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A Caravana Farkas e o moderno documentário brasileiro: introdução aos

contextos e aos conceitos dos filmes


Gilberto Alexandre Sobrinho, Unicamp

Entre 1964 e 1981, o fotógrafo e empresário Thomaz Farkas produziu trinta e nove
filmes, hoje conhecidos sob a expressão Caravana Farkas. São trinta e seis documentários
em curta-metragem, um curta de ficção e dois filmes em longa-metragem, sendo um
documentário e um de ficção1. Este artigo explora os filmes documentários. Dadas as
particularidades dos processos de produção e de realização, explicados mais adiante, os
filmes podem ser divididos em três fases: Primeira Fase: Memória do cangaço (Paulo Gil
Soares, 1965), Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), Nossa escola de samba
(Manuel Horácio Gimenez, 1965) e Viramundo (Geraldo Sarno, 1965); Segunda Fase A
morte do boi (1969-1970), A vaquejada (1969-1970), Frei Damião - trombeta dos aflitos e
martelo dos hereges (1970), A erva bruxa (1969-1970), O homem de couro (1969-1970), A
mão do homem (1979), Jaramataia (1970) – dirigidos por Paulo Gil Soares; A cantoria
(1969-1970), Vitalino Lampião (1969), O engenho (1969-1970), Padre Cícero (1971),
Casa de farinha (1969-1970), Os imaginários (1970), Jornal do sertão (1970), Viva Cariri
(1969-1970), Região Cariri (1970) – dirigidos por Geraldo Sarno, Rastejador e Roda e
Outras Histórias (Sérgio Muniz, 1969-1979) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970);
Terceira Fase: A cuíca (1970), De Raízes & Rezas, entre outros (1972), Cheiro/Gosto, o
Provador de café (1976), Um a um (1976), Andiamo In’merica (1977-78), Beste (1977-78)
e O Berimbau (1978) – dirigidos por Sérgio Muniz; A morte das Velas no Recôncavo
(1970) e Feira da banana (1972-73) – dirigidos por Guido Araujo; Paraíso Juarez (1971),
Todomundo (1978-80) e Hermeto, Campeão (1981) – dirigidos por Thomaz Farkas; Trio
Elétrico (Miguel Rio Branco, 1978); Ensaio (Roberto Duarte, 1975) e Certas Palavras
(Mauricio Beru, 1979).
Thomaz J. Farkas é a produtora responsável pelo financiamento de todos os filmes e
Farkas, além de financiá-los e também participar de um sistema de co-produção na terceira
fase, atuou como elemento aglutinador de um grupo de realizadores interessados em
desenvolver projetos que resultariam em filmes sobre aspectos da realidade brasileira, em
que sobressaiu o foco sobre o homem brasileiro, visto numa ampla perspectiva econômico-
social, cultural e histórica. A expressão Caravana Farkas é atribuída a Eduardo Escorel,
um dos integrantes da equipe, e foi cunhada posteriormente, nos anos 1990. A nomeação
posterior, distanciada no tempo, permite delinear para o conjunto dos filmes o
estabelecimento de certas diretrizes que norteiam o trabalho do grupo, em que se nota o
início e a interrupção de um projeto cinematográfico, demarcado pelas possibilidades
técnicas que avançavam no tocante às mediações com o material bruto à disposição,
tornando o formato documentário brasileiro algo inovador em certas instâncias. No plano
do conteúdo, verifica-se o recorrente mapeamento da geografia e da história nordestinas em
busca de situações particulares. Além desse espaço recortado, há investimentos em outros
lugares, como ocorre com filmes que se situam na região sudeste e um filme voltado para a
imigração italiana, que capta momentos da vida social e econômica em São Paulo e no Rio
Grande do Sul, além de recorrer à região do Veneto, na Itália, para a composição do quadro
histórico mais preciso do fenômeno em questão.
