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O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO NA HISTÓRIA DO

PAGANISMO COM A IGREJA CATÓLICA1


Dartagnan Abdias Silva
dartagnanabdias@gmail.com
Mestrando em Ciência da Religião
Universidade Federal de Juiz de Fora
Bacharel em Antropologia
Licenciado em Sociologia
Universidade Federal de Juiz de Fora

O diálogo inter-religioso nos parece um tema tão recente e pautado apenas na


mentalidade do século XXI que já se inicia tendo de resolver uma gama enorme de
probabilidades e de possíveis diálogos. Vivemos em um mundo, mais precisamente em
um país, onde as possibilidades religiosas, longe de serem desencantadas, cada vez mais
se ampliam. Um mundo no qual o surgimento de novas religiões e de novas possibilidades
religiosas parece uma constância, ou talvez não. Talvez fosse a globalização que nos tenha
aproximado do que para nós parece extremamente novo, mas que no entanto é
profundamente antigo (Geertz, 2001).
Nesse mundo e nesse século, reconhecendo no Brasil um local no qual as três
modernidades religiosas de Pierre Sanchis (1997) convivem em perfeita harmonia, e
percebendo que nesse contexto pós-moderno as religiões se articulam em volta do campo
religioso de uma maneira completamente atípica que requer um estudo pontual, vamos
falar de paganismo.
Em meus estudos, pude perceber que a Wicca e o Paganismo em geral se
encontram perfeitamente adequados ao modelo religioso da pós-modernidade, atendendo
às chamadas religiões universais de Pierucci (2011), se pautando e se pontuando dentro
de um sistema sincrético e eclético dentro do campo religioso nacional e também mundial
(Sanchis, 1997). Mas também faz parte do campo a constante “guerra-santa” e
sincretismo (Camurça, 2009) que também podemos ver inseridos no contexto do
paganismo do século XXI.
Se formos buscar subsídios na história, veremos que, tal como aponta Geertz
(2001) para os movimentos religiosos em geral, o paganismo como o conhecemos hoje
pode ser novo, mas suas raízes e articulações vão profundamente na história.

1
Texto conferido à participação na mesa “A Importância das religiões pagãs junto ao diálogo inter-
religioso” no I Seminário sobre Paganismo da União Wicca do Brasil, UERJ – Rio de Janeiro / RJ – 2015.

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É necessário que entendamos que – como diz o Professor Volney Berkenbrock
(PPCIR/UFJF) em uma de suas aulas – o paganismo é anterior a sua conceituação. Só
temos o conceito quando, por distinção, os movimentos religiosos que passaram a
conviver com o modo de vida e religiosidade pagã (cristianismo) precisou demarcar sua
diferença. Sendo esse modo de vida encontrado prioritariamente entre os camponeses (em
distinção ao cristianismo que se difundia nas cidades) deu-se o nome a esse movimento
religioso de paganus (camponês / aldeão), aquele que se vivia no pagus (vila / campo)
(2015). Aqui entra a relação de que os pagãos primeiros não se chamavam de pagãos e
são numerosos em tradições e religiosidades que já se conviviam em diálogo e
belicosidades muito anterior a unificação religiosa provocada pelo conceito
denominacional cunhado pela cristandade da cidade romana dos primeiro séculos de
nossa era.
Só por essa constatação já podemos pressupor que o paganismo está na base de
um diálogo inter-religioso muito anterior aos debates de nossa contemporaneidade. De
maneira clara, como demonstra Camurça (2009) o diálogo inter-religioso não se pauta
apenas de maneira pacífica. Há conflito, disputas, sincretismos, apropriações e convívios.
Para Geertz (2001), o estranhamento poderia gerar, em nosso tempo, uma possibilidade
ambígua: tanto a “guerra-santa” quanto o convívio pacífico. Acredito que ambas as
possibilidades também estavam presentes no passado e aconteceram de fato na história
do paganismo frente as demais religiões com as quais se conviveu. Mas preciso concordar
com Geertz (2001) quando ele salienta de que na atualidade essas possibilidades e esse
estranhamento se faz inevitável ampliando a tensão entre as ambíguas possibilidades
desse contato.
Não acredito ser correto falar da história do paganismo colocando-o apenas como
escanteio da história medieval. Historiadores como Guinzburg (1991), já apontam para
uma ruptura continuada do ethos pagão pela Igreja e outros movimentos religiosos
durante os séculos iniciais da formação católica e de toda a Idade Média. Em alguns
pontos mais ruptura do que continuidade, em outros mais continuidade do que ruptura.
Para o Professor Berkenbrock (também em uma de suas aulas), enquanto a Igreja
se consolidava na urbs (cidade), uma apropriação do paganismo foi inevitável e
historicamente comprovada, pautando pelas indumentárias e templos pagãos
reapropriados e redestinados. Mas isso foi muito mais um convite a sincretismos do que
a uma “guerra-santa”. Nas palavras do professor “o que se presenciava era muito mais
um paganismo entrando pelas portas dos fundos do que uma completa ruptura” (2015).

