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O terremoto de Lisboa: o desastre que mudou

a história e levou a reflexões sobre o papel de


Deus
As grandes mentes da época, muitas das quais estavam
começando a ver o mundo de uma nova maneira e que agora
associamos ao Iluminismo, intensificaram suas reflexões a
respeito de religião e Deus.
"Nunca se viu uma manhã mais bonita do que a de 1º de novembro", escreveu
o reverendo Charles Davy em 1755, um dos muitos estrangeiros que viviam
em Lisboa.
"Era uma metrópole, a capital de um império colonial mundial que se estendia
da África (com Angola, Moçambique e Cabo Verde), passava pela Ásia (com
Goa e Macau), e, claro, à América Latina (com o Brasil)", disse Vic Echegoyen ,
autor do romance histórico Ressuscitar.
"Portugal era um reino muito, muito rico graças às riquezas dessas colônias",
acrescentou o escritor em conversa com BBC Reel. "Lisboa era uma visão
muito atraente para os visitantes de primeira viagem", disse Edward Paice,
autor de A Ira de Deus - A Incrível História do Terremoto que
Devastou Lisboa em 1755 (Record/2010), à BBC Witness.
"Havia mosteiros grandiosos e palácios de grande escala. Sua arquitetura foi
fortemente influenciada pelo Oriente e também pela arquitetura islâmica."
"O sol estava brilhando em todo o seu esplendor", continuou o reverendo
Davy.
"Toda a face do céu estava perfeitamente serena e clara; e não havia o menor
sinal de alerta daquele evento que se aproximava, que fez desta cidade,
outrora florescente, opulenta e populosa, uma cena do maior horror e
desolação."
Foi um dos desastres naturais mais mortais que o mundo já viu.
Dezenas de milhares de pessoas morreram. Lisboa foi destruída, mas das
cinzas surgiu algo incrível: uma nova forma de pensar e uma nova ciência.
Era o Dia de Todos os Santos, e às 9h30 da manhã muitos dos devotos
moradores da cidade estavam nas igrejas.
De repente começou a ser ouvido o que várias testemunhas oculares, incluindo
o reverendo Davy, acreditavam ser o barulho de muitas carruagens.
"Logo vi que tinha me equivocado, pois descobri que era devido a algum tipo
de ruído estranho e assustador embaixo da terra, como o estrondo distante e
oco de um trovão."
O abalo era um megaterremoto sentido em grande parte da Europa Ocidental e
na costa noroeste da África.
"Ainda é um dos maiores terremotos já registrados. Houve três tremores no
total e o segundo foi sem dúvida o maior. Posteriormente, foi avaliado entre
8,5 e 9 na escala Richter", disse Paice.
Os sobreviventes do primeiro tremor procuraram segurança numa enorme
praça aberta junto ao rio Tejo, incluindo o Sr. Braddick, um comerciante
inglês.
"Ali encontrei uma prodigiosa reunião de pessoas de ambos os sexos e de
todas as classes e condições, entre as quais observei alguns dos principais
cônegos da igreja patriarcal em suas vestes roxas e avermelhadas, vários
padres que haviam fugido do altar em suas sagradas vestimentas em meio à
missa festiva, senhoras seminuas e outras sem sapatos... todas de joelhos
com os terrores da morte no semblante, gritando sem cessar 'misericórdia,
meu Deus!'."
"No meio da devoção, veio o segundo grande abalo e completou a ruína
daqueles prédios que já haviam sido gravemente destruídos."
Mais horror estava por vir: o terremoto desencadeou um tsunami no Atlântico
que então subiu o rio.
"Ele veio espumando, rugindo e correu em direção à margem com tanta
energia que imediatamente corremos para salvar nossas vidas, o mais rápido
que podíamos", escreveu o reverendo Davy.
"Você pode pensar que este evento sombrio termina aqui, mas que nada, os
horrores de 1º de novembro são suficientes para preencher um volume."
"Assim que escureceu, toda a cidade parecia brilhar, com uma luz tão forte que
dava para ler. Pode-se dizer, sem exagero, que houve incêndios em pelo
menos cem lugares ao mesmo tempo e continuou como isso por seis dias, sem
interrupção."
Para a celebração religiosa, todas as velas das igrejas e catedrais haviam sido
acesas, que quando caíam multiplicavam suas chamas.
"Não há palavras para expressar o horror", escreveu outra testemunha. "Tal
situação não é fácil de imaginar para quem não a sentiu, nem de descrever
para quem a sentiu."
"Deus permita que você nunca tenha uma ideia precisa disso, porque isso só
pode ser obtido através da experiência."

