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N° 19 | Novembro de 2012 U rdimento

O Treinamento do Ator/Performer:
Repensando o “Trabalho Sobre Si” a
Partir de Diálogos Interculturais
Cassiano Sydow Quilici1

Resumo

O artigo aborda o treinamento do ator/performer


retomando e ampliando conceito do “trabalho sobre si”.
Para tanto, estabeleço um diálogo com o conceito
de shugyo (cultivo), proveniente da tradição budista.

Palavras-chave: Treinamento, ator/performer,


trabalho sobre si, shugyo, budismo.

Abstract

The article discusses the training of the


actor / performer rethinking the concept of "work on oneself."
Therefore, I establish a dialogue with the concept of
shugyo (culture), from the Buddhist tradition.

Keywords: Training, actor/performer, work


on oneself, shugyo, Buddhism.

1
Professor livre docente do Instituto de Artes da Unicamp, na graduação e pós-graduação em Artes Cênicas. Professor do curso
de Artes do Corpo da PUC-SP. Autor do livro Antonin Artaud: Teatro e Ritual – Ed. Annablume 2004 - e diversas publicações
na área.

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I - O treinamento do ator tem sido ob- co estava ancorado no “trabalho do ator so-
jeto de inúmeras problematizações no te- bre si mesmo”, voltado ao desenvolvimen-
atro contemporâneo. A existência de um to do “estado criativo” que alimentaria a
panorama extremamente diversificado de atividade teatral. Falar num estado psicofí-
linguagens e possibilidades criativas para sico propício à criação significava abordar
cena, em que a maior parte das convenções o ofício do ator numa perspectiva ampla,
que fundavam o chamado “teatro dramá- envolvendo a mobilização de um “poder
tico ocidental” são colocadas em cheque, ser criativo” do homem, que se realizaria
trazem também uma instabilidade para o no palco. O ator é um sujeito que deve agir
campo das pedagogias do ator, tornando-o sobre si mesmo, transformando sua relação
aberto a uma série de novas investigações. com o corpo e a subjetividade (memória,
De maneira geral, parece que as técnicas emoções, sensações, imaginação, vontade
que visam à aquisição de habilidades li- etc). Na construção das estratégias práticas
gadas a uma estética específica tornam-se que pudessem orientar seus alunos nesse
muito limitadas diante das questões colo- processo, Stanislavski se defrontou com
cadas pela cena atual. O ator interessado problemas mais abrangentes, como o do
em formar-se como um “bom intérprete dualismo entre mente e corpo que atraves-
de personagens”, mesmo não se limitando sa boa parte da herança cultural ocidental.
ao naturalismo e realismo, não estará ne- Nesse sentido, o mestre russo foi leva-
cessariamente preparado para enfrentar os do a mobilizar recursos teóricos que esta-
desafios de encenações e dramaturgias que vam ao seu alcance, tais como informações
operem com a desconstrução de paradig- sobre os trabalhos do psicólogo T. A. Ribot
mas teatrais e que questionem a própria (1839-1916) e algumas ideias sobre a prática
função da arte na sociedade atual.2 Resta do Yoga, que circulavam em certos ambien-
então a pergunta sobre o tipo de formação tes da Rússia. Zarrilli (2009), apoiado nas
adequada ao ator que quer dialogar, criti- investigações de Sharon Carnicke, Willian
camente inclusive, com a situação contem- Wegner e R. Andrew White, nos mostra
porânea. que conceitos como os de prana e as abor-
Inicialmente, é preciso reconhecer que, dagens que o Yoga faz dos temas da con-
mesmo nos métodos de ator mais consoli- centração e da atenção tiveram um papel
dados, sempre existiu espaço para o ques- significativa na elaboração do “sistema”,
tionamento das técnicas como mero pro- importância esta posteriormente minimi-
cesso de adestramento numa linguagem. zada, pelo regime soviético e pela leitura
Todos os grandes artistas pedagogos do americana de Stanislavski. Depreende-se
século XX (Stanislavski, Meyerhold, Bre- daí que o conceito de “trabalho do ator so-
cht, Grotowski etc) entendiam a formação bre si mesmo” criou um campo de pesqui-
do artista do palco como um caminho que sa de conhecimentos e práticas advindos
implica em transformações mais amplas do de distintos contextos culturais, conectan-
sujeito, envolvendo a dimensão ética, polí- do o treinamento do ator com problemas
tica, existencial, corporal ou mesmo espiri- mais amplos, ligados às transformações do
tual. Para tanto, a construção de muitas pe- artista enquanto sujeito, processo esse en-
dagogias se fez também através do diálogo tendido como base do ato criativo.
com diferentes campos de conhecimento, De certa forma, tal ideia pôde se trans-
incluindo aí a releitura de informações ad- figurar e se aprofundar na medida em que
vindas de outras tradições artísticas e cul- o trabalho do ator se aproximou da arte da
turais. performance. A conexão entre essas áreas
