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O Erotismo em Salomé: Uma Tragédia em um Ato

Camila Cândido Rocha

Finalizada em meados de 1891 e recebida com o furor moralista da sociedade

vitoriana, Salomé desponta como mais uma adaptação da história bíblica manifesta

em arte no século XIX. Segundo Barbudo (2000, p.11) Neste período, Flaubert

escrevera Sallambô (1862) e Herodias (1877), Mallarmé publicaria Herodiade,

Gustave Moreau tornara-se famoso pelo cunho místico e erótico conferido à Salomé

em seus trabalhos, e um de seus quadros Salomé dansant inspira nomeadamente

Huysmans que realiza uma longa descrição da obra em seu romance À Rebours,

hoje conhecido como a “bíblia do decadentismo”

Há neste período portanto, um interesse nesta figura que não espelha-se no

ideal feminino do fim de século, mas que na contracorrente do imaginário

aristocrático e burguês se apresenta como um ser dotado de ambições,

contradições, e principalmente, de erotismo. Uma espécie de “musa do

decadentismo”

É a partir da repulsa de uma sociedade que vê-se escandalizada diante de

uma personagem que faz uso de seus atributos físicos para atingir aquilo que deseja

que o leitor obtém confirmação de uma hipótese que se faz presente ao decorrer da

peça: Wilde através de Salomé atinge o objetivo de criar uma personagem que

encarna ao mesmo tempo a sensualidade da mulher que tratada como um objeto,

transforma-se em um para obter aquilo que deseja, ao mesmo tempo em que

mantém em delicada tensão, a aparência e os hábitos “mimados” de uma casta

virgem imaculada. Salomé encarna a ideia de atração e repulsa à medida em que se

afasta da etiqueta vitoriana


Mas como é composto o tom erótico em Salomé?

O tom erótico na peça é construído a partir desta dicotomia inerente à

personagem e ao próprio erotismo, que permeia a obra e que através dela, delineia

elementos espaciais externos à personagem, como a ação de outros caracteres e

como os motivos (a Lua, o Sangue) que voltam a relacionar-se com ela.

O erotismo segundo Bataille, abriga assim como Salomé uma série de

contradições: É representação da vida, à medida em que representa a continuidade

do ser e a negação momentânea da morte, ao mesmo tempo em que é canibalismo.

É alegria enquanto ultrapassagem de algo considerado interdito, ao mesmo tempo

em que é dor e sofrimento pela culpabilidade inerente à essa ultrapassagem. É

ainda aquilo que há de mais horrível no Homem ao mesmo tempo em que abriga em

si aquilo de mais sagrado:

“Acredito que não existe erotismo sem sentimento de


culpabilidade, superado, é claro, porque, no erotismo, a
culpabilidade não é mais do que uma alegria, do que um
obstáculo, do que um obstáculo transposto. Mas a culpabilidade
primordial que se encontra numa humanidade primitiva, é bem
anterior a toda espécie de puritanismo, já que a proibição de
incesto e todas as oposições à liberdade sexual são encontradas
na humanidade mais primitiva. Tudo isto está na base da vida
erótica dos homens. (BATAILLE, p. 324)

E ainda:

O erotismo nasceu do interdito, vive do interdito, e se não


tivéssemos o interdito em nós mesmos, se não conservássemos
esse sentimento no que tange o essencial do erotismo, não
poderíamos ser eróticos (...) num sentido em que implica a
violação; só poderíamos ser eróticos como os animais, e não
poderíamos ter acesso ao que é essencial à nós (p. 325).

A composição de Salomé reconta ao erótico, à morte, ao interdito, à religião e

ao corpo. Seu enredo inicia-se durante a realização de um banquete ao ar livre no

palácio do Tetrarca Herodes, no qual a personagem principal sente-se incomodada,


e verdadeiramente enojada ao ser incessantemente observada por seu tio-padrasto:

“Por que o tetrarca passa o tempo olhando para mim com os seus olhos de toupeira,

sob pálpebras trêmulas? É estranho que o marido de minha mãe fique olhando para

mim dessa maneira. Não sei o que significa isso. Na verdade, sei muito bem.”

(Wilde, 2012, p.4).

Vale ressaltar que os incidentes relacionados à narrativa remontam à morte

do pai de Salomé por Herodes, que toma Herodias por esposa e posteriormente

passa a desejar sua própria sobrinha-enteada. Nasce daí um desejo interdito

representado por um tabu ulterior à qualquer puritanismo da era vitoriana: o

supracitado incesto.

Tal relação é denunciada de forma obscura por Iokanaan (que utiliza de

metáforas e outras figuras de linguagem ao enunciar suas profecias), que ao

declarar que o relacionamento de Herodíade com o Tetrarca representava união

incestuosa, é aprisionado na cisterna do palácio (embora mesmo reduzido a este

aprisionamento ainda seja capaz de provocar temor a Herodes e desejo à Salomé).