Uma nova forma de pensar


A notícia do desastre numa cidade tão importante como Lisboa espalhou-se
rapidamente.
"Foi a primeira catástrofe global da mídia que atraiu a atenção de todas as
gazetas, jornais e viajantes em toda a Europa", disse Echegoyen.
E soou mais do que um alarme.
As réplicas do terremoto agitaram o pensamento da época.
A Igreja e seus seguidores procuravam culpados pela tragédia.
"Depois do terremoto que destruiu três quartos de Lisboa, o meio mais eficaz
que os sábios do país inventaram para evitar uma ruína total foi a celebração
de um soberbo auto de fé [ritual de penitência pública], tendo a Universidade
de Coimbra decidido que o espetáculo de algumas pessoas sendo queimadas
em fogo lento com toda a solenidade é um segredo infalível para evitar
tremores de terra ", escreveria Voltaire em seu polêmico conto filosófico
Cândido (1759).
Enquanto a Inquisição cuidava de seus negócios, as grandes mentes da época,
muitas das quais estavam começando a ver o mundo de uma nova maneira e
que agora associamos ao Iluminismo, intensificaram suas reflexões.
Immanuel Kant publicou três textos separados sobre o desastre, tornando-se
um dos primeiros pensadores a tentar explicar os terremotos por causas
naturais, e não sobrenaturais.
E Voltaire e Jean-Jacques Rousseau tiveram uma famosa troca de ideias.
A catástrofe havia desafiado o otimismo do Iluminismo articulado pelo polímata
alemão Gottfried Leibniz e pelo poeta inglês Alexander Pope.
Eles propuseram resolveram o problema histórico sobre o que é o mal
afirmando que a bondade de Deus havia assegurado toda a Criação e, dessa
forma, qualquer aparência do mal era apenas isso: uma aparência, o produto
da incapacidade dos humanos de compreender sua função dentro do todo.
"A filosofia predominante era que vivíamos no melhor de todos os mundos
possíveis, que mesmo nesses desastres havia providência divina. Deus estava
elaborando algum plano e não cabia a nós questionar", explicou Paice.
"Voltaire já criticava a interpretação teológica da natureza, e muitas de suas
obras ironizavam a ideia de que Deus de alguma forma governava todos os
assuntos humanos", disse o historiador André Canhoto Costa à BBC Reel.
Poucas semanas depois do terremoto, Voltaire, no seu "Poema sobre o
Desastre de Lisboa" desferiu o primeiro ataque naquele que viria a ser um dos
maiores debates filosóficos da história.
Segundo Paice, o filósofo questionou um Deus que podia ver algo bom em um
evento "tão horrível como o que aconteceu".
"Você diria vendo aquela multidão de vítimas?: 'Deus se vingou; a morte deles
é o preço pelos seus crimes'.
Que crime, que falha cometeram aquelas crianças, esmagadas e
ensanguentadas no ventre da mãe?
Terá Lisboa, que já não existe, mais vícios do que Londres, do que Paris,
afundadas nas delícias?
Lisboa está em pedaços e dança-se em Paris"
Linhas do Poema sobre o Desastre de Lisboa de Voltaire.
Justificar sofrimento
O terremoto que destruiu Lisboa abalou mais do que o chão para Voltaire:
minou o esforço de justificar o sofrimento com referência a algum bem maior,
abrindo a possibilidade de que algum sofrimento imerecido pudesse ser
atribuído a Deus.
Rousseau rejeitou a ideia e respondeu com uma longa carta em que
argumentava, entre outras coisas, que a fonte do sofrimento do povo lisboeta
não era Deus, mas suas próprias ações: a forma como construíram a cidade e
as motivações sociais dos moradores.
Ele argumentou que uma ocorrência terrestre, moralmente neutra, era
vivenciada como um desastre, devido à suscetibilidade autocriada que o modo
de habitar aquele lugar produzia.
"A natureza não construiu ali 20 mil casas de seis a sete andares, (...) se os
habitantes desta grande cidade vivessem mais dispersos, com maior igualdade
e modéstia, os danos causados pelo terremoto teriam sido menores ou talvez
inexistentes", escreveu Rousseau.
Ele ainda argumenta que mesmo depois do perigo revelado pelo tremor inicial,
as pessoas se recusaram a tomar as medidas necessárias.
"Quantos infelizes pereceram porque um queria resgatar suas roupas, outros
seus papéis, outros seu dinheiro?", perguntou Rousseau, insinuando que isso
refletia seus valores, mostrando que preferiam manter sua posição social a
suas vidas.
E assim, à medida que o debate avançava, a ciência emergia como uma
maneira melhor de explicar o mundo e a maneira como ele funcionava.
"A reforma protestante já tinha ocorrido, mas de alguma forma manteve
intacta a linha entre o homem e a natureza. O terremoto contribuiu para um
corte mais violento", destacou Costa.
"O terremoto de Lisboa desencadeou toda uma série de eventos, como quando
você joga uma pedra em um lago e as ondulações ficam mais amplas e fortes
e afetam tudo ao seu redor", disse Echegoyen.
"A era do pensamento livre, de questionar o poder onipotente da Igreja e dos
reis já estava tomando forma, mas acredito que nesse dia a humanidade
começou a despertar e que nessa data realmente nasceu a era moderna."