Já em Stanislavski, o desempenho cêni- aparece explicitamente, por exemplo, na
última fase da pesquisa de Jerzy Groto-
2
Existem diversas formas de caracterizar as tendências predominantes no cha- wski. Como se sabe, o “performer arcaico”
mado “teatro contemporâneo”. Apoiamo-nos aqui, momentaneamente, nos
conhecidos con ceitos de “teatro pós-dramático” de H.T. Lehmann e de “teatro
grotowskiano se desvincula das matrizes
performativo” de Josette Féral. ficcionais da dramaturgia convencional
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para fundar sua pesquisa num processo conhecimento distintos da área artística
de transformação pessoal que se articula strictu sensu.
na criação de “ações”. Tais procedimen- Mesmo no teatro contemporâneo que
tos baseiam-se numa ampla mobilização procura manter-se dentro dos limites das
de procedimentos artísticos, culturais, realizações do palco são presentes as con-
rituais, agenciados de diferentes fontes taminações dessas questões, seja no âmbito
“tradicionais”3 e recriados para esse novo da preparação dos atores, seja nos proces-
contexto. Nesse sentido, intensifica-se o sos criativos. Daí o crescimento das pesqui-
diálogo intercultural como recurso funda- sas, inclusive no Brasil, voltadas ao uso de
mental na criação de estratégias de treina- métodos das artes marciais (tai chi, ai ki dô
mento. Mas o que quero ressaltar aqui é etc), Yoga, práticas meditativas e contem-
certo deslocamento do interesse pelas téc- plativas, sistemas de educação corporal
nicas especificamente teatrais (do Nô, Ka- (sei tai hô, educação somática) e técnicas
thakali, teatro balinês, ópera de Pequim etc) psicofísicas de caráter mais experimental.
para a pesquisa de práticas rituais, religio- Talvez tal tendência, expresse, entre ou-
sas, marciais, meditativas etc. O foco da in- tras coisas, uma tentativa de se aprofundar
vestigação intercultural recai agora no que estratégias de treinamento não tão iden-
pode ser chamado de “técnicas de si”,4 ou tificadas com linguagens artísticas espe-
seja, procedimentos que visam promover cíficas, apostando, sobretudo, na ideia da
mudanças substanciais nos modos de per- transformação dos modos de percepção e
cepção e de consciência, que, no trabalho de relação com o mundo, enquanto base de
de Grotowski formam o eixo das “ações” um processo criativo que se desdobra pos-
performáticas. teriormente em estratégias comunicativas
A ideia de que a ação artística deva e formas públicas de intervenção.
partir de dispositivos capazes de modifi-
car a qualidade e a intensidade dos esta- II - Certamente, estamos em melhores
dos do corpo-mente do artista, gerando condições do que Stanislavski para inves-
a partir daí algum tipo de vínculo comu- tigar práticas tradicionais de treinamento
nicativo com o público, atravessa tam- que possam nos fornecer elementos im-
bém o trabalho de importantes artistas portantes na investigação das relações
da performance, como Marina Abramo- corpo-mente, das qualidades dos estados
vic, Joseph Beuys, John Cage, Meredith de consciência e do desenvolvimento da
Monk entre outros. Da mesma forma, são atenção e da concentração. Se ainda existe
comuns entre estes artistas as utilizações na cultura contemporânea o clima misti-
de técnicas e exercícios advindos de tra- ficador dos “ocultismos”, como na Rússia
dições espirituais diversas (zen, budismo do final do século XIX, é inegável também
tibetano, práticas arcaicas etc). Na medi- que o Ocidente hoje conta com um acesso
da em que a arte performática e parte do muito maior a mestres qualificados, mon-
teatro contemporâneo toma um distan- ges, escolas e centros monásticos das tradi-
ciamento mais radical da própria noção ções contemplativas orientais. Observamos
de espetáculo, compreendendo-se mais também, pelo menos no âmbito acadêmico,
como um “acontecimento” modificador uma considerável produção crítica sobre os
da qualidade de consciência, a discus- riscos dos “orientalismos”,5 enquanto ideo-
são dos procedimentos criativos e treina- logias que mascaram contextos e relações
mentos tende a abrir-se para campos de de poder envolvidas na disseminação de
imagens estereotipadas de culturas asiáti-
3
Nem sempre Grotowsky foi muito explícito sobre as matrizes tradicionais e
os mestres que transmitiram as técnicas e conhecimentos que ele recriou em 5
Como se sabe, o conceito de “orientalismo” foi desenvolvido por
seus trabalhos.
Edward W. Said, na sua crítica às formas de invenção do Oriente pelo
4
O conceito de “técnica de si” é utiliza por Foucault (2006) nas suas Ocidente, especialmente no mundo anglo-francês. Para uma discus-
investigações sobre as escolas filosóficas e suas práticas, na antigui- são específica do orientalismo presente nas interpretações das artes
dade greco-romana. ligadas ao Zen no Ocidente, ver Cox (2003).

