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CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER

A PROPOSTA TRANSFORMACIONISTA DE RICHARD NIEBUHR E A


TEOLOGIA DOS DOIS REINOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA

MARCOS VINÍCIUS DE SOUZA

SÃO PAULO

2019
MARCOS VINÍCIUS DE SOUZA

A PROPOSTA TRANSFORMACIONISTA DE RICHARD NIEBUHR E A


TEOLOGIA DOS DOIS REINOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA

Monografia apresentada ao Centro de Pós-


Graduação Andrew Jumper como requisito parcial
à obtenção do MDIV em Teologia Filosófica.

Orientador: Prof. Dr. Filipe Costa Fontes

SÃO PAULO

2019
MARCOS VINÍCIUS DE SOUZA

A PROPOSTA TRANSFORMACIONISTA DE RICHARD NIEBUHR E A


TEOLOGIA DOS DOIS REINOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA

Monografia apresentada ao Centro de Pós-


Graduação Andrew Jumper como requisito
parcial à obtenção do MDIV em Teologia
Filosófica.

Aprovada em

_________________________________________________________
Prof. Dr. Filipe Costa Fontes
Orientador
À santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo; à Igreja
Presbiteriana do Brasil em Ji-Paraná/RO e ao Presbitério Vale do
Rio Machado, representados pelo Rev. Alberto de Souza Junior;
ao Seminário Presbiteriano Brasil Central – Extensão Rondônia,
na pessoa do Rev. Dr. Evanderson Cunha; à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, representada pelo Rev. Dr. Christian
Brially Tavares de Medeiros; ao Centro Presbiteriano de Pós-
Graduação Andrew Jumper, por meio do Rev. Dr. Filipe Costa
Fontes; ao prezado irmão e conselheiro “germano brasileiro”, Dr.
Gui Braun Jr; ao generoso Rev. Dr. David VanDrunen; aos
familiares que estão em Belo Horizonte/MG e em Ji-Paraná/RO;
à minha amada esposa Larissa e às minhas lindas filhas Ester e
Beatriz; agradeço de coração e dedico este trabalho.
“Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras
não passarão.” – Mateus 24.35

“Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o


reino de Deus está dentro de vós.” – Lucas 17.21
RESUMO

A Igreja, de modo geral, parece concordar que os cristãos devam, em alguma medida, se
envolver com a cultura e com a sociedade. Contudo, algumas igrejas parecem ir a direções
completamente diferentes umas das outras. Provavelmente porque algumas delas, talvez
a maioria, foram influenciadas pelo paradigma transformacionista apresentada por
Richard Niebuhr em sua principal obra, “Cristo e Cultura”. Por outro lado, a Teologia dos
Dois Reinos, especialmente em David VanDrunen, traz uma proposta diferente. Ela preza
para que a Igreja cuide das coisas eternas e espirituais, enquanto todos os cidadãos cuidem
da cultura e de suas derivações. Portanto, o objeto desse trabalho é compararmos esses
dois modelos que propõem relação entre o cristianismo e a cultura. Acreditamos que a
Teologia dos Dois Reinos, embora antiga, porém, pouco conhecida no Brasil, traga
importantes considerações para a Igreja nacional em seu engajamento cultural, e porque
não espiritual, para os cristãos brasileiros carentes de boa prática ministerial e, antes, de
boa teologia; ainda que a teologia reformada venha ganhando espaço em corações
sinceros.

Palavras-chave: teologia, cultura, história, ética, transformação, Igreja.


ABSTRACT
The Church, in general, seems to agree that Christians should, to some extent, engage
with culture and society. However, some churches seem to go in completely different
directions from each other. Probably because some, perhaps most, were influenced by the
transformationist paradigm presented by Richard Niebuhr in his main work “Christ and
Culture”. On the other hand, the Two Kingdoms Theology, especially in David
VanDrunen, brings a different proposal. It values the church to take care of eternal and
spiritual things, while all citizens take care of the culture and its derivations. Therefore,
the object of this paper is to compare these two relationship models of Christianity with
Culture. We believe that the Two Kingdoms Theology, although ancient, but little known
in Brazil, bring important considerations of the national church in its cultural, and why
not spiritual, engagement for Brazilian Christians lacking good ministerial practice and,
rather, good theology. Yet Reformed theology has been gaining ground in sincere hearts.

Keywords: theology, culture, history, ethics, transformation, church.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1. A PROPOSTA TRANSFORMACIONISTA DE NIEBUHR ................................... 11
1.1. Cristo contra a cultura (CCC): ....................................................................... 14
1.2. Cristo da cultura (CDC): ............................................................................... 15
1.3. Cristo acima da cultura (CAC): ..................................................................... 15
1.4. Cristo e cultura em paradoxo (CCP): ............................................................. 16
1.5. Cristo, o transformador da cultura (CTC): ..................................................... 17
2. A PROPOSTA DA TEOLOGIA DOS DOIS REINOS DE VANDRUNEN ......... 19
3. COMPARANDO CRISTIANISMO E CULTURA NA PROPOSTA
TRANSFORMACIONISTA E NA TEOLOGIA DOS DOIS REINOS ....................... 26
3.1. Algumas críticas à “Cristo e Cultura” e à proposta de R. Niebuhr ................. 26
3.1.1. Cristo x Cultura (CCC) .......................................................................... 28
3.1.2. Cristo dentro da cultura, cristandade? (CDC) ......................................... 29
3.1.3. Cristo acima da cultura (CAC) ou do tipo sintetizador ........................... 29
3.1.4. Cristo e cultura em paradoxo (CCP) ou CAC do tipo dualista ................ 29
3.1.5. Cristo, o transformador da cultura (CTC) ou CAC do tipo conversionista /
transformacionista................................................................................................ 30
3.2. Críticas à Teologia dos Dois Reinos .............................................................. 37
3.3. Transformacionismo x Teologia dos Dois Reinos.......................................... 42
3.4. A Reforma como exemplo ............................................................................ 48
3.4.1. Reforma, governo e Estado .................................................................... 49
3.4.2. A Reforma e o governo da Igreja ........................................................... 51
3.5. Um exemplo exegético: Isaías 13.6-13 .......................................................... 58
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 73
9

INTRODUÇÃO

No Brasil, a relação entre cristianismo e cultura tem sido pensada a partir da


proposta de Richard Niebuhr, conhecida como transformacionismo.1 Essa, no entanto,
não é a única proposta e nem subsiste à parte de críticas. Nos últimos anos tem surgido
uma proposta diferente, conhecida como Teologia dos Dois Reinos; e cremos que
considerá-la pode ser importante para um engajamento cultural mais apropriado. Esse é
o objetivo deste trabalho. O seu enfoque é descritivo, comparativo e crítico, visando
avaliar e relacionar essas duas propostas que acabamos de mencionar.
Inicialmente, faremos uma breve exposição dos pensamentos de Niebuhr em sua
obra clássica “Cristo e Cultura” e também da Teologia dos Dois Reinos, tal qual
apresentada em algumas obras de David VanDrunen. Esta segunda poderá ser mais
extensa, visto que ela é ainda desconhecida no cenário teológico brasileiro. Ao final,
pretendemos relacionar essas duas propostas. Todavia, tendo em vista que ambas têm sido
alvos de críticas, não poderemos deixar de analisar as duas principais: a crítica do Dr. D.
A. Carson ao transformacionismo de Niebuhr, e a do Dr. John Frame à Teologia dos Dois
Reinos.
Nossa principal hipótese é a de que a Teologia dos Dois Reinos pode oferecer uma
contribuição importante para o debate teológico brasileiro em torno da questão do
engajamento cultural. Na tentativa de verificá-la, discutiremos questões como: 1) É a
proposta transformacionista de Niebuhr em “Cristo e Cultura” suficiente como paradigma
de engajamento cultural? 2) A Teologia dos Dois Reinos, apresentada por VanDrunen
contraria o engajamento cultural, tal qual incentivado pela tradição reformada? 3) A
escolha entre as propostas é mesmo necessária? 4) Sendo necessária, qual é a melhor entre

1
Categoria não criticada e tacitamente indicada por Richard Niebuhr como a mais adequada para a relação
cultural do cristão com a sociedade na obra “Cristo e Cultura”. Ele também a chama de conversionista. Tal
abordagem tem influenciado não só a evangelicais como a neocalvinistas hodiernos. “Um paradigma
transformador domina largamente o pensamento social reformado contemporâneo. Essa versão do
transformismo, às vezes chamada de neocalvinismo, postula um motivo de redenção da queda da criação,
enfatizando que Deus criou todas as coisas, todas as coisas caíram em pecado, e agora Deus está redimindo
todas as coisas em Cristo. Um aspecto central dessa visão é que o reino de Deus se estendeu a todos os
aspectos da vida na criação original e que esse reino está sendo restaurado na época presente em cada um
desses aspectos, incluindo o trabalho do estado civil. Os cristãos, portanto, devem ver todas as suas
atividades como trabalho do reino e devem procurar transformar todas as áreas da vida de maneiras
coerentes com essa visão, antecipando a renovação final de todas as coisas no final de história.” In:
VANDRUNEN, David. The two kingdoms doctrine and the relationship of church and state in the early
reformed tradition. Journal of Church and State, Oxford, v. 49, n. 4, p. 743. 2007.
10

elas? Ao final, o que desejamos descobrir é se, e em que sentido, um modelo de


engajamento cultural poderia ser útil ao outro ou não.
Não nos aprofundaremos em outras questões que não sejam relacionadas à
descrição e relação entre o transformacionismo de Niebuhr e a Teologia dos Dois Reinos
de VanDrunen. Como pano de fundo, o que nos preocupa é o cenário brasileiro, e isso
certamente terá alguma influência sobre nosso trabalho. Temos a esperança de que essa
apresentação introdutória propicie desenvolvimentos em pesquisas de outros colegas
estudantes de teologia.
11

1. A PROPOSTA TRANSFORMACIONISTA DE NIEBUHR

Traduzido e publicado no Brasil em 1967, “Cristo e Cultura”2 de Richard Niebuhr3


tem sido, desde então, referência na discussão sobre o engajamento cultural do cristão no
pensamento teológico brasileiro. O livro foi publicado, originalmente, em 1951, segundo
o autor, a pedido do Seminário Teológico Presbiteriano de Austin, no Texas/EUA, onde
ele proferiu uma série de preleções sobre cultura, história e ética cristãs.
Niebuhr começa sua obra afirmando haver um problema constante, multiforme e
confuso entre o cristianismo e a civilização mais antiga, e entre o cristianismo e a
sociedade secularizada contemporânea. Embora Jesus tenha dito que seu “reino não é
deste mundo”4 (João 18.36), sabemos que os cristãos estão nesse mundo com um
propósito e que Cristo também o sabia quando anteriormente havia dito, orando: “Não
peço que os tires do mundo, mas que os livre do mal” (João 17.15). É fato que Jesus e a
cultura humana estão em alguma relação. A questão é: como se dá e como deveria
acontecer essa relação, segundo o pensamento de Richard Niebuhr?
Ele convoca o rabino Joseph Klausner 5 para demonstrar que essa relação não é
mais localizada, nacionalizada, judaica, mas transcendente6 e provoca: “dois mil anos da
cristandade não judaica tem provado que o povo judeu não errou”.7 A hostilidade com
Jesus, posto por inimigo de interesses culturais, se faz pelos cristãos serem considerados
alienados (p. 25), desinteressados por este mundo; confiantes na graça divina e não nas
realizações humanas (p. 27); serem taxados de intolerantes, por terem um Deus
exclusivista quanto à verdade; e por terem no perdão de Cristo incongruências com a

2
NIEBUHR, H. Richard. Cristo e a cultura. V. 3. Série encontro e diálogos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1967.
3
Helmut Richard Niebuhr nasceu em 03 de setembro de 1894, na cidade de Wright City, no Missouri
(EUA) e faleceu em 05 de julho de 1962, na cidade de Greenfield, no Estado de Massachusetts, no mesmo
país, aos 67 anos de idade. Era irmão do igualmente famoso teólogo Reinhold Niebuhr. Formou-se em
Elmhurst College, Universidade Washington em St. Louis e Universidade Yale e lecionou no Yale Divinity
School. Foi ordenado em 1916 na igreja Evangelical Synod of North America, de origem alemã, a qual se
fundiu com outras denominações formando a United Church of Christ. Tem por tradição a teologia dialética
da neo-ortodoxia americana e é considerado um dos maiores eticistas dos Estados Unidos do século
passado. É possível encontrar biografias mais completas de H. Richard Niebuhr em BOSCH, Joan.
Diccionario de teólogos/as contemporâneos. Burgos: Monte Carmelo, 2004, p. 706-709 ou em ELWELL,
Walter A. Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. V. 3. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 20-21.
4
Todos os versículos bíblicos citados nesta monografia são da versão Almeida Revista e Atualizada.
Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Com exceção dos versículos bíblicos citados na exegese a partir
da p. 58. Os versos ali são em sua maioria da versão King James.
5
KLAUSNER, Joseph. Jesus of Nazareth: his life, times and teaching. New York: Macmillan, 1921, p.
373-375. In: NIEBUHR, H. Richard. Cristo e cultura, 1967, p. 24.
6
Klausner disse que “Jesus ignorou tudo o que dizia respeito à civilização material. Neste sentido ele não
pertence à civilização”. Ibid.
7
Ibid., p. 391.
12

justiça dos homens (p. 30). Essas coisas, para os detratores da fé cristã, levariam os crentes
a uma falta de preocupação com a existência temporal e a unidade sociocultural. A
história do cristianismo, para Niebuhr, demonstra um conflito de autoridade entre Cristo
e a cultura (p. 31).
Consequentemente, o autor passa às definições. Ao conceituar a pessoa de Jesus
Cristo, Niebuhr aponta que para alguns Cristo foi apenas um mestre legislador, para
outros um Deus, ou outros um sacramentalista institucional. O autor considera que essas
definições demonstram parte de seus ofícios; contudo, Jesus “é a sua autoridade; e aquele
que executa estas várias modalidades de autoridade é um e o mesmo Cristo” (p. 34). O
escritor vê que a dificuldade para definir a essência de Jesus é a inabilidade conceitual de
fazê-lo pela sublimidade de sua pessoalidade, pois se trata de um objeto divino-humano
sem paralelo. E também pela dificuldade de defini-lo a partir de um ponto de vista
histórico-eclesiástico-cultural preso no tempo e no espaço de quem pretende fazê-lo, nós
aqui hoje, o sujeito humano.
Niebuhr passa a falar, então, dos conceitos éticos da pessoa de Cristo. Qual
aspecto poderia apresentá-lo melhor? Para Harnack e seu irmão Reinhold Niebuhr, esse
aspecto é o amor manifesto na paternidade divina para conosco e para o próximo, o outro
(p. 35); para Schweitzer, é a esperança escatológica e universal (p. 41); para Bultmann, a
obediência existencialista e radical (p. 44); para os protestantes, a fé; e para os monásticos,
a humildade (p. 46). No entanto, para Niebuhr, a melhor apresentação é delineá-lo pelo
conjunto ético, embora diga que “isto é apenas metade do significado de Cristo,
considerado moralmente” (p. 49). Interessante notar que o Dr. Niebuhr só citou teólogos
liberais, talvez com exceção de seu irmão.
Quanto à conceituação da cultura, para Niebuhr, ela é tida como o processo e o
resultado “total da atividade humana” no “ambiente artificial e secundário” em que “o
homem se sobrepõe ao natural” (p. 54). Ela é, assim, primeiramente, sempre uma
atividade social, pois “a vida social é sempre cultural. (...) cultura e existência social
caminham juntas”. Em segundo lugar, cultura “é realização humana” intervencionista na
natureza a partir de esforço e propósitos humanos (p. 55). Em terceiro lugar, é ético,
porque o “mundo da cultura é um mundo de valores” e como tal se destina a um propósito
mutável, a partir de cada sociedade particular, visando “a concretização material e
temporal dos valores”, embora não só materialista (p. 56-59). Finalmente, em quarto
lugar, precisamos levar em conta o pluralismo cultural “de todas as suas múltiplas
possibilidades” e conclui:
13

As culturas sempre estão procurando combinar paz com prosperidade,


justiça com ordem, liberdade com bem-estar, verdade com beleza,
verdade científica com bem moral, capacidade técnica com sabedoria
prática, santidade com vida, e tudo isto com o restante. Entre os muitos
valores, o Reino de Deus pode ser incluído – embora dificilmente –
como uma pérola de grande preço. Jesus Cristo e Deus, o Pai, o
evangelho, a Igreja, e a vida eterna podem encontrar lugares no
complexo cultural, mas somente como elementos no meio do grande
pluralismo.8

Visto por este prisma, o cristão também vive “sob a autoridade dela [a cultura],
quando vive sob a autoridade de Jesus Cristo”. Mas, como podemos nos relacionar ao
mesmo tempo com Deus e com a sociedade ao nosso redor? Ou, visto por outro ângulo,
a pergunta permanece: como Cristo pôde lidar com a cultura e como transmitiu a Igreja o
poder fazê-lo? Uma vez que, por exemplo, o apóstolo João em seu evangelho tanto diz
para nós nos afastarmos do mundo, não amarmos o mundo, como parece nos sugerir, por
inferência, a nos envolver com ele, uma vez que “Deus amou o mundo”? (1 João 2.15 e
João 3.16).
A fim de demonstrar como os cristãos lidaram com essa problemática, o Dr.
Niebuhr apresentou cinco relações intituladas: Cristo contra a cultura, Cristo da cultura,
Cristo em paradoxo com a cultura, Cristo acima da cultura e, finalmente, o que parece
recomendado pelo autor, Cristo que transforma a cultura – daí os seguidores desta
proposta ser denominados de transformacionistas.
Se traçarmos uma linha imaginária com as iniciais das propostas da relação cristã
com a cultura é possível que ela ficasse mais ou menos organizada assim, não na forma
que aparece no livro, mas na forma que parece estar arranjada dos extremos para o centro
(para o equilíbrio sugestivo), sendo as abreviações explicitadas a seguir:

| | | | |

CCC CCP CTC CAC CDC

A metodologia, ou o esquema usado, será a análise de cada tipologia (isto é, as

8
NIEBUHR, H. Richard. Cristo e cultura, 1967, p. 60, 61.
14

cinco categorias abreviadas acima), dando exemplos daqueles que a defendiam. Em


seguida, apresentaremos uma palavra-chave conceitual da propositura correspondente,
além de apontarmos um ponto positivo e um ponto negativo em cada uma delas, segundo
a proposta do autor.

1.1. Cristo contra a cultura (CCC):

De acordo com a leitura interpretativa de Niebuhr, seria a proposta defendida pelo


evangelista João em sua primeira carta; pelo pai da Igreja Tertuliano; pelos monasticistas,
pelos Quakers; por alguns grupos menonitas (provavelmente pensando nos Amish); por
Tolstói tardio; pelo Kierkegaard luterano; e, por inferência, pelos atuais pentecostais. A
palavra-chave aqui é oposição. Os adeptos desta proposta são desprendidos da matéria
física, dispostos a sofrer por Cristo, mas, geralmente, escapistas e alienados do mundo,
em razão, provavelmente, da fuga necessária do pecado que jaz no mundo maligno, como
visto nos movimentos monasticistas, pentecostais e sectários, isolacionistas. Talvez aqui,
Niebuhr apresentasse o mais inflexível aspecto da relação dos cristãos com a cultura que
“afirma a exclusiva autoridade de Cristo sobre a cultura e rejeita decididamente as
reivindicações da cultura à lealdade” (p. 67). A contrapartida da lealdade a Cristo e aos
irmãos é a rejeição da sociedade cultural. Para estes, uma linha clara separa “a
fraternidade dos filhos de Deus e do mundo” (p. 69-70). As pessoas que rejeitam o mundo
“não têm maneiras fáceis de professar a sua fidelidade a Cristo. Elas padecem problemas
físicos e sofrimentos mentais na sua vontade de abandonar casas, propriedades e proteção
do governo, comprometidos com a sua causa” (p. 88). Niebuhr acredita que esta posição
é inadequada, principalmente porque essa pretensa separação do mundo e da fé nunca
tenha sido de fato alcançada e entendemos que não seja mesmo este o propósito do
cristianismo. Além disso, parece haver a falsa noção de que se o pecado está na cultura e
o cristão escapa à cultura, ele pode estar assim evitando o pecado. Certamente este não é
o caso (p. 100). O que importa para Niebuhr, acertadamente, é que essa visão não
reconhece adequadamente o papel de Jesus e do Espírito Santo na criação. “A rejeição da
cultura é facilmente combinada com a desconfiança da natureza e de quem Deus é (...)
finalmente, eles estão tentados a dividir o mundo no domínio material governado por um
princípio oposto a Cristo e um reino espiritual governado pelo Deus espiritual” (p. 103).
15

1.2. Cristo da cultura (CDC):

É a proposta defendida pelo gnosticismo primitivo; pelos filósofos John Locke;


Immanuel Kant; e pelo teólogo Ritschl. Podemos encontrá-la no best seller de Charles
Sheldon, “Em seus passos que faria Jesus?”,9 influenciado pelo Evangelho Social;10 pelo
Conselho Mundial das Igrejas (CMI); pelo atual movimento dos “desigrejados” e pelo
movimento liberal. A palavra-chave que melhor conceitua essa categoria é acordo. São
claros expoentes da heterodoxia. Nessa proposta, Jesus é visto como “o Messias de sua
sociedade, o cumprimento de suas esperanças e aspirações, a perfeição da verdadeira fé,
fonte do seu espírito mais sagrado” (p. 83). Há um conformismo aí, nenhuma necessidade
de mudança na relação social entre cristãos e não cristãos. “Eles não sentem nenhuma
grande tensão entre a Igreja e o mundo, as leis sociais e o evangelho (...) a ética da
salvação e a ética da conservação ou progresso social.” É positivo o ponto de contato com
o descrente, da “harmonia da mensagem cristã com a moral e a filosofia religiosa de seus
melhores professores” (p. 103). Além disso, esse grupo de pessoas tende a se unir a muitas
posições na sociedade onde eles têm o potencial de ter um impacto profundo nas vidas
das pessoas. Contudo, é negativo que Cristo fique esvaziado de significado, sendo
somente um exemplo de bom cidadão. “Por um lado, eles interpretam a cultura através
de Cristo, onde os mais importantes aspectos de Jesus são mais honrados. Por outro lado,
eles interpretam Cristo através da cultura, selecionando a partir de seu ensino o que de
melhor harmoniza-se com o melhor em civilização” (p. 83).