Salomé ao descobrir a presença de Iokanaan naquele lugar, utiliza a si

mesma como moeda de troca e persuade um dos guardas do palácio a abrir a

cisterna onde o profeta se encontrava, oferecendo assim ao espectador uma

primeira demonstração do poder de persuasão que sua beleza impõe aos homens

ao seu redor.

Ao deparar-se com o profeta, a princesa passa a desejá-lo com tamanha

urgência que as recusas e injúrias proferidas por ele são a força motriz de um

sentimento de vingança que passa a crescer na personagem, sentimento que de

forma alguma dissocia-se da urgência do seu desejo, à medida em que NOGUEIRA

defende:
“ A posse do ser amado não significa a morte; ao contrário,
a sua busca implica a morte. Se o amante não pode possuir o ser
amado, algumas vezes pensa em matá-lo: muitas vezes ele
preferiria matar a perdê-lo. Ele deseja em outros casos sua própria
morte. O que está em jogo nessa fúria é o sentimento de uma
continuidade possível percebida no ser amado. (apud BATAILLE,
1987, p.15).

Com o despertar deste desejo, e em meio às discussões que se realizam (não

por acaso) sobre religião, política e violência no palácio (uma vez que todas estas

atividades humanas passam a ser relacionadas à sexualidade com o surgimento da

psicanálise), Salomé é convidada por seu padrasto a dançar naquele salão. E

apesar da insistência de sua mãe para que não realize a dança dos sete-véus,

Salomé cuidadosamente negocia com Herodes para que aquela performance

sensual (aos olhos do tetrarca) seja adequadamente recompensada. É nesta

negociação que Salomé reafirma o significado do seu poder, intrinsecamente ligado

à sua materialidade física, à sua aparência.

À medida em que a dança é executada e os personagens que a assistem

percebem mudanças no ambiente, a lua é enfatizada e descrita por aquela

audiência: No início da peça identificada como um ser que faz alusão à pureza e a

castidade, à medida em que se enrubesce na dança dionisíaca de Salomé a lua

assume um caráter enlouquecido, sensual, profano. Caráter que reforça a ideia da

lua como o símbolo festejado durante a antiguidade pagã em rituais igualmente

dionisíacos.

Após a dança, Salomé ressurge para exigir a recompensa daquela

performance e revela ao tetrarca o seu desejo: a cabeça de Iokanaan em uma

bandeja de prata. Herodes por sua vez se amedronta com o pedido e tenta dissuadir

a princesa daquela ideia grotesca, oferecendo até mesmo metade de seu reino,

caso a princesa mude de ideia. Salomé insiste e enuncia: “É para meu próprio prazer
que peço a cabeça de Iokanaan numa bandeja de prata. Vós jurastes, Herodes. Não

esqueçais que fizestes um juramento” (WILDE, 2012, p. 21). E obtém por fim a

cabeça do profeta à qual declama um longo monólogo sobre como a presença

daquele homem a imbuíra de um desejo nunca antes despertado por qualquer outro.

No final da peça, quando Salomé beija a boca inerte de Iokanaan, Herodes

enuncia “Tua filha é monstruosa; digo-te que ela é monstruosa. Na verdade, o que

ela fez foi um grande crime. Tenho certeza de que é um crime contra algum deus

desconhecido.” (WILDE, 2012, p. 23) e retira-se do palácio diante daquele cenário

que sente “amedrontador”. Antes de sair entretanto, uma réstia de luar ilumina a

cena de salomé com a cabeça do profeta e Herodes declara “Matai aquela mulher”

(p. 23), configurando-se nesta ação como o poder disciplinador (neste caso

masculino) que provoca a interdição do prazer, a regulamentação das leis morais e

sociais e daquilo que Freud identifica posteriormente como o “princípio da realidade”.

Neste desfecho contrapõem-se portanto: o desejo e a interdição, a ideia de

continuidade existente nos pares e a morte, a religiosidade e a sensualidade, o

sublime e o grotesco, o prazer e a interdição.

Referências:

BARBUDO, Isabel. Prefácio. In: Salomé. Trad. Isabel Barbudo. Lisboa: Ed.

Estampa, 2000.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2017.


NOGUEIRA, Ana Claudia Pinheiro Dias. O erotismo e o desejo na obra Salomé,

de Oscar Wilde. Entrepalavras, Fortaleza, v.5, p. 195-206, ago/dez 2015.

WILDE, Oscar. Salomé: Uma Tragédia em um Ato. In: Teatro Completo Vol. II.

Tradução de Doris Goettems. São Paulo: Landmark, 2012. p. 8-23.

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