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Os óculos, o ridículo e o desamparo na arte contemporânea

Recentemente foi aberto o novo MoMA de São Francisco. Como não poderia deixar de
ser - em se tratando de um museu contemporâneo na capital das novas tecnologias - a
escala, a ambição e as cifras surpreendem. O projeto arquitetônico do escritório
norueguês Snohetta conta com nada menos do que 10 andares expositivos, permitindo
que o museu apresente 19 exposições inaugurais concomitantes.

Nada disso, entretanto, fez mais barulho neste primeiro ato do novo museu que a
“performance” inesperada de dois jovens (até então) desconhecidos, da cidade vizinha
de San Jose, que o visitavam em um dia qualquer das primeiras semanas. Um deles
retirou seus óculos, um boné e uma jaqueta e os colocou em lugares pontuais nas
galerias, como se fossem “obras de arte”. O primeiro utensílio, os óculos, causou
frisson. Pessoas se aglomeraram para observá-lo de perto, comentá-lo, fotografá-lo.
Estava armado o circo. Isto é arte, arte é isso – somos todos tolos e fisgáveis por uma
blague juvenil! Entre parênteses, cabe dizer que o boné e a jaqueta não produziram
nenhum interesse, ninguém parou nem fotografou.

Peter Schjeldahl, crítico da revista New Yorker (espécie em extinção, especialmente


pela combinação de profundidade, clareza e sensibilidade dos seus textos), não se fez de
rogado e deu à ocasião alguma atenção crítica. Um texto corajoso e curto que tenta
explicar o inexplicável – afinal, não é essa uma das especificidades da crítica, explicar o
inexplicável?! O importante é que não se trata de justificar nada, nem de sentenciar
nosso total e irrestrito desamparo quando o assunto é arte, ou melhor, arte
contemporânea.

Lidar com este desamparo, assumi-lo e enfrentá-lo faz da crítica algo mais complexo
que uma mediação ou interpretação. Não que a crítica não busque interpretar o que se
passa ao sermos convocados pela arte. A interpretação, no entanto, é um deslocamento,
uma vontade de sentido em busca de uma linguagem que traduza o intraduzível. A
interpretação crítica seria, assim, uma tradução sem original – uma construção que
desloca e recria aquilo que a mobiliza: a obra. Uma e outra, a crítica e a obra, se co-
pertencem e se potencializam nesta troca. Tudo bem, a crítica responde à obra, mas sem
esta resposta a obra não nasce, mantém-se pura potencialidade. Não há pais até o
nascimento dos filhos.

O desamparo é parte desta busca por sentido que advém do contato com as obras. Obras
estas que não têm nenhuma garantia de existência senão a fertilização destes sentidos –
precários e potentes. Foi isso, esse desamparo, que Peter Schjeldahl vislumbrou no
encontro do público com aqueles óculos: “são um objeto feito para ampliar a visão,
colocado ali como algo para ser visto. Estando à altura dos pés, os óculos estavam
divorciados de sua função e protegidos apenas pelo protocolo do não me toque dos
museus. Eles podem ter parecido, para uma audiência receptível a todo tipo de sugestão,
algo que comentasse nossa condição de estar no museu – esta audiência me inclui.
Receptibilidade, não premida pelo medo da tolice, é parte essencial do amor à arte”.
Este amor à arte, todavia, vem junto, para o bem ou para o mal, com as etiquetas do
comportamento adequado que acompanha nos museus o medo de exclusão intelectual e
social. Há que posar de entendido para não ficar fora do clube dos incluídos no mundo
da arte. Esta pose, entretanto, não permite ajoelhar-se, se deixar entregar ao espanto,
mostrar deleite diante do estranhamento. O entendido não é bobo, é cool. O espanto
pode nos fazer de bobos.

Isto é o que faz daqueles óculos algo de interessante. A foto que circulou mostrava
espanto – e isso é bom e raro, independentemente da blague. Se foi por ela, faz parte,
quiçá os 15 minutos de fama daqueles garotos serviram para mostrar que ainda se pode
ajoelhar no museu, ser ridículo, se encantar em um mundo de total desencantamento
chique. E que a arte pode estar em toda parte e em nenhum lugar. Prefiro ficar ao lado
daqueles que ainda conseguem se espantar mesmo que sejam tolos e querendo justificar
o injustificável.

Seguindo com o crítico da New Yorker, “muitos cidadãos razoáveis acharão o


espetáculo dos óculos (spectacle of the spectacles) ridículo. Eles não estão errados. O
risco do absurdo acompanha o desejo de se render ao chamado dos objetos quaisquer:
por exemplo, um pedaço sujo de tecido que venha a ser uma pintura. Trata-se de um
jogo, independentemente de qualquer outra coisa, que só faz sentido a partir do
conhecimento das regras e das convenções. Os museus editam, para nossa conveniência,
o universo das coisas existentes. O que eles incluem e o que eles deixam fora formam
nossa cultura. Qual o limite do que podemos incluir? Em que ponto a discriminação vira
implicância reacionária? Será que testemunhamos toda a carreira da dupla de
adolescentes de San José? Garotos, a bola está com vocês.”

Não será a primeira vez que os museus se viram confrontados com o ridículo, seja
excluindo os parangolés, seja mostrando obras que não passam de piadas. Neste
confronto, eles se repensam, a arte se repensa e nós nos deparamos com o que queremos
e imaginamos possível diante do que se denomina, mesmo que por quinze minutos, de
arte. Estes quinzes minutos podem ser tão valiosos como as cotações dos leilões. Um
valor diferente, mas quiçá tão absurdo e assombroso quanto.

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