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CORONAVÍRUS E OS LIMITES MORAIS DO CAPITALISMO

Em nome da “austeridade”, bilhões foram cortados de serviços sociais — e embolsados por


rentistas. Agora, com queda no consumo e produção, parte dos ultraliberais reveem suas
crenças: clamam para Estado salvar economia e até trabalhadores

OUTRASPALAVRAS - CRISE BRASILEIRA


por Gustavo Barbosa
Publicado 06/04/2020 às 15:12

No dia 27 de março, o Palácio do Planalto lançou uma campanha publicitária que tem
como mote a afirmação de que “o Brasil não pode parar” [abandonada após
repercussão negativa], incentivando as pessoas a ignorarem o coronavírus e saírem
às ruas para retomar suas rotinas de trabalho.

A peça foi divulgada enquanto ocorriam outros dois fatos bastante emblemáticos: o
anúncio da dianteira dos EUA no número de pessoas infectadas, ultrapassando China,
Itália e Espanha, e a mea culpa públicado prefeito de Milão por ter menosprezado o
vírus e aderido à campanha “Milão não para” no final de fevereiro. Naquela época, as
preocupações do alcaide eram as mesmas de Bolsonaro; hoje, se concentram na
procura de caixões para os quase 4500 milaneses mortos depois de um mês.

É nesse terreno onde floresceu o debate estimulado por gente como Roberto Justus.
Alinhadíssimo ao Planalto, o apresentador tratou com desdém a projeção de mortes
caso não haja o isolamento, defendendo publicamente o retorno à normalidade e
alegando que as consequências de uma economia parada seriam mais mortíferas que
os efeitos do coronavírus.

Desde o início da pandemia, Bolsonaro vem demonstrando não concordar com as


orientações médicas de que todos fiquem em casa. Insufladas pelo pronunciamento
do ex-capitão em rede nacional, pessoas saíram às ruas reproduzindo o slogan de
sua campanha. Enquanto isso, a convicção de que as esperanças contra o Covid-19
estão no Estado faz a apostasia liberal aumentar a cada dia, com economistas
ortodoxos, antes defensores do austericídio do teto de gastos, revendo seus credos
no livre mercado e abraçando o keynesianismo que tanto denunciaram como
responsável pela crise econômica no governo Dilma.

+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS


sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais
intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você
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O pano de fundo dessa discussão passa pelos arreios morais que poderiam impor
limites ao sistema econômico em que vivemos. Há quem diga que a economia é que
deve servir às pessoas, e não o contrário. Algo próximo do que aconteceu nos
chamados anos dourados do capitalismo, que duraram do fim da II Guerra Mundial
até por volta de 1975. O problema nessa assertiva, contudo, é um só: isso é
impossível.

Uma das grandes contradições do modo de produção capitalista reside no


descompasso entre as forças produtivas e as relações de produção. Como? Se os
bens e serviços produzidos assumem a forma de mercadoria, para que necessidades,
desejos e carências sejam satisfeitas é necessário que essas mercadorias circulem
pela única via possível, qual seja, o ato de compra e venda. Uma vez que são
produzidas de acordo com a dinâmica dos meios privados de produção, da exploração
da força de trabalho via o abocanhamento da maior parte da riqueza coletivamente
produzida e da consequente acumulação dessa riqueza, sua finalidade última não é –
e não pode ser – jamais a de atender ao bem-estar coletivo, e sim aos interesses da
classe que, animada e reanimada pelas engrenagens metabólicas do capital, enrica
às custas da escravidão assalariada.

Assim, não importa o grau dos avanços produtivos e tecnológicos e muito menos em
que medida podem atender às necessidades da sociedade. Enquanto houver os
grilhões da propriedade privada dos meios de produção, estes avanços vão tomar
outro rumo, qual seja, aquele apontado recentemente pela Oxfam, onde cerca de dois
mil bilionários acumulam aproximadamente 60% da riqueza do planeta.
Essa constatação abala os alicerces da ortodoxia religiosa liberal, pois demonstra que
a escassez tão apregoada por ela é, no fim das contas, artificial, de modo que temos
sim recursos e condições suficientes para lidar a contento com crises como a do
coronavírus. É a coleira do capital, no entanto, que aperta nosso pescoço e contém
esse passo à frente.

