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CASTRO ALVES (Antônio Candido)

Foi como sentimento humanitário que o abolicionismo progre-


diu na literatura e ocorreu na maioria dos poetas. Talvez tenha sido
Varela o primeiro a dar ao negro consistência mais nobre, traçando
o perfil heróico de "Mauro, o Escravo" (1864); mas só Castro Alves
estenderia sobre ele o manto redentor da poesia, tratando-o como
herói, amante, ser integralmente humano. --
Para compreender o verdadeiro milagre literário que foi a sua
poesia negra, lembremos, mais uma vez, o que se disse do india-nismo
— sentimento de compensação para um povo mestiço. de_his-tória curta,
graças à glorificação do autóctone, já celebrado por escri tores europeus e
bastante afastado da vida corrente para suportar a deformaçãodo ideal.O
negro, pelo contrário, era a realidade degradante, sem categoria de arte,
sem lenda heróica. Admitir a ancestra-lidade indígena foi orgulho bem
cedo vigoroso, graças à possibilidade de escamotear, por meio dela, a
origem africana de uma cor bronzeada — origem que ninguém acusava,
podendo-a disfarçar. Trazer o negro à literatura, como herói, foi portanto
um feito apenas compreensível à'luz da vocação retórica daquele tempo,
facilmente predisposto à generosidade humanitária.
(...)
A idealização, porém, agindo no terreno lírico, permitiu impor o
escravo à sensibilidade burguesa, não como espoliado ou mártir; mas, o que
é mais difícil, como ser igual aos demais no amor, no pranto, na
maternidade, na cólera, na ternura. Esta mesma idealização que já havia
dado um penacho medievalesco ao bugre, conseguiu impor a dignidade
humana do negro graças à poetização da sua vida afetiva. Castro Alves se
tornou o poeta por excelência do escravo ao lhe dar, não só um brado de
revolta, mas uma atmosfera de._dignidade líriça, em que os seus
sentimentos podiam encontrar amparo; ao garantir à sua dor,_ao_seu amor,
a categoria reservada aos do branco, ou do índio literário. O idílio trágico de
Lucas e Maria exige, da parte do leitor, ruptura maisnínda de preconceitos
que o lamento das "Vozes d'Africa".

(...) (Massaud Moisés)


A Cachoeira de Paulo Afonso, série de poemas encadeados, à luz dos mesmos
valores que nortearam Os Escravos, acentua o contraste: predomina o tom
narrativo e atenua-se o tema do escravo, graças à incidência de notas líricas,
emotivas, campesinas ou folclóricas. O contorno epicizante dOs Escravos
substitui-se pelo ar nostálgico ou pitoresco, à medida que assoma o tema da
infância, mostrando até que ponto o cerne da visão do mundo de Castro Alves
era preenchido por uma subjetividade que só por instantes encontrou
expressão no motivo dos escravos. Os poemas não escapam, inclusive, de certa
puerilidade, ou inocência de melodrama: misto dO índio Afonso e A Escrava
Isaura, embora com desfecho anti-O Guarani, A Cachoeira dt Paulo Afonso
enferma da mesma lacrimosidade de outros poemas abolicionistas
("Desespero"):
"Ô minha mãe! Ô mártir africana, Que
morreste de dor no cativeiro! Ai! sem
quebrar aquela jura insana, Que jurei no
teu leito derradeiro, No sangue desta raça
ímpia, tirana Teu filho vai vingar um povo
inteiro! ... Vamos, Maria! Cumpra-se o
destino ... Dize! dize-me o nome do
assassino! ..."

Que o tema da escravidão ocultava, na sua dicotomia de base, a procu-


ra de um sentido e uma identidade, patenteiam-no ainda as produções "mar-
ginais" do poeta, o drama Gonzaga e as poesias coligidas. Aquele, concluído
em fevereiro de 1867, mas dado a lume somente em 1876, focaliza, como
indica o subtítulo, A Revolução de Minas, a Inconfidência Mineira. Até ai',
nenhuma razão de surpresa, porquanto o tema se inseria coerentemente no
clima patriótico e liberalista da época e na fase de exaltado hugoanismo que
o poeta atravessava.

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