Foi como sentimento humanitário que o abolicionismo progre-
diu na literatura e ocorreu na maioria dos poetas. Talvez tenha sido Varela o primeiro a dar ao negro consistência mais nobre, traçando o perfil heróico de "Mauro, o Escravo" (1864); mas só Castro Alves estenderia sobre ele o manto redentor da poesia, tratando-o como herói, amante, ser integralmente humano. -- Para compreender o verdadeiro milagre literário que foi a sua poesia negra, lembremos, mais uma vez, o que se disse do india-nismo — sentimento de compensação para um povo mestiço. de_his-tória curta, graças à glorificação do autóctone, já celebrado por escri tores europeus e bastante afastado da vida corrente para suportar a deformaçãodo ideal.O negro, pelo contrário, era a realidade degradante, sem categoria de arte, sem lenda heróica. Admitir a ancestra-lidade indígena foi orgulho bem cedo vigoroso, graças à possibilidade de escamotear, por meio dela, a origem africana de uma cor bronzeada — origem que ninguém acusava, podendo-a disfarçar. Trazer o negro à literatura, como herói, foi portanto um feito apenas compreensível à'luz da vocação retórica daquele tempo, facilmente predisposto à generosidade humanitária. (...) A idealização, porém, agindo no terreno lírico, permitiu impor o escravo à sensibilidade burguesa, não como espoliado ou mártir; mas, o que é mais difícil, como ser igual aos demais no amor, no pranto, na maternidade, na cólera, na ternura. Esta mesma idealização que já havia dado um penacho medievalesco ao bugre, conseguiu impor a dignidade humana do negro graças à poetização da sua vida afetiva. Castro Alves se tornou o poeta por excelência do escravo ao lhe dar, não só um brado de revolta, mas uma atmosfera de._dignidade líriça, em que os seus sentimentos podiam encontrar amparo; ao garantir à sua dor,_ao_seu amor, a categoria reservada aos do branco, ou do índio literário. O idílio trágico de Lucas e Maria exige, da parte do leitor, ruptura maisnínda de preconceitos que o lamento das "Vozes d'Africa".
(...) (Massaud Moisés)
A Cachoeira de Paulo Afonso, série de poemas encadeados, à luz dos mesmos valores que nortearam Os Escravos, acentua o contraste: predomina o tom narrativo e atenua-se o tema do escravo, graças à incidência de notas líricas, emotivas, campesinas ou folclóricas. O contorno epicizante dOs Escravos substitui-se pelo ar nostálgico ou pitoresco, à medida que assoma o tema da infância, mostrando até que ponto o cerne da visão do mundo de Castro Alves era preenchido por uma subjetividade que só por instantes encontrou expressão no motivo dos escravos. Os poemas não escapam, inclusive, de certa puerilidade, ou inocência de melodrama: misto dO índio Afonso e A Escrava Isaura, embora com desfecho anti-O Guarani, A Cachoeira dt Paulo Afonso enferma da mesma lacrimosidade de outros poemas abolicionistas ("Desespero"): "Ô minha mãe! Ô mártir africana, Que morreste de dor no cativeiro! Ai! sem quebrar aquela jura insana, Que jurei no teu leito derradeiro, No sangue desta raça ímpia, tirana Teu filho vai vingar um povo inteiro! ... Vamos, Maria! Cumpra-se o destino ... Dize! dize-me o nome do assassino! ..."
Que o tema da escravidão ocultava, na sua dicotomia de base, a procu-
ra de um sentido e uma identidade, patenteiam-no ainda as produções "mar- ginais" do poeta, o drama Gonzaga e as poesias coligidas. Aquele, concluído em fevereiro de 1867, mas dado a lume somente em 1876, focaliza, como indica o subtítulo, A Revolução de Minas, a Inconfidência Mineira. Até ai', nenhuma razão de surpresa, porquanto o tema se inseria coerentemente no clima patriótico e liberalista da época e na fase de exaltado hugoanismo que o poeta atravessava.