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Vera Casa Nova Ericgées Trago, olho e letra Corea) Quadros e cenas... Quadros, quadros e quadtos. Imagens por toda parte. O romantismo brasileiro pinta paisagens das praias do Ceard aos recantos da Ilha de Paqueté. De Alencar a Macedo com José Ferraz de Almeida (1893) ou Joao Barista Castangneto (1886) ou Vitor Meirelles (1885) ou Nicolau. Fachinetti (1882) ou Pedro Ameérico (1871) pode-se dizer que h4 um universo visivel, ora de objetos figurativos nos textos, ora mengées ou alusGes a imagens que fazem parte do mundo pitoresco do século XIX Museus ¢ colecGes privadas so inauguradas no Rio de Janeiro. As obras dos nossos roménticos esto repletas de alusdes a quadros, pintados ou nfo, apontando para a riqueza de nosso imagindio. Lembre-se af que o imaginétio romintico brasileiro ¢ repleto do analégico, do mimético. ‘O tema Ut pictura poesis modifica-se no século XIX, mas guarda intrincadas relagBes diante de novos objetos © novas préticas. As imagens trazidas pela fotografia, pelos figurinos, charges, 0s selos dos corteios, a caticatura, o inicio dos quadrinhos, 0 cartaz comercial, 05 livros ilustrados, as estampas, 0 cartéo postal etc. apontam para ‘gandes rupruras de linguagem. Transforma-s mundo em que se vive, privado, transforma-se em piiblico. ‘A literacura ganha seu espaco, e a écfrase! descreve as telas dos pintores. As imagens séo vistas e reprodusidas pela pena/pincel. ‘etre 6 stress): Retief ceserigto de uma obra de arte A tase nos eva {representa mimese. A detcriko constvango ma dafungdes sears ALENCAR. 0884S COMPLETAS, P66. “ ALENCAR, Obras completa, p. 276. Em O gaticho, ‘Como sio melancélicassolenes, ao pino do sol as vastascampinas, que cingem as margens do Unuguai e seus afluentes. A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas que figuram as flucuagées das vagas nesse verde oceano.® Em Tronco do ip Era linda a situacio da fazenda de Nossa Senhora do Boqueirio. ‘As dguas majestosas do Parafba regavam aquelas terrasfertilis- simas, cobertas de abundantes avouras¢ extensas matas virgens. ‘A.casa de habitacio chamada pelos pretos casa-grande, vasto € custoso edificio, estava assentada no cimo de formosa colina, donde se descortinava um soberbo horizonte.* Em Til, Na entrada do vale, onde assenta a freguesia de Santa Barbara, via-se outrora & margem do Piracicaba, encontra o rio, um velho casebre [...] ‘Aum lado da casa cresciam umas encarquilhadas laranjeiras- de-china ¢ um pessegueiro; no outro havia canteiros, onde cespigavam no meio da ervagem couves gigantes [...]7 Em O sertanejo, Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, ¢ 0 sertéo de minha terra natal. Af campeia o destemido vaqueiro ‘cearense, que unha de cavalo acossao touro ind@mito no cerrado iis espesso, co derriba pela cauda com admirivel destreza.® ALENCAR.Gbras complet, p 383. ALENCAR.Gbras complete, p 525. ALENCAR. Gbvascomplets, p. 738 " ALENCAR. Obras completes, p 857 Tinha nascido o sol. Aos primeiros raios que partiam do Oriente se desdobravam pela terra como uma vaga de luz, a natureza, rorejante dos orvalhos da noite, expandiu-se em toda a sua pompa tropical? Por ameno ¢ formoso vale, erpeia o rio das fares em cujas dguas :mira-se a préspera Valenca, a mais louca das cidades rurais da provincia do Rio de Janeiro [...].!” PPaisagens romanticas possiveis de serem encontradas nas telas de Nicolau Facchinetti, Pedro Américo ou Vitor Meitelles. ‘Ao pensarmos aqui os processos icénicos da lingua de Alencar por descrigdes que realiza, podemos ver as “semelhangas da imitagao” da natureza como pintura, ou seja, na éefrase (descrigio). Alencar descrevea cena como se diante dele um quadro (tel) estivesse presente em perspectiva de imitar a belle nature. Pode-se ver que mesmo no romantismo a frase de Arist6celes “A arte imita a natureza’, espécie de Fiat na teoria de are, aparece imitando, representando ou metaforizando. O artista