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cas. Constata-se ainda o crescimento das meditativos, modos de vida, práticas exis-
pesquisas que tentam articular as investi- tenciais, tendo em vista o amadurecimento
gações científicas e filosóficas ocidentais de qualidades de consciência que teriam
sobre a questão das relações corpo-mente, um efeito transfigurador no praticante.
com conhecimentos e práticas meditativas, Por caminhos um pouco diferentes, shu-
especialmente provindas do budismo6. gyo também designa uma complexa arti-
Sem entrar aqui numa problematiza- culação de práticas e conhecimentos, ten-
ção mais específica sobre os modos como do como propósito o florescimento de um
tais conhecimentos e práticas, advindos estado “desperto” da mente-corpo, libertos
de contextos diversificados, são compre- de automatismos e reatividades que carac-
endidas, transformados e incorporados terizariam a consciência ignorante dos seus
nos treinamentos e processos artísticos próprios processos.
contemporâneos, pretendo discutir um O “cultivo”, ao mesmo tempo, pôde
conceito trabalhado pelo filósofo e pes- inspirar, alimentar e se desdobrar em ati-
quisador japonês Yasuo Yuasa.7 Percor- vidades de natureza artística. Como mos-
rendo uma ampla gama de autores da tra Yuasa (1993: 23-28), os conhecimentos
filosofia ocidental (Bergson, Merleau – budistas das relações mente-corpo tiveram
Ponty, Heidegger), da chamada “Escola uma profunda influência na história cul-
de Kyoto”8 (Watsuji, Nishida), além da tural japonesa a partir do fim do período
literatura e das práticas tradicionais bu- Heian (794-1185), atravessando o período
distas (especialmente em Dôgen), Yuasa Kamakura (1185-1333) e se estendendo até
demonstra as vinculações entre treina- o Muromachi (1338-1573), moldando prá-
mentos existentes em artes tradicionais ticas artísticas como a poesia waka, o tea-
japonesas e conceitos e técnicas encontra- tro Nô ou Nogaku, e o Sado ou cerimônia do
dos nas práticas do Zen. A noção de shu- chá. A própria forma de se compreender
gyo, que pode ser traduzido como “culti- a experiência da beleza na arte, designada
vo”, expressaria justamente um modo de pelos termos como hana (flor) no teatro Nô
treinamento estruturado num ambiente e yuguem na poesia waka, se apoia em ana-
monástico, mas que se irradiou para ou- logias e aproximações com a obtenção dos
tros aspectos da cultura, inspirando al- insights ou satoris nas práticas meditativas.
gumas formas de arte. Nesse sentido, tal Assim, estamos falando de uma con-
ideia nos permite pensar as vinculações cepção de treinamento que extravasa o
entre a experiência estética e a questão campo estético para se difundir por todas
das asceses. as áreas da vida, configurando-se como
O tema não é estranho ao pensamento uma espécie de “arte da travessia da exis-
ocidental. Poderíamos fazer algumas apro- tência”. O tema ressoa nas preocupações
ximações entre shugyo e a noção de “cuida- recorrentes de boa parte da arte ocidental
do de si”, estudados por Michel Foucault moderna e contemporânea, que problema-
(2006), e dos “exercícios espirituais”, in- tiza a separação entre arte e vida buscando
vestigados por Pierre Hadot (2006). Ambos a ampliação do sentido da experiência esté-
os autores se referem a formas de áskhesis tica, que deveria ser encontrada também no
(ascese) encontradas em escolas filosóficas cotidiano.9 O próprio interesse de artistas
da antiguidade greco-romana (pitagóri- do teatro e da performance por uma arte
ca, socrático-platônica, estoica, epicurista, do acontecimento,10 colocando em cheque
neo-platônica) que articulam exercícios o “produto-espetáculo”, ajuda a deslocar a