1.3. Cristo acima da cultura (CAC):

É a proposta defendida por Clemente de Alexandria; Tomás de Aquino; o papa


Leão XIII; pelo movimento Católico Romano. Tem por palavra-chave a síntese ou a
harmonia. Segundo essa proposta, o propósito da Igreja é ser a guardiã moral da
sociedade, já que a cultura não é vista como essencialmente boa ou ruim, uma vez que
Deus a ordenou (Gênesis 1.26-18 – o que a teologia de Tradição Reformada denomina de

9
SHELDON, Charles. Em seus passos que faria Jesus? 2ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, 288 p.
10
Cujo maior divulgador foi o pastor batista Walter Rauschenbusch (1861-1918) que apresentava Jesus
“não como alguém que viria para salvar os pecadores de seus pecados, mas como alguém que tinha uma
‘paixão social’ pela sociedade”. In: BUNDY, Edgar C. Collectivism in the churches: a documented
account of the political activities of the federal, national, and world councils of churches. Wheaton: Church
League of America, 1957, p. 97.
16

Mandato Cultural); o que há de ruim na cultura é, portanto, coisa do homem pecador


contra um Deus santo (p. 117). Niebuhr observa que

(...) eles não podem separar as obras da cultura humana da graça de


Deus, pois todas essas obras somente são possíveis pela graça. Mas,
tampouco, podem separar a experiência da graça das atividades
culturais; pois como os homens podem amar o Deus invisível em
resposta ao seu amor sem servir o visível irmão na sociedade humana?11

De fato, é importante haver equilíbrio entre ver Cristo como parte da cultura
(devido à doutrina cristológica da encarnação) e ainda assim vê-lo fora da cultura (uma
vez que Deus é santo, embora provedor e sustentador da cultura). Considerando esta
posição, podemos levar a lei moral (natural) para a sociedade e o envolvimento cristão na
sociedade. Niebuhr explica que Deus criou o homem como um ser social e é impossível
para a sociedade funcionar sem a direção de Deus. A Igreja, portanto, enquanto opera
para um propósito espiritual também opera para um propósito terreno de ser zelosa dessa
lei divina em serviço às pessoas deste mundo (p. 136). Todavia, Cristo ficou
institucionalizado, reduzido à Igreja. Esta posição atrai a atenção da “esperança eterna e
objetivo do cristão” para uma “incorporação temporal” e uma “forma inventada pelo
homem” (p. 147). Além disso, “eles não (...) enfrentam a presente raiz do mal em toda a
obra humana” (p. 148).

1.4. Cristo e cultura em paradoxo (CCP):

Essa é a proposta que Niebuhr entende estar presente nos escritos de Paulo; Lutero
e na filosofia existencialista de Kierkegaard (não como cristão luterano, mais pendente,
como dito, para o Cristo contra a cultura). A palavra-chave aqui é tensão – a qual só será
resolvida no porvir escatológico. Esta visão é semelhante a um ponto do aspecto “Cristo
acima da cultura”, pois enquanto os adeptos desse entendimento querem manter
“fidelidade a Cristo e responsabilidade pela cultura” (p. 149), por outro lado, eles sabem
que esta cooperação não é harmoniosa e bela, mas hostil e conflituosa. Há pecado dos
homens e graça de Deus na cultura, há beleza e feiura neste mundo caído. Deste modo,
este espectro capta, de fato, a tensão retratada no Novo Testamento entre o cristão e a
cultura nesse mundo, uma vez que o homem está “sob a lei, mas que não está debaixo da
lei, mas da graça; ele é pecador, e ao mesmo tempo justo (…) recebedor da ira e

11
NIEBUHR, H. Richard. Cristo e cultura, 1967, p. 119.
17

misericórdia divina”. (p. 157). Contrariamente, Niebuhr diz que esta posição torna o
cristão estanque por apenas constatar que existe sim uma crise entre ele e o mundo, mas
ele não tem nada (ou pouco) de significativo a contribuir na e para a cultura. Essa leitura
passa a ser uma posição que o leva a aceitar a cultura do jeito que ela é como na posição
“Cristo da cultura”. Mesmo percebendo a ira e a misericórdia de Deus no mundo e por
ver ambos os atributos divinos, simultaneamente agindo no mundo, o crente corre o
perigo de não agir em favor de nenhum aspecto: nem sendo contrária à cultura do mundo,
nem a favor dela. Um pequeno comentário se faz necessário nesse ponto: parece-nos que
o enfoque ético-cultural dado pela Teologia dos Dois Reinos se aproxima mais com esta
categorização, “Cristo e cultura em paradoxo”, do que das outras quatro anteriores. Fica
evidente também que Niebuhr pode estar equivocado ao colocar o Evangelho de João,
Agostinho e Calvino, como representantes dos defensores de uma visão
transformacionista direta da cultura. É o que acredita o Dr. VanDrunen, o qual chega a
afirmar que, em parte, há comumente uma “(má) caracterização de Calvino como
‘transformador’ de cultura ao longo das linhas do estudo clássico de H. Richard Niebuhr,
Cristo e Cultura”.12

1.5. Cristo, o transformador da cultura (CTC):

Para Niebuhr, essa visão foi apresentada no Quarto Evangelho;13 em Agostinho e


em Calvino, sobretudo em Frederick Denison Maurice, “o mais consistente dos
conversionistas” (p. 224). Trata-se de um movimento conversionista, modificador,
transformador. A cultura é corrupta sim, como apontadas na primeira (CCC) e na quarta
(CCP) categorias, mas sem se reagir com isolamento, nem esperando por resolução trans-
histórica, termina por ser pretensiosamente redentora. Contudo, a pretensa transformação
histórica da cultura foi claramente vista na cristandade europeia medieval e moderna,
agora pós-cristã. Nas Américas e na Oceania o mesmo fenômeno, contemporaneamente,
pode estar acontecendo. Trata-se de uma percepção mais esperançosa para com a cultura
(p. 191), uma vez que o cristão considera Deus como criador, o qual, mesmo com o
advento do pecado, vê algo de valor nele e está disposto a uma cooperação de si com os

12
VANDRUNEN, David. The context of natural law: John Calvin’s doctrine of the two kingdoms. Journal
of Church and State, Oxford, v. 46, n. 3, p. 505. 2004.
13
Niebuhr não afirma categoricamente que este Evangelho tenha sido escrito pelo apóstolo João como
tradicionalmente se crê.
18

homens em eventos históricos da humanidade (p. 194). Desta forma, utilizando a cultura
humana, os transformacionistas acreditam que pode ser “transformada a vida humana
para a glória de Deus” e por meio da graça de Deus (p. 196). Na prática, isso significa
que os crentes podem e devem trabalhar para a redenção da cultura, para o cuidado
ecológico criacional, para a manutenção científica do planeta, para as reformas político-
sociais, para a celebração de “carnavais” cristãos; enfim, para a transformação do mundo.
19

2. A PROPOSTA DA TEOLOGIA DOS DOIS REINOS DE VANDRUNEN

A Teologia dos Dois Reinos14 atualmente é difundida por dois nomes principais:
um mais conhecido do público brasileiro, o Dr. Michael Horton;15 e outro bem menos
conhecido, o Dr. David VanDrunen.16 Inicialmente, é importante dizer que a Teologia
dos Dois Reinos considera que Deus é soberano sobre todas as coisas, tanto as do céu
como as da terra. Ela é contundente ao “afirma[r] fortemente a verdade bíblica de que
Deus governa todas as coisas em seu Filho”,17 porém de duas formas diferentes:

No coração da doutrina dos dois reinos está a convicção de que, embora


este mundo tenha caído em pecado, Deus continua a governar sobre
todas as coisas. No entanto, Deus governa o mundo de duas maneiras
diferentes. Ele é o único rei, mas estabeleceu dois reinos (ou dois
domínios) nos quais exerce seu governo de maneiras distintas. Deus
governa um reino, que Lutero frequentemente chamou o reino da ‘mão
esquerda’ de Deus e Calvino o reino ‘civil’, como seu criador e
sustentador, mas não como seu redentor. Este reino civil se refere a
assuntos temporais, terrestres e provisórios, e não a questões de
importância última e espiritual. Para Calvino (Lutero colocou de forma
ligeiramente diferente), o reino civil incluía questões de política, direito
e vida cultural em geral. Os propósitos do reino civil não foram a
salvação e a vida eterna, mas uma existência relativamente justa,
pacífica e ordeira no mundo atual, na qual os cristãos vivem como

14
Curiosamente, na língua inglesa, a abreviatura para tal teologia é apenas 2K ou R2K (Radical Two
Kingdoms) – esse último de tom pejorativo.
15
Obras do Dr. Michael Horton traduzidas em português: Um caminho melhor; Cristianismo sem Cristo;
Doutrinas da fé cristã; O Deus da promessa; O cristão e a cultura; A grande comissão; A Lei da perfeita
liberdade; As doutrinas da maravilhosa graça; Cristo o Senhor; Cristianismo essencial: encontrando-se na
história de Deus; Calvino e a vida cristã; A vida segundo o evangelho (pela Editora Cultura Cristã);
Simplesmente crente: por uma vida cristã comum; e, Bom demais para ser verdade (pela Editora Fiel); A
favor do Calvinismo (Editora Reflexão); e, Evangélicos x Católicos e os obstáculos à unidade;
Redescobrindo o Espírito Santo: a presença santificadora de Deus na criação, na redenção e na vida
cotidiana (Editora Vida Nova). O Dr. Horton já esteve várias vezes no Brasil, incluindo 2010, 2013, 2015,
2016 e 2017, geralmente a convite como palestrante em congressos.
16
David M. VanDrunen nasceu em 21 de dezembro de 1971, em Chicago, e está com atuais 47 anos de
idade. Ele é professor de Teologia Sistemática e Ética Cristã no Westminster Seminary California.
VanDrunen recebeu o Prêmio Novak do Instituto Acton, em 2004, um prêmio dado anualmente “a um
jovem estudioso notável que demonstra a conexão da teologia à dignidade humana, a importância do Estado
de Direito, o governo limitado, liberdade religiosa e liberdade econômica.” Fez bacharel em Artes no Calvin
College, mestrado em divindade no Westminster Seminary na Califórnia, um mestrado em teologia pela
Trinity Evangelical Divinity School, Juris Doctor da Northwestern University, e doutor em filosofia pela
Loyola University em Chicago. Seu trabalho atual enfoca a teologia política, a lei natural na teologia
reformada e a Teologia dos Dois Reinos. Ele é ministro ordenado na Igreja Presbiteriana Ortodoxa e
advogado licenciado no Estado de Illinois. Começou a lecionar no Westminster Seminary Califórnia em
2001. Anteriormente foi pastor da Grace Orthodox Presbyterian Church, na cidade de Hanover Park, em
Illionois, e atualmente atua no Comitê de Educação Cristã da Igreja Presbiteriana Ortodoxa e do subcomitê
de treinamento ministerial. Atualmente pesquisa e escreve na intersecção de teologia sistemática, estudos
bíblicos, ética e teoria jurídica e política. Disponível em: https://www.wscal.edu/academics/faculty/david-
VanDrunen. Acesso em: 01 jul. 2018.
17
VANDRUNEN. David. The two kingdoms and reformed christianity. Pro Rege, Sioux Center, v. 40, n.
3, p. 32. Mar. 2012.
20

peregrinos, longe de sua pátria celestial. O outro reino, que Lutero


denominou o reino da ‘mão direita’ de Deus e Calvino o reino
‘espiritual’, também é governado por Deus, mas ele o governa não
apenas como criador e mantenedor, mas também como seu redentor em
Cristo. Este reino pertence a coisas que são de importância última e
espiritual, as coisas do reino celestial e escatológico de Cristo. Na
medida em que esse reino espiritual tem existência terrena, Calvino
acreditava que deveria ser encontrado na igreja e não no estado ou em
outras instituições temporais. Neste reino, o evangelho da salvação é
pregado e as almas dos crentes são nutridas para a vida eterna. Apesar
de existirem necessariamente juntos e terem alguma interação mútua
neste mundo, esses dois reinos desfrutam de uma grande medida de
independência para que cada um possa buscar o trabalho único a ele
confiado.18

Portanto, segundo a Teologia dos Dois Reinos, as pessoas vivem em um reino


“comum” que consiste de toda a raça humana, estabelecida por Deus desde sua aliança
com Noé, por se tratar de um pacto de preservação com a criação, mas não com a salvação
de indivíduos. Algumas dessas pessoas também vivem em um reino “redentor”, fazendo
parte do povo escolhido de Deus, um reino que foi formalmente estabelecido por Deus
desde sua aliança com Abraão, por se tratar de um pacto de salvação de indivíduos, mas
não de preservação com a criação, pois este já estava estabelecido no pacto noético.
Percebamos, por conseguinte, que a Teologia dos Dois Reinos é formulada a partir das
lentes da Teologia Aliancista ou Teologia do Pacto19 (por vezes chamada de Teologia
Federal); portanto, tratando-se de uma Teologia Reformada.

18
VANDRUNEN, David. A biblical case for natural law: christian social thoughts series. [Kindle].
Acton/Smashwords. Posição 382-397 (padrão).
19
“O modo como entendemos toda a história da salvação estrutura-se no pacto de Deus conosco. Segue
abaixo um resumo da Teologia do Pacto: 1) A teologia do pacto estrutura a totalidade da revelação bíblica.
De Gênesis a Apocalipse há uma unidade pactual. Por isso, cremos que há uma unidade contínua em toda
a Escritura e que a Igreja é a soma dos eleitos do Antigo e Novo Testamento, tendo apenas uma aliança,
reino e um modo de salvação. 2) A teologia reformada clássica ensina três pactos: o pacto de redenção, o
pacto da graça e pacto das obras. Eles são desdobramentos da mesma obra de Deus no decreto, criação,
providência, redenção e consumação. 3) O pacto da redenção é o eterno decreto da Trindade em que tudo
foi decidido antes da criação do mundo. 4) O pacto das obras é a perfeita lei de Deus imposta ao homem
para uma obediente resposta aos mandatos espiritual, cultural e social. Esta lei que originalmente foi
declarada antes da Queda e escrita no coração do homem, ela é posteriormente registrada em tábuas de
pedra. 5) Na história da salvação o pacto da redenção significa obras para Cristo e graça para nós. O Filho
deveria obedecer satisfatoriamente a todas as exigências da lei de Deus. 6) Cristo cumpriu as obrigações
legais do pacto da redenção em sua obediência ativa e passiva como o representante dos eleitos. Ele pode
conceder redenção ao seu povo escolhido. 7) O pacto da graça é a administração progressiva da
lei/evangelho na história da redenção do Antigo e Novo Testamento. Deus redime revelando graça aos
eleitos, que pela fé, recebem do Mediador as promessas do pacto da graça. Assim, toda a comunidade do
pacto será, em Cristo, redimida para a sua glória. O pacto é um vínculo de amor do Pai, merecido pelo Filho
e concedido pelo Espírito Santo aos seus eleitos. 8) Jesus Cristo é o mediador do pacto. Nele recebemos
aceitação e perdão do Pai, a nossa condenação é satisfeita, e a sua justiça é imputada em nosso favor nos
adotando como filhos de Deus. A salvação é um vínculo pactual entre os eleitos, pela mediação de Cristo,
com o Pai. 9) Deus tem apenas um povo. Israel e a Igreja formam uma única comunidade pactual, universal
e local, no decorrer da antiga e nova aliança confessando o senhorio de Jesus Cristo. 10) Todos os cristãos
21

Nesse sentido, VanDrunen considera que a doutrina dos dois reinos é a mais
comum e a mais antiga dada entre os reformadores. Lutero a ilustrava como sendo as
mãos do Reino de Deus, a mão esquerda (a comum, coram mundo) e a direita (a redentiva,
coram Deo). Calvino as chamava simplesmente de reino civil e reino espiritual. Ambos
reverberavam o ensino do apóstolo Paulo, que, segundo o autor, nunca entendeu que o
mundo presente tivesse existência eterna.
Partindo da gênese, origem e ordem da criação, especialmente quanto ao mandato
cultural dado a Adão, ou seja, de se ter a imagem e semelhança de Deus, a imago Dei,20
e ter de trabalhar, fecundar, multiplicar, ter domínio e sujeição à criação, VanDrunen
entende que todas essas funções ainda vigoram na presente era; contudo, como dito, essas
tarefas não terão valor eterno, mesmo estando relacionadas às obras dos crentes neste
mundo. Para ele, pela obediência de Jesus Cristo, todas as obras e funções dadas a Adão
foram cumpridas, inclusive aquelas relacionadas ao mandato cultural. Assim, “o chamado
‘mandato cultural’ de Gênesis 1.26, 28 não foi uma tarefa de duração infinita. A raça
humana deveria completar sua tarefa neste mundo e depois [entrar] triunfantemente no
mundo vindouro”.21
O entendimento dos adeptos da Teologia dos Dois Reinos, de modo geral, é que
em Gênesis 3.14-19 Deus coloca uma antítese entre a descendência da mulher e a

são ordenados a unirem-se, a fim de formar parte de uma verdadeira comunidade pactual governada por
Cristo. Entretanto, o senhorio de Jesus sobre a Igreja ocorre pelo ministério do Espírito Santo e pela
Escritura Sagrada. Deus instituiu oficiais extraordinários e ordinários para governar de sua Igreja. Os
oficiais extraordinários como os reis, profetas e sacerdotes no Antigo Testamento, bem como os apóstolos
e profetas do Novo Testamento foram transitórios. No novo pacto os oficiais permanentes são os presbíteros
e diáconos. 11) Na antiga aliança os sinais sacramentais eram a circuncisão e páscoa que na nova aliança
foram substituídos pelo batismo e ceia do Senhor. Os sinais de uma verdadeira comunidade pactual que
confessa a Cristo são a fiel pregação do Evangelho (o pacto da graça), a correta administração dos sinais e
selos pactuais (os sacramentos: batismo e a ceia do Senhor) e a zelosa aplicação da disciplina. O batismo
infantil somente é compreendido estruturalmente a partir da doutrina do pacto. 12) A revelação é
progressiva no decorrer de toda a história da salvação alcançando a sua plenitude ao completar o
fundamento apostólico. Ao completar o registro da revelação com o fechamento do cânon, os antigos modos
cessaram, e não há mais comunicação de novas revelações, o retorno das antigas modalidades revelacionais,
nem o ressurgimento dos agentes revelacionais. Somente a Escritura Sagrada é a Palavra de Deus na plena
transição da nova aliança. 13) Uma vida cristã integral não pode ser vivida saudavelmente fora de uma
verdadeira comunidade pactual que confesse o senhorio de Cristo. A teologia do pacto é tão essencial à
teologia reformada que modificar a teologia do pacto é distorcer a substância da teologia reformada. Todo
o nosso relacionamento com Deus somente é possível porque Cristo perfeitamente cumpriu
satisfatoriamente todo o pacto. Este pacto que foi estabelecido entre o Pai e o Filho, na eternidade e,
realizado na história. Consumada a sua obra o Senhor Jesus nos recebe como seus pelo pacto da graça, e
por ter cumprido o pacto das obras Ele nos torna misericordiosamente aceitáveis diante do Pai, concedendo-
nos todos os benefícios de seus méritos.” In: TOKASHIKI, Ewerton. Firme fundamento. Apostila da
Primeira Igreja Presbiteriana do Brasil em Porto Velho/RO. Porto Velho, 2016, p. 24-26.
20
Imagem de Deus.
21
VANDRUNEN, David. Living in God's two kingdoms: a biblical vision for christianity and culture.
Wheaton: Crossway, 2010, p. 40.
22

descendência da serpente. Desse modo, como não há campo epistemológico neutro entre
crentes e incrédulos, também não há campo ontológico neutro entre eles. Mesmo ambos
sendo possuidores da imagem de Deus e da lei natural ético-moral dele-em-nós, ambos
são completamente distintos de Deus na redenção dada por Jesus Cristo. Cada qual
pertencendo a um Mestre diferente.
Negativamente, todos terão desventuras nessa vida: todas as mulheres terão dores
de partos, todos os homens terão de trabalhar duro para se sustentar, todos os seres
humanos são “pó e ao pó retornarão”. Mas, positivamente, todos os seres humanos
possuem a graça e a alegria de terem filhos nascidos de si, de produzirem por meio do
trabalho, e de verem a continuidade da vida até a segunda vinda de Cristo. São culturas
comuns, mas terão um fim.
A doutrina dos dois reinos compreende ainda que a partir de Genesis 4, com a
história de Caim e Abel, a antítese espiritual começa a clarificar. Enquanto Caim vem da
descendência maligna (Hebreus 11.4; 1 João 3.12; Judas 11), Abel vem da descendência
bendita. Caim assassina Abel. Deus traz juízo para Caim, mas não o deixa ser injustiçado
pelos homens por meio de sua marca nele. A justiça deverá acontecer, crimes deverão ser
punidos. Assim, justiça e ordem nesse mundo fazem parte do senso comum de Deus para
com todos os homens. A vida e qualquer produção cultural humana deverão ser justas a
todos, segundo a ordenança de Deus.
Além disso, agricultura, música e metalurgia (Gênesis 4.20-22) também foram
dadas aos homens, curiosamente, não pela descendência de Abel e Sete, mas de Caim.
Crentes e incrédulos, consequentemente, participam das atividades socioculturais da
humanidade. Portanto, “a vida cultural comum existirá ao lado da antítese espiritual”.
A implicação prática disso é que Cristandade, ou qualquer tipo de exclusividade
cultural cristã, não tem sentido bíblico22 para os seguidores da teologia dos dois reinos,
pois:

