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um transe a outro1
Abstract: This essay discusses the relations between Jean Rouch and Glauber Rocha,
and draws a general comparison of their cinematographical works, concentrating its
argument on four aspects: the theatrical dimension of their mise en scène, the orality
as a source of their soundtrack, the free indirect discourse to which they appeal, and
the status of the religiosity (specially of the trance) in some of their films.
Keywords: Jean Rouch. Glauber Rocha. Theatrality. Orality. Free indirect discourse.
Trance.
Résumé: L’article discute les rapports entretenus par Jean Rouch et Glauber Rocha,
et propose une approche comparative de ses respectifs projets cinématographiques,
en concentrant son argumentation sur quatre aspects: la dimension théâtrale de leur
mise en scène, l’oralité comme matrice de leur bande sonore, le discours indirect
libre auquel les deux font appel, et le statut de la religiosité (notamment de la transe)
dans le cinéma de chacun.
Mots-clés: Jean Rouch. Glauber Rocha. Théâtralité. Oralité. Discours indirect libre.
Transe.
Nos estudos disponíveis sobre o cinema de Jean Rouch, não 1. Publicado em francês numa versão
mais curta, sob o título “Rocha et
é raro vê-lo comparado ao de outros cineastas. Em alguns casos, Rouch: d’une transe à l’autre” (em
BAX; BÉGHIN; ARAÚJO SILVA, 2005:
foi o próprio Rouch quem sugeriu tais comparações, ao reconhecer 82-87), e traduzido para os Colóquios
sua filiação a uma linhagem que passa por ilustres predecessores: sobre Jean Rouch organizados por
mim e por Andrea Paganini, de julho
Flaherty e Vertov, que ele invocou amiúde como pais fundadores;2 a agosto de 2009 em São Paulo, Rio
de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília,
Rossellini, com quem travou uma relação de amizade e um diálogo este ensaio permanecia inédito em
português. Ele deve virar um capítulo
franco, por vezes polêmico. Noutros casos, foi uma relação efetiva, de um livro de cinema comparado
de ordem histórica, que convidou a uma aproximação explorada que preparo sobre o diálogo de
Glauber com outros cineastas, de
pela crítica: Godard e a Nouvelle Vague em geral, que o tomaram Ford, Buñuel e Eisenstein a Godard,
Straub, Jancso, Kramer e Bene.
como precursor, elogiando-o em textos e declarações, e dialogando
2. Ver, entre outras, suas invocações
com ele nos filmes; o cinema direto e, em particular, certos (freqüentemente conjugadas) de
Flaherty e Vertov em ROUCH, 1968:
cineastas canadenses modernos, como Claude Jutra e Michel 439-55; 1971b; 1991: 54-5; 1988b;
Brault, vistos em geral como companheiros de viagem, por terem 1989: 175-81; 1990 e 1992: 45-8.
3. Nos Colóquios Rouch 2009, Henri
com ele trabalhado e trocado experiências. Histórias e panoramas Gervaiseau iniciou o de Flaherty. Ver
do cinema etnográfico ou do documentário em geral também seu texto neste volume infra.
deram ensejo a paralelos, bem como discussões voltadas para o 4. Alfredo Manevy e Michel Marie
retomaram nos Colóquios Rouch
cinema africano, de cuja história Rouch não poderia ser excluído. 2009 de São Paulo e do Rio a
discussão sobre Rouch e Godard,
No entanto, para além do âmbito do cinema etnográfico para a qual CHEVRIE (1991) e WITT
(1995) já haviam contribuído.
ou mesmo do cinema documentário, sua relação com a vaga dos O paralelo Rouch-Rossellini foi
cinemas novos surgidos na passagem dos anos 50 aos 60 ainda esboçado por FARASSINO (1991).
merece estudos mais atentos. Se um cuidadoso reexame de 5. Esses e outros paralelos foram
aflorados por FIESCHI (1973, passim),
paternidade de Flaherty e Vertov se impõe,3 se discussões sobre as DELEUZE (1990: 182-186, 266, 288,
327) e outros, mas quem mais os
relações entre o seu e os cinemas de Rossellini ou Godard ainda explorou foi SCHEINFEIGEL (1988,
2002 e 2008).
têm muito a avançar,4 um vasto território resta a explorar no
6. Como nos trabalhos de PIAULT
que concerne ao seu diálogo artístico com cineastas modernos (1997 e 2000) e COLLEYN (2004 e
essenciais, como Pasolini, Rivette, Rohmer, Straub, Marker e 2009). No Brasil, antropólogos com
fina sensibilidade cinematográfica
Pierre Perrault, entre outros.5 têm enriquecido muito o debate
sobre o cinema de Rouch (cf.
