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12/12/2015 O realismo talvez não seja o que você imagina - 15/03/2015 - Ilustríssima - Folha de S.

Paulo

O realismo talvez não seja o que você
imagina
A natureza também não dá almoço grátis

RODRIGO NUNES

RESUMO Visto como irrealista, o ambientalismo costuma ser posto ao lado da emoção,
da particularidade e do sensível, em contraste com o racional, o ocidental, o adulto. O
realismo econômico, entretanto, mostra­se irrealista ao supor que, contra toda lógica, o
planeta pode oferecer energia e absorver dejetos indefinidamente.

Há algum tempo, um meme circulava pela internet com a foto de um vasto território em
Alberta, Canadá, inteiramente transfigurado pela extração de petróleo. "Se isto é bom
para a economia", dizia, "foda­se a economia". A carga afetiva da imagem certamente
sugeria, e parecia mesmo justificar, o sentimento expresso na frase. Mas talvez até
aqueles que inicialmente se deixassem impactar enxergariam ali, após alguma reflexão,
as limitações que se costuma atribuir ao ambientalismo.

Primeiro, o sentimentalismo e a falta de visão de conjunto: os apelos emotivos em que
supostas catástrofes são apresentadas fora do contexto dos empregos que geram, dos
investimentos que atraem, de seu peso na balança comercial. Segundo, o utopismo
ingênuo, que age como se realmente pudéssemos dar­nos ao luxo de frear a economia
por causa de uma tribo distante, uma espécie rara ou uma bela paisagem. De bom
coração, mas incapaz de apreender a complexidade do mundo, o irrealismo
ambientalista seria o exato contrário da realista "ciência" econômica: enquanto esta nos
ensina que não há almoço grátis, aquele parece acreditar que energia e dinheiro podem
vir do nada, e sonha com um mundo onde os omeletes se façam sem quebrar os ovos.

Feministas e antropólogos ensinaram­nos a reconhecer, numa série de oposições que
estruturam nosso pensamento, reflexos do modo como operamos a divisão fundamental
entre natureza e cultura. Parece inevitável que, ao tomar a defesa de territórios ditos
virgens ou populações ditas selvagens, o ambientalismo acabe colocado ­­junto com
mulheres, crianças e não ocidentais­­ do lado da emoção, da particularidade e do
sensível, em contraste com o racional, o universal, o abstrato, o ocidental, o adulto, o
masculino.

Vista através desta grade, toda preocupação ambiental que vem à tona no debate
público já se encontra neutralizada de antemão. Infantilizada e isolada como uma
expressão irrefletida, ela pode ser facilmente ignorada; na melhor das hipóteses, é
reconhecida como questão legítima porém parcial, a ser incorporada na racionalidade
mais ampla e madura dos economistas. No entanto, é esta mesma grande divisão que
se complexifica diante das questões político­científicas que o aquecimento global
levanta. Peça central neste reembaralhar de cartas é o conceito de Antropoceno: a
ideia, atualmente em discussão pela comunidade científica, de que teríamos
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abandonado a era geológica em que se deu quase toda história da humanidade ­­o
Holoceno­­ para entrar em um período que se define pelas transformações impostas por
nossa espécie ao funcionamento do sistema terrestre.

Quando atribuímos à história da cultura o valor de força geológica, é a própria natureza
que deixa de ser o pano de fundo estático do progresso humano para ganhar
historicidade: o planeta que temos hoje é diverso daquele que nossos ancestrais
tiveram, não apenas na sua aparência superficial, mas segundo parâmetros profundos
como temperatura e acidez oceânica.

Mais que isso, a temporalidade não linear dos processos físicos nos faz entrar numa
quadra em que as mudanças naturais têm sido mais velozes que as sociais: enquanto
cientistas revisam sistematicamente para cima suas previsões sobre o ritmo do
aquecimento global, 23 anos de conferências da ONU sobre o tema ainda estão longe
de produzir um acordo efetivo. Somos, em suma, uma espécie natural cuja cultura,
tendo modificado a natureza de maneira radical, agora se nos opõe com a resistência
bruta e muda de uma natureza que parecemos incapazes de modificar.

REALISTA O QUÊ? Não é apenas a fronteira entre natureza e cultura que se confunde,
mas também a diferença entre o "realista" e o "irreal". E não apenas porque o consenso
esmagador da comunidade científica hoje está do lado de gente que até ontem reduziria
a ciência a uma ferramenta de dominação, enquanto supostos racionalistas pendem
cada vez mais para apostas com um pé na ficção científica (como a geoengenharia) ou
um "pós­modernismo tático" que reduz evidências a questões de opinião.