A natureza da igreja é espiritual e sua autoridade é ministerial, portanto,


não deve assumir tarefas culturais que a Escritura não tenha confiado a

22
“Ao abandonar o legado reformado dos Dois Reinos, os neocalvinistas contemporâneos, principais alvos
do trabalho de VanDrunen e os atuais formadores do evangelicalismo têm lutado para fornecer um modelo
consistente da relação entre cristianismo e cultura. VanDrunen afirma que eles estão inconscientemente
tentando restabelecer a cristandade, enquanto sua narrativa mostra que ‘o fim da cristandade pode ser
celebrado em vez de lamentado’.” Cf. VANDRUNEN, David. Natural law and the two kingdoms: A study
in the development of Reformed social thought. Grand Rapids: Eerdmans, 2010, p. 13. In: CROUSE,
Robert. Two kingdoms and two cities: mapping theological traditions of church, culture, and civil order.
[Tese de doutorado]. Wheaton. Jan. 2016, p. 181.
23

ela. Só porque os cristãos deveriam estar fazendo certas coisas não


significa que a própria igreja deveria fazê-las.23

A partir dessa compreensão, a proposta desta teologia é a de que os cristãos são


chamados a estarem no mundo sem ser do mundo. Este reino civil, comum, se refere a
assuntos temporais, terrestres, provisórios, ordinários, e é aqui que se encontra a cultura,
e não em questões de importância última e espiritual. Como sujeitos do reino comum, os
cristãos podem realizar muitas atividades culturais juntos com os incrédulos, desde que
não vá de encontro aos valores do reino redentivo. Como sujeitos do reino redentivo, os
cristãos se distinguem dos incrédulos se reunindo em comunidades de adoração, a Igreja.
A Igreja neotestamentária de Cristo, do Pentecostes à Consumação, é vista como
análoga ao período de Israel no exílio da Babilônia.24 Ela é peregrina e estrangeira nesse
mundo (1 Pedro 2.11). Uma vez que a Igreja está identificada com o reino redentivo ela
não deve ter função redentiva em relação ao reino comum (cultura e governo deste
mundo), mas deve permanecer dentro de sua própria esfera de autoridade.
Ademais, “de um modo geral, os crentes não buscam uma maneira cristã
objetivamente única de procurar atividades culturais”.25 VanDrunen sugere um exercício
imaginativo de como seria uma música objetiva e exclusivamente cristã, por exemplo.
Uma literatura, ou um filme. Os defensores da teologia dos dois reinos questionam se
existe mesmo um ritmo exclusivamente cristão. Existe escrita exclusivamente cristã?
Existe filmagem exclusivamente cristã? Falam de plantações, de moradias, de culinária,
de roupas etc. – e continuam – roupas? Para eles não existe exclusivamente um tipo de
roupa que cristão deva ou não usar, embora haja maneira mais adequada ética e
moralmente de um crente ou uma crente se portar, com “ordem e decência”. Mas isso é
um valor, não um objeto físico moral em si. Uma saia pode ser longa, mas pode ser justa
demais. Os critérios ficam inadequados se se passarem a ser cobrados por formas
objetivas de se vestir, dado o exemplo.
Por falar em ética, é popular a crença de uma escala de valores de um cristão
brasileiro que se dê na ordem da seguinte forma: Deus, família, trabalho e Igreja,26 lazer

23
VANDRUNEN, Living in God's two kingdoms, p. 159.
24
“Somos um povo no exílio. Somos um povo que vive com Adão a leste do Éden. Nós não vivemos um
reino davídico. A lei mosaica não é nossa constituição. Nós, como os israelitas, vivemos na Babilônia.” In:
VANDRUNEN, David. Biblical theology and the culture war. Kerux 11, May, p. 27–36, 1996, p. 29.
25
VANDRUNEN, Living in God's two kingdoms, p. 168.
26
SUBIRÁ, L. Ordenando nossa escala de valores. Disponível em:
http://www.orvalho.com/ministerio/estudos-biblicos/ordenando-nossa-escala-de-valores-por-luciano-
subira. Acesso em: 14 jul. 2019.
24

e o restante em ordem indefinida. No entanto, para a Teologia dos Dois Reinos, Deus e
Igreja estão nos primeiros lugares, pois é ali que está a única agência terrena do reino
redentivo que permanecerá na eternidade com Cristo, que traz comunhão e valores
corretos para as outras instituições (família, trabalho, lazer etc.,) e que confirma a razão
da existência dos santos “para o louvor de sua glória”.27
Assim, a espiritualidade e a autoridade ministerial da Igreja na Teologia dos Dois
Reinos não são “antifísica, antimaterial ou coisas desse tipo”.

[A igreja] é a comunidade visível que engaja a adoração pública, a


proclamação do evangelho em línguas conhecidas, batiza com água,
come pão e bebe vinho em lembrança de Cristo, segue procedimentos
disciplinares, faz ofertas, mostra hospitalidade, e da material assistência
aos pobres – e aguarda a ressurreição do corpo e de novos céus e nova
terra.28

Contrapondo, a família, o governo, a escola e os negócios são considerados


instituições naturais, mesmo os vendo a partir de suas origens na criação, perpassando
pela aliança noética, um pacto que Deus fez com todos indistintamente. Porém a Igreja é
sobrenatural e divina, estabelecida pelo Eterno.
Por fim, VanDrunen entende que a Escritura trata de nossos labores culturais
como coisas importantes e honráveis, mas que isso não significa dizer que eles durarão
ou terão importâncias infinitamente. “Paulo, os Evangelhos e o Apocalipse também
ensinam que nossas atividades e produtos culturais atuais chegarão a um fim radical no
dia do retorno de Cristo.”29
Exemplificando isso, para o professor do Seminário de Westminster, a criação que
geme, aguardando a revelação dos filhos de Deus (Romanos 8.22) anseia por algo maior
e melhor, “a glória”. Ela não busca por aperfeiçoamento na presente era, mas por
realização original, perdida no Éden, na era vindoura. Esse texto dá, no entanto, uma ideia
de continuidade dessa existência para a outra, o mundo do porvir. Não se trata de
aniquilação total, evidentemente, da presente ordem, porém, da transformação, por assim
dizer, como que no corpo pela ressurreição dos corpos celestiais. Para ele, os crentes são
a continuidade entre a criação e a nova criação, não a criação e a cultura em si e por si.
Asseverar como se nada nesse mundo fosse transformado ou retomado no mundo do

27
Efésios 1.6, 12, 14.
28
Ibid., p. 146.
29
VANDRUNEN, D. Living in God's two kingdoms, 2010, p. 67.
25

porvir é especulativo, na opinião do Dr. VanDrunen, mas também o é, por sua vez,
afiançar a respeito da necessidade de “redenção cultural” para aquilo que se findará nesse
mundo presente na forma que está.
26

3. COMPARANDO CRISTIANISMO E CULTURA NA PROPOSTA


TRANSFORMACIONISTA E NA TEOLOGIA DOS DOIS REINOS

Nos capítulos anteriores apresentamos duas propostas distintas de entendimento


da relação cristianismo x cultura. Essas duas propostas possuem benefícios e perigos que
já têm sido apontados por seus críticos.

3.1. Algumas críticas à “Cristo e Cultura” e à proposta de R. Niebuhr

A releitura crítica30 do Dr. Donald A. Carson31 à obra “Cristo e Cultura” de


Niebuhr começa por resumi-la como pragmática (p. 16). Já no prefácio, Carson dá quatro
motivos para ter escrito sua análise: primeiro, por entender que nas páginas do Novo
Testamento a Igreja transcende às categorias elaboradas por Niebuhr. Por exemplo, ela
via que mesmo sendo submissa às autoridades governamentais também via que ao menos
uma delas seria representante do anticristo. Portanto, não dá para dizer se a Igreja
neotestamentária nesse aspecto fosse meramente a favor ou contra a cultura. Segundo,
porque a contemporaneidade e a universalidade da Igreja não permitem categorias tão
simples. Sabemos que existem cristãos em Serra Leoa e em Nova Iorque lidando com
culturas de maneiras completamente diferentes uns dos outros. O próprio Niebuhr tentou
trazer um olhar histórico, mas estava claramente influenciado pela ótica cultural do
ocidente de meados do século XX, “imerso no protestantismo liberal da época”. Terceiro
e quarto, por motivação pessoal específica, uma ligada a um pequeno grupo de estudos
onde ministrava aulas, uma espécie de capelania da Trinity Evangelical Divinity School,
e outra por um convite feito pela Faculté Libre de Théologie Évangélique em Vaux-sur-
Seine, na França (p. 9-11). A despeito da motivação pessoal dessas duas últimas
propostas, ele sabe que a respeito desta matéria “é difícil, pelo menos no mundo

30
CARSON, Donald A. Cristo & Cultura: uma releitura. Vida Nova: São Paulo, 2012.
31
Donald Arthur Carson nasceu em 21 de dezembro de 1946, em Montreal, no Canadá. É um renomado
teólogo reformado batista e professor emérito de Novo Testamento no Trinity Evangelical Divinity School,
onde leciona desde 1978. D. A. Carson, como é mais conhecido, se graduou em química e matemática na
McGill University em Montreal de 1963 a 1967. Depois fez um mestrado em divindade do Seminário
Batista Central em Toronto. De 1970 a 1972 ele pastoreou a Richmond Baptist Church em Richmond,
British Columbia, onde foi ordenado em 1972. Os anos de 1972 a 1975 foram dedicados a estudos de
doutorado na Universidade de Cambridge. Foi pastor assistente e pastor titular itinerante no Canadá e no
Reino Unido. É um dos fundadores do The Gospel Coalition. Para saber mais com detalhes sobre a
bibliografia desse erudito consulte: KÖSTENBERGER, Andreas J. D. A. Carson. Disponível em:
https://web.archive.org/web/20090824133921/http://www.biblicalfoundations.org/pdf/Carson.pdf. Acesso
em: 21 jun. 2019.
27

anglófono, ignorá-la. Por bem ou por mal, a obra de Niebuhr deu forma a boa parte do
debate.”
Carson percebe que cultura pode ser conceituada como “o conjunto de valores
amplamente partilhado por algum subconjunto da população humana”. Depois cita
conceituações de Kroeber e Cluckhohn, além de Redfield e de Geertz, os quais acham
pertinentes, embora perceba a confusão moderna dada especialmente entre antropólogos
a respeito de cultura e metanarrativa.
Dada à definição do termo cultura, ele volta a analisar a obra de Niebuhr, partindo
da transição da Antiga para a Nova Aliança bíblicas, dizendo que cristãos precisavam
resolver a questão entre a Igreja e o Estado refletindo o entendimento deles entre o Reino
de Deus e o Império Romano, pois só assim poderiam lidar com a questão cultural. “Por
a Igreja ser uma comunidade internacional que afirmava seu compromisso de lealdade
acima de tudo com um reino que não era deste mundo, as questões que ela enfrentou ia
muito além da relação com o governo” (p. 15).
O autor sabe que embora a análise cultural de Niebuhr seja feita por bases bíblicas
comuns, é inevitável que esta análise não deixe de passar por seis fatores importantes: 1)
o pragmatismo da análise de Niebuhr num mundo anglo-saxão; 2) o autoritarismo de
variadas vozes dizendo qual deve ser o relacionamento entre Cristo e a cultura hoje; 3) o
multiculturalismo tecnológico e imigratório atual, sobretudo em megalópoles; 4) a
religiosidade moderna em seu pluralismo, sincretismo e multiplicidade; 5) o
confessionalismo cristão decadente; e 6) o secularismo. Não obstante o cristianismo ter
sido uma das forças de formação do Ocidente, a cultura de hoje não só está se afastando
do cristianismo como está sendo hostil a ele.
Carson volta suas atenções ao Dr. H. Richard Niebuhr como teólogo, relembrando
a estrutura que usou em seu livro “Cristo e Cultura” e as definições dos termos-base da
obra.
A respeito de Jesus, “Niebuhr deseja ser bem abrangente, aceitando como ‘Cristo’
os vários retratos de Jesus Cristo encontrados nas ramificações dominantes da
cristandade.” (p. 20), embora não incluísse nenhuma imagem de um Jesus ariano ou
mórmon; por outro lado, sabe que todo conhecimento humano é parcial e interpretativo,
além de ser finito e afetado pelos efeitos noéticos do pecado. Sobre o termo “cultura”, ele
a trata como sociológico – de vida humana na sociedade, de realização humana
teleológica e ética. Contudo, é grave a flutuação que o termo possui à medida que a obra
avança. Para algumas das cinco categorias, cultura não está associada com Cristo,
28

semelhantemente ao termo “mundo” no Novo Testamento. No entanto, se ela pode ser


transformada por Cristo, então ela passa a ser uma cultura associada a Cristo. Dessa
forma, os termos de Niebuhr, e até mesmo as categorias, lançam uma rede bastante ampla,
mas imprecisa muitas vezes, e a análise de Carson começa a reduzi-la e ajustá-la.
Compreendendo essa pluralidade interpretativa, Carson se volta para
terminologias que Niebuhr emprega e começa a pensar a partir das categorias
classificatórias deste com suas relevantes contribuições críticas:

3.1.1. Cristo x Cultura (CCC)

Carson nota que, para Niebuhr, Cristo e cultura “tem a ver com as reinvindicações
rivais de autoridade” (p. 22, 23). Na primeira Epístola de João, o mundo está contra os
cristãos perseguidos, mas estes devem amar as pessoas do mundo por quem Cristo
morreu; mesmo sofrendo, os crentes devem amar, até mesmo quem os faz sofrer.
Tertuliano é mais radical e chama os cristãos de “terceira raça” em sua relação com o
mundo, ou seja, não devem se envolver com nada efêmero. Entretanto, é inevitável não
fazer parte da cultura exaustivamente. As próprias palavras que usamos são impregnadas
de culturas. Por exemplo, Carson lembra que quando Tertuliano fala de modéstia e
paciência está sendo devedor aos estoicos, ou quando Tolstói cita a não resistência,
percebe-se aí uma influência rousseauniana. Dessa forma, Carson identifica quatro
dificuldades teológicas de Niebuhr com essa categoria: usar razão para tratar de cultura e
revelação para tratar de fé não distingue claramente a origem epistemológica do
conhecimento32; a proliferação do pecado que ocorre na cultura também pode ocorrer no
meio cristão, inclusive na Igreja; a tendência de não levar em conta a abrangência da graça
divina; e a dificuldade de ter Cristo como Criador e o Espírito Santo imanente na criação
e na comunidade cristã.33 Por outro lado, nos pareceu ser esta a posição, com reservas e
buscando refutações na teologia bíblica, que Carson mais aprova (ou menos desaprova)
em Niebuhr (por ser esta a posição assumida pelo primeiro) – contudo, repetindo,
redefinindo evidentemente os termos.

32
Uma vez que para Carson razão está para racionalidade como revelação está para Palavra de Deus, a
Bíblia.
33
NIEBUHR, Cristo e cultura, p. 80, 81.
29

3.1.2. Cristo dentro da cultura, cristandade? (CDC)

Ele argumenta que esta categoria exige uma visão menos ortodoxa, ou, para ser
mais direto, mais herética do cristianismo, e como tal não deve ser aceita como categoria.
Carson traça uma linha de propositores desse entendimento começando pelo gnosticismo
dos primeiros séculos. Depois ele passa pela suposta paz constantiniana, o começo da
cristandade em que o Estado se misturou com a fé, vista claramente em Abelardo, e
seguido por toda a elite do catolicismo romano da era medieval até os dias de hoje. Nos
tempos atuais, Niebuhr constatou acertadamente que “aquilo que era heresia se tornou a
nova ortodoxia”, principalmente na teologia dos que ele chama de “protestantismo de
cultura”. Locke, Kant, Jefferson, Scheleiermecher, Emerson e, especialmente, Albrecht
Ritschl se encontram nessa categoria por serem os proponentes do que é conhecido como
liberalismo cristão.

3.1.3. Cristo acima da cultura (CAC) ou do tipo sintetizador

Carson notou que Niebuhr entende que esta é a posição que mais teve
proeminência na história da Igreja. Na verdade, Carson acha confusa a classificação de
Niebuhr e as reclassifica. Ele afirma que “talvez ajude a pensar nos últimos dos seus cinco
tipos como: (3) Cristo acima da cultura: tipo sintetizador; (4) (...) tipo dualista; (5) (...)
tipo convercionista/transformacionista.” (p. 28). Para ele, os sintetizadores são o que
entendem a relação de Cristo com a cultura do tipo “tanto isso quanto aquilo”. Apesar
disso, Carson percebe que Niebuhr viu a inconsistência dessa posição por levar “à
absolutização daquilo que é relativo, à redução do infinito a uma forma finita e à
materialização do dinâmico”. Elas são sínteses condicionadas culturalmente.

3.1.4. Cristo e cultura em paradoxo (CCP) ou CAC do tipo dualista

Carson identifica um posicionamento cujo ponto focal prático não é a relação entre
o cristão e a sociedade secularizada, “mas entre Deus e a humanidade”. Assim, o dualista
é existencialista, porque ele enxerga a polarização entre Deus e a humanidade – não entre
os cristãos e os pagãos, como na contracultura. Se o pecado está em nós e a graça em
Deus, então todos estão em um campo de atuação caído e maligno, porém, sustentada e
mantida pela providência de Deus. A diferença dos crentes que se posicionam assim para
30

os que se posicionam favoravelmente à primeira, a visão contracultural, é que aqueles


sabem que são incapazes de fugir ou se isolarem da cultura deste mundo, mas estes não.
Daí o paradoxo. A realidade é paradoxal, porque a compreensão dos cristãos dualistas
leva em conta a lei e a graça, a ira de Deus e a misericórdia de Deus, o pecado dos homens
e o amor divino, ambas as realidades distintas, mas conjuntas. Segundo o autor, Lutero
seria um grande exemplo dessa categoria, Kierkegaard também, mas Niebuhr menciona
as principais acusações proferidas contra os dualistas: serem antinomistas34 e
conservadores.35 Contudo, confirmamos que esta é a posição que mais se aproxima da
proposta da Teologia dos Dois Reinos, especialmente em VanDrunen.

3.1.5. Cristo, o transformador da cultura (CTC) ou CAC do tipo


conversionista / transformacionista

O alerta é lançado pelo autor. Niebuhr não está falando de conversão pessoal, mas
da própria cultura. “O que faz distinção entre conversionistas e dualistas é sua atitude
mais positiva e esperançosa diante da cultura.”36 As convicções teológicas para este
posicionamento são por conta de a criação não ser o palco para a redenção, mas para a
própria esfera de ação da obra divina como um todo; de a queda não trazer o mal físico
ou metafisico, mas moral e pessoal; e da redenção e a consumação são serem realizadas,
é para o “agora”, o já, mas não para o “ainda não”, ou seja, a história é para o tempo
presente, não para o tempo futuro. “Para ele [o transformacionista], o futuro escatológico
se tornou um presente escatológico.”37 Niebuhr parece ver isso no Evangelho de João e
especialmente em Agostinho, o qual ele entende que definiu a Cristo como “o
transformador da cultura”. Ele pensa que Calvino tenha postura parecida. Mas em F. D.
Maurice está o ápice dessa propositura. Para ele, Cristo é a finalidade humana para uma
conversão cultural baseada no amor, cujo socialismo e universalismo adequados ajudam

34
Não ficou muito claro o motivo desta afirmação em Niebuhr. E Carson não tentou explica-la. Embora os
cristãos saibam que as leis do Antigo Testamento não são (ou não deveriam ser) meios de salvação alegar
que um cristão seja antinomista é acusa-lo de ser contrário à lei. Na prática o antinomismo (ou
antinomianismo) alega que Deus não espera que o crente obedeça às leis morais por entender que Jesus as
teria cumprindo em sua morte. Porém, esta conclusão está equivocada segundo o ensinamento
neotestamentário. Provavelmente Niebuhr queria dizer que o cristão do tipo dualista não se importa muito
com as questões morais, por ser, segundo ele, socialmente inerte.
35
Conservadores por preservarem a tradição institucional histórica, também levando, segundo Niebuhr, à
inercia. Apontando idealisticamente para um entendimento mais progressista da história.
36
NIEBUHR, Richard. Christ and culture. New York: Harper Perennial, 2001, p. 190-191. In: CARSON,
Cristo & cultura, p. 33.
37
Op. cit., p. 195. In: Ibid.
31

a expressar este divino atributo.