Num primeiro momento, apreendem-se dois aspectos amalgamados na articulação
expressão e conteúdo, diretamente conectados com o contexto estético e político da época
dos filmes e o prolongamento do projeto também informa sobre os ditames técnicos, éticos
e estéticos e o quadro ideológico que balizaram o período em que os filmes foram feitos.
De um lado, a forma dos filmes, já no início, buscava apropriar-se de certos matizes do
cinema verdade, notadamente um tipo de registro com uso de câmeras leves e som
sincronizado, permitindo a realização de filmes com equipe reduzida e uma maior
aproximação com o objeto a ser filmado. Nos filmes, são relevantes os usos da entrevista e
do depoimento, procedimentos que ligam as obras ao cinema verdade e a penetração da
câmera nos mais recônditos lugares acentua o firme propósito de captar situações autênticas
da realidade, algo que sinaliza também a passagem de um modo de fazer documentário que
privilegiava a encenação para a abertura e o registro dos fenômenos reais. Ainda do ponto
de vista do plano da expressão, insiste-se na voz over em sintonia com o ideal interpretativo
que alimentava o projeto e nos registros dos acontecimentos fundem-se a captura de
situações autênticas com expedientes de encenação, estas operadas por atores não
profissionais na lide com seus ofícios diante da câmera, outro elemento formal presente em
alguns filmes é o uso de material de arquivo e também a migração de imagens entre os
filmes, com enfoques diferentes. Cabe destacar a pesquisa sonora enfeixada por músicas
regionais ligadas às tradições folclóricas e um repertório que inclui canções, grupos e
cantores da Música Popular Brasileira, como a Banda de Pífanos de Caruaru, Caetano
Veloso e Gilberto Gil.
O enfoque na realidade brasileira se ajusta ao quadro ideológico da geração de artistas
e intelectuais da década de 1960 e sua preocupação social em fina sintonia com o
pensamento sociológico brasileiro, como é o caso da influência das idéias de Otávio Ianni
em Viramundo, notadamente na moldura discursiva. Para a segunda fase, podem-se
destacar as idéias de Cândido Procópio sobre cultura popular e outras referências podem vir
à tona, já que se realizava intensamente a pesquisa sobre certos traços da cultura brasileira
em ambientes institucionais, com destaque para a Universidade de São Paulo. Devido ao
contexto de tal empreendimento, justifica-se o forte apelo às contradições provocadas pelo
surto de industrialização e desenvolvimento ocorridas em solo brasileiro e a atenção às
tensões desse processo. Em face desse cenário, os realizadores motivaram-se em registrar
formas de trabalho e de organização social em vias de desaparecimento em face do
processo modernizador em avanço no país. Dado flagrante é a evocação à miséria e à
alienação como marcas do subdesenvolvimento, as dessimetrias e disparidades encontradas
no vasto solo brasileiro, a permanência de elementos arcaicos presentes na vida social, onde
o nordeste brasileiro parecia ser o palco central dessa conjuntura.