Poderíamos descrever a situação, aliás, como uma inversão de posição entre particular
e universal. Ainda que tirem a legitimidade de sua disciplina de uma suposta homologia
com os modelos matemáticos da física, a realidade em relação à qual os economistas
são realistas ­­quando o são­­ não é a Terra como sistema físico, mas algo chamado "a
economia". Evidentemente, uma realidade está contida na outra: a economia existe na
Terra e depende de seus processos físicos. Aí, justamente, reside o problema.

No momento em que a ciência afirma que o planeta é incapaz de suportar o atual ritmo
e modelo de desenvolvimento econômico, ser realista em relação à economia sem ser
realista em relação a seu suporte físico é exatamente como acreditar que existe almoço
de graça; que, contra toda lógica, o planeta pode continuar a oferecer energia e
absorver dejetos indefinidamente e cada vez mais rápido. Trata­se, em resumo, de um
"realismo" que complementa a certeza de que só se faz omeletes quebrando ovos com
a crença mágica numa Galinha dos Ovos de Ouro infinitamente dadivosa. Não é à toa
que o economista Nicholas Georgescu­Roegen, autor de "Energia e Mitos Econômicos",
tem tido um revival ultimamente.

É por isto que aquele meme sobre as areias betuminosas do Canadá é menos ingênuo
do que aparenta à primeira vista. Por isso, também, o ônus da prova no debate público,
que costuma pesar desproporcionalmente contra qualquer tipo de proposta mais radical,
precisa começar a ser distribuído de maneira mais equânime: não é mais tão evidente
de que lado, hoje, está o pensamento mágico.

Um exemplo deste desequilíbrio pode ser encontrado num artigo de 7 de dezembro de
2014 nesta "Ilustríssima", em que o jornalista Marcelo Leite, comentando o debate em
torno do conceito de Antropoceno, opõe a perspectiva de Naomi Klein a visões mais

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moderadas, com clara desvantagem para a primeira. Movida apenas pelo "pensamento
positivo" que funda sua fé numa "reviravolta anticapitalista" como solução para a crise
ambiental, Klein seria impedida por sua "viseira" ideológica de entender que "o
capitalismo não é um monólito, mas um sistema flexível e cambiante". "Reconhecer a
mudança do clima como uma falha de mercado não obriga ninguém a concluir que a
falha não possa ser corrigida", o artigo arremata, citando a historiadora da ciência
Naomi Oreskes.

BOM PARA QUEM Mas serão as coisas tão simples? A expressão "falha de mercado"
é altamente carregada, porque sugere que o objetivo do mercado seria a preservação
ambiental. Contudo, chamar algo como a crise hídrica paulista de "falha de mercado" é
ignorar que ela foi provocada em grande parte pelo sucesso do mercado em render
dividendos aos acionistas da Sabesp ­­em detrimento da qualidade do serviço e do
bem­estar da população. O que move os agentes de mercado é essencialmente a
busca do lucro, não a promoção do bem comum; talvez não seja preciso uma viseira
ideológica, mas apenas uma dose saudável de ceticismo, para duvidar que a segunda
se produza espontaneamente a partir da primeira, ou que seja racional apostar todas as
fichas nisso. Além disso, como o próprio artigo acaba por reconhecer, o caminho das
soluções de mercado é exatamente aquele que tem sido tentado há décadas ­­com
resultados pífios e "falhas" notáveis. Enquanto isso, a janela de oportunidade para evitar
aumentos desastrosos de temperatura se fecha cada vez mais rápido.

A falácia em dizer que "o bem da economia" coincide com "o bem da sociedade"
decorre de que nem economia, nem sociedade são uma coisa só: "a economia" distribui
"o bem" de maneira sempre mais ou menos desigual. Quando a desigualdade cruza um
certo limiar, sobra a alternativa de "pagar para ver"; foi o caso das recentes eleições na
Grécia. Quando a alternativa "realista" consistia em aprofundar medidas que geraram
desemprego de 65% entre a juventude e um aumento de 40% na taxa de suicídios
(sem, diga­se de passagem, reanimar a economia do país), os gregos optaram por
serem realistas a respeito de outra realidade: a crise aguda de reprodução social que
ameaça a própria sobrevivência física de uma parcela crescente da população. Nestas
condições, exigir aquilo que o mercado diz ser impossível era a coisa mais razoável a
fazer.