Uma nova ciência


"Agora o evento é considerado um marco importante nos campos científico e
filosófico", disse Paice.
"Foi o terremoto mais pesquisado da história. Temos um enorme banco de
relatos em primeira mão do evento e a partir deles os cientistas começaram a
analisar o que havia acontecido sem mencionar Deus."
"Pode-se dizer que 1° de novembro de 1755 é a data de nascimento da
sismologia, que hoje é estudada com base nesse acontecimento", disse Maria
João Marques, do Centro do Terremoto de Lisboa, à BBC Reel.
E é ao Marquês de Pombal que muitos atribuem o nascimento desta nova
escola de Ciências.
Ele era o braço-direito do rei e foi encarregado da reconstrução da cidade
de Lisboa.
"Ele enviou questionários para cada paróquia para perguntar coisas como: por
quanto tempo a terra tremeu? Quão forte? Que danos causou? Quantas
pessoas morreram? Você notou algum sinal estranho antes do terremoto?",
disse Echegoyen.
"Com sua equipe, eles coletaram e analisaram as respostas, compilando uma
espécie de livreto de todas as partidas em todos os lugares, até que começou
a surgir um padrão que se tornou a base da ciência sismológica como a
conhecemos hoje."
A reconstrução de Lisboa foi impulsionada pela ciência.
Tentando minimizar as mortes em catástrofes futuras, apoiando os esforços de
retirada de pessoas e combate a incêndios, o Marquês de Pombal fez com que
as ruas estreitas e sinuosas fossem substituídas por avenidas largas, e que os
espaços fossem amplos e ventilados.
Além disso, métodos inovadores de engenharia foram utilizados, com
estruturas flexíveis de madeira nas paredes dos prédios para que elas
"tremessem, mas não caíssem " .
Para testar esta e outras medidas contra terremotos, tropas marchavam ao
redor de prédios para simular tremores, levando ao nascimento da engenharia
sísmica.

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