6
A esse respeito, ver Varela (2003). 9
A esse respeito ver a discussão de Bourriaud (2011) sobre a arte moderna como
7
Refiro-me aqui especialmente a The Body: Toward an Eastern Mind-Body Theory e “invenção de si”, e a obra já clássica de Dewey (2010) sobre a arte como experiência,
The Body, Self-Cultivation and Ki-Energy. Ver Yuasa (1987) e (1993). que exerceu forte influência sobre o artista norte-americano Allan Kaprow, um dos
8 inventores dos happennings.
A “Escola de Kyoto” aparece no Japão no período de abertura ao Ocidente, no final
10
do século XIX e começo do vinte. Ela tenta estabelecer inicialmente um diálogo entre Sobre a arte da performance como acontecimento ver o capítulo “The performance as
o Zen e autores da filosofia Ocidental. event”, in Fischer-Lichte (2008).

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reflexão sobre o treinamento para o âmbi- palco ou numa situação laboratorial fosse
to das práticas cotidianas e para os proces- levada para o dia-a-dia, tendo em vista a
sos de transformação dos modos de vida. lapidação da percepção e o desinvestimen-
Como podemos pensar as ações artísticas to das energias em comportamentos pu-
enquanto desdobramentos dos processos ramente reativos. Para tanto, às vezes são
de desautomatização que o artista progra- necessários gestos de contenção e ralenta-
ma para si mesmo, esperando desencadear ção das ações rotineiras, interrompendo o
assim outros modos de percepção e relação envolvimento mecânico com as atividades.
com o mundo?11 Nesse sentido, a ética pode ser relacionada
Quando voltamos às formas budistas a um tipo de “exercício”, que faz do enfren-
do “cultivo”,12 constatamos que as modifi- tamento das situações comuns um trabalho
cações das rotinas, exercícios e modos de básico do praticante.
vida propostos aí, não se confundem com Já os exercícios específicos de medita-
uma busca apenas experimental, mais ou ção cobrem um amplo espectro de práticas,
menos subjetiva e individual. Deparamo- relacionados ao desenvolvimento da aten-
nos com um conjunto de saberes e práticas ção e da concentração. Os exercícios visam
complexas, articulados de forma minu- desenvolver uma experiência da realidade
ciosa, que vem sendo transmitidos, expe- menos mediada pela atividade conceitual
rimentados e readaptados por toda uma e reflexiva. Trata-se, sobretudo, de um tra-
linhagem de praticantes, numa espécie de balho investigativo, apoiado na observação
“trabalho colaborativo no tempo”. Diferen- direta e microscópica das relações e enca-
temente das formas de ascese das escolas deamentos entre sensações, percepções e
filosóficas da antiguidade greco-romana, pensamentos, visando o desenvolvimento
tais tradições preservaram seus processos de estados mais profundos de consciência.
de transmissão, existindo ainda hoje en- A apresentação e codificação desse cami-
quanto “práticas vivas”. A expansão das nho nas tradições budistas revelam uma
escolas ou mesmo centros monásticos bu- alta complexidade. Há um minucioso ma-
distas no Ocidente, especialmente na Euro- peamento dos diversos estágios da concen-
pa e nos Estados Unidos, têm contribuído tração e da “plena atenção”, das dificulda-
para o aprofundamento da sua influência des que surgem e dos níveis de realização
cultural, inclusive no campo da arte teatral que podem ser atingidos. Não se trata de
e performática. uma prática vaga e tateante, mas de um sa-
A rigor, esse tipo de treinamento pode ber preciso, que deve ser realizado na ex-
ser dividido em três áreas que se apoiam periência de cada um.
reciprocamente: o desenvolvimento da Estamos assim diante de um tipo de
atitude ética, as práticas contemplativas e conhecimento que se aproxima mais da
o aprofundamento do conhecimento ex- habilidade desenvolvida por um artífi-
periencial ou insights. O treinamento no ce do que de uma especulação abstrata e
campo da ética implica num exercício de puramente teórica. É certo que o estudo e
atenção ao cotidiano, envolvendo uma a reflexão têm também um papel impor-
percepção mais refinada da fala, das ações, tante no budismo, servindo como uma
e das intenções envolvidas no desempe- espécie de estímulo e mapa para o desen-
nho dos afazeres diários. Como se a mes- volvimento de uma investigação pesso-
ma atenção que exigimos de um ator num al. Nesse sentido, a questão das relações
entre teoria e prática, tão importante para
11
Marina Abramovic, na performance “Casa com Vista para o Mar”, escreve na sua
a pesquisa artística, ganha aqui diversos
lista de instruções para o público, colocada na parede da galeria: “Essa performance desenvolvimentos. De maneira geral, po-
nasce de meu desejo de ver se é possível usar a simples disciplina diária , regras e
restrições para me purificar.” de-se dizer que a “sabedoria” budista é
12
A palavra shugyo é a expressão japonesa, ligada ao Zen, para um conceito funda- entendida como capacidade de sustentar
mental, presente nas diversas linhagens budistas. No budismo primitivo (Theravada)
a mesma idéia é expressa pelo termo pali bhavana, traduzido às vezes por “desen-
uma apreensão mais “direta” do real, da
volvimento da mente” que deve conduzir ao estado da iluminação. sua natureza radicalmente impermanente,
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experiência que seria capaz de nos condu-