Por se tratar de uma obra extremamente rica e volumosa de conteúdo, decidimos
fazer um resumo por capítulo com alguns insights importantes para nossa reflexão.
Portanto, do segundo capítulo em diante, o Dr. Carson continua sua crítica ao Dr. Niebuhr
aplicando mais agudamente a teologia bíblica. Carson avalia os pontos fortes e fracos do
autor de “Cristo e Cultura” (p. 37), quanto ao tratamento da Escritura (p. 41), à atribuição
de figuras históricas (p. 44) e à compreensão do Cânon (p. 45). Ele traz aqui um
argumento-chave: sugerir que existam múltiplas visões de Cristo e da cultura, e que
grupos individuais podem escolher apenas uma delas, de acordo com sua conveniência,
parece ser incorreto. “O quinto padrão, ‘Cristo, o transformador da cultura’, é encontrado
em configurações restritas no Novo Testamento, mas com certeza não na forma acentuada
que Niebuhr gostaria que fosse adotada.” (p. 45) Essa limitação de um único tema da
Escritura, como, por exemplo, apreciar a Deus como Criador, mas não como Redentor, é
uma afronta à aceitação indiscriminada da perspectiva histórico-bíblica.
Carson, em seguida, mostra que um verdadeiro paradigma para a compreensão de
Cristo e da cultura deve necessariamente conter perspectivas bíblicas claras. Este pacote
inclui as temáticas Criação e Queda; Israel e Lei; Cristo e Nova Aliança; Céu e Inferno
(p. 49-59). Qualquer paradigma que não inclua ou interprete proporcionalmente essas
perspectivas são inerentemente defeituosas e inconsistentemente contrárias ao
cristianismo ortodoxo.
No capítulo três, Carson passa um bom tempo interagindo com seus críticos na
forma de perguntas e respostas. Este capítulo poderia ser facilmente ignorado pelo leitor
desinteressado, porque se trata de discussão técnica das definições de cultura e pós-
modernidade. Quanto ao que nos cabe aqui, ele é categórico: “Já vimos que, por influência
do esquema de Niebuhr, o sentido de ‘cultura’ não é consistente ao longo de seus cinco
padrões. Depois de algum tempo, essa inconsistência começa a prejudicar a análise” (p.
65). Por outro lado, é um bom capítulo para aqueles que querem entender os problemas
técnicos envolvidos com esse tipo de crítica e têm uma sólida experiência nos debates em
torno desses termos. Em especial, achamos relevante quando o autor aponta seis
dificuldades ao avaliar qualquer cultura, o que pode levar ao “racismo, colonialismo e
xenofobia”: 1) a questão ética de cada cultura; 2) na perspectiva cristã, toda cultura que
não admite a centralidade em Deus é maligna; 3) por essa mesma perspectiva cristã, Deus
derrama sua “graça comum” sobre todas as pessoas provendo-as o que é bom e
sustentando-as em suas, digamos, necessidades básicas; 4) a relatividade de graus de
32

punições impostas por Deus a cada cultura; 5) as avaliações da causa da malignidade em


cada cultura são feitas nas categorias de Niebuhr por pessoas e não por Deus; 6) “os seres
humanos tem uma tendência terrível de perverter as coisas boas, todas as coisas boas” (p.
70-71).
Ao abordar sua redefinição de cultura e agora da cultura na pós-modernidade,
Carson debate com James K. A. Smith, um de seus críticos, quanto aos posicionamentos
a respeito do tema em Jacques Derrida, Jean-François Lyotard e Michel Foucault. Quanto
à desconfiança apresentada pelo chavão de Derrida de que “não existe nada fora do texto”
(p. 92) e que, portanto, tudo é hermenêutica, Carson demonstra que é a Bíblia que afirma
ser a verdade, não nossa interpretação dela. Mas se aplicarmos esse mesmo princípio a
ideia de Derrida, como afirmaremos que sua propositura seja verdadeira e não meramente
uma interpretação nossa? Eles também nos lembram de François Lyotard quanto à
suspeita da inexistência de “grandes quadros” ou “metanarrativas”. A luta contra qualquer
reinvindicação a um significado universal, declarado como “guerra contra o
totalitarismo” implicativamente demonstrou que qualquer cosmovisão ou estrutura de
significado não valeria nada. Mas se aplicarmos esse mesmo princípio a suas ideias,
verificaríamos que a única exceção à negação de histórias abrangentes é a ideia
abrangente de que não existem ideias abrangentes? (p. 95). Depois mencionaram Michel
Foucault quanto à “linguagem como jogo de poder” que desconfiou de qualquer
atribuição de significado objetivo especial às palavras, o que implicaria ao uso de força e
poder sobre os outros, de forma opressora, sugerindo que deveríamos também suspeitar
dos escritores (e de quem os tentasse explicar). Mas se aplicarmos esse mesmo princípio
a suas ideias, alguém ficaria surpreso se ele cair em sua própria armadilha ao tentar nos
impor suas proposituras? (p. 96). Por fim, Carson responde a Smith diretamente que este
não o entendeu plenamente.
No capítulo quatro, Carson aborda questões específicas que, embora possam ser
amplamente aplicadas, são de especial interesse para a cultura atual dos Estados Unidos:
secularização, democracia, liberdade e poder. A palavra secular é usada por ele com
conotação positiva (p. 105). Pode significar simplesmente a separação da Igreja e do
Estado. No entanto, geralmente é entendida como a realidade social que estimula a
consciência não religiosa ou mesmo antirreligiosa. Mais precisamente, a secularização é
o processo que remove progressivamente a religião da arena pública e a reduz ao âmbito
privado. Este movimento, naturalmente, impede o cristianismo de ter qualquer impacto
real de políticas públicas e pode ser facilmente visto pelos cristãos como suspeito, pelo
33

menos. Contudo, quando se trata de democracia, a tensão entre ela e o cristianismo pode
não ser tão facilmente percebida (p. 111). A maioria das pessoas no Ocidente diria, sem
hesitar, que a democracia é uma coisa boa. Porém, a história apresenta muitos exemplos
de que não se pode contar sempre com a democracia para fazer a coisa certa. Podemos
contar com o voto popular para estabelecer leis e moralidade justas? “Tensões entre Cristo
e cultura são inevitáveis, porque tensões entre democracia e religião são inevitáveis.” (p.
116).
E quanto à liberdade? A liberdade é algo sobre o qual os cristãos podem sempre
se apoiar? (p. 116). Alguém pode estar “livre” das restrições do Estado, mas também pode
ser “livre” das tradições, livre de Deus, livre de moralidade, de inibições, de pais
opressivos, de pais sábios, de atribuições de vários tipos, e livres do pecado. Se os cristãos
podem ou não apoiar a “liberdade” depende, evidentemente, de que tipo de liberdade nós
estamos falando. E quanto ao aborto, pesquisas com embriões humanos, pornografia,
“casamentos” homoafetivos, orações em escolas públicas etc.? Um choque entre o
cristianismo e uma sociedade libertina parece inevitável. Algumas coisas que a sociedade
abraça como liberdades são vistas como uma forma de escravidão pelos cristãos.
Carson, em seguida, fala sobre o poder. Podemos pensar que o poder é ruim, mas
o exercício do poder nem sempre é algo ruim. Na família, ausência completa de disciplina
pode trazer resultados, de forma regular, como “crianças desorientadas e anárquicas”. (p.
125). Quando há um crime em andamento, a maioria de nós ficaria feliz se a polícia
aparecesse com força e exercesse poder. No entanto, toda forma de poder pode ser
abusadora de autoridade.
Em suma, Carson nos chama a não abraçarmos o secularismo desenfreadamente;
“a democracia não é Deus; a liberdade pode ser outra palavra para rebelião” (p. 128); o
desejo pelo poder, tão universal como é, deve ser visto com bastante suspeito. Isso
significa que as comunidades cristãs que honestamente procurarem viver sob a Palavra
de Deus irá inevitavelmente gerar culturas que, para dizer o mínimo, irão de alguma forma
contrariar ou confrontar os valores da cultura dominante.
O capítulo quinto tenta lidar com um dos maiores problemas da questão de Cristo
e cultura, a da Igreja e do Estado. Mais uma vez, parece ser um passeio rápido pelos
principais conceitos abordados quando cristãos tentam mergulhar nesta questão, embora
Carson se dedique a um capítulo um tanto quanto longo (mais de 50 páginas). O assunto
é, de fato, complexo.
A primeira seção trata da divulgação dos termos “religião”, “Igreja” e “Estado” e
34

das tensões internas e inter-relacionais. A segunda seção descreve algumas prioridades


bíblicas para as relações entre a Igreja e o Estado.
Ainda que nesse capítulo não se pretenda aprofundar sobre as questões culturais
levantadas pela Teologia dos Dois Reinos, destaco o subtítulo “a transformação da vida
e, como consequência, das instituições sociais e governamentais”, uma vez que
claramente o Dr. D. A. Carson está em consonância com essa doutrina, especialmente, no
que se refere às questões culturais. Ele afirma que “quando crido e obedecido, o
evangelho muda a direção e os valores das pessoas”, e cita 1 Pedro 2.11 que diz serem os
cristãos “peregrinos e estrangeiros” nesse mundo, afirmando que “a transformação moral
é conscientemente contracultural”. Nessa mesma linha de raciocínio, ele nos lembra de
que a carta de Paulo a Filemon, mesmo não pretendendo explicitamente acabar com a
escravidão, foi instrumentalizada para lançar os fundamentos de sua revogação. Muda-se
por dentro, transforma-se por fora. Muda a pessoa, transforma a sociedade.
Nas reflexões históricas e teológicas desse assunto, o autor conclui que:

O pluralismo religioso não pode ser um bem último, pois não será
encontrado nos novos céus e na nova terra, em cuja direção avançamos;
mas, se neste mundo alquebrado ele põe freio à violência e à coerção,
se promove liberdade relativa entre aqueles que (quer reconheçam ou
não) carregam em si a imagem de Deus, então agradecemos a Deus
pelos dons da graça comum e pela sabedoria do Mestre, que insistiu em
algum tipo de distinção – não importando sua complexidade nem sua
natureza nada absoluta – entre a esfera de César e a esfera de Deus.38

Prosseguindo, ele discute a respeito de política e governo em relação à fé cristã,


considerando que a democracia é mais promovida hoje no mundo, não por ser um bem
absoluto ou a solução de todos os problemas políticos, nem mesmo por ser a forma ideal
de governo; mas, por causa do pecado, poderia haver males ainda mais grotescos na
sociedade, e assim, por eliminação, se tornou a opção menos censurável. Todavia, com
grande sensibilidade escriturística, o autor afirma que Jesus Cristo é o vencedor eterno de
todas as quimeras políticas e é soberano sobre todas as instituições humanas.
O capítulo seis encerra a discussão em três etapas. Primeiro, ele resume o
argumento do livro como um todo. Segundo, ele discute algumas das agendas e utopias
frustradas dos vários grupos cristãos. Isso inclui a opção fundamentalista; Lutero e seus

38
CARSON, Cristo & cultura, p. 169.
35

herdeiros;39 Abraham Kuyper e o neocalvinismo holandês; as expectativas minimalistas


segundo Darryl G. Hart, e as perspectivas da pós-cristandade, incluindo uma tipologia
própria de Craig A. Carter, sobre a obra “Cristo e Cultura” de Niebuhr, em que são
estabelecidos três tipos de cristandade e três tipos de não cristandade – o critério é a
divisão dos que aceitam dos que não aceitam a coerção violenta na relação cultural do
cristão com o mundo. A saber, dos que aceitam: Tipo 1) Cristo legitimando a cultura, com
exemplo dos cruzados e dos alemães na Segunda Guerra, caracterizado por uma
cristologia docética;40 Tipo 2) Cristo humanizando a cultura, exemplificado por Lutero e
Billy Graham, de teologia parcialmente docética; Tipo 3) Cristo transformando a cultura,
por Agostinho e Cromwell, de teocracia veterotestamentária e cristologia
“inconsistentemente nicena”.41 Consequentemente, os que rejeitam a coerção violenta
são: Tipo 4) Cristo transformando a cultura, incluindo Willian Penn, Martin Luther King
Jr. e Desmond Tutu; Tipo 5) Cristo humanizando a cultura, abrangendo Madre Teresa de
Calcutá e o Comitê Central Menonita; e o Tipo 6) Cristo se separando da cultura, de bases
apocalípticas, integrando os beneditinos e os anabatistas. A cristologia desses três últimos
é “totalmente nicena”. Assim, a relação de cristãos com a cultura é determinada pela
admissão ou não da violência.
Há um contraste interessante se pensarmos nessas categorias com a realidade de
perseguição que a Igreja sofre no mundo. Parece que quando se tem opções, esse assunto
não é nem mesmo ventilado. O que cristãos perseguidos querem é fugir da perseguição.
Ninguém terá chance real de pensar como deveria lidar com a cultura nesses casos, a não
ser o de desesperadamente preservar a vida e a fé, muitas vezes abrindo mão da primeira
por causa da segunda.
Voltando a falar da estrutura deste capítulo, o terceiro e último passo é a
conclusão. Embora curta, a conclusão liga todos os temas e discussões, juntamente com

39
Aqui Carson fala da “teoria dos dois reinos” luterana como bem diferente da proposta de Teologia dos
Dois Reinos expressa por VanDrunen. Cf. Ibid., p. 183-185.
40
Cristologia docética foi considerada heresia pela igreja primitiva, dos séculos II e III, por assumir que
Jesus teria sido apenas uma ilusão, não uma pessoa física provida de corpo material, mas apenas um
espectro espiritual relevante, ou uma ideia. A crucificação, assim, não teria de fato existida, porém aludida
como assentimento filosófico de aplicações reflexivas. Conceito relativamente reativado pelo liberalismo
teológico a partir do século XIX.
41
Cristologia nicena é considerada uma cristologia ortodoxa. Sua expressão sintética se faz no Credo
Niceno que diz originalmente (em tradução livre): “em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado
unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai; Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não feito, consubstancial ao Pai; por quem foram feitas todas as coisas que estão no céu ou na terra.
O qual por nós homens e para nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem. Padeceu e ressuscitou
ao terceiro dia e subiu aos céus. Ele virá para julgar os vivos e os mortos”.
36

sua tese central, aludida ao longo do livro. Para discernir corretamente a relação entre
Cristo e cultura, os cristãos devem perseguir com paixão a inteireza robusta e nutritiva da
teologia bíblica. É precisamente esta a matriz controladora dessa relação (p. 197). O
desejo de Carson de fidelidade às Escrituras e vontade de reformar para esse fim é muito
claro.
Penso que existem três conceitos úteis que podem ser extraídos deste livro.
Primeiro, as cinco visões de Niebuhr sobre Cristo e cultura nos faz lançar uma rede muito
ampla sobre o assunto. Elas permitem visões desproporcionais e até mesmo heréticas do
cristianismo. Uma visão verdadeiramente bíblica da relação entre Cristo e cultura não
pode permitir paradigmas que não sejam fiéis ao testemunho bíblico.
Em segundo lugar, uma visão de Cristo e da cultura deve ser flexível o suficiente
para se encaixar e interagir com uma enorme variedade de problemas e situações
contextuais. Em outras palavras, se o evangelho é verdadeiro, então uma visão correta de
Cristo e da cultura deve dar uma orientação correta tanto para os americanos ricos quanto
para os pobres africanos, os chineses perseguidos e os sul-coreanos livres.
Em terceiro lugar, o entendimento correto da interação entre Cristo e a cultura em
um contexto local é promovido por um compromisso com a teologia bíblica. Dito de outra
forma, os cristãos lidam corretamente com o problema de Cristo e da cultura quando suas
ações no contexto local fluem diretamente de uma aceitação saudável e proporcional das
principais afirmações da Escritura.
Uma vez que Carson não negocia sua convicção para explicar os tópicos
teológicos, filosóficos e políticos abrangentes com os quais interage no livro, ele nos
conclama à fidelização bíblica ao fazermos escolhas. Deveríamos estar mais ou menos
envolvidos na cultura? Um cristão pode entrar na política? Devemos tentar transformar a
cultura com a arte cristã ou retirar a educação escolar dos nossos filhos? Quais são os
deveres da igreja local em relação à pobreza? Em relação ao governo? Carson deixa essas
escolhas num nível individual, mas os desafia a garantir que suas escolhas se alinhem
corretamente com uma exposição proporcional e fiel das implicações da Escritura.
Resgatando o que fora dito por Donald A. Carson, creio que a Teologia dos Dois
Reinos, apresentadas nas obras de David VanDrunen, persiga exatamente a verdade
bíblica, especialmente quanto à questão cultural tão cara a ele quanto àqueles que estão
imbuídos de esclarecê-la e proclamá-la. Evidência disso são as últimas palavras dessa
releitura, exatamente de um propagador da Teologia dos Dois Reinos, o Dr. Michael
Horton, que nos alerta, afirmando que “em vez de estarmos no mundo, mas não ser dele,
37

facilmente nos tornamos do mundo, mas não estamos nele”.42 Contudo, isto não a isenta
de críticas.
3.2. Críticas à Teologia dos Dois Reinos

Em 2011, o teólogo John M. Frame43 escreveu uma obra com duras críticas à
Teologia dos Dois Reinos. O método utilizado por Frame é um compêndio de trinta e dois
resumos de obras especialmente de professores do Westminster Seminary California.
Esse livro teve por título “The Escondido Theology: A Reformed Response to Two
Kingdom Theology”.44 Nessa obra o ator assume que Teologia dos Dois Reinos, por vezes
também chamada de Radical Two Kingdoms, não é teologia reformada, pois, para ele,
não há nenhuma de suas proposições ensinadas nas Confissões Reformadas (p. 16), mas
se trata de teologia luterana. Frame chega ao ponto de insinuar que os teólogos entusiastas
da Teologia dos Dois Reinos queriam trazer o luteranismo para o meio reformado.45 Essa
crítica é relevante em razão do peso acadêmico de seu proponente.
Logo no prefácio, ele desconfia que os membros proponentes desta escola de
pensamento, como Michael Horton, Meredith Kline, Darryl Hart e o próprio David
VanDrunen não se dedicaram a fazer uma autocrítica e discutir se há ou não distinções
entre essa teologia e a Teologia Reformada (p. 38). Depois de tecer alguns
questionamentos, Frame recomenda “estes escritores por seu genuíno desejo de
proclamar o evangelho de Jesus Cristo como é encontrado na teologia reformada”.
Todavia, em seguida, emenda uma grave afirmação: a de “que seus ensinamentos
distintivos diminuem a exposição da Escritura e que no final seus ensinamentos são
prejudiciais ao evangelicalismo e ao cristianismo reformado” (p. 39, 40).
Talvez a declaração mais grave feita por Frame se refira à soteriologia de Michael
Horton.46 Frame parece sugerir que Horton considerou apenas a doutrina da justificação

42
HORTON, Michael. How the kingdom comes? Christianity Today, 50/1, p. 46. Jan, 2006. In:
CARSON, Cristo & cultura, p. 198.
43
Nascido em 1939 é um filósofo cristão e teólogo calvinista que lecionou por muitos anos no Seminário
Teológico de Westminster, e atualmente leciona Teologia e Filosofia Sistemática no Seminário Teológico
Reformado em Orlando, Flórida.
44
O título do livro leva esse nome pelo fato de muitos de seus proponentes como Meredith Kline, Darryl
Hart, Michael Horton e David VanDrunen serem ou terem sido professores do Westminster Seminary
California localizado na cidade de Escondido, na California, EUA. Não tenho indicações de que Frame
estivesse sendo irônico com o termo “escondido” no sentido de ser algo obscuro, tácito ou implícito.
45
Contudo a Doutrina Luterana dos Dois Reinos é bastante diferente da apresentada por VanDrunen. Por
exemplo, para Lutero, crentes e incrédulos faziam parte do reino comum sem divorciar a fé cristã da esfera
cultural. Ele entendia que deveria haver uma cultura cristã e chamou o Estado para não só defender a igreja,
mas também estabelecer escolas cristãs e não permitir que blasfêmias fossem espalhadas em sua jurisdição.
46
Doutrina da salvação.
38

e não a da santificação na ordus salutis.47 Enquanto a primeira é dada por Deus de forma
instantânea, a segunda é processual. Frame pensa equivocadamente que Horton considera
que as duas doutrinas são operadas por Deus instantaneamente na vida do crente. Frame
assevera que a Escritura não nos diz apenas para receber passivamente o dom da
santificação. Ao invés disso, há uma corrida a ser executada e uma batalha a ser travada.
A Escritura nos exorta constantemente a fazer esforços, a fazer as escolhas certas, pois
Deus potencializa nossos esforços e os faz frutificar. Para ele, nós desenvolvemos nossa
própria salvação, sabendo que Deus está trabalhando “em” nós. A Escritura se refere
repetidas vezes à santificação e à vida interior. “Mas as referências de Horton a ela são
quase inteiramente negativas. Parece-me que o próprio foco de Horton precisa ser
repensado” (p. 43).
Ele critica também o livro de R. Scott Clark, “Recovering the Reformed
Confessional”, afirmando que Clark diz que os Padrões de Westminster eram teocráticos,
mas não teonômicos, isto é, eles aceitavam a execução civil da primeira tabela do
Decálogo, mas não acreditavam que o governo civil deva reforçar todos os detalhes da lei
civil bíblica, parecendo “que a Teologia dos Dois Reinos de Clark supera seu
confessionalismo. A teocracia é inconsistente com dois reinos, uma vez que se
responsabiliza o magistrado civil pela aplicação da verdadeira religião” (p. 86). Frame
diz que no final do livro, Clark diz mais explicitamente que “a cristandade foi um erro”,
porém, um erro só corrigido no século XVIII. Frame continua dizendo que Clark “não vê
qualquer necessidade de revisar sua definição geral de confessionalismo para acomodar
esse tipo de correção” (p. 87).
Frame acertadamente sugere que, para um crente reformado, o foco de sua vida
não deve estar em sua denominação ou tradição. Este foco deve estar em Cristo e na
Escritura. Ele deve sentir profundamente os erros do chauvinismo reformado,48 a atitude
que celebra e procura preservar a singularidade do calvinismo reformado da influência de
outros ramos da Igreja. O lar de sua Igreja deveria ser todo o corpo dos eleitos de Deus.
Uma comunidade reformada que mantenha sua herança bíblica enquanto busca crescer
em seu amor pela Igreja como um todo vale a pena apoiar e recomendar aos outros – e
arremeta: “essa não é a visão de Clark da Igreja. Contudo, é uma que eu recomendo de
coração aos meus leitores” (p. 118).