A situação muito peculiar da obra de Rouch, na fronteira GONÇALVES, 2008, mas também
SZTUTMAN, 1997, 2004, 2005 e
entre a etnografia africanista (temperada de surrealismo) e 2008, e CAIXETA DE QUEIROZ,
o cinema moderno, introduz um viés nesse diálogo e obriga o 2004), que é objeto de um capítulo
proveitoso no livro importante de
observador a variar os ângulos de abordagem. Esta sai ganhando DA-RIN (2006) sobre o documentário.
quando consegue articular de modo orgânico antropologia e 7. Devo essa intuição do paralelo
entre Rouch e Glauber como
cinema.6 No campo do cinema, uma angulação possível e fecunda cineastas do transe a uma conversa
parisiense em junho de 2003 com
a explorar consistiria em evitar, por um instante, os comparantes os amigos Alfredo Manevy e Camilo
europeus e africanos, para confrontar a obra fílmica de Rouch Soares, a quem agradeço, assim
como agradeço a Andrea Paganini
com alguma outra vinda de outras latitudes. Como por exemplo (co-curador da Retrospectiva de
Rouch em 2009), com quem venho
a de Glauber Rocha, outro cineasta do transe,7 que ganharia conversando – e aprendendo – sobre
Rouch desde 2003.
também com a comparação.
Apesar de sua variedade e de sua qualidade, os estudos
suscitados até agora no Brasil e no exterior pela obra de
experiência da filmagem, que nunca se confundiu com a mera 14. Rouch quase nunca partiu
de roteiros, ele não gostava de
realização de um roteiro previamente definido14 ou com a escrevê-los. Glauber escreveu
simples execução da preparação anterior, e sempre se abriu muitos (Deus e o Diabo teve
sete; Terra em transe teve
à improvisação. Ambos recusaram o fetichismo da técnica e alguns), e chegou a publicar
procuraram desmistificá-la, conferindo um primado evidente à vários, alguns dos quais nunca
filmados, como La Nascita degli
dimensão expressiva do filme em detrimento das normas técnicas dei (1981). Em todo caso, mesmo
estabelecidas até então e transformando em riqueza estética o quando partiram de roteiros,
suas filmagens vieram sempre
que era carência de produção. No cinema deles, a técnica sempre desarrumar o que eles previam,
de modo a reorganizar os dados
se subordinou à expressão – pessoal ou coletiva. dramatúrgicos. Salvo engano,
Esse modo de produção e essa base estilística comuns nos Câncer, Claro e Di não tiveram
roteiro prévio.
forneceriam, porém, um ponto de partida muito genérico e pouco
operatório (eles valem para muitos cineastas do pós-guerra)
se não servissem a projetos ideológicos também convergentes.
ou Congo Brazzaville.16 Mas podemos dizer sem exagero que seu 16. Segundo seu depoimento
“Um leão na África” (1970),
cinema sempre esteve imantado pela África. Não por acaso, ao citado em VIEIRA, 1985: 61-62,
dividir em quatro grupos os filmes de sua retrospectiva realizada ele chegou à África em 15 de
setembro de 1969 para escolher
pela Cinemateca Portuguesa em 1981, Glauber abre a lista com as locações de Der Leone,
descartou por intuição o Senegal
uma seção intitulada “Afryka”, trazendo os filmes Barravento (sugerido pelo cineasta Ousmane
(1962) e Der Leone. Para ele, além de estar na raiz de uma série de Sembene) e a Guiné (sugerida
por outras pessoas) e se trancou
elementos da cultura brasileira (como as religiões afro-brasileiras dez dias num hotel com o mapa
da África. Estudando ali os
mostradas em Barravento e na Idade da terra, e evocadas na banda países africanos e trabalhando
sonora de Terra em transe), a África representava também uma no roteiro, Glauber acabou
escolhendo a República Popular
espécie de emblema da luta dos povos do Terceiro Mundo contra do Congo (Brazzaville), onde
um grupo de jovens oficiais
o colonialismo europeu. Sem ter dela uma experiência direta mais nacionalistas dera um golpe de
consistente, sua identificação com a África vinha não só de seus Estado e instalara um regime
anticolonialista vagamente
antepassados como também da sua condição de colonizado – donde socialista. A decisão lhe veio ao
ler no ato institucional um artigo
o recurso às posições de Frantz Fanon na retórica da sua Estética da prevendo a abolição da censura
fome, muito bem discutido por Xavier ([1983a] 2007: 183-197). artística no novo regime.