É moeda corrente o acontecimento primordial que marca a introdução das técnicas do
cinema verdade no Brasil, ou seja, a vinda do documentarista sueco Arne Sucksdorff, em
1962, para um seminário ocorrido no Rio de Janeiro. Vladimir Herzog, jovem realizador e
jornalista, cuja efêmera passagem pelo grupo de Farkas faz alguma diferença, participa do
evento juntamente com Eduardo Escorel, outro membro do grupo. Além dessa experiência
de Herzog, há também sua permanência, juntamente com Maurice Capovilla, para um
estágio na Escuela Documental de Santa Fé, criada na Universidad Nacional del Litoral,
em Santa Fé, na Argentina. Em 1963, ocorre a vinda do cineasta Fernando Birri para um
seminário em São Paulo, a convite de Paulo Emílio Salles Gomes. Além de dirigir filmes
de forte presença, Birri, idealizador da Escuela Documental, publicara textos de forte
impacto sobre a situação do cinema latino-americano, em que pesa nos argumentos a
urgência sobre um tratamento realista nas imagens, herança das idéias zavattinianas do neo-
realismo italiano, como também o tom nacionalista que visava o questionamento da
situação colonizada e subdesenvolvida do cinema. Após o Golpe Militar no Brasil, Birri
segue viagem para a Europa, exilando-se na Itália, permanecendo no país Horácio Gimenez
e Edgardo Pallero, ambos argentinos e que tinham trabalhado com o realizador na produção
de seus dois filmes impactantes, Tire Die (1958) e Los inundados (1962). Antes de sua
partida, o arquiteto modernista Vilanova Artigas, amigo de Farkas, promove o encontro
deste com todos esses realizadores, facilitando a troca de experiências que desembocariam
nos projetos dos documentários. Além de Herzog, Capovilla, Birri, Gimenez e Pallero,
juntam-se ao grupo, compondo uma primeira formação, os baianos Geraldo Sarno e Paulo
Gil Soares, ambos ativos participantes da cena cultural cinematográfica soteropolitana, este
ex-parceiro de Glauber Rocha, assumindo a assistência de direção de Deus e o Diabo na
terra do sol (1963) e aquele, entre outras atividades, criou o Departamento de Cinema do
Centro Popular de Cultura, tendo realizado alguns curtas.
À reiterada influência de Fernando Birri, soma-se a de Jean Rouch, após contato
travado depois de sua vinda ao Rio de Janeiro, em 1965, juntamente com Louis
Marcorelles, Freddy Buache e Robert Benayon, para o primeiro Festival Internacional do
Filme do Rio de Janeiro. Na ocasião foram projetados os quatro primeiros filmes
produzidos por Farkas nos anos 64/65, sendo Memória do cangaço, Subterrâneos do
futebol , Nossa escola de samba e Viramundo. Todos foram incorporados no longa-
metragem Brasil Verdade.
A abordagem cinematográfica desenvolvida para o tratamento dos temas é fruto de
uma rede de influências transnacionais, resultado de encontros de idéias que são absorvidas
e transformadas em método de trabalho. Mesmo nos percursos individuais, nota-se nas
formações curriculares a aproximação a determinadas idéias posteriormente amadurecidas e
compartilhadas que oferecem uma noção de grupo coeso e afinado com propostas sólidas, o
que permite conjecturar a proximidade dessa experiência como um movimento articulado,
algo pertencente ao espírito modernista, do qual os anos 60 foram particularmente sensíveis
no campo do cinema. Evidentemente, no Brasil, ao Cinema Novo é atribuído o papel
relevante de ruptura no horizonte estético. Nesse sentido, cabe determinar certas
coordenadas, primeiramente, no âmbito estético, que informem sobre as especificidades
desses filmes e que efetivamente pesem e validem suas similaridades e diferenças no
quadro geral da produção, confirmando sua contribuição para o moderno documentário
brasileiro.
De acordo XAVIER (2001, p.14), o cinema moderno no país define-se a partir do
seguinte:
No quadro atual, quando a nossa atenção se volta para o processo que envolveu o Cinema Novo e o
Cinema Marginal, entre o final da década de 1950 e meados dos anos 70, tal processo se apresenta
como dotado de uma peculiar unidade. Foi, sem dúvida, o período estética e intelectualmente mais
denso do cinema brasileiro. As polêmicas da época formaram o que se percebe hoje como um
movimento plural de estilos e idéias que, a exemplo de outras cinematografias, produziu aqui a
convergência entre a “política dos autores”, os filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem,
traços que marcam o cinema moderno, por oposição ao clássico e mais plenamente industrial (p.14) .
Os três eixos política dos autores, filmes de baixo orçamento e renovação da
linguagem delineiam as coordenadas estéticas e avançam para o âmbito da produção.