Pode­se objetar que a ruína grega é uma situação bastante distinta da brasileira, onde,
até recentemente pelo menos, o crescimento econômico tirava milhões da pobreza.
Como ser contra o crescimento neste caso? Com efeito, consolidou­se nos governos do
PT, partido que abrigou parcela importante do ambientalismo nascente nos anos 80, um
consenso político segundo o qual a bandeira ambiental seria elitista e "de direita" ­­
ainda que a direita, dentro ou fora do governo, seja notoriamente desinteressada em
empunhá­la. Se ser de esquerda é distribuir renda, e só pode haver distribuição de
renda quando há crescimento econômico, como não concluir que ser de esquerda é
apostar no crescimento econômico?

O raciocínio parece a própria definição de uma "esquerda realista", até que lembramos
que é precisamente a ideia de crescimento econômico ilimitado nos moldes atuais que
os cientistas dizem ter se tornado irreal ­­e que, se indicadores como o PIB são
divisíveis por país, as mudanças climáticas não conhecem fronteiras. Mas seria o caso,
então, de sermos obrigados a escolher: ou justiça social ou ambiente? É nisto que
insiste boa parte de nossa esquerda, flertando publicamente com um negacionismo que,
no exterior, apenas a direita mais retrógrada tem coragem de abraçar.
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Por trás dessa insistência, contudo, esconde­se outra coisa: a blindagem da premissa
segundo a qual só pode haver distribuição de renda quando há crescimento econômico.
É verdade que esta foi a fórmula do bem­sucedido pacto lulista, que aproveitou um
momento propício da economia global para criar uma situação em que os ricos ficavam
mais ricos e os pobres, menos pobres. Agora que aquele momento parece ter atingido o
limite, fica evidente que se esconde aí uma opção política. Seria possível produzir mais
igualdade crescendo menos, caso não se tivesse abandonado o projeto de redistribuir a
riqueza já existente, representado por antigas bandeiras como o imposto sobre grandes
fortunas e a reforma agrária. Abandonado este projeto, sobrou apenas a distribuição da
renda por ser criada ­­e, portanto, o compromisso com o crescimento econômico
ilimitado e o enriquecimento continuado dos mais ricos.

A lógica do "anticapitalismo" de Naomi Klein poderia ser reconstruída de modo que
víssemos aí não a expressão de um "pensamento positivo", mas a enunciação de um
princípio: num momento de crise global, o justo é que a corda arrebente do lado dos
mais fortes. Se é impossível seguir crescendo de modo desenfreado, e se não se quer
abandonar o propósito da justiça social, é necessário dissociar justiça social e
crescimento econômico.

Não se pode apenas dizer "todos precisamos fazer sacrifícios", quando tanto lucros
quanto prejuízos, nesta curva histórica que nos trouxe à crise ambiental, sempre foram
tão desigualmente distribuídos. Isto significa que os custos da transição para uma
economia pós­carbono e da mitigação dos efeitos das mudanças climáticas devem
pesar proporcionalmente mais sobre quem tem mais condições de absorvê­los e mais
se beneficiou deste processo. Daí resultam ideias como a taxação pesada da indústria
petroleira, para a qual já foram pensadas propostas concretas com medidas que não
oneram o consumidor.

Esta opção é seguramente mais justa e, sob vários aspectos, provavelmente mais
realista do que oferecer incentivos e criar novos mercados justamente para quem
causou a crise, assumindo o risco de que, no futuro, nós teremos de pagar por novas
"falhas de mercado". Da mesma forma, por mais distantes que estejamos de ter pressão
e organização popular na escala necessária, parece mais realista acreditar que
mudanças verdadeiras só acontecerão por esta via do que confiar ­­contra a primeira de
lei de Newton­­ que mercado e sistema político saiam por conta própria de sua inércia.

Vê­se que a questão ambiental não só não é elitista por definição, como pode articular
uma crítica sistêmica e uma visão de justiça social mais profundas que aquelas que a
esquerda atualmente oferece. É verdade que, se entendemos "ecológico" como
sinônimo de "complexo" e "sistêmico", o ambientalismo muitas vezes foi exatamente o
contrário: pensando ambiente e humanidade como externos um ao outro, concentrando­
se em efeitos e não em causas, e assim frequentemente elitista, satisfeito com
conchavos de gabinete e medidas superficiais de mercado.

Mas existe hoje a oportunidade ­­certamente a necessidade­­ de superar este antigo
ambientalismo, cosmético e quase exclusivamente de classe média, na direção de um
projeto que constitua uma base social ampla para a qual justiça social e justiça
ambiental sejam indissociáveis. Isto é possível? Difícil saber. Mas talvez um dia
venhamos a lamentar e reconhecer que era a única opção realista.

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