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O ETNOCENTRISMO

A palavra etnocentrismo designa uma forma de enxergar outra etnia (e suas


derivações, como cultura, hábitos, religião, idioma e formas de vida em geral) com
base na etnia própria. A visão etnocêntrica de mundo não permite ao observador de
uma cultura reconhecer a alteridade e faz com que ele estabeleça a sua própria
cultura como ponto de partida e referência para quantificar e qualificar as outras
culturas. Disso se resulta, grosso modo, que o observador etnocêntrico vê-se como
superior aos demais em aspectos culturais, religiosos e étnico-raciais.
Veja mais: Cultura brasileira: da diversidade à desigualdade

O que é etnocentrismo
A palavra etnocentrismo contém os radicais “etno” (derivado de etnia, que significa,
por sua vez, semelhança de hábitos, costumes e cultura) e “centrismo” (posição que
coloca algo no centro, como referência central a tudo que está a sua volta). A visão
etnocêntrica é aquela que vê o mundo com base em sua própria cultura,
desconsiderando as outras culturas ou considerando a sua como superior às demais.

A Ku Klux Klan tinha como uma de suas pautas a manutenção da supremacia


branca e do cristianismo.
Everardo Rocha, antropólogo e professor do departamento de Comunicação Social
da PUC-Rio e um grande estudioso brasileiro do etnocentrismo, afirma que o
“etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado
como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos
nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No
plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença;
no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc”.|1|
O etnocentrismo pode relacionar-se com o racismo, com a xenofobia ou com
a intolerância religiosa, porém esses elementos não são, rigorosamente, as mesmas
coisas.
• Etnocentrismo e racismo
Enquanto o etnocentrismo designa uma classificação por etnia, o racismo parte da
noção de “raça”, que foi construída socialmente ao longo dos anos, e defende a
posição de que os diferentes grupos étnicos podem relacionar-se com as diferentes
“raças”.
A noção de raça já está em desuso no campo da antropologia e da sociologia, pois
ela pretendia, quando surgiu, assumir a tese de que a espécie humana era classificada
por diferentes raças hierarquizadas, de modo que algumas fossem superiores e outras
inferiores.
Na antropologia do século XIX, tentava-se associar o nível de desenvolvimento
cultural com a “raça” (entendendo raça como um aspecto biológico), sendo que
“culturas superiores” derivariam de raças superiores, e “culturas inferiores”, de raças
inferiores.
Essa visão, por ser etnocêntrica e ter como base o homem branco europeu, justificou,
à época, a exploração dos povos africanos, asiáticos, indianos, e nativos da Oceania
e das Américas, por parte dos europeus.
• Etnocentrismo e xenofobia
A xenofobia é a aversão ao que é estrangeiro, ao que veio de fora. Uma visão
etnocêntrica, por partir da sua própria cultura para estabelecer uma hierarquia
cultural, tende a ver o estrangeiro como alguém inferior em hábitos, costumes,
religião e outros aspectos culturais. O que resulta naquela aversão ao que veio de
outro lugar e é, portanto, inferior ao que já habitava o lugar de referência.
• Etnocentrismo e intolerância religiosa
Essa relação é semelhante às que foram descritas nos tópicos anteriores, mas
relaciona-se diretamente com a religião. A tendência, neste caso, é que a religião do
outro seja vista como errada e inferior, o que implica uma noção de classificação,
hierarquização e preconceito quanto às religiões, derivando disso um etnocentrismo
religioso.
Leia mais: Qual a diferença entre religião seita?
Etnocentrismo religioso
A visão etnocêntrica na religião causa a intolerância religiosa e o preconceito
contra as manifestações espirituais diferentes das que o observador etnocêntrico
segue. Tomemos como exemplo o Ocidente, que é majoritariamente cristão.
O cristianismo foi amplamente difundido dentro da Europa, e a colonização das
Américas pelos povos europeus forçou a entrada e disseminação dessa religião em
nosso continente.
Os povos nativos daqui tiveram as suas crenças forçadamente profanadas
pelos colonizadores, que promoveram, inclusive, grandes campanhas de
catequização dos nativos por meio de grupos religiosos cristãos, os jesuítas, como a
Companhia de Jesus. Para os europeus, o cristianismo era a religião correta, que
levaria à salvação da alma, enquanto a religião dos povos nativos era inferior, errada,
pecadora etc.
Ainda hoje existem casos de etnocentrismo religioso, quando, por exemplo, religiões
de matriz africana são desrespeitadas por cristãos, que as associam ao pecado e
ao que é considerado demoníaco, podendo acontecer também o movimento inverso
(que é mais difícil de ocorrer por conta da hegemonia cristã ocidental). Isso ocorre
porque o praticante de uma determinada religião tende a considerar o seu grupo
religioso como a única manifestação dogmaticamente correta.
Saiba também: Diferença entre candomblé e umbanda
Etnocentrismo e relativismo cultural
No século XIX, iniciou-se o processo do neocolonialismo ou imperialismo europeu. A
Inglaterra, a França, a Alemanha e outras potências capitalistas europeias
investiram em novas políticas de expansão territorial e, praticamente, dividiram
entre si os territórios da África, da Ásia e da Oceania.
Para justificar a exploração das riquezas daqueles lugares e a política de segregação
racial, os europeus tiveram que buscar uma justificativa científica, pois, no século
XIX, a ciência já estava amplamente divulgada e a religião já não era mais
suficiente para justificar qualquer tipo de ação autoritária.
Nesse sentido, a antropologia surgiu como uma tentativa de criar teorias científicas
que justificassem a exploração dos povos de fora da Europa pelos povos europeus.
As primeiras teorias dessa área, desenvolvidas pelo biólogo e geógrafo inglês Herbert
Spencer, afirmavam que havia uma espécie de hierarquia das raças.
Nessa perspectiva, os brancos europeus eram superiores, seguidos pelos asiáticos,
pelos índios e pelos africanos, sendo os últimos os menos desenvolvidos. Essa
corrente ficou conhecida como darwinismo social ou evolucionismo social, pois se
apropriou da teoria da evolução biológica de Charles Darwin e aplicou-a no campo
sociológico. No fim do século XIX, o antropólogo e geógrafo alemão Franz
Boas questionou o evolucionismo social ao conhecer a cultura dos povos nativos
do atual estado do Alaska, nos Estados Unidos.
A partir do século XX, a visão etnocêntrica da antropologia foi revista por estudiosos
como o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski, que realizou trabalhos de
campo com os aborígenes australianos, e o antropólogo belga radicado no
Brasil Claude Lévi-Strauss, que durante anos aproximou-se de tribos indígenas
brasileiras para desenvolver seu trabalho antropológico. Strauss deu o início mais
preciso ao campo da antropologia cultural e ao estruturalismo antropológico,
além de reconhecer de vez a
importância de respeitar a
diversidade cultural.
Claude Lévi-Strauss, o antropólogo
que questionou o etnocentrismo
presente nas análises antropológicas.
O respeito à diversidade cultural
destrói qualquer noção de
hierarquia cultural e traz à tona a
ideia de relativismo, ou seja, de que os
aspectos de uma cultura devem ser
observados respeitando a identidade
daquela cultura específica e não
partindo de uma noção própria de sua cultura. Essa noção de relativismo cultural é
necessária para estabelecer-se um estudo sério e preciso sobre as diferentes culturas,
mas deve-se ter cautela quanto ao seu uso.
A filósofa brasileira e professora emérita da USP Marilena Chaui chama a atenção,
em seu livro Convite à filosofia, para o fato de que um relativismo cultural
exagerado pode ocasionar na normalização de comportamentos e hábitos
culturais desumanos. Um exemplo disso está na Somália, onde habitantes de tribos
locais praticam a extirpação do clitóris das meninas, o que causa danos irreparáveis
à saúde delas. Essa prática, já denunciada e condenada pela ONU, é um exemplo de
que nem sempre um hábito cultural pode ser relativizado em nome da recusa ao
etnocentrismo.