Embora os filmes da Caravana se situem no amplo contexto do Cinema Novo, há um
enfoque particular nos temas por parte do grupo.
A proposta inicial do grupo, logo abortada, era filmar as ligas camponesas
nordestinas, lideradas por Francisco Julião, idéia logo desencaminhada devido à censura do
regime militar. O resultado da mudança de planos foi a realização de um projeto cunhado
de A condição brasileira, inspirado na série de livros Brasiliana, que tinha o foco nas
ciências sociais, sendo o material editado pela Companhia Editora Nacional. Nos filmes, a
estratégia educativo-cultural passou a ser dominante, em contraste com o viés político
preconizado. Para o conteúdo dos filmes desse primeiro momento é travado por um forte
diálogo com professores da Universidade de São Paulo, em que participam ativamente
Geraldo Sarno, Leon Hirszman e, depois, Paulo Gil Soares. A primeira fase, portanto, é
composta pelos quatro filmes que, para facilitar o processo de distribuição e exibição,
integraram o longa Brasil Verdade. Com locações na Bahia, no Rio de Janeiro e em São
Paulo, esses filmes se reportam a temas como escola de samba, o futebol, o cangaço e a
imigração nordestina. Com exceção de Memórias do cangaço, que já havia sido iniciado e
depois foi incorporado no projeto, os outros filmes foram concebidos e realizados sob o
calor das idéias do grupo recém formado. Os filmes tiveram ampla repercussão em festivais
e sua distribuição local (poucas salas e público minguado) ficou a cargo da Difilm. Para a
continuidade do projeto, em 1965, Farkas, Sérgio Muniz, Edgardo Pallero e Affonso Beato
juntam-se a Paulo Emílio Salles Gomes, a Francisco Ramalho Jr. e a Jean-Claude Bernardet
para buscar apoio institucional. A Universidade de Brasília havia criado um curso de
cinema, fato que os motivou a encarar a instituição como primeira opção, logo descartada
devido à crise da mesma, alavancada após o Golpe de 1964. O apoio encontrado veio do
IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), vinculado à USP. Farkas e Muniz se imbuem, então,
da tarefa de criação do Departamento de Produção de Filmes Documentários, contando
com o apoio da professora e socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, ligada à sociologia
rural. No ano seguinte, no final de 1966, é aprovado o projeto “Pesquisa e documentários
sobre cultura popular do Nordeste”, encaminhado por Farkas e Geraldo Sarno, com
proposta de co-produção de filmes. Em janeiro de 1967, partem para o Nordeste Sarno,
Farkas e Paulo Rufino com o objetivo de percorrer a região e levantar o material para os
filmes, voltam com um farto material que iria resultar nos filmes Jornal do Sertão, Os
imaginários e Vitalino Lampião. Esses filmes já integram o segundo momento de
realização dos filmes produzidos por Farkas. Há que salientar que em 1968 o Departamento
ligado ao IEB se desfez e a co-produção não se realizou, por questões financeiras. A
pesquisa empreendida foi levada adiante, no mesmo ano partem para o Nordeste Sarno,
Eduardo Escorel, Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz, Edgardo Pallero, Sidney Paiva Lopes,
Affonso Beato e Farkas, este, agora, financiador solitário do projeto.
O resultado dessa viagem é um conjunto de dezenove filmes, todos centrados na
região nordestina e compõem a segunda fase de realização do núcleo. Há, sobretudo, o
olhar voltado para o registro de formas de organização de trabalho, de arte popular, de lazer
e de misticismo religioso. Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia são os Estados percorridos
pela Caravana. Os curtas-metragens seriam vendidos em escolas, atendendo a uma
demanda desse setor que contava com projetores de 16 mm, mas careciam de material
sobre o próprio país. A comercialização dos filmes teria essa finalidade, algo que não se
cumpriu efetivamente devido às restrições de aquisição de material nas escolas, sendo essas
medidas outorgadas no contexto do Ato Institucional n. 05.
