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O Brasil em “1984”

Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. Este é o slogan do


Partido que domina o país Oceânia no universo distópico criado por um dos maiores
escritores do século XX, George Orwell. Um Estado que domina pelo ódio, a destruição
e a opressão – “O Grande Irmão está de olho em você”. O Ministério da Verdade, onde
trabalha o protagonista, Winston Smith, é o órgão do governo que se anuncia responsável
por divulgar notícias, educação e entretenimento, mas em realidade sua missão é produzir
mentiras – afinal, “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente
controla o passado”, outro lema do Partido. Uma diretriz associada ao Ministério da
Verdade é o “controle da realidade” por meio da produção de mentiras – diríamos hoje,
fakenews. A linguagem que se produz é a do duplipensamento: dois sentidos opostos que
se abrigam no mesmo enunciado. O principal lema do Partido, reproduzido no início deste
artigo, é bom exemplo.
No dia 13 de maio a urna eletrônica completou 25 anos. A sua estreia foi nas
eleições municipais de 1996. Por todos estes anos os seus componentes (software) e
equipamentos (hardware) foram aprimorados. Em nenhuma eleição houve mínimo
indício de fraude. Mas o ganho não foi apenas com a confiabilidade na coleta e apuração
dos votos, o que seria suficiente para reconhecer a sua importância. A agilidade no
anúncio do resultado também se destaca. O sistema digital é incomparável ao do voto
impresso. Ainda assim, o Governo Federal iniciou uma campanha de retorno ao sistema
do voto impresso: muito mais sujeito a fraudes, lento na apuração dos resultados.
Se o presidente da república vencer a reeleição não discutirá o resultado –
seja qual for o modelo adotado. Se perder, dois cenários são possíveis. Se a votação
ocorrer em urna eletrônica não haverá muito espaço para questionar a legitimidade da
apuração. Um quarto de século de urna eletrônica que se aperfeiçoa em cada ciclo e sem
qualquer traço de fraude não permitirá ir muito além de acusações vagas, desconectadas
da realidade. Mas se a votação for por voto impresso a derrota permitirá construir
narrativas mais plausíveis porque são maiores as brechas de violações.
A lógica é estranha a quem procura coerência. Mas faz sentido a quem produz
o caos. A defesa pela volta do voto impresso não serve para alcançar maior segurança ou
agilidade – comprovadamente menores –, mas prepara uma alternativa a questionar o
resultado das eleições. O Brasil mergulha nos paradoxos do duplipensamento. A guerra
não tem trégua. Quase todos os dias um inimigo novo é indicado e perseguido pelo
governo: jornalistas, indígenas, a China, a urna. Ideias ou pessoas, vivas ou mortas.
Inimigos novos e outros reciclados porque o estado de exceção precisa, é o que importa,
de inimigos para se manter – Guerra é paz. O Governo Federal ataca sistematicamente
as medidas de restrição de circulação e de prevenção contra a Covid-19, recusou-se
diversas vezes em 2020 a comprar vacinas, e assim age em nome da liberdade, mas a
sociedade e a economia mantêm-se escravizadas à pandemia - Liberdade é escravidão. O
Governo Federal defende obstinadamente a mudança do sistema de votação para o retorno
ao voto impresso, muito mais sujeito a fraudes, inegavelmente mais lenta a apuração –
Ignorância é força.
Vivemos em “1984” - quem controla o presente controla o passado...

Luis Manuel Fonseca Pires


Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Professor de Direito Administrativo
da PUC-SP. Autor de Estados de exceção. A usurpação da soberania popular, ed.
Contracorrente. Vice-líder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção
da PUC-SP.
Pedro Estevam Alves Pinto Serrano.
Advogado. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Autor de
Autoritarismo e golpes na América Latina. Breve ensaio sobre jurisdição e exceção, ed.
Alameda. Líder do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e estado de exceção da PUC-SP.

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