47
Ordem da salvação, como a salvação se faz na vida de uma pessoa.
48
Senso de pertencimento fanático, agressivo e intransigente e, por conseguinte, menosprezo ao que é
contrário àquele grupo ou causa.
39

Quanto a Meredith Kline, Frame descreve o trabalho de Kline como um


significado pessoal para ele, “também como seu aluno no Seminário Teológico de
Westminster entre 1961 e 1964. Kline era um dos meus heróis até então. Eu acredito, no
entanto, que uma mudança veio sobre ele nos anos posteriores” (p. 152). Para Frame, em
meados da década de 1970, Kline desenvolveu um sistema de pensamento que
considerava inatacável e tinha pouca simpatia por aqueles que divergiam dele de maneira
significativa. Kline chegou a acreditar, além disso, que suas posições distintas (e muitas
vezes inovadoras) eram essenciais para a ortodoxia reformada nos anos 1950 e 1960,
afirma Frame. Ele era um defensor da inovação e da liberdade de pensamento. Todavia,
mais tarde, quando outros procuraram inovar de maneira que contradissessem suas
próprias ideias, ele se tornou o defensor da sua própria tradição. Em 1981, Kline se juntou
ao corpo docente do Seminário Teológico de Westminster na Califórnia. “Tivemos uma
série de desentendimentos durante esse tempo. (...). Nossos alunos e colegas acharam seu
ensinamento mais persuasivo do que o meu, chegando a ser convencido de que seu ensino
demonstrava minha falta de ortodoxia. Eu não poderia continuar a ensinar em uma escola
onde meu compromisso reformado não fosse respeitado.” (p. 153). Então Frame se juntou
à faculdade do Seminário Teológico Reformado. Neste seminário, “minha ortodoxia
reformada nunca foi desafiada” (p. 153).
Lendo essa obra não ficou claro a quem o Dr. John Frame está realmente
respondendo, porque a prática geral de descrever a posição de seus oponentes da melhor
maneira, para depois refutá-los, não nos pareceu consistente, mas emocionalmente
afetada por algum desafeto pessoal e/ou institucional. Qualquer resposta bem-sucedida
precisa estar teológica e historicamente fundamentada e, infelizmente, não sabemos bem
se foi este o caso.49

49
No dia 07 de fevereiro de 2012, o Dr. Robert W. Godfrey escreveu no blog do Westminster Seminary
California uma resposta da docência de Westminster ao Dr. John Frame: “Todos nós no corpo docente do
Westminster Seminary California [WSC] estamos chocados e tristes com o livro de John Frame, The
Escondido Theology. Muitos de nós éramos colegas de trabalho de John e vários de nós fomos seus alunos.
Apreciamos particularmente ao longo dos anos seu ensino da apologética de Cornelius Van Til, sua crítica
ao teísmo aberto e sua forte defesa da doutrina da inerrância bíblica. (A declaração de Andrew Sandlin na
página 31 deste livro, alegando que John tinha sido um polemista contra a inerrância, é certamente um
erro). Ficamos muito preocupados, portanto, em ver John deturpando e distorcendo totalmente nossas
visões. Não desejamos nos envolver em uma discussão demorada dessas coisas com John, mas achamos
necessário esclarecer as coisas. Talvez a maneira mais simples de fazer isso seja referir-se aos trinta e dois
tópicos com os quais John resumiu nossas visões no início do livro (p. 37-39). Ele apresenta estes pontos
afirmando: ‘Abaixo estão algumas afirmações típicas e amplamente aceitas entre os teólogos de Escondido.
Nem todos eles fazem todas essas afirmações, mas todos os consideram com alguma simpatia’ (p. 37). Em
resposta, todos nós, do corpo docente da WSC, queremos declarar claramente que rejeitamos todos esses
trinta e dois pontos como uma apresentação justa ou precisa de nossos pontos de vista. Nós temos mais
simpatia com o ponto que diz ‘Não há diferença entre ser bíblico e ser reformado’ (p. 38). No entanto,
40

Semelhantemente a John Frame, o Dr. James K. A. Smith50 afirma que se trata


sim de uma teologia luterana e que a concepção de Dois Reinos de VanDrunen é idêntica
à de Lutero. Smith aponta que o movimento reformado dos Dois Reinos, na verdade,
tentou desviar a tradição reformada para uma direção luterana. Embora Smith defenda
uma visão transformadora neocalvinista, ele pede que a tradição reformada aprenda com
o paradigma das “duas cidades” de Agostinho. Para ele, a teologia pública reformada
precisa ser redirecionada, mas para os pressupostos agostinianos e não luteranos.
Os argumentos de Smith nos levam a várias reflexões interessantes. Primeiro, ele
critica o relato histórico de David VanDrunen sobre a teologia dos reinos ser uma
expressão da teologia reformada, afirmando que VanDrunen faz uma conexão falsa entre
os “dois reinos” e as “duas cidades” de Agostinho. Mas VanDrunen, em março de 2012
(e até antes, em 2010),51 já havia dito que “enquanto as Duas Cidades descreviam dois
povos com diferentes destinos escatológicos, a doutrina reformada dos Dois Reinos

afirmamos isso de maneira diferente: somos reformados porque acreditamos que a Bíblia é mais fielmente
entendida e ensinada no Cristianismo Reformado. Em relação à maioria dos pontos de referência de John,
acreditamos e ensinamos o oposto do que é atribuído a nós. Esperamos que os interessados em nosso
trabalho leiam algumas das muitas obras escritas por nosso corpo docente e vejam por si mesmas a
imprecisão do livro de John. Para ver nosso compromisso de aplicar a Bíblia na pregação e em uma ampla
gama de questões contemporâneas, listamos abaixo alguns livros da faculdade que ilustram esse
compromisso:
 Dennis Johnson, ‘Him We Proclaim’
 W. Robert Godfrey, ‘Pleasing God in our Worship’
 Michael Horton, ‘Law of Perfect Freedom’
 R. Scott Clark, ‘Recovering the Reformed Confession’ (with chapters on the application of the
second and fourth commandments)
 J. V. Fesko, ‘The Fruit of the Spirit Is and The Rule of Love’
 David VanDrunen, ‘Bioethics and the Christian Life’
 Audio recordings of the faculty conference on ‘The Law of God and the Christian’ and our most
recent conference on ‘The Unfolding Mystery: Reading and Applying the Bible.’
À luz do potencial deste livro para confundir nossos amigos e o público em geral, desejamos reafirmar
nosso Compromisso Doutrinário (conforme declarado em nosso Anuário): ‘As Escrituras do Antigo e do
Novo Testamento, sopradas pelo Espírito de Deus por meio de autores humanos, a própria Palavra de Deus
é escrita – a única autoridade infalível e inerrante para a fé e a vida. As doutrinas da fé cristã, mantidas
pelas igrejas ortodoxas através dos tempos, expressam as verdades centrais concernentes ao Deus triuno e
suas obras de criação e redenção, particularmente quando confessam a obra salvadora de Jesus Cristo
revelada nas Escrituras. As confissões Reformadas (Confissão de Westminster e Catecismos, Catecismo de
Heidelberg, Confissão Belga e os Cânones de Dort) são o resumo mais completo e preciso do sistema de
doutrina revelado na Sagrada Escritura.’ A Westminster California tem sido e continua sendo uma escola
confessional. Como um todo, nosso corpo docente apoia e promove as visões de consenso da comunidade
Reformada, conforme resumidas nas confissões reformadas. Essas confissões expressam mais precisamente
nossa teologia”. Disponível em: https://wscal.edu/blog/westminster-seminary-california-faculty-response-
to-john-frame. Acesso em: 21 jun. 2019.
50
SMITH, James K. A. Reforming public theology: two kingdoms or two cities? Calvin Theological
Journal, nº 47. p. 122-137. 2012.
51
VanDrunen, David M. Natural law and the two kingdoms: a study in the development of reformed
social thought. Grand Rapids: Eerdmans, 2010.
41

descreve como Deus governa o mundo”.52 Segundo, que a proposta de VanDrunen dos
Dois Reinos é uma “cristandade por outros meios”, lei natural em vez de eclesiologia. Já
o Dr. Robert Crouse53 considera que VanDrunen vê uma grande diferença entre as
concepções de Agostinho e de Lutero simplesmente favorecendo a concepção das “Duas
Cidades” agostinianas. Crouse se distancia de Smith, discordando, dentre outras coisas,
de que VanDrunen e outros defensores reformados da Teologia dos Dois Reinos não
promovam qualquer tipo de “cristandade”, muito pelo contrário. Terceiro, ele também
vincula a afirmação do liberalismo moderno à perspectiva dos Dois Reinos, sugerindo até
mesmo uma conexão entre a Teologia dos Dois Reinos de VanDrunen com a “liberal”
agostiniana de Eric Gregory. Mas essa afirmação parece ser fragilíssima, pois se há esse
tipo de liberalismo teológico, os adeptos da Teologia do Dois Reinos deveriam se sentir
gratos, entretanto.
O Dr. Cornelis Venema,54 por sua vez, também nos traz algumas contribuições
críticas. Primeiro, ele discorda da afirmação que os proponentes da perspectiva dos Dois
Reinos frequentemente alegam que ela não é apenas a abordagem mais adequada da
questão do cristianismo e da cultura, mas também a mais antiga e a mais comum
abordagem na história da teologia reformada (p. 78), demonstrando outros recortes
históricos. Em segundo lugar, entre os argumentos bíblicos para a perspectiva dos Dois
Reinos há alguns que lhe parecem estar em desacordo com interpretações mais comuns
na história da teologia reformada. No decorrer da apresentação de um caso bíblico para a
perspectiva dos dois reinos, os defensores ofereceram interpretações bastante excêntricas,
segundo Venema, entre elas: 1) a relação entre a obra de criação e redenção de Deus; 2)
o pacto pré-queda de obras em relação ao pacto pós-queda da graça; 3) a relação entre o
oficio de Cristo como Mediador da criação e como Mediador da redenção; 4) a
necessidade e suficiência da Escritura como uma norma para a conduta cristã em todas as
áreas da vida; e 5) a adequação da lei natural para um completo discernimento da vontade
de Deus para a vida pública e cultural. Em terceiro lugar, alguns dos atrativos dos Dois
Reinos se aproximam dos problemas que supostamente são inerentes à visão

52
VANDRUNEN, David. The Two Kingdoms and Reformed Christianity: why recovering and old
paradigm is historically sound, biblically grounded, and practically useful. Pro Rege. mar, p. 31-38. 2012,
p. 33.
53
CROUSE, Robert. Two kingdoms and two cities: mapping theological traditions of church, culture, and
civil order. [Tese] Doutorado. Wheaton. Jan. 2016. Tendo na banca examinadora Daniel J. Treier, Kevin J.
Vanhoozer, James K. A. Smith e Marc Cortez.
54
VENEMA, Cornelis. One kingdom or two? An evaluation of the “Two Kingdoms” doctrine as an
alternative to neo-calvinism. Mid-America Journal of Theology, v. 23. 2012, p. 77-129.
42

neocalvinista da vocação cristã em esforços públicos e culturais. (p. 79). E quarto, embora
os proponentes da abordagem dos Dois Reinos à vida cristã afirmam que isso não
prejudica o empreendimento da educação ou educação cristãs, os principais valores desta
abordagem fazem “o tapete sair de baixo”55 de um dos mais importantes argumentos para
a educação cristã.
Em sentido absolutamente contrário à maioria dos críticos a Teologia dos Dois
Reinos, o Dr. John Wind enumerou os principais pontos de discórdia dos críticos a
VanDrunen, como apresentadas acima pelo Dr. Venema, os quais são: a má interpretação
da tradição reformada; restrição da cosmovisão cristã à igreja institucional; rejeição à
educação cristã; separação completa entre o governo do Logos e o governo do Filho
encarnado; a lei natural como suficiente e confiável independente da revelação especial;
e a doutrina dos Dois Reinos incompatível com as Duas Cidades de Agostinho. Ele parece
responder a todos os críticos a partir de uma interpretação estrutural da Teologia do Pacto
(ou da Aliança) na interpretação de VanDrunen:

A estrutura de pactos ou alianças em VanDrunen consiste em cinco


distinções ou áreas de descontinuidade. Embora VanDrunen também
reconheça áreas importantes de continuidade dentro da estrutura de
aliança das Escrituras, seu entendimento particular é mais bem ilustrado
por meio do exame dessas cinco distinções. A primeira distinção é entre
as Alianças da Criação e Noética, entendidos como uma distinção entre
um pacto da humanidade e um pacto da graça. A segunda distinção é
entre as alianças Noética e Abraâmica, entendidos como uma distinção
entre um pacto da graça comum e uma da graça especial. A terceira
distinção é entre as alianças Abraâmica e Mosaica (até o período de
Israel no Exílio), entendida como uma distinção entre um pacto de
descanso ainda-não-realizado e uma aliança estabelecida de descanso
realizado. A quarta distinção é entre as alianças do Antigo e Novo
Testamentos, entendidos como uma distinção entre duas alianças
especiais de graça nas quais um cumpre completamente o outro. A
quinta distinção é entre a Nova Aliança Inaugurada e a Nova Aliança
Consumada, entendida como uma distinção dentro da aliança especial
de graça como já realizada na igreja, mas ainda não realizada em toda
a criação. 56

3.3. Transformacionismo x Teologia dos Dois Reinos

55
VENEMA, Mid-America Journal of Theology, p. 80.
56
WIND, John. The keys to the Two Kingdoms: covenantal framework as the fundamental divide between
VanDrunen and his critics. Westminster Theological Journal. 2015, p. 15-33. p. 25.
43

Curiosamente, as primeiras palavras do Dr. Niebuhr em “Cristo e Cultura”, logo


na parte pré-textual dos agradecimentos, são as seguintes: “O presente ensaio sobre a
constante luta que a Igreja enfrenta, em dois planos – com o seu Senhor e com a sociedade
cultural57 (com que vive essencialmente associada) – representa parte do resultado de
muitos anos de estudo, reflexão e magistério”. Essas palavras iniciais em seu livro nos
fazem pensar se ele estaria constatando (não sabemos se consciente ou
inconscientemente) que os dois planos mencionados não seriam compatíveis aos dois
reinos na teologia de VanDrunen? Essa elucubração nos veio porque a relação entre Deus
e as pessoas na sociedade, e a consequente produção da cultura, é o tema-chave tanto da
abordagem de Niebuhr quanto de VanDrunen, embora com metodologias e fundamentos
distintos. Portanto, cremos que, embora eles partam de métodos e princípios
característicos diferentes, ambos estão tratando basicamente do mesmo objeto: a relação
entre o cristianismo e a cultura. O primeiro dentro de uma cosmovisão e de um momentum
histórico marxista, liberal e neo-ortodoxo e o segundo de uma cosmovisão reformada e
calvinista.
Enquanto os adeptos do transformacionismo mencionam o chamado do cristão no
mundo para “redimir”, “converter” ou “transformar” a cultura (às vezes também chamada
de redenção da criação),58 os seguidores da Teologia dos Dois Reinos defendem que esta
linguagem implica uma expectativa pretensiosa ou triunfalista do que os cristãos são
capazes de realizar no mundo antes da volta de Cristo. Essa linguagem também levanta
questões sobre como a conduta cristã nos esforços culturais e sociais diferem da dos não
cristãos. Para aqueles que defendem a doutrina dos dois reinos, a conduta humana no
reino comum da vida e da cultura é a mesma tanto para o crente como para o incrédulo,
pois os dois são cidadãos na sociedade e estão inseridos na mesma cultura. Os incrédulos
vivem sob a lei natural de Deus e a ordenação providencial de todas as coisas. A
perspectiva dos dois reinos, portanto, liberaria os cristãos do fardo de ter de encontrar um
modo de viver distinto do não cristão no “reino comum” (cultura e governo). Também
libertaria os cristãos da tentação de confundir obrigações humanas comuns sob o mandato

57
Grifos do autor.
58
Cf. CAVALCANTI, Robinson. A redenção da cultura. Disponível em:
<https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/267/a-redencao-da-cultura>. Acesso em: 15 dez. 2018;
CARRIKER, Timóteo. Trabalho, descanso e dinheiro: uma abordagem bíblica. Viçosa: Ultimato, 2001.
p. 21-31; CARRIKER, Timóteo. O caminho missionário de Deus. Brasília: Palavra: 2005. p. 15-23;
SCHAEFFER, Francis. Poluição e a morte do homem. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. Capítulos 1-4;
VAN DYKE, et al. A criação redimida. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. Capítulo 6.
44

cultural com as obrigações particulares que sustentam somente os crentes dentro do “reino
redentor” de Cristo, (igreja).
Ao contrário da perspectiva transformacionista, que exige a transformação da
cultura humana, a perspectiva dos dois reinos pretende uma visão muito mais simples,
menos pretensiosa e onerosa da vocação dos seres humanos dentro da estrutura do reino
comum de Deus. “Deus não está redimindo as atividades e instituições culturais deste
mundo, mas está preservando-as através do pacto que fez com todas as criaturas viventes
por meio de Noé em Gênesis 8.20-9.17”.59 VanDrunen nos lembra de que o dilúvio trouxe
repentino fim a toda a atividade cultural da época.
Em certo sentido, ele acredita que os cristãos devam “transformar” a cultura, mas
no sentido de se ter influência benéfica neste mundo, enquanto eles realizam suas várias
atividades culturais com excelência e as interpretam corretamente. No entanto, ele se opõe
“à ideia de transformar cultura (...) na medida em que implica que os cristãos devem
‘redimir’ a cultura e que seus produtos culturais piedosos serão incorporados à nova
criação”.60 Desta forma, a Teologia de Dois Reinos não se opõe à transformação em si,
mas tem uma compreensão diferente da transformação. VanDrunen mencionou o
conceito de nova criação acima, pois sua compreensão desse tema desempenha papel
importante na apresentação de sua teologia dos dois reinos. Ele escreve:
O reino de Deus proclamado pelo Senhor Jesus Cristo não é construído
através da política, comércio, música ou esportes. A redenção não
consiste em restaurar pessoas para cumprir a tarefa original de Adão,
mas consiste em o próprio Senhor Jesus Cristo cumprir a tarefa original
de Adão de uma vez por todas, em nosso nome. Assim, a redenção não
é “criação recuperada”, mas “recriação agraciada”. 61 Em suma, a
Escritura requer uma visão elevada da criação e da atividade cultural,
mas também exige uma distinção entre as coisas sagradas do reino
celestial de Cristo e as coisas comuns do mundo atual. Requer uma
distinção entre a sustentação providencial da cultura humana por parte
de Deus para toda a raça humana e sua gloriosa redenção de um povo
escolhido que ele reuniu em uma igreja agora e se reunirá na nova
criação por toda a eternidade. Algumas pessoas realmente caem em
“dualismos” injustificados, mas a dualismo-fobia não deve anular nossa
capacidade de fazer distinções claras e necessárias.62

59
VANDRUNEN, Living in God's two kingdoms, p. 21.
60
Ibid., p. 13.
61
Ibid., p. 26.
62
Ibid., p. 28.
45

Se não houver distinção metodológica para analisar a teologia dos dois reinos
fatalmente cairemos em dualismos ou contradições – o que de fato parece ter acontecido
com alguns críticos que tentaram persuadi-la.
É evidente que há uma tremenda antítese espiritual entre crentes e incrédulos, mas
também é evidente que há algo culturalmente comum entre eles, embora dada de maneira
não neutra entre os dois. O que aconteceu na criação foi para ambos; na queda para ambos;
contudo, em se tratando de soteriologia calvinista, não há espaço para redenção comum
para ambos.
De todas as maneiras de um evangélico professo, em comunhão com sua
congregação, lidar com a cultura e com o governo deste mundo, nos parece que aquela
que mais valoriza a Igreja de Cristo seja precisamente a Teologia dos Dois Reinos, pois
ela traz clara ênfase na centralidade prática e visível da Igreja na vida cristã. A Igreja tem
um distintivo ético radicalmente diferente das instituições do reino comum, pois ela
“exibe perdão que transcende justiça, expõe generosidade que transcende escassez e
busca evangelismo que rejeita violência”,63 a partir do dia do Senhor, do culto e do
descanso na graça soberana de Deus.
À luz disso, é importante frisar que socioculturalmente, uma vez que a Igreja lida
com coisas transcendentais, do redentivo Reino de Deus, é impossível que ela lide (ou
deva lidar) com utopias humanistas, socialistas ou comunistas, ideologias essencialmente
transformacionais. “Na Igreja, não há vencedores ou perdedores, mas cada ato de amor é
mutualmente enriquecido com a rica economia de Cristo – uma economia não baseada
em princípio de escassez, mas no princípio de extravagante abundância.”64
Contrariamente, o enfoque transformacionista apresentado tacitamente na obra
“Cristo e Cultura” pode ter ajudado a criar, por vezes, uma igreja evangélica dúbia quanto
a sua relação com a cultura, a sociedade e o mundo. Não por acaso pragmática,65
ambígua66 e maniqueísta,67 muitas vezes, em sua abordagem cultural no Brasil, não
contextualizada, mas sincretizada.68 Haja vista, a estratégia feita pela igreja evangélica
brasileira envolvendo, por exemplo, massivos programas de rádios e TVs, blocos de

63
VANDRUNEN, Living in God's two kingdoms, p. 141.
64
Ibid., p. 144.
65
Avaliada pela funcionalidade, pelo resultado e pela utilidade e não pela verdade da teologia bíblica.
66
Portadora de duplo sentido.
67
O maniqueísmo foi uma seita dualista, acética, e sincretista, dos séculos III e IV, que afirmava haver um
conflito cósmico entre poderes, luz e trevas, equivalentes, mas opostos entre si e incompatíveis.
68
Por exemplo, em algumas igrejas neopentecostais no Brasil o culto, o clero, a teologia e o templo estão
alinhados com o comércio fetichista, o uso de objetos com fins espirituais, para obtenção de curas,
exorcismos e prosperidade material tais quais as religiões de matrizes africanas, indígenas e pagãs.
46

carnavais e marchas “para Jesus”, boates e danceterias “gospel”, campeonatos de MMA


(Mixed Martial Arts – artes marciais mistas) no templo, “chamado” para cristãos e
missionários em um segmento social específico, entre outras coisas estranhas ao
cristianismo ortodoxo histórico. Artistas se convertem e dão testemunhos, de
apresentadora infantil a atores pornôs. Muitos cantores, sendo batizados, mas continuam
a fazer as mesmas coisas de antes da suposta “conversão” etc. Uma notória contradição
entre o falar e o agir, podendo deduzir equivocadamente que para se ser cristão evangélico
brasileiro não seja necessário o arrependimento dos pecados e a fé sincera em Jesus
Cristo, resultando em mudança prática de vida.
Tem havido muitas conversões e holofotes em torno de artistas da música e da
televisão, contendo também uma espécie de “apropriação cultural” às avessas. Artistas
não cristãos que cantam músicas gospel em seus shows, sem se apresentarem e se
comportarem como cristãos de fato, evidentemente; ou cristãos que fazem paráfrases de
conhecidas canções “seculares” com versões de letras “evangélicas” embutidas.69 Outro
método executado pela igreja brasileira, com ar de maior amadurecimento, é o de
envolvimento em transformação social como sinônimo de abrir ONGs para ajudar pobres
e marginalizados etc.70
Evidentemente essa questão é complexa. Não há a menor dúvida de que as
intenções possam ser honestas, pois já atuamos por doze anos em ministérios cristãos do
terceiro setor, todavia nosso enfoque aqui é teológico-filosófico e cultural.
Tal enfoque transformacionista acaba por tornar a igreja evangélica, no mínimo,
confusa no sentido holístico, integralista ou transformacionista. Lembramos de certa vez
quando, trabalhando numa favela como agente de transformação comunitária, nossa ONG
promoveu uma festa junina.71 Uma criança atendida pelo projeto chegou até nós e nos
perguntou com surpresa: “Ah! Agora a igreja evangélica pode fazer isso?”. Interessante
notar que o resultado foi exatamente o contrário da propositura teórica. Ao invés de ser
fermento e levedar a massa, a massa acabou por ficar murcha. Se os pentecostais, por
exemplo, são acusados de serem alienados por supostamente não serem participantes