imita a natureza tal qual Ihe aparece sob suas formas visiveis. Trata-se da “natureza navurée’ que o escritor/pintor “copia”. Em Hegel hé uma dentincia do carter nocivo da imitagio, mas no sentido de imitagao de Deus. O que significa que a mimese como principio fundamental de criagéo artistica nasce da filosofia antiga, ‘mas é destituida pela disciplina de onde ela saiu, a saber, a filosofia ‘Mesmo quando Théophile Gautier declara em pleno romantismo: “Jamais o artista, tio grande que fosse, nunca imaginow uma forma”, ou como Courbet afirma, “s imaginacao na arte consiste em saber encontrar a expressio a mais completa de uma coisa existente, mas jamais supor ou criar essa coisa," estariam apontando para uma cstéticaidealsta, metafsica. ‘ * ALENCAR. Obras complies, . 94, a) © ALENCAR. Obras completa, p 1086. s§ " COUBERT cao por LICHTENSTEIN. Lo peinturo 258. ropes tage oo ele Alencar, como esctitor/pintor romantico, descreve paisagens tipicas do romantismo 0 céu, 0 sol, o rio. Paisagens que indicam ‘uma concepgio religiosa da natureza, O que mostra que, ao se voltar para o espago como pura exterioridade, pode-se encontri-lo em sua tunidade, isto é em sua pura interioridade. Essa dialética implica ‘um conhecimento analégico da natureza, pois, segundo o principio de Troxler: "Mais nés nos retiramos de nés-mesmos, mais nés penetramos na natuteza das coisas que estio fora de n6s”.* Volto a Hegel. A Estérca’® de Hegel (1770-1831) & a ciéncie do belo artstco, isto é o belo tal qual ele & encarnado nas obras ide ate, Para ele ha trés grandes momentos da Histéria da Arte: arte simbélica, a arte cldssica ¢ a arte romantica, A cada momento cortesponde uma certa definigio da beleza que se exprime numa forma de arte determinada: a arquitetura para a arte simbélica, 2 escultura para a arte clssica, e a pintura para a arte romantica. ~~" Hegel, ao comentar a imitagio como conceito geral da arte, diz que “€ um conceito velho esse da arte que deve imitar 2 nnatureza’, afirmando que esse era um momento da idéia, em sew desenvolvimento, “Que objetivo persegue o homem quando imita natureza?” Eainda: “Pode-se dizer de uma forma geral que querendo rivalizar com a natureza pela imitagio, a arte permanecerd sempre abaixo da natureza(..)."" Em Bauidelaire (1821-1867), encontramos [Nos tempos tiktimos, ouvimos dizer de 1.000 maneiras diferentes, Copiea natureza,s6 copie a navureza [J Essa doutrina, inimiga da arte, pretendia ser aplicada nfo somente & pintura, mas a todas as artes, mesmo ao romance, mesmo & poesia [...]. Um homem imaginativo teria certamente dito: “eu acho intl ¢ {astidioso representar o que é porque nada do que é me satis. TROKLER, Pointe ot paysage,p. 2. © Notas boseedas nas anoragoes de seus alos (pubicads em 1825). « HEGEL ctado por LICHTENSTEIN. La pint. 306, radugto os store ‘A natureza€ feia, ¢ cu prefiro os monstros de minha fantasia & ttivialidade positiva” [J Econclui O artista, o verdadeito artista, o verdadeito poeta sé deve pintar fo que cle vé-e sente. Ele deve ser realmente fiel a sua ptdpria Voltando ao tema Ut pictura poesis ou Ut poesis pictura ‘Um poema é como um quadro ou quadro é como um poema? Continua 0 dilema tradicional. Mesmo sendo atacada durante 0 século XIX, pelos modernos, esa doutrina renascerd varias vezes das cinzas, ¢sua histéria continua ainda no século XX, sob uma forma mais ou menos espectral ‘Narrar com um pincel, pintar narrando? Como transpor uma sequéncia narrativa e temporal no espago de visibilidade que € 0 quadro, encontrar meios de representar fielmente uma narrativa respeitando certo ndmero de exigéncias préprias & composi¢éo picturalz ‘A pintura da histéria que marca o triunfo de Us picture poeis © da estética da imitagéo é testemunha da nobreza da pincura, na medida em que cla supée, tanto no pintor quanto no espectador, tum conhecimento intimo de literatura profana ou sagrada e da tradigio interpretativa. Ela atesta que a Pintura ¢ a Poesia