Se, por um lado, agravava-se o processo de comercialização do material, por outro,
adensava-se o conceito do projeto, tornando a experiência enriquecedora em relação ao
procedimento de documentar a realidade brasileira. Nesse sentido, cabe um olhar particular
sobre a experiência de linguagem desse conjunto de filmes. Essa singularidade enviesa-se a
partir da noção de método articulado pela equipe, sendo a síntese desse percurso firmada na
monografia ainda inédita Cinema documentário: um método de trabalho, tese de doutorado
de Thomaz Farkas, apresentada à Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São
Paulo, em 1972, mas por questões políticas, só defendida em 1977. Uma estratégia
encontrada para distribuir e exibir os filmes foi reunir os curtas Padre Cícero, Rastejador,
Casa de farinha, Jaramataia e Erva Bruxa em um longa-metragem de 90 minutos
intitulado Herança do Nordeste, tratando-se de uma solução comercial sem muito sucesso.
Outra possibilidade seria vender os documentários para a televisão, no entanto, o conteúdo
dos filmes, os recursos técnicos utilizados e a formatação do material não condiziam com o
modelo de mercado então existente. Frei Damião chegou a ser exibido na TV Globo, sendo
remontado e reduzido por seu diretor, Paulo Gil Soares.
O terceiro momento de realização dos filmes caracteriza-se pela dispersão temática
e surgem novas roupagens nos filmes, contrastando com a maneira pela qual articularam-se
a primeira e a segunda fase. Aqui entram em cena Guido Araújo, Roberto Duarte, Rubens
Junqueira, Miguel Rio Branco e Mauricio Beru, para destacar os diretores, e é o momento
de participação de Farkas como diretor, além da continuidade de Sérgio Muniz. Vale
salientar que Farkas já realizara curtas-metragens na Escola Politécnica da USP, nos anos
1950.
Em relação ao intento de percorrer o país, não ocorrem grandes avanços, ficando os
filmes limitados aos Estados da Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. No que diz respeito
aos temas apresentados, há a recuperação da questão da migração, desta vez com foco sobre
a imigração italiana, permanecem as preocupações de registro de formas de trabalho em
vias de desaparição, notadamente marcadas por métodos artesanais que contrastam com a
industrialização já em pleno desenvolvimento e, por fim, essa última fase destoa das demais
por colocar em primeiro plano manifestações artísticas como a música, a arquitetura e as
artes plásticas, destacando processos e artistas pertencentes ao contexto urbano e à estética
moderna. No âmbito da produção, esse último momento apresenta relações de co-produção
com a Embrafilme, a Prefeitura Municipal de São Paulo, a Saruê Filmes, de Geraldo Sarno,
e Sérgio Muniz, que além de diretor também participa do financiamento de alguns projetos.
Ao observar a trajetória dos filmes, fica explicitada a idéia da construção de um olhar
sobre a cultura popular brasileira, em que se busca um desenho polimorfo do homem local,
assentado nas relações entre cultura, economia e sociedade. Tais propósitos se atualizam
sobre uma visualidade que assume a corporeidade do real, no encontro da câmera com o
objeto, e avança ao colocar em circulação outros signos visuais que enriquecem a
amostragem, como é o caso da recuperação de gravuras e materiais de arquivo. No plano
sonoro, estabelece-se uma polifonia derivada da voz autêntica dos sujeitos em sincronia
com a imagem, de uma musicalidade extraída de sons regionais e outras referências e a
insistência na voz over que, além de garantir o ideal interpretativo, busca também uma certa
articulação didática em sintonia com a finalidade social e educativa do filmes. Essa
amostragem se edifica sobre uma tradição já firmada no campo do cinema, ou seja, os
cineastas lançam mão de artifícios do cinema moderno, com realce para as
descontinuidades entre som e imagem em muitos dos filmes.