69
Esses e muitos outros exemplos públicos e notórios são encontrados em qualquer pesquisa rápida pelo
Google.
70
A pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revela que em 2016 as entidades
religiosas representavam 35,1% do total de fundações e associações sem fins lucrativos do país. Ou seja,
mais de um terço das Fasfil (Fundações e associações sem fins lucrativos) tinham finalidade religiosa. As
entidades religiosas também lideram entre as ongs mais novas. Segundo o IBGE, entre 2011 e 2016 foram
criadas 19,9 mil instituições desta categoria, correspondendo a 43,5% do total das novas entidades. Em
seguido, aparecem cultura e recreação (11,0%) e outras instituições privados sem fins lucrativos (9,9%).
71
Festa popular dedicada a santos da igreja católica apostólica romana.
47

ativos da (trans)formação cultural local, para supostamente não se contaminarem “com o


mundo” ou por hipoteticamente não se corromperem com este mundo – serem contra
culturais; os transformacionistas não têm demonstrado de maneira prática a relevância da
transformação cultural que pretendiam fazer ou que projetaram manifestar. Portanto, não
entendemos que a proposta transformacionista de Niebuhr em “Cristo e Cultura” seja
suficiente como paradigma de engajamento cultural.
Pensando ainda naquele evangélico professo, se perguntássemos (retoricamente)
a ele, de modo geral, em sua opinião: Qual (ou quais) daquela(s) categoria(s) (ou
tipologias) levantadas por Niebuhr em “Cristo e Cultura” o crente deveria adotar para se
relacionar com a cultura? Qual seria sua provável resposta? Acreditamos que a resposta
dele estaria inclinada entre a primeira (CCC), a quarta (CCP) e a quinta (CTC) posições,
ou seja, as categorias contracultural, paradoxal e transformacional da cultura.
Constatamos, de modo geral, que estas três categorias fazem parte da postura
cultural do cristão brasileiro pelo simples fato de elas terem certas bases bíblicas para tais
posicionamentos. Estar conformado com a cultura (CDC), como os liberais, ou se
posicionar acima dela (CAC), como os católicos romanos, não nos parece biblicamente
fundamentado. Todavia, a primeira postura, a contracultural, e a última – dentre essas três
– a transformacionista, são aparentemente autoexcludentes ou complementares:72
enquanto uma foge da cultura e outra encara a cultura; uma tem potencialmente na cultura
o mal, a outra o bem; uma se vê numa atitude de santidade parte da cultura, outra de
justiça na cultura; e assim por diante. Se a postura for complementar, então, ela não seria
a postura paradoxal? Cremos que sim. Desta forma, entendemos que a escolha entre as
duas propostas se faz necessária para a saúde teológica e cultural da própria Igreja.
Acreditamos que a Teologia dos Dois Reinos não é antitética com a cultura, nem
contraditoriamente dualista e é, de fato, representante da tradição agostiniano-luterana e
calvinista, portanto, reformada. Cremos que a proposta transformacionista apresentadas
em “Cristo e Cultura” termina por ser na prática, especialmente no Brasil, reducionista a
questões sociais, pragmática e sem muita relevância prática de impacto cultural, mesmo
se avaliada por resultados qualitativos apenas. Acreditamos também que o cristão
brasileiro deva se relacionar com a cultura de modo mais bíblico, ou seja, de “dentro para

72
“Evitando esses extremos, temos de ver Cristo contra e a favor, questionador e afirmador, arrazoador e
acolhedor. Isso é complexo, mas por outro lado, o cristianismo não é estranho à complexidade”.
ELSHTAIN, Jean Bethke. With or against culture? Books & Culture, 12/5. Set/Out. 2006, p. 30. In:
CARSON, Donald A. Cristo & cultura: uma releitura. Vida Nova: São Paulo, 2012, p. 196.
48

fora”, pessoal, num movimento lógico mais indutivo, centrífugo, orgânico, do indivíduo
para a sociedade e consequentemente para a cultura, como nos parece ser propositado
pela Teologia dos Dois Reinos. Assim, não entendemos que a Teologia dos Dois Reinos,
apresentada por VanDrunen, contraria o engajamento cultural, tal qual incentivado pela
tradição reformada, mas a faz numa perspectiva mais bem fundamentada na Escritura.

3.4. A Reforma como exemplo

Ao partirmos da Reforma Protestante, por exemplo, é claro que ela impactou não
só a religião cristã, mas toda a cosmovisão cultural do Ocidente, seja nos campos da ética,
da economia, da política, da ciência, da literatura, da arte e da família.
Em 2017, por ocasião do Congresso A Relevância da Reforma para o Século XXI,
o Dr. Alderi Matos,73 historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil, proferiu uma palestra
intitulada “O Impacto da Reforma no Mundo Ocidental”, na qual propôs que a Reforma
impactou, entre outras coisas, a cosmovisão ocidental, a ética, a economia, a política, a
ciência, a literatura e a arte, e a família.
Com vasta documentação, foram demonstradas fontes tais como o livro
“Reforma”, de Collinson, no qual é afirmado que a Reforma Protestante foi a causa de
muito do que se tem no Ocidente hoje. Mesmo católicos romanos como Fernández-
Arnesto e Wilson também o admitem, com certas reservas. Alister McGrath afirma que a
Reforma foi um movimento de novas atitudes e cosmovisões que afastaram obstáculos
intelectuais a esses desenvolvimentos. Semelhantemente, Carter Lindberg afirmou que a
Reforma afetou todos os aspectos da cultura, trouxe uma nova atitude em relação ao
mundo totalmente diferente da atitude isolacionista dos monasticistas. Muito pelo
contrário, encorajava os cristãos a se engajarem no mundo através de uma nova ética na
vocação e no trabalho, não vistos mais como algo secular, mas sagrado, de benefícios
tanto espirituais quanto físicos. Evidência disso é a prosperidade econômica dos países
protestantes.

73
Professor de História da Igreja, Coordenador da área de Teologia Histórica do Centro de Pós-Graduação
Andrew Jumper (CPAJ). Graduou-se em teologia pelo Seminário Presbiteriano de Campinas (1974), sendo
também bacharel em Filosofia pela Universidade Católica do Paraná (1979) e em Direito pela Escola de
Direito de Curitiba (1983). Após vários anos de ministério no Paraná, fez seu mestrado em Novo
Testamento (S.T.M.) na Andover Newton Theological School, em Newton Centre, Massashusetts, EUA
(1988) e seu doutorado em História da Igreja na Boston University School of Theology (1996). Em 1997,
o Dr. Alderi veio trabalhar no CPAJ, onde também atua como coeditor da revista teológica Fides Reformata.
É escritor e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil, pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana
Ebenézer de São Paulo e articulista conhecido em diversos periódicos acadêmicos e populares.
49

De acordo com o Dr. Alderi, a Reforma influenciou na formação do capitalismo,


como Max Weber notou, embora haja controvérsias de sua interpretação abrangente
quanto à teologia, sobretudo dos Puritanos. Todavia, ele demonstrou conexões com o
Calvinismo. A Reforma também trouxe nova atitude econômica quanto à cobrança de
juros, segundo a interpretação dada por Calvino ao texto de Deuteronômio 23.19: “A teu
irmão não emprestarás com juros, seja dinheiro, seja comida ou qualquer coisa que é
costume se emprestar com juros”. 74
Quanto às mudanças no pensamento político, a Reforma forneceu uma “ideologia
de transição”, segundo Quentin Skinner. Trouxe também uma contribuição essencial em
relação ao surgimento de um ethos demográfico, seja com Lutero na Alemanha, por meio
da tradução da Bíblia e a ênfase na educação universal, seja com Calvino em Genebra,
demonstrando que Deus havia pactuado como a Igreja (comunidade) trazendo
igualitarismo religioso, social e político.
Com relação ao surgimento das ciências naturais houve uma revolução
hermenêutica nos estudos acadêmicos. Thomas Sprat fala dos dois livros (A Bíblia e a
natureza) e as duas reformas (a protestante e a científica) na composição da era moderna.
Johann Kepler dizia que os “cientistas são os que pensam os pensamentos de Deus após
ele.”75 (sic). A própria Royal Society admirava Calvino quando afirmava que “o universo
é o grande teatro de Deus”.76
Enfim, na literatura e na arte, a Reforma foi um movimento voltado à leitura e à
produção literária, impactou os idiomas e a literatura de diferentes povos. Na música,
produziu mais de quatro mil hinos até o final do século XIV. Contribuiu também com o
conceito de casamento e família como fonte de impacto social. E, finalmente, forneceu
enorme esforço missionário no mundo levando benefícios aos povos.
Podemos observar dois exemplos abaixo de como os aspectos culturais da
Reforma influenciaram os governos do Estado e da Igreja, especialmente no Ocidente:

3.4.1. Reforma, governo e Estado

A relação de todos esses aspectos culturais e a relação da Igreja (Reformada) e o

74
CALVIN, John. Calvin's commentary on the Bible: Deuteronomy. Disponível em:
https://www.studylight.org/commentaries/cal/deuteronomy-23.html. Acesso em: 14 jul. 2019.
75
KEPLER, Johannes. Kepler on God. In: New world encyclopedia. Disponível em:
https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Johannes_Kepler. Acesso em: 16 jul. 2019.
76
MCGRATH, Alister. A life of John Calvin. New Jersey: John Wiley & Sons, p. 255.
50

Estado, no início da Reforma Protestante,77 são demonstradas por VanDrunen na maneira


como esta tradição aplicou a Teologia dos Dois Reinos diferentemente da luterana no que
tange ao governo exterior da Igreja. Os luteranos se contentaram em permitir que o Estado
controlasse a administração da Igreja, uma visão compartilhada no mundo reformado por
Thomas Erastus, chamada de erastianismo. 78 Contudo, de maneira geral, os reformados
seguiram o exemplo de Calvino, que perseverou na administração exterior da Igreja,
incluindo o direito de excomungar, um atributo que não deveria ser entregue ao Estado,
mas exclusivo dela. Aliás, este foi um dos motivos-base da reforma protestante: a
separação da Igreja e do Estado.
Talvez, por influência do evangelicalismo atual, acredita-se que os reformados
tenham defendido historicamente uma visão significativamente diferente da Teologia dos
Dois Reinos, assumindo a concepção transformacionista apresentada por Niebuhr. Na
realidade, porém, Calvino e outros reformados ortodoxos como Turretini79 e mesmo
Kuyper80 mais tarde claramente distinguiam entre a redentora obra de salvação de Deus
e a obra terrena da providência. Eles defendiam que Deus atuava de forma diferente em
cada reino e percebiam esta obra redentora como parte do domínio da Igreja, enquanto a
obra terrena estaria sob o domínio dos magistrados.
Embora Calvino reconhecesse que todo magistrado fosse estabelecido e designado
por Deus,81 o meritíssimo não deveria se olvidar de seus deveres, entre os quais estão à
preservação da liberdade, inclusive religiosa, e do direito do povo na promoção do bem-
estar social através da segurança pública na manutenção da ordem social, mesmo que para
isso fosse necessário “o uso da espada”82 no estabelecimento da justiça.83 O magistrado,
porém, não poderia abusar de sua autoridade na busca por autopromoção. Ele não poderia,
por exemplo, enriquecer-se com dinheiro público nem privilegiar uma minoria, porque
ele não foi outorgado por Deus para tomar decisão ou sancionar leis a despeito da vontade

77
VANDRUNEN, David. The two kingdoms doctrine and the relationship of church and state in the early
reformed tradition. Journal of Church and State, Oxford, v. 49, n. 4, p. 752. 2007.
78
Uma contundente crítica ao erastianismo, também conhecido como prelado, se encontra em
WITHEROW, Thomas. A igreja apostólica: que significa isto? São Paulo: Os Puritanos, 2005, p. 63-76,
a qual recorreremos mais tarde. Embora o alvo do autor seja a Igreja Anglicana, não a Luterana, como
VanDrunen propõe.
79
TURRENTIN, Francis. Institutes of elenctic theology. 3 vols. Phillipsburg: P&R, 1992-1997, p. 2486-
2487. In: VANDRUNEN, David. Natural law and the two kingdoms, 2010, p. 173-182.
80
KUYPER, Abraham. Lectures on Calvinism. Grand Rapids: Eerdmans, 1931 e KUYPER, Abraham.
Common grace. 3 vols. Grand Rapids: Christian’s Library, 2013. In: Ibid., 2010, p. 276-315.
81
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Tomo II. Livro IV. 20.4. São Paulo: UNESP, 2009,
p. 878.
82
Ibid., IV. 20.10, p. 884.
83
Ibid., IV. 20.8-10, p. 881-886.
51

do povo. Ele não foi instituído para ser um mau exemplo de desonestidade, pois, acabaria
assim sendo desrespeitado pelo povo.84
No entanto, a seguir vem algo bastante distintivo em Calvino. É que mesmo se um
magistrado cometesse erros e até mesmo injustiças e improbidades, o povo deveria
entender isso como juízo de Deus contra a iniquidade do próprio povo.85 As pessoas não
deveriam revidar contra seus maus governantes nesse caso.86 O próprio Deus executaria
juízo e vingaria na punição dos maus magistrados.87 E isso poderia, inclusive, acontecer
por instrumentalidade de outros magistrados.88
Enfim, o povo deve prestar obediência às autoridades constituídas, porém com
uma exceção: tal obediência “[v]ai apenas até onde não implique em desobediência a
Deus, o supremo soberano a quem importa sempre e em tudo obedecer”.89

3.4.2. A Reforma e o governo da Igreja

Seguindo a linha de raciocínio acima, não só em se tratando de autoridades


constituídas no Estado, mas também na Igreja, em seu sistema de governo eclesiástico e
das formas administrativas da igreja cristã, a Reforma Protestante trouxe importantes
impactos culturais. Sendo a Igreja a única manifestação terrena do reino dos céus, tanto a
natureza, quanto as características e os distintivos da Igreja para a comunidade cristã, são
de vital e central importância. Minha suspeita é que a cultura governamental da Igreja
(interna) pode refletir na concepção que tal Igreja tem da cultura social (externa).
Existem, basicamente, três formas de governo eclesiástico: a episcopal, a
congregacional e a presbiteral ou presbiteriano.90 Compreendendo essa pluralidade
interpretativa sustentamos que a forma de governo presbiteriano é o modelo com maior
consistência bíblica que as demais e que os presbiterianos podem ter melhor e mais
assertiva concepção da Teologia dos Reinos que os demais. Por que essa forma de
governo eclesiástico tem mais elementos bíblicos que as outras duas?

84
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Tomo II. Livro IV. 20.4. São Paulo: UNESP, 2009,
p. 896.
85
Ibid., IV. 20.25, p. 897.
86
Ibid., IV. 20.29, p. 899.
87
Ibid., IV. 20.30, p. 900.
88
Ibid., IV. 20.31, p. 901.
89
Op. Cit. 20.32, p. 901.
90
WITHEROW, Thomas. A igreja apostólica: que significa isto? São Paulo: Os Puritanos, 2005, p. 63.
52

Pretendendo despertar a importância da experiência da Igreja com a cultura


podemos afirmar que a forma de governo episcopal se faz de um líder que governa sobre
toda a igreja local. Essa é uma das razões pelas quais os cristãos sujeitos a essa forma de
governo são mais dados a relação individualista com a cultura, uma vez que a
interpretação dada pelo líder é a praticada pela maioria do restante da igreja. O governo
congregacional se faz, ao contrário, pela gerência dos membros da igreja local, a
congregação, sobre si próprios. Essa é uma das razões pelas quais os cristãos sujeitos a
essa forma de governo são mais dados a relação coletivista com a cultura, uma vez que a
interpretação dada pelo gueto cultural daquela igreja local é a praticada pela maioria do
restante da própria igreja local. E o presbiteriano que se faz na forma de governo de alguns
eleitos para governarem sobre todos. Essa é uma das razões pelas quais os cristãos sujeitos
a essa forma de governo são mais dados a relação dialético-paradoxal com a cultura, uma
vez que a interpretação dada pelos Concílios é praticada pela maioria da igreja, sem,
contudo, deixar de compreender suas liberdades individuais inclusive para questionar os
Concílios em instâncias superiores se necessário.
Alguns exemplos de denominações, segundo as categorias de Niebuhr, de igrejas
episcopais: a Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja da Inglaterra, isto é, a Igreja
Anglicana e as demais igrejas da denominação Episcopal e Metodistas. Já no Brasil, as
Assembleias de Deus, e a maioria das igrejas pentecostais e neopentecostais são
contraculturais, conformados com a cultura (os teologicamente liberais), ou se portam
como agentes moralistas acima da cultura comum (os católicos romanos). Seguem as
igrejas de linhas congregacionais: a Igreja Batista e as da denominação Congregacional,
geralmente transformacionistas, excetuando-se, talvez, os batistas e congregacionais
reformados. Do modelo presbiteriano é apresentado quase que exclusivamente pela Igreja
Presbiteriana (reformada) e essa é, abrangentemente, paradoxal em sua relação com a
cultura.91
Parece que as formas de governo eclesiástico, de alguma maneira, expressam
também a forma política secular de suas origens na história ou de suas influências
sociológicas. Aristóteles, por exemplo, fala também de três formas de governo público:
“1) o monárquico – governo de um só, vitalício; de monos, um; 2) o democrático –
governo escolhido pela maioria; e 3) o aristocrático – governo de uma elite; de aristos,

91
CORREIA. Fábio. Os modelos de governo eclesiástico, suas vantagens e dificuldades práticas.
Disponível em: <http://filosofiacalvinista.blogspot.com.br/2012/01/os-modelos-de-governo-eclesiastico-
suas.html>. Acesso em: 24 jun. 2019.
53

melhor somado a krateo, dono, governador”.92 A despeito disso, porém, constatamos que
a forma de governo eclesiástico possui maior sustentação na Escritura Sagrada.
Para analisar esta fundamentação bíblica é possível que Thomas Witherow,93 já
no século XIX, nos ajude. Ele enumerou seis critérios bíblicos eclesiológicos para ser
comparado ao paradigma que ele chama de “Igreja Apostólica”. Tais critérios
neotestamentários são os seguintes: 1) os oficiais eram eleitos pelo povo; 2) os ofícios de
bispo e presbíteros eram a mesma coisa; 3) o governo era exercido por uma pluralidade
de presbíteros; 4) a ordenação era um ato de um presbitério – uma pluralidade de
presbíteros; 5) havia o privilégio de se apelar ao presbitério em casos especiais e o direito
de governo exercido por seus delegados; e 6) Cristo é a Cabeça suprema da Igreja em
todas as coisas. 94
Essa verificação é importante por vários motivos. Se se tem a Palavra de Deus por
verdade e se acredita que ela deva orientar os cristãos em todos os assuntos da vida,
quanto mais às questões da Igreja de Cristo, uma vez que ela transcende o tempo e espaço,
nada é de somenos importância na Escritura. Outra coisa importante é que se a Bíblia
trata de forma de governo eclesiástico, e é fato que ela o faz, devemos atentar ao que Deus
fala de Sua Igreja, incluindo o modo correto de governá-la e dela lidar com a cultura.
Para tanto, não há melhor forma de se saber se um modelo de governo de Igreja é
mais bem adequado que o outro se não a observar por sua consistência bíblica. Todavia,
precisamos primeira e rapidamente estudar cada forma em particular para depois as
compararmos entre si e encontrar uma conclusão confiável, fundamentada na Bíblia.

a) O episcopalismo

Esse sistema de governo eclesiástico coloca a autoridade maior no ofício do bispo.


No meio protestante inglês, é geralmente identificado com o erastianismo, título derivado
do nome e pensamento de Thomas Erastus (1524-1583), que defendeu a autoridade do
Estado sobre a Igreja em todas as questões.