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Ainda para Berkenbrock “é impossível constituir uma nova religiosidade sem intercâmbio
e sincretismos com as anteriores que convivem naquele mesmo espaço” (2015).
Na formação católica, várias escolas iniciais se dedicaram a compreender a
mística cristã na tentativa de consolidar o cristianismo. Tentativas exitosas, temos de
acrescentar. Contudo muito pautadas por um diálogo muito mais sincrético com outras
religiosidades, não só a pagã, como também a maniqueísta e a judaica. De maneira
alguma, podemos dizer que a Igreja ou sua mística é farsante ou um paganismo enrustido,
como se ouve em alguns sensos comuns contrários à Igreja. Em distinção, sua constituição
é válida e autêntica ao passo que o diálogo e o sincretismo fazem parte de toda formulação
religiosa (Berkenbrock, 2015).
Sanchis (1997) ainda nos fala de que no período que ele denomina pré-
modernidade – ainda que inicialmente se refira a uma lógica brasileira, podemos alçar
voo e aplicar esse conceito também a história religiosa mundial –, na qual o contexto
religioso era marcado por uma múltipla pertença religiosa, porém pautada pela
oficialidade de uma só pertença. No caso da Igreja após o Imperador Constantino, o que
observamos em sua história tanto romana quanto medieval é exatamente o conceito
cunhado por Sanchis (1997). Até dentro de sua prática oficial, podemos ver um
sincretismo apropriativo por parte da Igreja como demonstra Jean-Claude Schmit: “até o
amanhecer, o padre se protege traçando círculos ao seu redor toda vez que a aparição se
reproduz” (1999: 153).
Se até o século XIII a Igreja mantinha um diálogo muito mais sincrético do que
bélico com o paganismo, a partir do século XIII esse panorama começa a mudar. Para
Russell & Alexander (2008) isso foi fruto de uma sombra projetada a partir de uma
dualidade que, no ethos pagão, estaria inserida em um mesmo ser, mas que foi então
apartada pela dualidade cristã, referente a pureza da mulher pautada na imagem venerada
da Virgem Maria – já conhecida e venerada no cristianismo inicial, mas promovida a
santidade na Idade Média:
Mas a idealização da mulher teve um efeito inverso. Sempre que qualquer princípio
é exagerado, tende a criar uma sombra, uma imagem espelho, um princípio contrário.
O exagero da bondade e da pureza da mulher no amor cortesão e culto da virgem
criaram a imagem-sombra da megera, da bruxa. A Virgem Mãe de Deus encarnou
dois elementos do antigo [pagão] simbolismo triplo da mulher, a virgem e a mãe. O
cristianismo, porém, reprimiu o terceiro ponto, o espírito sombrio da noite e do
mundo subterrâneo. Mas esse lado sombrio do princípio feminino não desapareceu;
pelo contrário, a medida que o poder da Virgem Mãe aumentava, o mesmo ocorria
com o da bruxa. Nas antigas religiões, o lado sombrio havia sido integrado ao lado
luminoso, mas agora reprimido e totalmente apartado do lado positivo do princípio
feminino, a bruxa tornou-se totalmente má. E ocorreu mais uma transformação. Nas

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antigas religiões, a bruxa era a manifestação de um ser espiritual, uma deusa ou, pelo
menos, um demônio. Agora, na Europa cristã, a imagem da bruxa era projeta em
seres humanos. A bruxa europeia deve ser entendida, portanto, não apenas como
feiticeira, mas como encarnação da megera; como uma pessoa totalmente perversa e
depravada, sob o domínio e comando de Satã. (2008: 124)