zir à descoberta de estados profundos de
consciência e liberdade.
III - Essa breve incursão no conceito de
treinamento como “cultivo”, articulando a
experiência artística com as tradições con-
templativas, nos ajuda a colocar algumas
questões críticas sobre os caminhos de for-
mação do ator/performer interessado no
“trabalho sobre si”. Resgato, em primeiro
lugar, o problema da mistificação do “ex-
perimentalismo”, presente em vários dis-
cursos e práticas performáticas e teatrais
contemporâneos. Pode-se reconhecer uma
diferença de complexidade e elaboração
nos métodos e conceitos do “trabalho sobre
si” no treinamento meditativo. A ideia de
tradição como um “trabalho colaborativo
no tempo”, que desdobra e lapida certas
intuições fundamentais sem preocupações
demasiado egóicas com a originalidade,
parece se contrapor fortemente ao caráter
individualista de boa parte da cena con-
temporânea. A partir daí, pode-se desen-
volver uma reflexão sobre a importância
dos métodos de pesquisa continuada do
treinamento do ator/performer e sobre a
necessidade de articulação da arte com ou-
tras áreas de conhecimento.
Cabe ainda destacar a importância de
discutir as “técnicas” que pretendem pro-
mover uma modificação existencial mais
profunda, dentro do contexto mais am-
plo das concepções de corpo, mente, ser
humano, arte, experiência, consciência,
sujeito etc, que as informam. O interesse
meramente instrumental nas técnicas pode
empobrecer o diálogo e as trocas intercul-
turais, ocultando diferenças decisivas e a
singularidade das perspectivas. Nesse sen-
tido, o diálogo entre as artes cênicas e as
tradições contemplativas pode nos condu-
zir a algo muito mais interessante do que
a uma simples assimilação de “exercícios”.
Ele nos estimula a “meditar” na própria
conexão da arte com processos de “desper-
tar” qualidades profundas da consciência
humana e de transformação das relações.

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Cassiano Sydow Quilici
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REFERÊNCIAS

BOURRIAUD, Nicolas. Formas de Vida: A Arte Moderna e a Invenção de Si. São Paulo: Mar-
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HADOT, Pierre. Ejercícios Espirituales y Filosofia Antigua. Madri: Siruela, 2006.
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ZARRILI, Phillip B. Psychophysical Acting: an intercultural approach after Stanislavski. New


York: Routledge, 2008.

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