Em 2016, o Instituto de Pesquisa Estatística Aplicada (IPEA) divulgou estudo no qual


projetou o quanto a saúde pública perderia com a entrada em vigor da emenda
constitucional do teto de gastos. Os valores são assombrosos: 743 bilhões de reais
deixarão de ser destinados ao SUS para que a gula do rentismo seja saciada e o
sacrossanto superávit primário seja garantido.

Na época, os defensores da inédita constitucionalização de uma regra fiscal dessa


amplitude fizeram pouco caso dos exaustivos alertas sobre o sufocamento que ela
traria a serviços públicos essenciais como o SUS, hoje a última trincheira, junto com
a ciência, capaz de fazer frente à propagação da Covid-19. “É preciso conter a
gastança governamental para atrair investimentos”, bradava a apologética neoliberal
enquanto vomitava jargões empoeirados e projeções fatalistas parecidas com as que
fizeram recentemente na aprovação da reforma da Previdência. Ainda durante sua
vigência a devoção ao deus-mercado seguiu firme, fechando os olhos para
prospecções genocidas como a apontada em 2019 pelo trabalho conjunto de
entidades como a Fiocruz Minas, o IPEA, a Universidade Federal da Bahia e a
Universidade de Stanford, dos Estados Unidos: até 2030, a retirada de recursos do
SUS irá aumentar a mortalidade infantil em vinte mil mortes, além de 124 mil
internações que poderiam ser evitadas.

A situação caótica deflagrada pelo coronavírus, entretanto, foi demais para a fé de


economistas como Monica de Bolle, ontem uma fiel propagadora do evangelho
rentista, hoje uma ferrenha militante pelo fim do teto. Outros, contudo, resistem na
idolatria religiosa livre-cambista. É o exemplo de Marcos Lisboa, presidente do
Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), que em artigo na Folha de S. Paulo defendeu
a manutenção do teto em decorrência da possibilidade constitucional de liberação de
crédito extraordinário em tempos de calamidade pública.
Mas e quando a calamidade acabar? De onde irão sair os investimentos necessários
para manter a cadeia produtiva aquecida? Do setor privado? Mas como, se sua
sobrevivência depende de pacotes como o de dois trilhões de dólares aprovados
recentemente pelo Senado dos EUA para auxiliar trabalhadores, empresas e seu
sistema de saúde (100% privado, não custa lembrar)? O mesmo acontece no Reino
Unido, hoje governado por conservadores que há pouco empunhavam com orgulho a
bandeira da austeridade mas que acabaram de anunciar pacotes bilionários com o
intuito de pagar 80% dos salários até o limite de duas mil e quinhentas libras por mês.

Em 11 de setembro de 2001, tão logo ocorreram os atentados ao Word Trade Center,


o então presidente George W. Bush fez um pronunciamento em rede nacional
incentivando as pessoas a irem às compras. Afinal, o sistema entra em colapso se
não há circulação de mercadorias. A diferença de agora é que essa circulação implica
no risco de vida a milhões para os quais, se não forem salvos por meio de medidas
profiláticas como as de isolamento, os custos serão ainda maiores no tratamento de
enfermos e na procura de um lugar para colocar os mortos, dilema pelo qual passa
hoje a Itália.

Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel escreve que “em nossa época, rica
em reflexão e raciocínio, jamais alguém conseguiu chegar longe sem saber oferecer
uma boa razão para tudo, mesmo a pior e mais errada das coisas”, concluindo que
“tudo o que foi corrompido neste mundo foi corrompido por boas razões”. No
capitalismo, as “boas razões” que mascaram a sede predatória da acumulação jamais
se alinham completamente aos interesses da classe trabalhadora, grande maioria da
população. Saber disso é fundamental para caminharmos em direção a uma
sociabilidade na qual não haja nenhuma chance de vidas humanas serem sacrificadas
no altar da assim chamada economia.

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