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1.

RESENHA CRÍTICA DO FILME “DOIS DIAS E UMA NOITE”

Durante o primeiro semestre de 2022, nas aulas de Psicologia Organizacional


e do Trabalho, foram trabalhados temas referentes à história do trabalho e suas
contradições, e como a psicologia pode se inserir dentro desses espaços. Nessa
perspectiva, urgem análises de contextos variados, que vão desde a pauperização
de direitos dos trabalhadores ao manejo de pessoal dentro da organização.

No filme Dois dias e uma Noite, dos irmãos belga Luc e Jean-Pierre
Dardenne, são retratadas as vivências de uma operária contemporânea, que frente
a desestruturação conjuntural do trabalho e ao seu diagnóstico patologizante, é
jogada em diversas situações de produção de violência. Com características
kafkianas, a protagonista Sandra é abarcada por uma realidade devastadora, que
mesmo no começo onde não tem ciência das forças que afetam diretamente a sua
derrocada, vê-se em uma posição de impotência frente ao processo de
desemprego.

A partir daí, Sandra começa uma epopeia angustiante para tentar retomar
não só o seu emprego, mas sua dignidade e o sentido de sua existência. Como ela
bem evidencia, é possível perceber que a posição ocupada por ela dentro dos
circuitos de trabalho é completamente dispensável tanto por sua utilidade, quanto
por sua condição de doente. Dessa maneira, configurando para além das condições
de exploração material uma condição de exploração e alienação subjetiva.

As concepções historicamente formadas sobre a produção capitalista


(taylorismo, fordismo e toyotismo) ajudam a pensar a situação particular da
personagem, que situa-se no enfrentamento constante de uma necessidade de
produção ininterrupta. Frente a isso, torna-se essencial ressaltar que as formas de
controle do corpo e da vida impostas pelo capital, externalizam as concepções de
tempo e produção para além dos espaços de trabalho instituídos, estabelecendo
valores sociais sobre a vida. (RIBEIRO, 2015)

Essa problemática notifica-se ao analisar que Sandra, dentro do ambiente de


trabalho, é acometida por um diagnóstico - depressão - e passa à uma recusa
subjetiva tanto do trabalho quanto de si. Nessa perspectiva, cabe ao psicólogo e aos
agentes sociais, indagar-se quais as condições de produção e gestão social das
patologias, e qual a relação que essas têm com a forma de trabalho vigente no
sistema político-econômico do neoliberalismo.(SAFATLE; DUNKER; JUNIOR, 2021)

A protagonista, frente a situação de iminência de desemprego, oscila em


duas posições durante dois dias e uma noite, uma como trabalhadora que enfrenta
e se lança numa tentativa de resguardar seu emprego e seus direitos, e outra como
uma possível desempregada que encontra-se em uma situação de inseguridade
social. Ambas situações, são abarcadas por dimensões de alienação que se
diferenciam minimamente. Frente a posição de empregada, Sandra enfrenta uma
condição de alienação/estranhamento brutal e desumanizada, vivenciando
condições cada vez mais desprovidas de direitos e seguridades, com instabilidades
cotidianas devido ao modo de produção e de controle do tempo. Já sob a condição
iminente de perda do trabalho, Sandra enfrenta limites absolutos agravados cada
vez mais pela constante transmutação das formas de organização, enfrentando
condições de rejeição social, isolamento, apatia, silêncio, e diversas forças
imperativas de violência. (ANTUNES; ALVES, 2004)

Também durante o filme, é possível perceber que a protagonista não é a


única exposta a toda uma cadeia de violência, provocada pela medida dos
empregadores - fazer os operários similares a Sandra escolherem entre o aumento
ou a permanência dela no trabalho. Dessa maneira, evidencia-se que além dos
gestores se eximirem da responsabilidade de demitir a empregada, provocam uma
cadeia de reprodução de violência sistemática entre os empregados, desarticulando
o coletivo de iguais e promovendo competitividade e rivalidade entre o grupo na
organização, atrapalhando diretamente o clima organizacional - compreendido aqui
como o conjunto de percepções dos trabalhadores sobre o ambiente da
organização. (PUENTE-PALACIOS; MARTINS, 2013)

Assim, torna-se perceptível que as negociações com as forças do capital


passam a retirar severamente direitos dos trabalhadores, que têm sua força de
trabalho e seus modos de vida cada vez mais expropriados. Portanto,

“(...) a ideologia capitalista logra êxito na manipulação da subjetividade da


“classe-que-vive-do-trabalho”, classe esta que, por sua vez, não vê outra
saída senão aceitar ser coagida pela força do capital quando se depara
com problemas como o desemprego estrutural e a diminuição do Estado
Social” (TRINDADE DE MELLO; KOHLL CAMARGO, 2011; p.11)

Nesse aspecto, o filme utiliza-se da narrativa e do audiovisual para


representar problemáticas emergentes da contemporaneidade, ressignificando nos
conflitos entre Sandra, sua família e seu trabalho, percalços que são enfrentados
diariamente pelos trabalhadores na atualidade. Como indicação, outros filmes e
documentários retratam questões semelhantes, como “Nomadland”, “Eu, Daniel
Blake”, e o documentário “Indústria Americana”.

Em vista disso, a partir da maneira de retratar a realidade do filme “Dois Dias


e Uma Noite”, foi possível tensionar diversas temáticas que perpassaram o
semestre de Psicologia Organizacional e do Trabalho. Nesse sentido, discussões à
respeito da ética da psicologia dentro das organizações de produção e da dinâmica
do capitalismo, as percepções sensíveis do clima e ambiente organizacional, e a
direta relação entre saúde mental e o trabalho, são tópicos em que não se define
aqui uma resolutiva, mas desenvolvem-se ideiais para, de certa maneira, ampliar os
horizontes desses territórios de estudo e atuação de uma psicologia crítica e
propositiva.

2. REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo; ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho


na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, [s. l.], v. 25, ed. 87, p.
335-351, 2004. DOI https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200003. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200003. Acesso em: 2 ago. 2022.

PUENTE-PALACIOS, Katia; MARTINS, Maria do Carmo Fernandes. Gestão


do Clima Organizacional. In: BORGES, Livia de Oliveira; MOURÃO, Luciana. O
Trabalho e as Organizações: Atuações a partir da Psicologia. Porto Alegre: Artmed,
2013. cap. 9, p. 253-278.

RIBEIRO, Andressa de Freitas. Taylorismo, fordismo e toyotismo. Lutas


Sociais, São Paulo, v. 19, ed. 35, 31 dez. 2015. DOI
https://doi.org/10.23925/ls.v19i35.26678. Disponível em:
https://doi.org/10.23925/ls.v19i35.26678. Acesso em: 2 ago. 2022.

SAFATLE, Vladimir; DUNKER, Christhian; JUNIOR, Nelson da Silva.


Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. 1. ed. São Paulo: Autêntica,
2021.

TRINDADE DE MELLO, R.; KOHLL CAMARGO, L. H. O SENTIDO DO


TRABALHO IMATERIAL NO “NOVO” CAPITALISMO MUNDIALIZADO: A RELAÇÃO
ENTRE A RETÓRICA DO “FIM DO TRABALHO” E A “CAPTURA DA
SUBJETIVIDADE DO TRABALHADOR”. Anais do Seminário Nacional de
Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais, [S. l.], v. 1, n. 1, p.
289–300, 2011. Disponível em:
https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/seminarionacionaldedimensoes/article/view/97
5. Acesso em: 2 ago. 2022.

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