O que se vê então é o período conhecido como Caça às Bruxas, iniciado na Idade


Média como uma consequência do sincretismo e apropriação de conceitos também
pagãos de maneira maniqueísta, que forçou a Igreja a, em termos de Sanchis (1997), se
pautar modernamente, imbuindo uma escolha entre o certo e o errado, a salvação e a
danação. Se diferenciando das demais práticas e dialogando com o paganismo agora
claramente de modo bélico.
Essa imagem ganhou forças e perdura até os dias de hoje, seja em contos infantis
ou no imaginário social. Contudo, como pude observar em minha pesquisa de 2013, a
mídia contemporânea a par da criação dos novos movimentos exotéricos, pagãos e
principalmente da Wicca, concomitante com um movimento literário – que talvez tenha
seu ápice no romance “As Brumas de Avalon” de Marion Zimmer Bradley – tem
ressemantizado essa imagem público-social advinda do final da Idade Média, e positivado
a bruxa. Esse movimento, hora proselitista não-intencional, hora conflituoso com a
prática religiosa pagã, tem forçado cada vez mais o diálogo inter-religioso no campo
social e religioso. Frente a isso, a bruxa de hoje deixa de ser a megera descrita por Russell
& Alexander (2008) e passa a ser a mulher que se relaciona com a natureza, com o
imanente, que pratica a magia para benefícios e não mais para malefícios. Esse imaginário
social já começa a mostrar sua cara, principalmente quando constatamos a crescente
aceitação social da Wicca e das religiosidades pagãs no mundo contemporâneo. Ainda
longe de ser apenas pacífica, mas o conflito faz parte do campo religioso e o atual mútuo
movimento de sincretismo, ecletismo e conflito, demonstra uma adequação crescente ao
campo religioso contemporâneo por parte das religiões pagãs que crescem em aderência
ou simpatia entre os jovens.

Considerações Finais:
O que espero ter demonstrado é que o paganismo está na base constitucional de
muitas das religiosidades contemporâneas, a luz dos exemplos católicos que pude
explicitar. Longe de invalidar ou tirar a autenticidade das religiões que beberam sincrética
e/ou ecleticamente de fontes pagãs, o que demonstro é a possibilidade de um diálogo

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harmônico, fazendo das esperanças de Geertz (2001) também minhas quando ele diz que
na atualidade, fruto de nossa proximidade globalizante,
as diferenças de crenças, às vezes muito radicais, são mais diretamente visíveis, com
frequência crescente, e mais diretamente encontradas: prontas para a suspeita, a
preocupação, a repugnância e a alteração. Ou, suponho eu, para a tolerância e a
reconciliação, ou até para a atração e a conversão – ainda que estas, no momento,
não sejam exatamente comuns. (2001: 158)

Indo além, podemos entender que a hierofania do sagrado, como descreve Eliade
(1992), é sempre de uma parte do sagrado universal e que por isso o sagrado se manifesta
de várias formas e formulações. Nesse sentido, não nos caberia julgar ou contestar a
manifestação ou a experiência com o sagrado, mas nos permitiria tornarmos críticos às
repercussões dessas experiências e/ou manifestações. A unicidade do sagrado explicaria,
portanto, a funcionalidade do sincretismo, das apropriações. Uma vez que o sagrado se
manifesta de várias formas cambiadas no tempo e no espaço, mas todas passíveis de uma
interpretação fenomenológica e cíclica, poderíamos supor de que todas as religiosidades
conduziriam ao sagrado, sagrado de uma pluralidade de hierofanias mas de uma unicidade
constitucional. Essa perspectiva nos estimula a compreensão e mais ainda estimula o
diálogo religioso e o ecumenismo em detrimento da "gerra-santa” habitual.
É essa perspectiva, compreensiva mais do que explicativa, que não desautoriza
nem uma nem outra religiosidade, fundada ou reformulada pela experiência religiosa de
seus mestres, que acredito que devemos caminhar socialmente. Estimulando o respeito, a
compreensão da polissemia do sagrado que vivemos no mundo conectado, globalizado e
pequeno de hoje.

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