92
Cf. SOBRINHO, João Falcão. A túnica inconsútil. São Paulo, s/d, p.57-58. Apostila de eclesiologia do
Seminário Teológico Batista do Sul. In: LEITE, Túlio César Costa. Um sistema de governo presbiteriano.
Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/igreja/governo-presbiteriano_tulio.pdf> Acesso em:
24 de jun. 2019.
93
Ministro eclesiástico irlandês e professor de História da Igreja. Viveu de 1824 a 1890.
94
WITHEROW, Igreja Apostólica, p. 33-61.
54

O episcopalismo está presente desde a tradição Católica Romana perpassando pelo


Anglicanismo de influência calvinista do século XVI e pelo Metodismo de influência
arminiana do século XVIII. No Brasil, a Assembleia de Deus é uma denominação de
origem nacional de pouco mais de um século. Porém, é com o movimento neopentecostal
do final da década de 1970 que o episcopalismo passou a ser o sistema de governo
eclesiástico evangélico mais difundido pelo país, já que também o era pelo catolicismo.
Entendo ser este um motivo pelo qual o cristão brasileiro se comporta com a cultura de
maneira cada vez mais contrária e hostil.
Talvez no Brasil, devido à sua formação política advinda da colonização de
exploração portuguesa com dominação de indígenas e africanos escravizados, o
episcopalismo tivesse mesmo maior popularidade e aceitação. O grande problema dessa
forma de governo é exatamente o populismo e a centralidade de poder. Pastores
televisivos são personalidades famosas em toda a nação. Eles são como “chefes de
Estado”, poderosos, de multidões. Geralmente, têm, ou desejam ter, fama, poder e
dinheiro, porque isso é um suposto sinal da aprovação ministerial dada por Deus, de
acordo com a teologia da prosperidade que a maioria deles segue. Alguns dizem que é
uma forma de governo dinâmico, porque, em tese, tudo na igreja é resolvido rapidamente.
O líder episcopal no Brasil geralmente considera satânico ou demoníaco qualquer coisa
relacionada com a cultura ou demonstra alguma inconsistência na maneira de ligar com
os usos e costumes. Lembrando do exemplo das roupas, antigamente as mulheres não
podiam usar calças, somente saias, hoje já podem.
No entanto, quando a pergunta (se é biblicamente fundado) é feita, a resposta só
pode ser enfaticamente negativa. Não se encontra em nenhum texto bíblico, de contexto
eclesiástico, qualquer menção a uma forma de governo individualista e centralizador. No
contexto político sim, na monarquia, por exemplo, mas não no contexto eclesiástico.
Episcopais tentam provar que os sumos sacerdotes de Israel exerciam poder
exclusivo e concentrado, mas isso não é verdade. Como Israel era um estado teocrático,
o governo da “igreja” do Antigo Testamento era feito por patriarcas, estadistas,
guerreiros, juízes e reis, mas não pelo sumo sacerdote, cuja função específica era
religiosa, a de entrar nos Santos dos Santos, uma vez por ano, no Dia da Expiação. A
única função cívica do sumo sacerdote estava na aplicação da Lei no caso de homicídios
não intencionais. O ofício do sumo sacerdote era vitalício e hereditário. Porém, nada é
mencionado em relação a seu domínio singular e centrípeto. Os sacerdotes faziam parte
de uma das tribos de Israel que também era governada pelo Estado político de Israel.
55

Pensamos que seria interessante ouvir um sacerdote católico romano, antigo


professor no Seminário Issy-les-Moulineaux, o qual poderia defender o episcopalismo
com “alguma” base na Escritura, mas tratando sobre o sacerdócio e o ministério, ele
prefere ser honesto ao dizer que:

Um fato é evidente: quando os textos do Novo Testamento falam do


sacerdócio, visam a Jesus ou à comunidade, nunca aos ministros; quando
enumeram os ministérios, não fazem referência alguma ao sacerdócio. Os
documentos relativos às duas questões não estabelecem nenhuma
conexão explícita. (...) Ao escolher outros termos para designar os
ministros do evangelho, o Novo Testamento marca, de maneira radical, a
novidade cristã em relação aos cultos pagãos e até ao culto do Judaísmo,
no meio da qual a Igreja nasceu. A variedade dos títulos explica-se pela
diversidade de ambientes cristãos e de sua visão da Igreja, apresentada
sob as imagens de corpo, construção, de povo em marcha, de rebanho etc.
Sentimos maior afinidade com o título de pastor.95

Como mencionado acima pelo teólogo católico, o título de sumo sacerdote se


aplica, no Novo Testamento, a Jesus e não a um líder eclesiástico qualquer. O sacerdócio
neotestamentário, como o moto da Reforma decretava, é universal. Consequentemente,
não se dá aí, nem há lugar algum na Bíblia, a defesa escriturística dessa forma de governo
da Igreja, uma vez que ela não passa de mera instrumentalização humana sem paralelo
para a condução espiritual, político e cultural de um ente terreno, mas também celestial,
a Igreja de Deus.
Sendo o episcopalismo assim tão sem base bíblica, será que o congregacionalismo
estará mais bem embasado? E sua consequente relação cultural?

b) Congregacionalismo

Essa maneira de governar a igreja dá ênfase à autonomia, à independência e à


autoridade da igreja local. Podemos discutir se ela surgiu com os anabatistas ou com os
puritanos ingleses separatistas da Igreja Anglicana no século XVI. Contudo, de qualquer
forma, parece que esse sistema de governo surge da necessidade de se independer de
algum “mal-entendido” de membros ou líderes de igrejas de governo episcopal sem a
devida análise bíblica. Surge mais como movimento reacionário que convicção
eclesiológica. Na verdade, mesmo antes do iluminismo, os batistas reivindicavam

95
AUNEAU, Joseph. O sacerdócio na Bíblia. Cadernos Bíblicos 61. São Paulo: Paulus, 1994, p. 78-79.
56

separação total de Igreja e Estado, o que é correto. Talvez seja esse o real motivo de se
separarem de qualquer igreja de orientação erastiana.
O congregacionalismo, ou igreja independente, está presente no regime de
administração da Igreja Batista, Discípulos de Cristo, Igreja de Cristo e Congregacional,
tanto de convicção calvinista quanto arminiana. No Brasil, este sistema tem sido
difundido pelos batistas desde o século XIX. Entendo ser este um motivo pelo qual o
cristão batista brasileiro se comporta com a cultura de maneira cada vez mais
transformacionista.
É possível que a política democrática tenha também influenciado na história o
surgimento desse tipo de governo participativo na esfera religiosa. O homem tornando-
se “autônomo” desde os idos iluministas, da transferência teocêntrica para
antropocêntrica, certamente se viu corroborado para ao menos o senso de pertencimento
congregacional sem abandonar a individualidade tão cara. Todavia, além de problemas
de exposição pública ao tratar de disciplina de membro a apreciação de adolescentes,
pessoas imaturas e leigas para tomarem decisões que tangem a eternidade de uma pessoa,
por exemplo, o sistema congregacional pode ser flagrado em sérias dificuldades na esfera
social. Pode soar arrogante e pretensiosamente antropocêntrico supor redimir uma cultura
para fins teocráticos.
O modelo congregacional contempla três princípios: “eleição popular, a
identidade de presbítero e bispo; e o reconhecimento de que Cristo é a cabeça da igreja”,
contudo, desconsidera “a pluralidade de presbíteros em cada Igreja; ordenação com a
imposição de mãos pelo presbitério e o privilégio de apelar ou recorrer.” Deste modo,
estar mais ou menos “bíblico” não é uma boa opção para um tema tão importante.
Constamos, portanto, que o presbiterianismo se posiciona de maneira mais consistente
que os outros dois modelos anteriores.

c) O Presbiterianismo

Interessantemente, o livro “O Sistema Presbiteriano”, de W. R. Roberts, define o


presbiterianismo como “o corpo de verdades e leis religiosas que tem como verdade
fundamental a soberania de Deus”.96 Pode-se dizer que “soberania de Deus” implica
necessariamente soberania da Palavra de Deus sobre qualquer conceituação humana.

96
ROBERTS, W. H. O sistema presbiteriano. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 14.
57

Assim é preciso deixar claro que presbiterianismo não se trata somente de forma de
governo eclesiástico, mas na verdade atribuída à exegese e a hermenêutica dada a toda
Sagrada Escritura. É um sistema, um sistema bíblico de verdade. Muitas vezes, isso se
dará em contraposição às doutrinas liberais e racionalistas de um lado, ou pentecostais e
empiristas de outro, bem como qualquer forma de subjetivismo e pragmatismo. Todavia,
como o tema está delimitado ao sistema de governo eclesiástico e sua relação eclesiástica
com a cultura não se trata aqui de todas as nuances do presbiterianismo (teologia, dever
e culto, como exemplificados nos padrões de Westminster, etc.), mas estaremos atentos a
questão da cultura administrativa interna e a hipótese de um influencia com a cultura do
mundo externo.97
No Brasil, como dito anteriormente, só a Igreja Presbiteriana do Brasil cumpre os
requisitos dessa forma de governo em sua integridade e é a representante legítima e
autêntica de uma verdadeira denominação reformada. A igreja presbiteriana “é uma
comunidade constituída de crentes professos juntamente com seus filhos e outros menores
sob sua guarda”.98 A acusação de John Frame a R. Scott Clark de que isso que acabamos
de constatar é chauvinismo 99 não se aplica por de fato estarmos lidando com exposição
escriturística, não bairrismo.100
Marca distintiva do governo presbiteriano se faz pela representatividade dos
presbíteros (Atos 15; 3 João 9). Existem muitas evidencias dessa forma de governo na
Bíblia (Atos 14.23; Tito 1.5; Atos 15, 2, 4, 6, 22 e 23; Atos 16.4; Atos 20.17; 1 Pedro 5.1-
2, 6; Filipenses 1.1; 1 Timóteo 5.17; Tiago 5.14; 1 Pedro 5.1; 1 João 1; 3 João 1). Os
presbíteros são eleitos em assembleia. Eles farão parte, juntamente com o pastor ou
pastores (também chamados de presbíteros docentes – os primeiros são chamados de
presbíteros regentes101) do concílio da igreja local denominado de Conselho. Façamos o
paralelo aqui, usando uma linguagem de Calvino, de representações do reino comum, os
presbíteros regentes, e de representantes do reino espiritual, os presbíteros docentes:

97
Cf. Capítulo XXXI – Dos Sínodos e Concílios. In: Confissão de Fé de Westminster, A. 17ª ed. São
Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 227-230.
98
Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil (CI/IPB), Capítulo II – Organização das Comunidades
Locais, Art. 4. In: Manual presbiteriano: com notas remissivas. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 10.
(Doravante como no modelo a seguir: Art. 4, CI/IPB).
99
Cf. o rodapé da p. 41 desta monografia, parágrafo primeiro.
100
Considera-se atitude daqueles que defendem seus interesses próprios em detrimento dos de outras
pessoas.
101
Art. 25, CI/IPB.
58

A Escritura faz a distinção entre presbíteros regentes (1Tm 3.4-5; 1Tm


5.17) e presbíteros docentes (1Pe 5.1). Todavia, isto não significa que um
seja superior ao outro. Como estas passagens demonstram, não há uma
distinção absoluta entre estes ofícios. Presbíteros regentes também
devem ser capazes de ensinar (1Tm 3.2), e presbíteros docentes “que se
afadigam na palavra e no ensino” também governam (1Tm 5.17).102

Representantes do Conselho (pastor e presbítero) formam o Presbitério, o qual,


por sua vez, será representado no Sínodo, e, por fim, destes virão os representantes para
o Supremo Concílio, em nível nacional.103 Daí vem o conceito de sistema conciliar
presbiteriano ou o sistema presbiteriano de governo.104 Os Conselhos governam,
administram e disciplinam na igreja presbiteriana e a autoridade destes é “espiritual,
declarativa e judiciária”, ou seja, lida culturalmente com o reino espiritual e com o reino
comum.105
Ao pensar nos critérios levantados por Thomas Witherow, o resultado verificável
e examinado da Escritura é que “o Sistema Presbiteriano é, em termos de governo, a única
Igreja Apostólica” e, assim, considera que “de todas as Igrejas existentes no mundo, a
Igreja Presbiteriana é a que mais se aproxima do modelo dos tempos apostólicos”.106
Dessa forma, propormos refletir se a igreja reformada (presbiteriana) não poderia também
ser a que melhor representasse a Teologia dos Dois Reinos em sua relação com a cultura,
a sociedade e o mundo?
Na sequência há outra declaração tão contundente como a anterior, isto é, que não
só a teologia prática, mas especialmente, a própria Escritura faz alegação. Importante
notarmos a essa altura uma pequena exegese de um texto bíblico, a título de
exemplificação, para nos auxiliar a compreender o que estamos transmitindo.

3.5. Um exemplo exegético: Isaías 13.6-13

Escolhemos o texto de Isaías, capítulo 13, versos de 6 a 13, para refletirmos acerca
do Dia do Senhor narrado por este profeta, uma vez que se trata de um texto que fala tanto
da criação (quanto da cultura), da queda, da redenção e da consumação.

102
HANKO, Ronald. Doctrine according to Godliness: a primer of reformed doctrine. Grandville:
Reformed Free, 2004, p. 240. In: TOKASHIKI, Firme Fundamento, p. 9.
103
Art. 60, CI/IPB.
104
NASCIMENTO, Adão C.; MATOS, Alderi S. de. O que todo presbiteriano inteligente deve saber.
Santa Bárbara do Oeste: Socep/Z3, 2007, p. 75-82.
105
Art. 69, CI/IPB.
106
WITHEROW, Igreja Apostólica, p. 79 e 84.
59

Seguindo o fio condutor, no Dia do Senhor, se executa o juízo com imagens


bélicas e militares. A tonalidade é imperativa. Depois de subscrever um editorial (v. 1) e
dar voz de comando a seus guerreiros (v. 2 e 3), o Senhor se alista com suas tropas para
a batalha.
Esse Dia é caracterizado por três aspectos distintivos: 1) é um dia “sobrenatural”,
porque o desígnio de Deus, muitas vezes oculto na história, é revelado em sua grandeza
não só local ou regional, nem mesmo internacionalmente, mas também cósmico e
eternamente; 2) é um dia de justiça, pois traz a derrota dos poderes malignos e o
julgamento dos pecados humanos; 3) é também um dia redentivo, uma vez que Ele trará
“novidade de vida” para aqueles “que nele espera”.107 Quanto à análise do texto, vemos
que em Isaías 13, verso:

• Isaías 13.6: “Uivai, porque o dia do SENHOR está perto; virá do Todo-Poderoso
como assolação.”

✓ O Dia do SENHOR é de choro e sofrimento: “uivai” é sinônimo de proferir


um prolongado grito agudo de tristeza ou terror dada as circunstâncias
desesperadoras. Felinos, geralmente mais resistente em força que os seres
humanos, uivam quando sentem dores. Por quê? Porque o dia do juízo de Deus
se aproxima. Será um dia terrível, um dia em que Deus derrama Sua justa ira
sem restrições. Ele incluirá um período de sete anos de Tribulação culminando
no que Jesus denominou a Grande Tribulação.108 Na versão King James está
traduzido por “pranteai”. Todavia, a intensidade é muito maior que a
mensurada pelos homens.

✓ O Dia do SENHOR está cada vez mais próximo: em hebraico literalmente “à


mão”, a ponto de poder agarrar-se. Trata-se do dia do término da história
humana. Oswalt109 observa que “É um dia em que a força humana ficará
desamparada, quando a própria criação tremerá, quando a capacidade quase
ilimitada contra a crueldade humana será desencadeada”. Na verdade, o Dia

107
ERICKSON, Millard J. Opções contemporâneas na escatologia: um estudo do milênio. São Paulo:
Vida Nova, 1982, p. 26-27.
108
HURT, Bruce. Isaiah commentary verse by verse: literal interpretation. Disponível em:
http://www.preceptaustin.org/isaiah_commentaries. Acesso em: 20 mai. 2019. Passim.
109
OSWALT, John N. The book of Isaiah: chapters 1-39 - the international commentary on the Old
Testament. Michigan: Willian B. Eerdmans, 1986, p. 301.
60

do Senhor está cada vez mais próximo. A cada dia que se passa se aproxima
ainda mais. Esta expressão em Isaías nos lembra das palavras de João (e seu
registro das palavras de Jesus) dos tempos finais do Apocalipse (3.11, 22.6,7).

✓ O Dia do SENHOR vem do Todo Poderoso: não há dúvida de quem está


trazendo este tempo de grande destruição ao mundo. Somente o Senhor Deus
Todo Poderoso poderia trazer tal extermínio. “Senhor” é Jeová (ou Javé,
Yahweh) e “Todo Poderoso” é Shaddai. Há aqui uma paronomásia110 (no texto
hebraico sod/shod, algo como “do destruidor virá a destruição”.

✓ O Dia do SENHOR vem assolar: vem com violência, devastação (desolação,


destruição, opressão, extorsão, estrago e desperdício). Showers111 nota que “O
Dia do Senhor se refere às intervenções especiais de Deus no curso dos
eventos mundiais para julgar Seus inimigos, realizar Seu propósito para a
história e, assim, demonstrar quem ele é – o Deus soberano do universo”.

• Isaías 13.7: “Pelo que todas as mãos se debilitarão, e se derreterá o coração de


todos os homens.”

✓ O Dia do SENHOR fará com que as mãos fiquem debilitadas –


manifestação externa: na versão King James está traduzido por “ficarão
trêmulas” em vez de “se debilitarão”; já na Almeida Revista e Atualizada está
“frouxas”. Diante da ira desenfreada de Deus, as mãos dos homens cairão
completamente desamparadas, impotentes e incapazes de resistir. Estas
descrições representam um quadro de destruição e terror que é quase
inimaginável. Para Matthew Henry,112 o texto diz respeito às mãos de todos
os babilônios, contudo, o Dia do Senhor tem conotação universal. A cidade da
Babilônia será levada de repente e de uma só vez, de modo que os guerreiros
dela não deverão ser capazes de levantá-las para arremeter-se às armas para

110
Isto é, palavras com significados diferentes que se escrevem e se pronunciam de forma parecida.
111
SHOWERS, Reginald E. Maranatha, our lord come. Bellmawr: The Friends of Israel Gospel Ministry,
1995, p. 38.
112
HENRY, Matthew. Commentary on the whole Bible. In: MEYERS, Rick. E-sword®. [Aplicativo].
Version 10.4.0, Franklin: 2014.
61

lutar ou se defender. Em Ezequiel 7.17 diz que “Todos os braços se


enfraquecerão e todos os joelhos se tornarão trêmulos e fracos como água”.
Jeremias observa que “Quando o rei a Babilônia ouviu os relatórios sobre eles,
as suas mãos tremeram e perderam a força” (Jeremias 50.43).

✓ O Dia do SENHOR “derreterá o coração de todos os homens.” –


manifestação interna: de temor, continua na versão King James. Motyer113
entende que “mãos” e “coração” nos remetem a “os órgãos, respectivamente,
de ação pessoal e reflexão. O terror do dia traz paralisia total à pessoa.”
Interessante atinar para a continuação do texto de Jeremias 50.43 que ainda
diz sobre “Uma terrível e profunda angústia tomou conta dele e sentiu fortes
dores”. Vários textos falam sobre o coração angustiado por causa da presença
do Senhor Deus, por exemplo, Josué 2.11: “Ao ouvirmos isso nosso coração
desfaleceu e não restou mais coragem nem ânimo em ninguém”; em Jeremias
51.30, fala de “Os valentes da Babilônia cessaram de pelejar, permaneceram
nas fortalezas, desfaleceu-lhes os ânimos e as forças; tornaram-se semelhantes
a mulheres”. Mas em Ezequiel 21.7, o texto é ainda mais enfático: “E quando
lhe indagarem: ‘Por que te lamentas com tamanha comoção?’ Responderás:
Ah, meu povo! É por causa das terríveis notícias que chegaram ao meu
conhecimento: Eis que todo coração se derreterá de pavor e aflição; assim
como toda mão perderá a força, e todo o espírito desmaiará de angústia; todo
o joelho se tornará como água, incapaz de sustentar o corpo. Eis, portanto, que
a destruição vem chegando! Não há a menor dúvida sobre o horror que se
aproxima a galope! Palavra do Soberano, Yahweh, o SENHOR.”

• Isaías 13.8: “E ficarão desanimados; e deles se apoderarão dores e ais; e se


angustiarão, como a mulher que está de parto; olharão atônitos uns para os outros;
os seus rostos serão rostos flamejantes.”

✓ O Dia do SENHOR trará desânimo aos homens: é perceptível como Isaías


constante e progressivamente intensifica as expressões de horror do Dia do
Senhor. Na versão Almeida Revista e Atualizada a ideia é de assombro. Em

113
MOTYER, J. A. Isaiah: an introduction and commentary. V. 20. Tyndale old Testament commentaries.
Downers Grove: InterVarsity Press, 1999, p. 16.
62

hebraico “tremer para dentro”. Mas, na verdade, o termo “desanimados”


poderia ser traduzido por consternados, perturbados, ansiosos, apressados,
acelerados. Todos os homens tremerão interior e exteriormente quando
confrontados com o Dia do Senhor, porque lhes trará algo inesperado,
ameaçador e desastroso.

✓ O Dia do SENHOR apodera os homens de dores e ais no corpo físico: em


hebraico o termo “ais” ilustra literalmente uma dobradiça rangendo por estar
sendo pressionada. Estas serão algumas reações e demonstrações que terão
aqueles que vivem como se o Dia do Senhor não fosse existir, ilustrado pelos
babilônios. Eles sofrerão e gritarão pavorosos.

✓ O Dia do SENHOR trará angústia aos homens na alma: um contorcer-se de


dores, semelhantes às de uma mulher em trabalho de parto. Da mesma forma
que as contrações preparam a grávida para um momento inevitável tais quais
serão os sinais aprontados para esse grande dia. São, de fato, muitos os textos
que tratam a dor de parto como sinônimo de pavor (Salmos 48.6 e Jr 48.41 –
medo e pavor), angústia, transtorno e perplexidade (Isaías 21.3), desejo de
gritar (Isaías 26.17 e Jeremias 4.31 – gritos de agonia), sofrimento (Jeremias
13.21, 49.22 e Oséias 13.13) e paralisia causada por pânico (Jeremias 49.24).

✓ O Dia do SENHOR deixará os homens atônitos: em hebraico “olharão


atônitos uns para os outros” literalmente é “pergunta cada homem a seu
vizinho” tamanho pasmo, pânico e desespero. Eles terão medo da repentina
tomada da cidade pelas tropas de Ciro marchando do centro ao palácio do rei
da Babilônia. A cidade outrora esplendorosa e famosa pela coragem nas
conquistas, agora se vale da covardia e da vergonha de seus habitantes.

✓ O Dia do SENHOR trará vergonha aos homens: rostos flamejantes


(literalmente rostos de chamas de fogo) como labaredas expressa o vermelho
corado de vergonha, muito parecido com a cor da chama ou como os rostos
dos ferreiros que trabalham em uma forja. Ilustrações semelhantes são
apresentadas pelos profetas Ezequiel (20.47: “Abre a tua boca e diz à floresta
do Sul: Ouve a Palavra de Yahweh: Assim diz o SENHOR Soberano Deus: Eis
63

que eu acenderei em ti um fogo que consumirá todas as tuas árvores, tanto as


verdes e viçosas quanto as fracas e secas. A chama abrasadora não poderá ser
apagada, e todos os rostos, desde o Sul até no Norte, serão incendiados por
ela.”), Joel (2.6: “Perante eles os povos se contorcem apavorados e aflitos;
todos os rostos ficam pálidos de medo.”) e Naum (2.10: “Ela está saqueada,
esgotada e completamente devastada; derrete-se o coração, tremem os joelhos,
o corpo está tomado pela dor; o rosto de todos eles empalidece.”)

• Isaías 13.9: “Eis que o dia do SENHOR vem, horrendo, com furor e ira ardente;
para pôr a terra em assolação e para destruir do meio dela os seus pecadores.

✓ O Dia do SENHOR vem com terror: a conotação é a mesma do verso 6, porém


enfatizando como o Dia do Senhor vem iminentemente. “Eis que” é uma
interjeição inserida para chamar a atenção do leitor. A ideia é ouvir
atentamente para a seguinte descrição do dia terrível que chega. O profeta
Isaías já havia dito: “Em virtude da ira de Yahweh, o Todo Poderoso, a terra
foi ressecada e o povo todo será como lenha no fogo; ninguém terá compaixão
do seu próprio irmão!” (9.19). As imagens evocadas por Joel também são
terríveis: “Ó! Aquele Yon, Dia! Sim, o Dia de Yahweh está chegando! E vem
como uma tremenda força destruidora da parte do Todo-Poderoso (1.15).

✓ O Dia do SENHOR vem com fúria ardente: o profeta Naum descreve bem:
“Eis que Yahweh é Deus zeloso, ciumento e vingador! Yahweh, o SENHOR,
não tolera outros deuses e age como terrível vingador contra toda idolatria.
Em seu furor e indignação Yahweh executa sua vingança contra todos os seus
adversários!…” (1.2,6).

