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Poe s i a E st r a n ge i r a

Mahmoud Darwich
Tradução de Mi chel Sl ei ma n

Professor, poeta
e tradutor. Michel
Sleiman é autor do
poemário Ínula Niúla
(Ateliê, 2009) e
organizador-tradutor
da antologia
Poemas, de Adonis
(Companhia das
Letras, 2012).
Publicou os
ensaios A arte do
zajal (Ateliê, 2007)
e A poesia árabe-andaluza
(Perspectiva, 2000)
e é professor de
língua e literatura
árabe da USP.

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Tradução de Michel Sleiman

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Mahmoud Darwich  

AINDA É LONGO o caminho


Ainda é longo o caminho. Guarda espaço para o peregrino.
Muitas rosas jogaremos no rio até que o atravessemos. E nenhuma viúva
quer voltar para nós.
Vamos para lá... a norte dos relinchos. Lembre algo simples que combine
com o pensamento por vir.
Fale sobre ontem, meu amigo, assim posso ver minha imagem no arrulho
da pomba, posso segurá-la no colar, ou quem sabe encontre a flauta deixa-
da numa figueira esquecida...
Bate a saudade, por tudo, de mim faz vítima e assassino,
o caminho é longo ainda, há muito o que andar. Até onde vão me levar as
perguntas?
Sou daqui, sou de lá. Mas não estou nem aqui nem lá.
Muitas rosas jogarei até chegar à rosa da Galileia.

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Tradução de Michel Sleiman

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Mahmoud Darwich  

VIRÃO outros bárbaros


Virão outros bárbaros.
A mulher do Imperador será raptada. Baterão os tambores
baterão os tambores para que os cavalos empinem as patas sobre as pessoas,
desde o Mar Egeu até o Dardanelos.
Mas nós, o que temos com isso? O que as nossas mulheres têm a ver com
os cavalos?
A mulher do Imperador será raptada. Baterão os tambores. E virão outros
bárbaros
bárbaros encherão os vazios das cidades, mais altos que o mar, mais fortes
que a espada no tempo da cólera.
Mas nós, o que temos com isso? O que as nossas crianças têm a ver com
essa sem-vergonhice?
Baterão os tambores. Virão outros bárbaros. E a mulher do Imperador será
raptada de dentro da casa dele
e de dentro da casa dele se formará a campanha militar para trazer de volta
a noiva até a cama.
Mas nós, o que temos com isso? O que tem a ver a morte de cinquenta mil
com esse casamento apressado?
Depois de nós nascerá Homero? se abrirão a todos as portas dos mitos?

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Tradução de Michel Sleiman

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Mahmoud Darwich  

ELES ME QUEREM morto


Eles me querem morto, para dizer: Era um dos nossos, era nosso.
Escuto os mesmos passos. Vinte anos faz que os escuto baterem na mura-
lha da noite. Vêm, não abrem a porta.
Mas agora entram, são três: um poeta, um assassino, um leitor. Aceitam
tomar um vinho?, perguntei. Aceitamos, disseram.
Quando vão descarregar as armas em mim? Responderam: Calma! Esvazia-
ram cada qual sua taça e foram cantar para o povo.
Eu disse: Quando começam a me executar? Disseram: Já começamos... por
que envia sapatos para a alma?
Para ela andar na terra, eu disse. E eles: Mas por que escreve um poema
branco se a terra é toda preta?
Respondi: Porque trinta mares desembocam no meu peito. Disseram: E
por que gosta de vinho francês?
Eu disse: Porque mereço a mulher mais bela. Como quer morrer?
Azul, como as estrelas que fluem do teto – aceitam mais vinho? Disseram:
Aceitamos. Eu disse: Pedirei que sejam lentos, que me matem pouco a pou-
co, a tempo de escrever um último poema para a mulher do meu coração.
Mas eles se riram e da casa só roubam as palavras que direi à mulher do
meu coração.

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Tradução de Michel Sleiman

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Mahmoud Darwich

JOSÉ EU SOU, meu pai


José eu sou, meu pai. Meus irmãos não me amam, não me querem entre
eles. Tramam contra mim, meu pai, me atiram pedras e más palavras.
Querem que eu morra para então me louvar. A tua porta bateram na minha
cara.
Me expulsaram do campo. Envenenaram minha vinha, ó meu pai. Quebra-
ram meus brinquedos.
Quando a brisa passou e revolveu meu cabelo, se enciumaram, se rebelaram
contra ti. E tu, o que lhes fizeste, meu pai?
As borboletas pousam nos meus ombros, as espigas arqueiam sobre meu
corpo, os pássaros pousam nas minhas palmas.
O que eu fiz, meu pai, por que eu? Tu me chamaste José, e eles me jogaram
no poço, incriminaram o lobo, mas o lobo é mais clemente que meus ir-
mãos, ó meu pai!
Fiz mal a alguém quando eu disse que onze astros eu vira, e que o sol e a
lua se prostravam diante de mim?

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Tradução de Michel Sleiman

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Mahmoud Darwich

CONTAMOS NOSSOS DIAS com as borboletas


Contamos nossos dias com as borboletas do campo, descemos a escadaria
dos dias, escalamos a parte oculta do carvalho. Deixamos fora as ilusões
e fomos até a poesia pedir que ela nos renove alguma terra para a nossa
inspiração.
Vedou a rosa dos ventos... tornou-se ela própria a cara de nossos ídolos.
Então escreveremos... escreveremos para não morrer... para sonhar
escreveremos nosso nome para que mostre ao corpo a sua origem quando
tiver se levantado escreveremos o que os pássaros escrevem no espaço, e
esqueceremos a trilha dos passos
passamos no ar... é nosso o Messias, é nosso o Judas, é nosso o cronista da
nossa linhagem
passamos na terra... não queremos a pedra, nem para formar palavras, nem
para saudar nossa Síria.
Perdemos, e a poesia não levou nada... perdemos nossos dias carregados
de vida.

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