Exemplos de etnocentrismo
A colonização das Américas iniciou-se sustentada sobre um viés etnocêntrico.
Aliás, qualquer movimento que se pretenda colonizador em um local habitado por
outros seres humanos é etnocêntrico. Um trecho da carta escrita por Pero Magalhães
Gândavo, historiador português do século XVI, para o Rei de Portugal, exemplifica a
visão etnocêntrica dos portugueses sobre os brasileiros:
“[...] a língua de que usam, toda pela costa, é uma: ainda que em certos
vocábulos difere em algumas partes; mas não de maneira que se deixem de
entender. (…) Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L,
nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e
desta maneira vivem desordenadamente”.|2|
Essa visão expõe uma hierarquização de culturas que inferioriza os povos nativos do
Brasil e estabelece o ponto de vista europeu como o superior arbitrariamente. Os
portugueses consideravam o modo de vida tribal como desordenado porque eles
buscavam deliberadamente apenas o modo europeu de viver como referencial
cultural.
No Brasil o etnocentrismo prevalece ainda hoje, pois o homem branco que aqui
vive ainda enxerga o indígena como alguém atrasado socialmente. Também vemos
manifestações etnocêntricas por aqui ao percebermos os habitantes dos estados das
regiões Sul e Sudeste do país acharem-se mais desenvolvidos cultural ou socialmente
que os habitantes das regiões Norte e Nordeste.
Outro exemplo de etnocentrismo que ainda existe em nosso tempo é a visão de que
o continente africano é atrasado, devastado por mazelas e pela fome. Se ainda há
fome, miséria e doenças na África subsaariana, isso é consequência da exploração
europeia que, além de tomar os recursos naturais daquele continente, estabeleceu
uma divisão de Estados nacionais que forçou tribos rivais a conviverem juntas,
ocasionando guerras civis sangrentas e intermináveis.
Um exemplo marcante de etnocentrismo ocorreu no governo nazista de Hitler, na
Alemanha, que julgou existir uma superioridade da suposta raça ariana branca em
relação às demais, o que justificava a apreensão, a expulsão e até a morte de povos
de outras origens, em especial os judeus.
O etnocentrismo na antropologia
oitocentista visava justificar a dominação
de outros povos pelos europeus.
Autores
Para compreender melhor o etnocentrismo,
dois livros introdutórios e de leitura fácil são
obrigatórios: O que é
etnocentrismo (Coleção Primeiros Passos),
de Everardo Rocha, e Relativizando - uma
introdução à antropologia social, do
antropólogo, professor e escritor
brasileiro Roberto da Matta.
Para estudos mais avançados, recomendamos a leitura de livros do antropólogo
francês Claude Lévi-Strauss, como Raça e história; Antropologia
estrutural; Pensamento selvagem; e Tristes trópicos. Outra leitura obrigatória para
compreender mais profundamente o etnocentrismo é o livro Argonautas do Pacífico
Sul, do antropólogo polonês Bronislaw Malinoswski.
Notas
|1| ROCHA, Everardo Pereira Guimarães. O que é etnocentrismo?. Col. Primeiros
Passos. 5. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 5.
|2| GÂNDAVO, Pero Magalhães. A primeira história do Brasil: história da província de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

Atividades:
Baseado no texto responda:
1- Os atos que vêm acontecendo ultimamente nos EUA podem ser
considerados manifestações etnocêntricas? Justifique.
2- Há etnocentrismo no Brasil? Justifique

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