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quebrando o tabu de castidade de Aruã para desencadear 46. Lançando mão delas ou
se constituindo globalmente
a transformação política na comunidade dos pescadores de como metáforas. Assim, o
Buraquinho; Rosa em Deus e o Diabo matando Sebastião em pleno fenômeno natural do Barravento
é tomado como metáfora de
rito sacrificial no interior de uma capela em Monte Santo para transformações radicais da ordem
libertar Manoel do seu jugo; Paulo Martins em Terra em transe estabelecida, o latifundiário é
designado como um Dragão da
imaginando invadir a coroação fantasmagórica de Diaz para matá- maldade, o imperialismo como
lo e salvar Eldorado da sua tirania. Se os personagens já agem um Leão de sete cabeças, um
líder religioso e um cangaceiro
assim, o próprio cineasta assume esse gesto até o fim, profanando o nordestinos aparecem como Deus
velório de Di Cavalcanti para melhor elogiá-lo e celebrar a energia e o Diabo na terra do sol, para
não falar das Cabeças cortadas
vital na base de sua pintura, invadindo com sua câmera igrejas, (quais? de quem?) e do adjetivo
Claro (que qualifica o quê? o
terreiros, museus de arte sacra, desfiles de escolas de samba e filme? o mundo?).
procissões religiosas, que suas filmagens acabaram transtornando.
47. Livro do historiador Leopold
Essa inflexão aparece também no uso metafórico do transe por Schwarzschild sobre o período
do entre-guerras, publicado
Glauber, talvez ainda mais audacioso do que aquele já comentado primeiro durante seu exílio
em Rouch, e por meio do qual Glauber projeta sobre o mundo americano sob o título The
World in trance: from Versailles
um fenômeno religioso de cuja jurisdição ele já procurara borrar to Pearl Harbor (New York: L.
as fronteiras. Nada de surpreendente nisso, pois as metáforas B. Fischer, 1942), e republicado
em sua versão original alemã
imantam toda a obra de Glauber, a começar pelos próprios títulos sob o título Von Krieg zu Krieg
de seus filmes de ficção, que, à diferença de seus documentários (Amsterdam: Querido, 1947).
Glauber provavelmente tomou
de nomes mais sobriamentes denotativos,45 sempre as mobilizam conhecimento do livro, ou pelo
de um modo ou de outro.46 Terra em transe e Câncer são talvez menos do seu título, na tradução
brasileira de Marques Rebelo, O
os exemplos mais espetaculares disso. No filme de 1968-72, não mundo em transe: de Versalhes
reconhecemos imediatamente onde está o câncer. Este termo não a Pearl Harbor (Rio de Janeiro:
Casa do Estudante do Brasil, s.d.
designa o estado doentio de nenhum personagem (não se trata [fim dos anos 40?]; 2. ed. Rio de
Janeiro: Pongetti, s.d. [1960?]).
dele no filme), mas parece qualificar metaforicamente o conjunto
do tecido social do qual o filme nos mostra alguns retalhos. 48. Não alardeado por Glauber,
esse diálogo evidente de Terra
Câncer social? Em sua desordem proliferante, em sua disfunção em transe com o filme de Buñuel
passou desapercebido pela
patológica, em sua violência descontrolada que se propaga como crítica estrangeira, apesar de ter
uma metástase, é este mundo inteiro que se revela gravemente sido assinalado de passagem
no Brasil, entre outros, por
doente. Walter Lima Jr. em conversa de
O mesmo vale para o transe que afeta a terra do filme de 1983 com Alex Viany (cf. VIANY,
1999: 358) e por Caetano Veloso
1967. Com um título provavelmente inspirado num livro de (Verdade tropical. São Paulo:
Cia das Letras, 1997, p. 104).
história chamado O mundo em transe,47 e uma intriga que retoma Ele ainda espera uma discussão
de perto e transfigura a do melodrama político de Buñuel La mais detida, que explore por
contraste a originalidade do filme
Fièvre monte a El Pao / Los ambiciosos (México/França, 1959)48 de Glauber, no rastro do que fez
XAVIER, em Sertão mar (1983a /
para revisitar no calor da hora o golpe de Estado de 1964 no 2007), com Barravento e Deus e
Brasil, Terra em transe fornece o exemplo mais rico da metáfora o Diabo.
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