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DOI: 10.1590/1413-81232017227.

04462017 2393

Potter VR. Bioética: ponte para o futuro. São afirmando: For a long time there was no one who

RESENHAS BOOK REVIEWS


Paulo: Edições Loyola; 2016. recognized my name and wanted to be part of a mis-
sion. In the USA there was an immediate explosion of
Thiago Rocha da Cunha 1 the use of the word Bioethics by Medical People who
failed to mention my name or name any of my four
1
Programa de Pós-Graduação em Bioética, Pontifícia publications 1970-19714.
Universidade Católica do Paraná Os temas e as propostas abordados no livro “Bio-
ethics: bridge to the Future” – que até hoje não foi
Em 1971, Van Rensselaer Potter, bioquímico e profes- reimpresso ou reeditado nos EUA – podem explicar
sor de oncologia da Escola Médica da Universidade de o porquê a bioética hegemônica ignorou Potter por
Wisconsin, publicou o livro Bioethics: Bridge to The tantas décadas. Nessa obra, Potter abordava conflitos
Future, que apenas mais tarde seria reconhecido como éticos sensíveis ao discurso hegemônico das esferas
a obra seminal da bioética, um campo de atuação científicas, políticas e religiosas de seu país. Em um
científica, normativa e institucional estabelecido no contexto de guerra fria, boom populacional e iden-
final daquela década nos Estados Unidos da América tificação das primeiras consequências ambientais da
do Norte (EUA). revolução industrial, o autor partia do pressuposto
A consolidação deste campo da ética aplicada de que a sobrevivência da humanidade estava em
ocorreu, sobretudo, após a publicação do Belmont risco devido à incapacidade de estruturar uma área
Report (1978), documento que sintetizou orientações do conhecimento voltada a estabelecer parâmetros
éticas para a realização de pesquisas biomédicas e éticos para o desenvolvimento civilizacional. Assim,
comportamentais envolvendo seres humanos naquele ao defender a necessidade de uma regulação ética
país. A repercussão pública sobre abusos em investi- do crescimento econômico e do desenvolvimento
gações científicas envolvendo grupos vulnerabilizados científico, Potter violava aspectos inegociáveis
(incluindo população negra empobrecida, idosos do discurso liberal americano. Por outro lado, ao
e crianças) é considerada fator determinante para defender a necessidade de um controle popula-
o estabelecimento da bioética como um campo de cional voluntário e criticar os discursos religiosos
discussão pública sobre conflitos éticos envolvendo as que interditavam o avanço de políticas para saúde
ciências biomédicas e as práticas clínicas1. A publica- reprodutiva, regulação do aborto e planejamento
ção da Encyclopedia of Bioethics2, em 1978, e do livro familiar, Potter violava também aspectos sagrados
Principles of Biomedical Ethics, em 19793, consolidaram do discurso conservador local, tornando-se, assim,
no âmbito acadêmico a identidade biomédica que até inconveniente aos dois principais campos políticos
hoje caracteriza a bioética naquele país. da cultura norte-americana.
Contudo, não foi essa abordagem estritamente Como biólogo especialista em imunologia do
biomédica que Potter havia proposto em Bioethics: câncer, Potter utilizou de seu conhecimento sobre os
bridge to the future, agora publicado em português processos naturais para problematizar a capacidade
pela Edições Loyola. Nessa obra, o autor indicou a de adaptação humana em um contexto de aceleradas
bioética como um campo interdisciplinar do co- mudanças ambientais. Para isso, no primeiro capí-
nhecimento direcionado a garantir a sobrevivência tulo de “Bioética: uma ponte para o futuro” o autor
da humanidade frente aos riscos causados por ações revisou discussões filosóficas e biológicas acerca da
humanas e por desordens naturais. Ou seja, tratava-se ciência e da natureza humana, indicando a bioética
de uma abordagem global que pouco se aproximava como área destinada a compreender os processos de
do que mais tarde seria reconhecido como o campo adaptação fisiológica e cultural que seriam necessá-
hegemônico da bioética. De fato, o pioneirismo de rios à sobrevivência no planeta. No segundo capítulo,
Potter só veio a ser devidamente reconhecido nos anos Potter desenvolveu uma análise do pensamento de
1990, sobretudo após a realização do IV Congresso Teilhard de Chardin, estabelecendo uma ponte entre
Mundial de Bioética, em Tóquio, quando o autor, já os pressupostos biológicos discutidos no capítulo
muito idoso, participou por videoconferência como anterior e as reflexões sobre valores que permeiam
convidado especial do evento. os capítulos seguintes. Desta forma, enquanto o
Naquele período, as propostas de Potter – que terceiro capítulo foi dedicado a uma discussão so-
seguiu produzindo de modo solitário sua abordagem bre os significados de desenvolvimento e progresso
global da bioética – encontrava repercussão fora dos humano, os dois capítulos seguintes apresentaram
Estados Unidos, porém, em seu país suas contribui- algumas proposições e limitações do papel da ciência
ções não encontravam eco. Tanto assim, que em seus no ordenamento social. A partir destas reflexões, no
últimos escritos Potter manifestou o ressentimento sexto capítulo, Potter indicou algumas medidas prá-
com a comunidade conterrânea de bioeticistas, ticas para o estabelecimento da bioética como área
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interdisciplinar que congrega os diversos saberes na discussão ética sobre a sobrevivência adequada
em busca do bem comum, isto é, da sobrevivência da humanidade. De qualquer forma, embora tenha
adequada da humanidade. Nos quatro capítulos sido escrito há mais de 40 anos, o livro continua
seguintes, o autor retomou as reflexões sobre os atual e pertinente, pois, se por um lado nem todas
limites do conhecimento – inclusive do conheci- as previsões (acerca, sobretudo, das alterações
mentos bio-ético – e problematizou o papel da ambientais e do superpovoamento da terra) te-
ordem e desordem nos processos culturais e bio- nham resultado em um quadro agudo de risco
lógicos. No capítulo onze, estabeleceu uma crítica à à sobrevivência da humanidade, tais problemas
fragmentação das ciências a partir de uma reflexão não foram superados – ao contrário, permanecem
acerca de sua própria área de especialidade, isto projetados como sombras no muro do horizonte.
é, da biologia. Em sequência, dedicou-se a refletir
sobre ecologia, meio ambiente e estudos popu- Referências
lacionais para, no capítulo treze, finalizar uma
síntese da proposta da bioética como um campo 1. Jonsen AR. The birth of bioethics. New York: Oxford
University Press; 2003.
estruturado não apenas no discurso científico tra-
2. Reich WT. Encyclopedia of Bioethics. New York: The Free
dicional, mas no desenvolvimento da `sabedoria’, Press; 1978.
compreendida pelo autor como o conhecimento 3. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical
de como usar o conhecimento para o bem social5. ethics. New York: Oxford University Press; 1979.
É importante ressaltar que o próprio Potter, em 4. Potter VR. Final Message to Global Bioethics Network.
Global Bioethics 2002; 14:2-3.
seu livro Global Bioethics, de 19886, reconheceu
5. Potter VR. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo:
algumas limitações da obra seminal, aportando Edições Loyola; 2016.
uma análise mais ampla sobre os fatores sociais, 6. Potter VR. Global Bioethics: Building on the Leopold Leg-
econômicos e culturais que devem estar envolvidos acy. East Lansing: Michigan State University Press; 1988.

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