✓ O Dia do SENHOR porá a terra em assolação: ou desolação. Desolação


causada por grande desastre, resultado do julgamento divino. Essa palavra
enfatiza o horror causado pela desolação do julgamento. O profeta Jeremias
lembra que “Do mesmo modo como Deus arrasou Sodoma e Gomorra e as
cidades vizinhas”, assegura Yahweh, “ninguém mais habitará na Babilônia;
eis que nenhum ser humano residirá nela!…” (50.40-42) e “Que toda a
violência cometida contra nós e nossos filhos seja cobrada da Babilônia!”,
64

exclamam os cidadãos de Sião. “Que o nosso sangue esteja sobre aqueles que
moram na Babilônia!”, brada Jerusalém.” (51.35-58). Agora, o Dia do Senhor
agora sai do âmbito regional, até então focado no juízo a Babilônia e passa a
ter contornos mais universais e abrangentes.

✓ O Dia do SENHOR “exterminará” com os pecadores: esta descrição do Dia


do Senhor sustenta a premissa de que este Dia já foi cumprido na história, mas
ainda é futuro. O único dia que possivelmente poderia cumprir isso
literalmente é a Segunda Vinda de Jesus quando os pecadores serão em
essência – o pecado, “exterminados” dessa existência atual. Esta profecia do
Antigo Testamento ajuda a definir o momento do Dia do Senhor como subindo
até o final da Era Messiânica, o Reino Milenar de Cristo na terra. Embora, os
textos precatórios já anunciavam “Que os pecadores desapareçam da terra, e
os ímpios sejam extinguidos! Bendize, ó minha alma, ao SENHOR. Louvado
seja o Eterno! Aleluia!” (Salmos 104.35); enfatizavam que “os ímpios serão
exterminados da face da terra, assim como dela serão desarraigados os
insinceros e desleais.” (Provérbios 2.22), fossem homologados pelo profeta
Malaquias que afirmava “com toda a certeza, vem o Dia, em fogo ardente,
mais que uma fornalha! Todos os arrogantes e todos os maldosos queimarão
como palha seca na fogueira, e aquele grande Dia vem se aproximando
depressa; não sobrará raiz nem ramo algum!” Assevera o SENHOR dos
Exércitos.” (4.1). O fato é que, neste caso, o profeta Isaías avança para a
Babilônia, que é a cidade final do mal a ser destruída com todos os seus
habitantes (Apocalipse 17.18). Assim, há um cumprimento parcial quando o
Messias retornar em Apocalipse 19.11 e uma realização final quando “os céus
passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados;
também a terra e as obras que nela existem serão atingidas” (2 Pedro 3.10).
Em Apocalipse 20.11, está escrito que, quanto aos pecadores, “de cuja
presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles”. Dessa forma,
Young114 concorda que “Isaías fala da destruição dos pecadores da terra; Ele
usa linguagem que parece transcender uma mera referência à Babilônia. Sobre
a Babilônia derrama o juízo, porque também derramará sobre toda a terra. A

114
YOUNG, Edward J. The book of Isaiah: chapters 1 to 18. V. 1. Grand Rapids / Cambridge: Willian B.
Eerdmans, 1992, p. 422.
65

linguagem, portanto, também deve ser entendida do julgamento final. Dia de


ira e angústia! Naquele dia quem pode ficar de pé?”.

• Isaías 13.10: “Pois as estrelas do céu e as suas constelações não deixarão brilhar a
sua luz; o sol se escurecerá ao nascer, e a lua não fará resplandecer a sua luz.”

✓ O Dia do SENHOR abalará o céu e os astros os convertendo em trevas: as


alterações nos lugares celestiais enfatizam o caráter terrível e temeroso do Dia
do Senhor e sustentam, mais uma vez, a premissa de que o Dia em que Isaías
está descrevendo ainda é futuro. É interessante que esses sinais devem
acompanhar o julgamento divino, pois a escuridão também caiu sobre a terra
por três horas durante o tempo em que a ira de Deus caiu sobre Seu próprio
Filho. Dessa forma, este texto traz alusões aplicadas aos evangelhos nas
palavras de Jesus: “Imediatamente após o tormento daqueles dias, o sol
escurecerá e a lua não dará a sua luz; e as estrelas cairão do céu, e os poderes
celestes serão estremecidos.” (Mateus 24.29) “Porém, naqueles dias, depois
do referido período de tribulação, ‘o sol escurecerá e a lua não dará a sua luz”
(Marcos 13.24); “E haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as
nações ficarão desesperadas, com medo do terrível estrondo do mar e das
ondas.” (Lucas 21.25). Portanto, o Dia do Senhor em Isaías tem um sensus
plenior115 escatológico. Tanto que o apóstolo e profeta João também o
descreve em Apocalipse: “Vi, quando Ele abriu o sexto selo. Então, aconteceu
um enorme terremoto. O sol ficou escurecido como coberto com roupa de luto,
e toda a lua se tornou vermelha como se estivesse ensanguentada” (6.12); “e
as estrelas do firmamento caíram sobre a terra, como figos verdes derrubados
da figueira por um terrível vendaval.” (6.13) “O quarto anjo tocou a sua
trombeta e um terço do sol foi ferido, bem como a terça parte da lua e das
estrelas, de maneira que um terço deles se escureceu completamente. Assim,
um terço do dia ficou sem luz e também um terço da noite” (8.12). Muitos
profetas além de Isaías (5.30 e 24.23) falaram dos abalos cósmicos feitos por
Deus: “O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que chegue o
grandioso e temível Dia do SENHOR” (Joel 2.31 e repetido no discurso de

115
Sentido mais completo, além do contexto imediato.
66

Pedro em Atos 2.20). “Quando Eu te aniquilar, cobrirei o céu e escurecerei as


tuas estrelas; cobrirei o sol com uma nuvem, e a lua não mais refletirá a sua
luz” (Ezequiel 32.7). “O Dia de Yahweh será sim, de trevas, e não de luz! Uma
escuridão absoluta, sem um raio de claridade” (Amós 5.20). “Eis que naquele
grande Dia”, assegura Yahweh, o Soberano: “Farei o sol se pôr ao meio-dia,
e em plena luz do dia escurecerá toda a terra!” (Amós 8.9).

• Isaías 13.11: “E visitarei sobre o mundo a sua maldade, e sobre os ímpios a sua
iniquidade; e farei cessar a arrogância dos atrevidos, e abaterei a soberba dos
cruéis.”

✓ O Dia do SENHOR será um dia de vingança e justiça: a declaração de Jeová


de um julgamento global não deixa dúvidas de que o Dia do Senhor envolve
mais do que a histórica derrota da Babilônia pelos Medos em 539 a. C. – Deus
“olha para todo presunçoso e humilha-o; pisa com os pés os ímpios e malvados
onde quer que se refugiem” (Jó 40.12). Isaías já havia prevenido, “Portanto, a
arrogância do ser humano será abatida, e a sua presunção será aniquilada.
Somente Yahweh, o SENHOR, será exaltado naquele Dia” (2.17); “E assim, as
pessoas serão humilhadas, e a humanidade se curvará aviltada” (5.15). E,
depois, conclui: “Porquanto Yahweh está para sair do seu domicílio, a fim de
punir o crime dos habitantes da terra; e a terra confessará os seus delitos de
sangue, ela não continuará a esconder os seus homicídios!” (26.21).

✓ O Dia do SENHOR fará cessar a arrogância e a soberba dos homens:


orgulho, e desobediência consequente, é algo que traz intenso desagrado a
Deus. É tida como a raiz do pecado na Antiga Serpente e em Adão e Eva
(Gênesis 3.5). Este homem que, por causa de seu sentimento de superioridade
pessoal, se ensoberbece com uma elevada opinião de si mesmo, e considera
os outros e o próprio Deus com desprezo, como se fossem indignos. Trata-se
de um desses pecados que Jesus diz que procede do coração de um homem
(Marcos 7.22). O mesmo pecado de orgulho que levou ao julgamento de Israel
(Isaías 5.21; 9.9) causa a queda de Babilônia (Isaías 47.5,7,8; Apocalipse
18.7). Provérbios já deixara claro que “O temor do SENHOR consiste em odiar
o mal; rejeitar todo orgulho, arrogância, o mau comportamento e o falar
67

perverso” (8.13), enquanto que o profeta Isaías, por diversas vezes, denuncia
o pecado do orgulho nos homens: “Os olhos dos arrogantes serão humilhados
e a soberba da humanidade será destruída; naquele Dia somente Yahweh será
exaltado!” (2.11); “Ora, foi Yahweh dos Exércitos quem o planejou a fim de
abater toda a soberba e vaidade e humilhar todos os que vivem em ostentação
e vanglórias sobre a face da terra” (23.9); “E acontecerá naquele grande Dia:
Yahweh castigará os poderes em cima nos céus, e os reis e governantes
embaixo na terra” (24.21). Já os profetas Jeremias e Daniel se voltam, num
contexto imediato, contra os Babilônicos: “Convocai contra a Babilônia os
flecheiros, todos os que preparam arcos; acampai ao seu redor, ninguém
escape dela. Retribuí-lhe de acordo com a sua obra; fazei a ela o mesmo que
fez aos outros; porque agiu com arrogância contra a pessoa de Yahweh, contra
o Eterno, o Santíssimo de Israel...” (Jeremias 50.29-32). “Mas tu, ó Belsazar,
sucessor do rei Nabucodonosor, não tens caminhado com humildade, não
humilhaste o teu coração, muito embora saibas bem de tudo quanto ocorreu
com teu pai, o rei...” (Daniel 5.22,23). Por isso, a Babilônia se tornou símbolo
de todo pecado contra Deus: “Então, ele bradou com poderosa voz: “Caiu!
Caiu a grande Babilônia, e tornou-se habitação de demônios e antro de toda
espécie de espírito imundo e esconderijo de toda ave impura e detestável”.
(Apocalipse 18.2,3).

• Isaías 13.12: “Farei que os homens sejam mais raros do que o ouro puro, sim mais
raros do que o ouro fino de Ofir.”

✓ O Dia do SENHOR reduzirá a quantidade de homens: demonstra as


consequências do julgamento de Deus: os mortais ficarão extremamente raros
na Babilônia e em toda Terra, tais quais ouro, ouro raro e fino, o ouro de Ofir.
Esse termo é um tanto quanto obscuro, mas se sabe tratar de “um filho de
Joctã116 e de uma região de garimpo do Leste”, portanto, é possível que o valor
dos que sobrarem seja de alta estima por conta do baixo quantitativo. Sendo
essa imagem de quase completa aniquilação da humanidade, quando isso
poderia ocorrer? O livro do Apocalipse descreve uma perda tão extrema da

116
Gênesis 10.29. Ver também I Reis 9.28.
68

vida humana e apoia a premissa de que Isaías está descrevendo outro aspecto
futuro.

• Isaías 13.13: “Pelo que farei estremecer o céu, e a terra se moverá do seu lugar,
por causa do furor do Senhor dos exércitos, e por causa do dia da sua ardente ira.”

✓ O Dia do SENHOR será pior do se imagina e a linguagem é capaz de


expressar: Deus está no controle do universo. Esta passagem também indica
que os finitos pecados humanos um dia terão implicações cósmicas. Mostra
que o SENHOR está novamente explicando, repetidamente os termos de guerra
anteriores (v. 10 e 11): castigo dos denunciados em manifestações globais com
possíveis terremotos e catástrofes naturais na Terra e supranaturais no
universo, porque o abalo será tanto sísmico quanto cósmico, algo ainda
inédito, uma alteração terrestre e celestial simultânea. Essa repetição de
termos indica conotação superlativa, isto é, aquilo que imaginamos que
acontecerá, será, de fato, muitas vezes mais intensificada, piores ainda. Os
livros poéticos já observavam que “Deus é quem sacode a terra e a tira do
lugar, e faz estremecer todos os seus fundamentos.” (Jó 9.6) “Então, toda a
terra estremeceu e agitou-se e os fundamentos dos montes se abalaram;
tremeram por causa da ira de Deus” (Salmos 18.7). O profeta Isaías, vezes por
vezes, anunciava “Eis que Yahweh vai arrasar toda a terra e a devastará,
arruinará sua superfície e espalhará seus habitantes” (24.1). “A terra foi
despedaçada, está destruída, totalmente abalada!” (24.19). “As estrelas dos
céus serão todas dissolvidas e os céus se enrolarão como um pergaminho
antigo; todo o exército de astros cairá como folhas secas da videira e da
figueira” (34.4). “Erguei, pois, aos céus os vossos olhos, e voltai vosso olhar
para baixo, para a terra; os céus desaparecerão como fumaça, a terra se gastará
como as vestes, e seus habitantes morrerão como moscas. Mas a minha
salvação permanecerá para sempre, a minha justiça jamais falhará” (51.6). Até
mesmo o profeta João, na ilha de Patmos, viu que “as estrelas do firmamento
caíram sobre a terra, como figos verdes derrubados da figueira por um terrível
vendaval” (Apocalipse 6.13,14).
69

Concluímos essa parte ressaltando que o Dia do Senhor será terrível! Toda a
humanidade, toda a cultura, todo o planeta e mesmo as estrelas, as constelações e os astros
serão afetados por esse grandioso Dia. Ridderbos117 sintetiza bem as impressões:

O dia de compaixão passou; só ira é derramada. As estrelas do céu e


suas mais velas constelações se entenebreceram. Assim o Senhor vem
para julgar os pecados do mundo, especialmente para lançar por terra o
orgulho dos tiranos da Babilônia (...) Quem permanecerá de pé quando
Ele aparecer? Só os que invocarem o nome do Senhor (Joel 2.32).
Porque o Senhor vem assim para visitar o mal da humanidade, toda a
natureza fica profundamente perturbada: os céus tremem e a terra é
sacudida.

“Pois o SENHOR virá no fogo e suas carruagens como redemoinhos para restituir
sua ira em fúria e sua repreensão em chamas de fogo. Pois pelo fogo o SENHOR executar
seu julgamento” (Isaías 66.15-16; cf. Isaías 27).
Fica patente, para os adeptos da Teologia dos Dois Reinos, que não há lugar para
necessidade de transformação cultural, nos moldes transformacionistas, diante dos
expostos nesse exemplo de perícope biblicamente fundamentada e impressionante.

117
RIDDERBOS, J. Isaías: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1990, p. 145-
146.
70

CONCLUSÃO

A abordagem transformacionista da cultura trouxe uma nova cosmovisão da Igreja


e do mundo, porque deveríamos trabalhar para redimir todos os aspectos da cultura aqui
e agora. Muitos cristãos transformacionistas acusam a igreja histórica de quietismo, de
conformismo, e até de irrelevância para com os aspectos da criação. Por isso, tais adeptos
procuram trazer e fazer justiça a todos e o bem-estar a cidade. É claro que a Igreja deveria
lançar luz sobre essas coisas.
O que diferencia a proposta transformacionista, de Niebuhr, da Teologia dos Dois
Reinos, apresentada por VanDrunen, é que sua abordagem da cultura, embora também
baseada na criação. Todavia, parte daquilo que os cristãos têm em comum com os não-
cristãos, em vez de ver nosso envolvimento na cultura como algo que deriva e contribua
para o trabalho escatológico da redenção de Deus.
Na visão dos Dois Reinos, Jesus não recupera a criação, mas a recria. Jesus, o
filho de Deus, entra na história humana, trazendo redenção por meio da pregação do
Reino de Deus, mas não elabora nenhum plano de mudança social sistêmica. Sua missão
inclui os temas de justiça e restauração social, mas ele escolheu não promulgar estes temas
em toda a sua plenitude no tempo presente. Em vez de escolher imediatamente ou mesmo
gradualmente transformar o reino deste mundo no reino de Deus, ele comissiona um povo
a igualmente pregar os valores do reino de Deus e oferecer participação em sua vida a
outros que foram eleitos a participar.
Embora haja uma linguagem popular no Brasil, o Novo Testamento não parece
falar de Igreja “edificando ou expandindo” o reino de Deus. Segundo a Teologia dos Dois
Reinos, nossa tarefa é pregar o evangelho do reino até o dia em que herdaremos “novos
céus e nova terra onde habita justiça”. Em resumo, o ingresso do reino no ministério de
Jesus parece não implicar uma missão eclesial para transformação da cultura ou da
sociedade como tal.
Para aqueles de nós que acreditam que o livro do Apocalipse convida a algum
grau de interpretação futurista, o Apocalipse descreve, não tanto uma transformação
gradual e inexorável da sociedade em uma ordem de honrar a Cristo, mas em uma
sociedade e um governo que continuamente resistem e são antagônicos a Deus e ao
testemunho de seu povo. A tão esperada transformação chega com a segunda vinda de
Cristo (Apocalipse 11.15-19), não antes. Tal ângulo escatológico não precisa forçar um
71

recuo da sociedade, mas adverte contra os planos de uma redenção pré-parousia da


cultura como as que são apresentadas nas propostas transformacionistas.
A Igreja enquanto Igreja é a guardiã do evangelho e se destina a proclamar o
evangelho àqueles que estão fora da fé cristã e a praticar o evangelho em sua comunhão.
Isto não exclui o cuidado holístico às necessidades do corpo da Igreja, mas adverte contra
o chamado à Igreja como tal para apoiar certas agendas políticas 118 ou para projetar e
programar atividades para a vitalidade e promoção da sociedade. Sob a graça comum de
Deus, a tarefa de promover uma sociedade justa e ordeira é atribuída ao Estado. No tempo
intermediário, o Estado ajuda a facilitar a jornada da humanidade em direção ao
eschaton.119
O Estado não é autônomo em seus esforços para cumprir sua responsabilidade,
mas é responsável pelos ditames da lei natural. Em outras palavras, a Teologia Reformada
de Dois Reinos não cria um abismo entre o sagrado e o secular, mas sugere que, enquanto
a primeira esfera, do sagrado, está sob a jurisdição da lei de Cristo, a do secular, está
sujeita a uma lei menos elaborada em relação à lei de Cristo.
Ainda que a Igreja tenha uma missão peculiarmente sagrada, a maioria dos
cristãos individuais foi chamada para o serviço do bem comum na sociedade. Com a vasta
normatividade do chamado à equidade da lei natural,120 o cristão com uma voz política
pode disputar o bem-estar dos oprimidos sem voz alguma ou sem impingir uma ética
claramente cristã à sociedade. A Doutrina dos Dois Reinos estipularia que essa atividade
não é redentora, pois em si não capacita homens e mulheres a se reconciliarem com Deus
e a partilharem da glória da nova criação, mas ao valorizarem o bem comum e atual. Esta
doutrina retém vigorosamente um lugar para a busca da justiça na cultura social.
O cristão chamado a servir ao governo ou, em geral, ao trabalho de melhoria social
qualquer, pode afirmar de todo coração a importância do bem comum sem ter que
interpretar seu trabalho como um canal de salvação. Em outras palavras, o mandato
cultural permanece intacto e não entra em colapso com o mandato espiritual.

118
Em e-mails trocados recentemente com o Dr. David VanDrunen, ele muito bondosa e generosamente
me enviou o manuscrito de sua provável obra conclusiva sobre teologia reformada dos dois reinos em que
aborda a questão Política do tema. Seu novo livro será lançado pela Zondervan em maio de 2020 e terá
como título, passivo de mudança, Politics After Christendom: Political Theology in a Fractured World.
Pelo sigilo envolvido só posso sugerir que os cristãos brasileiros leiam essa obra, pois ela certamente nos
ajudará inclusive a entender nosso momento histórico nacional e ter consciência do que estamos passando
e poderá a vir, reforço, em termos políticos.
119
CALVINO, Institutas IV. 20.2, p. 876-877.
120
Ibid., IV. 20.32, p. 901. Já citado na página 54 desta monografia.
72

Percebemos que a Teologia dos Dois Reinos tem importantes contribuições para
a teologia e prática da igreja brasileira com a cultura. Em VanDrunen, ela tem uma forte
raiz reformada calvinista. Ele encharca sua proposta de Bíblia. Por exemplo, em sua obra
“Living in God's two kingdoms”, ele examina cuidadosamente a relação entre o povo de
Deus e seu ambiente cultural na era patriarcal, em Israel teocrático, durante o exílio e na
era da Nova Aliança, delineando cuidadosamente as continuidades e descontinuidades da
relação dos cristãos a cultura épica, situação com a qual o povo de Deus teve de lidar em
várias épocas precedentes.
Ao fazê-lo, VanDrunen coloca os crentes do Novo Testamento exatamente no
lugar certo na cronologia escatológica da Bíblia, isto é, crucial para a construção de uma
visão bíblica do cristianismo e da cultura. Além disso, ele frequentemente retorna ao
ensinamento do Novo Testamento sobre a natureza passageira deste mundo atual, o status
dos cristãos neste mundo como estrangeiros e exilados, e a necessidade de os cristãos
estabelecerem firmemente sua esperança no mundo vindouro – todos esses temas bíblicos
que não figuram tão proeminentemente na discussão evangélica do cristianismo e da
cultura brasileiros como deveriam, em minha opinião.
Cremos que ela carregue um debate salutar da relação do cristianismo com a
cultura, especialmente para a Igreja Brasileira, como uma positiva alternativa a visão
transformacionista, precisamente por me parecer colocar cada coisa em seu devido lugar,
como historicamente o foi.
A sensação que tive ao estudar as obras do Dr. David VanDrunen foi saudosista,
daquela igreja que se preocupava com a vida eterna das pessoas. O papel da Igreja na vida
cristã, incluindo seu culto corporativo, ética distintiva e autoridade ministerial dispõe a
proposta dos dois reinos para trabalhar nas áreas de educação, vocação e política de
maneira individual, não institucional, uma vez que a Igreja tem sua ação no Reino
Redentivo.
Assim, concluímos que a Teologia dos Dois Reinos nos traz o entendimento que
uma vez que habitamos em uma fase intermediária da história da redenção é sábio
fazermos uma distinção clara entre os papéis da igreja e os papéis da sociedade, do crente
e do cidadão comum, de modo belo e urgente, especialmente à igreja desta “pátria amada,
Brasil”.121

121
Frase alusiva ao Hino Nacional Brasileiro.
73

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