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Investigações por suposta ofensa à Lei de Segurança Nacional são

abusos de poder do Ministro da Justiça.


André Mendonça pode incorrer em improbidade administrativa.

O filósofo francês Étienne de La Boétie tinha entre 16 e 18 anos quando


escreveu Discurso da servidão voluntária. O texto foi publicado por volta dos anos 1560,
após a sua morte. Ele queria entender como o tirano exerce o seu poder. Se quem domina
“(...) tem só dois olhos, duas mãos, um corpo, nem mais nem menos (...)”, então “De
onde tira tantos olhos que vos espiam, se não os colocais à disposição deles?”, ou “(...)
tantas mãos para vos bater, se não as emprestadas de vós?”, e os “(...) pés que pisoteiam
vossas cidades não são também os vossos?”. Quem serve ao tirano e porquê o faz. La
Boétie sustentava que há um desejo por servir, submeter-se voluntariamente. Pois ao
servir é possível ser tirano também. A vontade de servir é uma face, a outra é a vontade
de dominar.
Os regimes autoritários contemporâneos contam com o Direito para lhes
servir porque lhe dá um verniz de legalidade. Fantasia de legitimidade. Ao tempo de La
Boétie o tirano pronunciava verbalmente uma ordem e seus guardas a executavam. Em
nosso tempo a ordem precisa se apresentar como “ato de governo”, fazer referência a um
artigo ou mais em uma lei (“fundamentação”), há uma estrutura administrativa do Estado
(quem cumpre, quando e de que modo).
André Mendonça, Ministro da Justiça, tem invocado recorrentemente a Lei
de Segurança Nacional contra críticos do governo. Exemplos mais conhecidos são os
pedidos de abertura de inquérito contra o jornalista Hélio Schwarstman por artigo de
opinião publicado na FSP, contra o advogado Marcelo Feller por críticas ao presidente, e
mais recente contra o sociólogo Tiago Costa Rodrigues que criticou o presidente
utilizando dois outdoors. O argumento seria o abuso do direito à liberdade de expressão,
um direito fundamental previsto no art. 5º da Constituição Federal.
Mas a interpretação do Ministro passa longe da tradição de proteção dada à
liberdade pelo Supremo Tribunal Federal. Opiniões e críticas ao Governo e seus agentes
estão asseguradas pela ordem constitucional. O mais curioso é que a estreita leitura sobre
liberdade de expressão feita pelo Ministro destoa das práticas recorrentes do presidente
ao recorrentemente ofender com agressividade os seus críticos. A organização não
governamental “Repórteres Sem Fronteiras” afirma que apensas em 2020 o presidente e
pessoas próximas cometeram 580 ofensas a profissionais e empresas de comunicação.
Ao agir sistematicamente contra a Constituição Federal – a quem deveria
servir – e usar o seu cargo público para intimidar jornalistas e outros críticos do presidente
da república – a quem serve voluntariamente – o Ministro desvia-se das finalidades
constitucionais. O “desvio de finalidade” é previsto no art. 2º, e, e parágrafo único e como
o ato “(...) visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra
de competência”. Tradução: “competência” são as atribuições e poderes definidos pela
Constituição e por leis, e não a vontade do superior hierárquico em contradição com elas.
O uso dos poderes do cargo de Ministro para provocar investigações que distorcem o
sentido da “liberdade de expressão” para que críticas pareçam abusos de direito e ofensa
– outro salto sem lógica – à segurança nacional são “desvios de finalidade”. O art. 11, I,
da Lei n. 8.429/92, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa, diz que o agente
público pratica “ato de improbidade administrativa” quando visa “(...) fim proibido em
lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”. A parte final
trata do “desvio de finalidade”, ou como também é denominado, “abuso de poder”. O
abuso não é da liberdade de expressão, mas do uso do poder.
Luis Manuel Fonseca Pires
Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Professor de Direito Administrativo
da PUC-SP. Autor de Estados de exceção. A usurpação da soberania popular, ed.
Contracorrente.
Pedro Estevam Alves Pinto Serrano.
Advogado. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Autor de
Autoritarismo e golpes na América Latina. Breve ensaio sobre jurisdição e exceção, ed.
Alameda.

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