Em relação à autoria, fica flagrante a ausência de uma cartilha a ser guiada no
tratamento dos filmes, abundam visões diferenciadas em que se percebe o peso do diretor
nas escolhas e formatações dos temas. Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares e Sérgio Muniz são
os diretores que mais se destacam, tanto pela quantidade de filmes que dirigem, quanto
pelos traços estilísticos que impõem ao material. Nos três, o processo de documentação se
coaduna ao de reflexão sobre o próprio ato de documentar, e encontram soluções
particulares que os individualiza. Sarno se empenha num tipo de realismo crítico em que os
fatos são interpretados por uma consciência de linguagem, sendo tal aspecto sintetizado
numa frase da publicação da revista Filme Cultura, na edição de agosto de 1984: “Na
verdade, o que o documentário realmente documenta com veracidade é a minha maneira de
documentar” (apud AVELLAR, 2003, p.187). Gil Soares funde reportagem jornalística e a
tradição do realismo, tal aspecto seria desdobrado em sua ativa participação na TV Globo,
em que ele dá inicio, já nos anos 1970 ao Globo Repórter. Muniz é o realizador mais afeito
a uma certa tradição do cinema experimental e ao uso de artifícios de linguagem, como
comprovam os filmes feitos a partir de material de arquivo, seu projeto Cinema de Cordel e
uma depositada crença em procedimentos de encenação nos filmes da última fase, embora
também se possam encontrar filmes bastante convencionais em sua filmografia.
Quanto à renovação da linguagem, é interessante observar a maneira como os
procedimentos inaugurados pelo cinema verdade formam reincorporados a outras tradições,
resultando num rico hibridismo. Um componente que se agrega a essa questão é a presença
marcante em alguns filmes da reflexividade, firmemente atada ao uso criativo da
montagem, tal constatação vincula diretamente os filmes à idéia de cinema moderno em
que a articulação imagem/som desvincula-se do procedimento clássico na lide com o
conteúdo e inscreve a visão subjetiva do cineasta no processo enunciativo.
Finalmente, em relação à produção, trata-se de um caso de produção independente
bastante relevante para história do cinema brasileiro, em particular para o desenvolvimento
do documentário. A figura de Thomaz Farkas emerge na onda de novos produtores do
Cinema Novo, nomes tais como Jarbas Barbosa, Luis Carlos Barreto e Zelito Viana que se
devotaram à produção de ficção. A especificidade da experiência da Caravana poderia ser
medida pelo desejo de realização de filmes de baixo orçamento em que se articula um
quadro conceitual, aqui são relevantes as pesquisas prévias de temas e a preocupação com a
linguagem, para garantir a unidade do material que tinha fins específicos de distribuição e
exibição. Para a viabilização da realização dos filmes tem destaque Edgardo Pallero,
produtor executivo da maioria deles.
Em seu conjunto, os filmes produzidos por Farkas traduzem por seus meios
expressivos facetas da realidade de um país, sustentado pela contraposição entre o moderno
e o arcaico em suas mais variadas formas. O encontro do realizador com o objeto, seguida
de sua restituição é uma operação que se coaduna ao principio realista de reconstituição do
fenômeno, avançando no território das medições em que a voz (e também o corpo) do
cineasta, sua participação criativa se infiltra no material elaborado.

1
Os filmes de ficção são o curta O homem descasado (direção de Rubens Junqueira, 1981) e o longa O Pica-
pau Amarelo (direção de Geraldo Sarno, 1973/74).

Bibliografia
AVELLAR, João Carlos. Geraldo Sarno. In: PARANAGUA, Paulo A. (Org.) Cine
Documental em America Latina. Madri: Cátedra, 2003.
FARKAS, Thomaz. Cinema documentário: um método de trabalho. Tese (Doutorado),
Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Curso de Pós-Graduação em
Jornalismo e Editoração, 1972.
RAMOS, Fernão. Cinema Verdade no Brasil. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Org.)
Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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