so duas itmas unidas por millkiplas relagGes. Os pintores tomario temas cemprestados da literatura, transformando narrativas (descrig6es) ‘© BAUDELAIRE ctado por LICHTENSTEN Le peinture,p 288, tedupso da autor. " RAUDELARRE otado por LICHTENSTEIN. La pelnture,p. sito de Seuseave ‘em quadros, ¢ 0s escritores celebrardo os pintores em seus textos, revelando a significacio as vezes obscura desses quadros. Depois de Lessing (1729-1781), a tradicio de Us pictura poeis, modifica-se. As artes do visivel eas do discurso, antes consideradas paralelas, ou vez por outra comadas hiecarquicamente, no século (XIX, passam por transformagSo — a da especificidade das artes. De Baudelaire a Huysmans, passando por Zolae pelos irmios Goncourt, a critica da pintura literdria ou filos6fica, da pincura da histéria ou ‘das idéias de uma pintura que insiste na doutrina Us pictura poesis, (vinga ainda como um dos motivos mais insistentes do discurso da * modernidade. Essa critica, é bom lembrar, nao esté ainda hoje ultrapassada. Varios exemplos na contemporaneidade mostram que o paralelo centre as artes nfo perdeu sua atualidade, exemplo vem de Clement Greenberg, Towards a newsr Laokoon (Para. um mais novo Laocoonte), 1940. Partindo de uma andlise historia que parte de Lessing, Greenberg escreve Guiados, conscientemente ou inconscientemente, por uma = pureza emprestada & miisica, as artes da vanguarda tém, «em seus tiltimos 50 anos, atingido uma pureza e conseguiram ‘uma delimitagao radical de seu campo de atividade sem exemplo na Histéria da Cultura {5, As artes estéo arualmente em segurangs, cada uma guardando fronceiras legitimas, ea live troca foi substituida pela autarcia. A pureza em arte consiste na aceitagéo voluntéria das limitagées dos meios na arte especit Assim, 0 paralelo entre as artes néo se limitou a0 paralelo entie a pincura ea literatura. A comparagio entre a pincura ea escultura tem um papel importante na hist6ria de Ur picturapoesis. Ha também ‘comparacio entre a pintura ¢ a misica, que toma forma de uma * GRteNERe,Eadien donde, p12. alogia entre o som € a cor, uma teoria dos modos ou uma andlise composigzo, a cidade das artes, Baudelaire marca uma ‘uptura definitiva com a maneira tradicional de conceber as relagSes entre diferentes artes, Baudelaire denuncia as doutrinas sob a capa de filosofia, de politica, de religiéoou de histbria que querem aboliras fronteirasenére a8 alts, Toda a sua critica postula a expecifcidade das artes. Essa especificidade, reafirmada a0 longo de suas insistentes anilises, exclui a idéia do paralelo ou da comparagio, Mas nio profbe ‘ estabelecimento entre as artes de uma forma de aproximagio, aque nasce das correspondéncias. Como ecos longos que & distancia se matizam ‘Numa vertiginosa e kigubre unidade, ‘Tio vasta quanto a noite e quanto a claridade, Os sons, as cores ¢ os perfumes se harmonizam."* Diferentemente de comparacio cléssica que supde que as diferensas sejam reduzidas a um critério comum, a correspondéncia baudelariana mantém a singularidade irredutivel dos termos presentes, nna medida em quea singularidade se dirige aos efeitos. A relagao que cla instaura entre as artes se funda exclusivamente sobre a analogia. dos sentimentos que despertam, devaneios que sugerem, sensagbes que fazem nascer, no espectador, leitor ou ouvinte. Observe-se a atualidade de Baudelaire nesse excerto de sua Liart romantigue: Eu ouvi dizer que a misica nao podia se gabar de traduzir 0 que quer que fosse com seguranga, como faz a palavra ou a pintura. Isso ¢ verdade em certa proporgio, mas néo ¢ inteiramente ver- dade, Ela traduz sua maneira e por meios que lhe so préprios. Na miisica como na pintura e mesmo na palavra esctita, que €no entanto a mais positiva das artes, hd sempre uma lacuna completada pela imaginacao do ouvinte.”” * BAUDELAIRE, As foes do mal p16 * BAUDELAIRE, Lore ramentigue, p. 166, radugto ds stor

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