguntou. A equipe tinha
alugado uma Vespa azul para ele, e Bourdain me disse que o único
jeito de conhecer Hanói era na garupa de uma scooter: “Para ficar
anônimo, mais uma figura de capacete no meio de um milhão de
pequenos dramas e comédias acontecendo sobre um milhão de motos
e bicicletas em movimento através desta cidade fantástica – cada
segundo é pura alegria.” Montei atrás dele. “Só tenho um capacete”,
ele disse, e me deu. Eu o vesti e nem tinha afivelado direito quando
ele acelerou e fomos arrastados pela correnteza de um rio de veículos.
“Adoro isso!”, ele gritou, aumentando a velocidade. “Os cheiros! O
tráfego!” Atravessamos a perfumada nuvem de fumaça de um
fogareiro de rua. Bourdain deu uma guinada para desviar de um
caminhão que vinha em sentido contrário e quase trombou com uma
mulher que trazia um fardo de verduras equilibrado precariamente
na parte de trás de sua scooter. Ao resvalarmos para a sarjeta, sem
diminuir a velocidade, me ocorreu que aquele seria um modo
memorável de morrer. Bourdain reduziu a velocidade para pedir
informações a um pedestre, e o homem indicou que, para chegar ao
Metropole Hotel, devíamos contornar pela esquerda o lago Hoàn
Kiếm. Quando chegamos ao lago – um oásis cercado de árvores com

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uma ilha minúscula no meio –, Bourdain disse: “Vamos por este


caminho”, e virou à direita. Agarrando meu assento enquanto
entrávamos zunindo em outra avenida congestionada, me dei conta
de que Bourdain tinha escolhido deliberadamente o caminho errado.
Flertava com a incerteza, tentando se perder.

Na manhã seguinte nos encontramos no saguão do Metropole e


fomos de carro até os arrabaldes da cidade. Ele pode aterrissar em
qualquer lugar do mundo, de Katmandu a Kiev, e sempre encontra
uma academia onde se treina jiu-jítsu brasileiro. “Em qualquer lugar
que você vá, o ritual é o mesmo”, disse ele. “Nos cumprimentamos
batendo os punhos e em seguida tentamos matar um ao outro
durante cinco minutos.”

No segundo andar de uma academia local, encontramos um salão


acolchoado e espelhado que servia ao treino de jiu-jítsu. Bourdain
trocou sua roupa por um quimono branco de tecido atoalhado,
cingido por uma faixa azul, e cumprimentou vários sujeitos
vietnamitas bem mais jovens. Lutou com cada um em rounds de
cinco minutos. Ele havia me explicado os complexos protocolos do
jiu-jítsu – um faixa azul pode chamar um faixa branca para lutar, e
um faixa preta pode chamar um faixa azul, mas um faixa branca não
pode desafiar um faixa azul. Ele sempre amou a cozinha porque ela
era como uma tribo, e no jiu-jítsu ele havia encontrado outra
atividade suada e extenuante, com sua própria hierarquia e dialeto,
um vocabulário de sinais e símbolos impossíveis de ser
compreendidos por alguém de fora. Fiquei observando Bourdain,
com seus braços e pernas enroscados no corpo de um vietnamita faixa
azul com a metade da sua idade, os dedos dos pés bem abertos, os
olhos saltando das órbitas, os dedos tentando agarrar a lapela do
sujeito. No calor do aperto, eles sussurravam provocações um ao
outro; havia uma intimidade naquilo, como uma conversa na cama.

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Então, abruptamente, Bourdain virou o corpo do sujeito, prendendo


um de seus braços e dobrando seu cotovelo num ângulo estranho. O
sujeito deu um tapinha no ombro dele e Bourdain o soltou. Os dois se
desengataram e ficaram estendidos no chão por um momento, um
par de mortos. Então Bourdain ergueu os olhos para o cronômetro.
Ainda restava quase um minuto no round de cinco. Ajoelhou-se,
bateu o punho no punho do oponente e recomeçou.

[1] Referência a Michael Bloomberg, prefeito de Nova York por três

mandatos seguidos, entre 2002 e 2013. Sua administração implantou


uma política centrada na segurança e na saúde da população, como
proibir o cigarro em locais públicos.

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